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Linguagem e educação: as barreiras da linguagem para a dialetização do pensamento

Language and education: language barriers to the dialectization of thought

RESUMO

O artigo retoma alguns aspectos de escritos críticos: a pergunta sobre a linguagem e seu significado político e pedagógico como limite de acesso ao conhecimento. Para isso, parte da experiência docente pela qual constata na prática que o ponto de vista de classe define o modo de abordagem metodológica e os limites de apreensão da teoria e de interpretação da realidade. Parte, ainda, do pressuposto que a abordagem crítica subentende a ruptura com o pensamento metafísico e idealista para afirmar a importância de outra concepção de história e de política inferindo que tudo é imanente e histórico, assim como tudo é político na constituição da sociedade moderna. Além do mais, acentua a dimensão política da linguagem como instrumento de consolidação da hegemonia burguesa. Por fim, aborda a lógica formal e a dialética materialista e seus desdobramentos na educação. Explicitar as diferenças entre as lógicas formal e dialética permite elucidar as dificuldades de uma prática educacional no ensino superior.

Palavras-chave:
linguagem; educação; metodologia; pesquisa

ABSTRACT

This paper reviews some aspects of critical writings, such as the question related to language and its political and pedagogical meanings as barriers to access to knowledge. It departs from the teaching experience, as such experience shows us that, in practice, class perspectives define the methodological approach to be used as well as the limits to which the teacher grasps theory and interprets reality. The premise of the study is that the use of a critical approach implies breaking with metaphysical and idealist thinking, as such use recognizes the importance of a different conception of history and politics, which sees everything as immanent and historical, just as everything is political in the constitution of modern society. This study also emphasizes the political dimension of language as an instrument for consolidating bourgeois hegemony. Finally, it addresses formal logic and materialist dialectics and their implications for education. Explaining the differences between formal and dialectical logic allows us to elucidate the difficulties of an educational practice in higher education.

Keywords:
language; education; methodology; search

1. Introdução

Toda elaboração do pensamento procede de elaborações anteriores - eis a razão da necessidade de uma leitura crítica dos textos clássicos (Lefebvre; Guterman, 2018Lefebvre, Henri e Guterman, Norbert. (2018). Introdução. In: Lenin, Vladimir Ilitch. Cadernos filosóficos (pp. 13-98). Boitempo., p. 15).

Partimos da temática sobre os limites da linguagem acadêmica como barreira para o acesso das classes populares ao ensino superior, como parte do projeto de produtividade em pesquisa (CNPq). Para ampliar a análise, queremos aprofundar as diferenças entre as lógicas formal e dialética a fim de elucidar as dificuldades de uma prática educacional voltada à dialetização do pensamento no ensino superior. Trata-se de uma barreira a superar e que atinge tanto a linguagem quanto a gramática e a própria literatura. No contexto abordado, cabe lembrar que a didática nunca foi dialética e esta é outra dificuldade a enfrentar no campo da educação crítica.

Salientamos que esta reflexão não é resultado de mera especulação teórica, mas consequência de duas décadas de docência em Programas de Mestrado e Doutorado, na dedicação à formação de docentes na área da educação. Constatam-se limites relevantes na apropriação do conhecimento crítico nos alunos, como se estivessem diante de uma barreira intransponível. Os limites que detectamos são psicológicos, filosóficos e religiosos, além da força ideológica do senso comum, que atuam como balizas que demarcam o ponto extremo até onde se pode chegar e funcionam como grilhões invisíveis que delimitam a visão de mundo. Constatamos, na prática, que o ponto de vista de classe define o modo de abordagem metodológica e os limites de apreensão da teoria e de interpretação da realidade. É como se estivessem na soleira de uma porta que não conseguem transpor; a porta é o limiar que separa dois mundos: o pragmático, estático e linear, do dialético, relacional e dinâmico.

O limiar é uma passagem, mas pode ser também uma barreira: a soleira tem algo de “rua de mão única” (Benjamin, 1987Benjamin, Walter. (1987). Rua de Mao Única. Brasiliense.), uma vez transposta parece que não há mais retorno. Transpor a soleira implica superar os preconceitos, passando de uma concepção positivista e pragmática do mundo para uma concepção crítica da história, de um pensamento que reconhece a sua historicidade e que fala de uma determinada perspectiva; para tanto, a atitude metodológica é fundamental e passa por uma reflexão sobre a linguagem em sua dimensão política e metafórica (Gramsci, 1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi.).

Se seguirmos a colocação de Dias (2012Dias, Edmundo Fernandes. (2012). Revolução passiva e modo de vida. Sundermann., p. 72), de que o “subalterno é aquele que não pode falar, que não tem voz”, podemos afirmar que, mesmo que sua voz ecoe forte a partir dos seus movimentos de resistência e de luta social, ela não tem ressonância no espaço acadêmico porque este foi adestrado para responder aos interesses da classe dominante. Para desenvolver esta nova abordagem do tema, apoiamo-nos em Antonio Gramsci (1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi.), Theodor Adorno (1986Adorno, Theodor W. (1986). O ensaio como forma. In: Sociologia (pp. 167-187). Ática.; 1982Adorno, Theodor W. (1982). La ideologia como linguaje - La jerga de la autenticidade. Taurus., 2008Adorno, Theodor W. (2008). Introdução à Sociologia. UNESP.), Bernard Edelman (2016Edelman, Bernard. (2016). A legalização da Classe Operária. Boitempo.), Pier Paolo Pasolini (1994Pasolini, Pier Paolo. (1994). Passione e ideologia. Garzanti., 1982Pasolini, Pier Paolo. (1990). Scritti Corsari. Garzanti.), Vladimir Ilitch Lenin (2018Lenin, Vladimir Ilitch. (2018). Cadernos filosóficos. Boitempo.), Henri Lefebvre e Norbert Guterman (1938, 2018Lefebvre, Henri e Guterman, Norbert. (2018). Introdução. In: Lenin, Vladimir Ilitch. Cadernos filosóficos (pp. 13-98). Boitempo.), Edmundo Fernandes Dias (2012Dias, Edmundo Fernandes. (2012). Revolução passiva e modo de vida. Sundermann., 2014), entre outros. Com Gramsci (1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi., Q. 11, p. 1427), reiteramos o pressuposto de que a “linguagem se transforma com o transformar-se de toda civilização”, bem como com a “hegemonia exercida por uma língua nacional sobre outras etc”. Com Adorno (1986Adorno, Theodor W. (1986). O ensaio como forma. In: Sociologia (pp. 167-187). Ática., 1982Adorno, Theodor W. (1982). La ideologia como linguaje - La jerga de la autenticidade. Taurus.), concordamos que a formação do senso comum pelo positivismo contribui para a separação entre sujeito e objeto, própria da lógica formal, limitando o campo de interpretação da realidade. Com Edelman (2016Edelman, Bernard. (2016). A legalização da Classe Operária. Boitempo., p. 141), refletimos sobre a classe operária limitada no campo do direito, de modo que “sua voz, quando toma a palavra”, é “acusada de anacronismo” ou de “espontaneísmo”, sendo “capturada nas categorias jurídicas, esmagada pela ideologia, pela tecnicidade, pelo economicismo”, acabando sempre por ter que “negociar a exprimir-se na linguagem do ‘comedimento’, da ordem e do direito”, uma das formas de reduzi-la à passividade. De Pasolini (1994Pasolini, Pier Paolo. (1994). Passione e ideologia. Garzanti.), retomamos a “crítica à rigidez pragmática da linguagem nas suas mais variadas manifestações simbólicas”, como expressão máxima da lógica formal e abstrata, que tudo naturaliza e reduz à neutralidade, que é a adesão ao pensamento dominante. Trata-se de explicitar como a linguagem encarna relações de poder e exerce influência na construção de uma visão de mundo conservadora da ordem instituída. Circunscrevemos nossa reflexão ao contexto das Ciências Humanas, as quais têm sofrido historicamente a ingerência metodológica de outros campos do conhecimento a fim de ser reconhecida como Ciência.

Partimos do pressuposto que a abordagem crítica subentende a ruptura com o pensamento metafísico e idealista a partir de uma outra concepção de história e de política inferindo que tudo é imanente e histórico, assim como tudo é político na constituição da sociedade moderna. Com Gramsci (1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi., Q. 11, p. 1425), seguindo a senda de Lenin e Marx, entendemos que o “movimento histórico nasce com base na estrutura” e que entender em profundidade este movimento permite eliminar tanto os traços de determinismo mecanicista quanto de idealismo no contexto da metodologia histórica: a linguagem se articula com a política e a ideologia, de modo que a estrutura econômica e social se consolida e se mantém a partir de como se constrói e se solidifica a visão de mundo.

Adorno (2003Adorno, Theodor W. (2003). Notas de literatura I. Ed. 34., p. 16) analisa a linguagem na perspectiva das relações internas da academia, que identifica conhecimento com ciência organizada e exclui tudo o que não esteja vestido com a “dignidade do universal, do permanente e, hoje em dia, se possível, com a dignidade do ‘originário’”, de modo a produzir o distanciamento do “olhar” como aparência de neutralidade. A proposta epistemológica advinda das áreas científicas e tecnológicas separa conteúdo de forma: o conteúdo, “uma vez fixado conforme o modelo da sentença protocolar, deveria ser indiferente à sua forma de exposição” que deveria ser “alheia às exigências do assunto”. O que resulta é um pensamento estático, abstrato e distante das necessidades práticas e dos interesses das classes populares. Nas palavras de Adorno (1982Adorno, Theodor W. (1982). La ideologia como linguaje - La jerga de la autenticidade. Taurus., p. 13), a “comunicação envolve e divulga uma verdade que, devido ao súbito acordo coletivo, deveria antes tornar-se suspeita”.

Pasolini (1994Pasolini, Pier Paolo. (1994). Passione e ideologia. Garzanti.), por sua vez, ressalta a força desmesurada que assume a ideologia na sociedade de consumo e que, na ação dos meios de comunicação de massa, imprime às classes sociais o modo de pensar que convém a esta sociedade, abatendo a força inventiva da cultura popular, reduzida a uma afasia aterradora. Trata-se de uma sociedade que “não se contenta mais com um ‘homem que consome’, mas pretende que não seja concebível outras ideologias que não sejam a do consumo”. O autor, já na década de 1970, refere-se a um processo de aculturação efetivado pelos meios de comunicação de massa e ocorrido do centro para a periferia, matando as culturas populares ainda existentes; alerta para o fato de que o “Centro, em poucos anos, destruiu todas as culturas periféricas das quais, até poucos anos, tinha-se assegurado vida própria, substancialmente livre, mesmo nas periferias mais pobre e miseráveis” (Pasolini, 1990Pasolini, Pier Paolo. (1990). Scritti Corsari. Garzanti., p. 22-23).

Na verdade, o positivismo e todas as filosofias dele decorrentes, assim como as várias formas de idealismo, pensam os objetos abstratamente, subjetivamente, como se o pensamento antecedesse as coisas, como se fosse superior à realidade material circundante. É o que se expressa na lógica formal: o não reconhecimento de que o conceito tem como seu limite a exterioridade. Lenin (2018Lenin, Vladimir Ilitch. (2018). Cadernos filosóficos. Boitempo., p. 290), nas suas anotações críticas sobre a dialética hegeliana, pergunta: “em que a transição dialética se distingue da não dialética? No salto. Na contradição. Na interrupção da gradualidade. Na unidade (identidade) do ser e do não ser”. Lefebvre e Guterman (2018Lefebvre, Henri e Guterman, Norbert. (2018). Introdução. In: Lenin, Vladimir Ilitch. Cadernos filosóficos (pp. 13-98). Boitempo.), na Introdução aos Cadernos Filosóficos de Lenin, esclarecem o quanto Hegel foi importante para Lenin no sentido de esclarecer questões filosóficas fundamentais e entender a grande ruptura efetuada por Marx no corpo da filosofia:

Já Hegel se lamentava da estrutura das frases que, para exprimir a reciprocidade, a contradição e o movimento dialético, devem ser forçadas. Sua obscuridade deve-se, em parte, ao vocabulário e à gramática modelados por uma tradição de lógica estática. [...] é possível indicar que uma crítica progressiva das categorias do pensamento e da expressão é necessária e que essa revisão deve ser um aspecto da vida e da prática social (Lefebvre e Guterman, 2018Lefebvre, Henri e Guterman, Norbert. (2018). Introdução. In: Lenin, Vladimir Ilitch. Cadernos filosóficos (pp. 13-98). Boitempo., p. 52-53)

Um processo de dialetização do pensamento se torna necessário para restituir o movimento às categorias e tornar o pensamento condizente com a realidade efetiva das coisas. Para tanto, faz-se necessária a crítica aos métodos tradicionais que compõe o corpo da metafísica e das teorias mais recentes e que se desdobram em duas formas: o método que se concentra na tentativa de explicitar a veracidade do pensamento em si mesmo, sem relação com os problemas reais (idealismo); o método que procura confirmar a veracidade do pensamento no mundo externo, mas sem considerar o movimento histórico (determinismo, mecanicismo). A diferença fundamental destas abordagens com o materialismo histórico é que estes métodos são estanques, refletem com categorias fixas e não consideram o movimento histórico e a unidade entre teoria e prática.

Várias perspectivas poderiam ser especificadas aqui, mas tomamos como exemplo a leitura de Gramsci sobre o duplo revisionismo de Marx e o que esta capitulação significou em termos da compreensão do materialismo histórico enquanto método. Outra abordagem importante se encontra na leitura da obra de Hegel efetuada por Lenin nos Cadernos Filosóficos. Também retomamos Adorno, que salienta como base das análises positivistas que o “ideal da metodologia é o tautológico, ou seja, os conhecimentos são determinados de modo operacional” e que somente “são produtivos os conhecimentos que ultrapassam o juízo analítico puro, que vão além desse caráter tautológico- operacional” (Adorno, 2008Adorno, Theodor W. (2008). Introdução à Sociologia. UNESP., p. 194-195; 2009Adorno, Theodor W. (2009). Dialética Negativa. Zahar., p 117 ss.).

No fundo, a questão a ser explicitada é: O que é o pensamento crítico? E a resposta é simples: é o pensamento que reconhece sua historicidade e, como tal, esclarece que fala de uma determinada perspectiva (que pode ser um método racional, como em Kant, ou o método dialético, como Hegel, ou ainda uma posição de classe, como Marx). Da perspectiva de Gramsci (1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi., Q. 4, p. 436), a postura dogmática é ideológica, no sentido que “Para Marx, as ideologias são tudo menos ilusões e aparência; são uma realidade objetiva e operante”; porém, é preciso ter clareza que “não são as ideologias que criam a realidade social, mas é a realidade social, na sua estrutura produtiva, que cria as ideologias”. O pensamento crítico procura explicitar esta realidade quando a disputa entre projetos sociais antagônicos se acirra, apoiada nas novas dimensões da ideologia a partir das possibilidades colocadas pelos meios de comunicação de massa.

O caminho que seguimos aqui se compõe na primeira parte de uma abordagem dos limites da lógica formal em contraposição à lógica dialética na leitura dos autores acima citados. Em seguida, explicitamos as bases do pensamento dialético como nova forma de interpelação do real em sua historicidade, esclarecendo algumas categorias fundamentais para a construção do pensamento crítico. Em prosseguimento, apresentamos alguns pontos na perspectiva da educação na sua dimensão política, visto que a articulação entre teoria pedagógica e teoria política é que permite entender os limites e as possibilidades de educação dos subalternos. Dessa perspectiva, a questão da linguagem e de suas barreiras, a partir da visão de mundo instituída pela estrutura hegemônica, precisa ser elucidada para renovar a abordagem pedagógica. A partir do processo metodológico de ensino alicerçado no contexto social e político, podemos redefinir a questão do conhecimento enquanto caminho para a efetiva liberdade individual e coletiva no seio de um novo projeto de sociedade.

2. Notas sobre os limites da lógica formal no conhecimento da realidade efetiva

A subjetividade, o próprio pensamento, não pode ser explicado a partir de si mesmo, mas somente a partir do elemento fático, sobretudo da sociedade (Adorno, 2009Adorno, Theodor W. (2009). Dialética Negativa. Zahar., p.123).

Partimos do pressuposto que o ponto de vista de classe define o modo de abordagem metodológica e o campo de visão de mundo. É como se nos encontrássemos em um limiar que, do ponto de vista do pensamento positivo funciona como fronteira, divisa, confim ou barreira que nos limita em determinado horizonte ideológico. Da perspectiva do positivismo, sujeito e objeto estão separados, a abordagem do objeto é estática, os processos naturais isolados, abstraídos do todo, não como variáveis, mas como coisas fixas, rígidas, como elementos estabelecidos definitivamente.

O mesmo pode-se dizer de toda a metafísica, que postula a separação entre teoria e prática, elaborando doutrinas que pretendem expressar a solução para todos os enigmas a partir de proposições idealistas que entendem o conhecimento como algo “misterioso que existe antes da natureza e dos homens em geral” (Lefebvre, 1979Lefebvre, Henri. (1979). Lógica formal, lógica dialética. Civilização Brasileira., p. 53). Como acentua Adorno (2003Adorno, Theodor W. (2003). Notas de literatura I. Ed. 34., p. 16), é como lançar-se “à especulação sobre objetos específicos já culturalmente pré-formados”, visto que a “corporação acadêmica só tolera como filosofia o que se veste com a dignidade do universal”.

Na linguagem, cada palavra tem um sentido ou vários sentidos, a partir do modo como se aliam forma e conteúdo expressando uma realidade em movimento. A lógica formal separa forma e conteúdo, na medida em que formula o princípio de identidade como base de toda reflexão, esvaziando o pensamento de seu conteúdo, de modo que tal princípio “implica a pura e simples repetição: a tautologia” e, reduzindo à “pura forma, fora do conteúdo, o pensamento deixa de ser pensamento”, torna-se consciência vazia. A lógica formal apresenta uma “verdade limitada, insuficiente, abstrata, relativa, mas com uma certa verdade”, uma verdade limitada enquanto forma do conteúdo que se tenta expressar a partir da experiência vivida, na medida em que esta se produz pela diferença, pela relação com os outros e com o mundo (Lefebvre, 1979Lefebvre, Henri. (1979). Lógica formal, lógica dialética. Civilização Brasileira., p. 133-134).

Não fosse assim, a lógica formal não precisaria apresentar como pressuposto da reflexão o “princípio do terceiro excluído (‘uma afirmação não pode ser, ao mesmo tempo, verdadeira e falsa’)”, o que implica em admitir a possibilidade de erro, como um “‘momento’ da verdade”, o que leva Hegel a concluir que a verdade concreta resulta da “unidade da identidade e da diferença” (Lefebvre, 1979Lefebvre, Henri. (1979). Lógica formal, lógica dialética. Civilização Brasileira., p. 137-138). Hegel salientou que o princípio de identidade não pode ser estático, imóvel, mas implica o movimento.

Para penetrar pelo pensamento no concreto, deve-se partir da identidade, atravessar a diferença, a contradição; da mesma forma, para penetrar pela experiência no real, deve-se partir do imediato, das sensações, atravessar as diferenças e os aspectos contraditórios do real mais profundo, mais essencial, para finalmente reencontrar, para além de toda unilateralidade, a unidade, o verdadeiro (Lefebvre, 1979Lefebvre, Henri. (1979). Lógica formal, lógica dialética. Civilização Brasileira., p. 138).

A lógica formal, sem o conteúdo, é vazia, assim como o princípio de identidade, sem a diferença, expressa meia verdade, porque omite as determinações sociais e históricas que fazem parte da vida e do conhecimento. O estudo da lógica formal por Hegel demonstra que as definições e a dinâmica dos conceitos não pode ser fechada em limites fixos, mas implica pressupor o movimento, a relação entre quantidade e qualidade. A lógica formal é importante em certos limites do conhecimento, principalmente no âmbito das ciências experimentais, mas as ciências humanas e históricas implicam a dimensão da dialética. A filosofia da praxis marca a ruptura com a metafísica e possibilita avançar no âmbito do conhecimento do conteúdo da vida, da experiência social e política, do real em seu movimento, em sua diversidade e em suas contradições.

O princípio da identidade já supõe a ausência de toda contradição, de todo antagonismo; são princípios que se completam, ao mesmo tempo em que excluem o diverso, diferente, desigual, o dessemelhante que fica sem explicação. Retomando Adorno (2009Adorno, Theodor W. (2009). Dialética Negativa. Zahar., p. 173), o “mínimo rastro de sofrimento sem sentido no mundo experimentado infringe um desmentido a toda a filosofia da identidade que gostaria de desviar a consciência da experiência”; a afirmação de Nietzsche de que “enquanto houver um mendigo haverá o mito”, retomada por Walter Benjamin do livro Assim falou Zaratustra, é a demonstração de que a filosofia da identidade é uma mitologia que só pode ser superada com a filosofia crítica. O mito se sustenta em componentes transcendentais, ignorando a ação concreta dos homens enquanto suportam padecimentos inauditos para sobreviver. Adorno (2009Adorno, Theodor W. (2009). Dialética Negativa. Zahar., p. 133) lembra que, para Georg Simmel, era “espantoso o quão pouco os sofrimentos da humanidade são observados na história da filosofia”. O sofrimento, fruto da desigualdade social, exige que tenhamos em conta a contradição, negada no contexto da lógica formal e da metafísica.

Toda dor e toda negatividade, motor do pensamento dialético, se mostram como a figura multiplamente mediatizada, e por vezes irreconhecível, do elemento físico, assim como toda felicidade visa ao preenchimento sensível e conquista nesse preenchimento sua objetividade (Adorno, 2009Adorno, Theodor W. (2009). Dialética Negativa. Zahar., p. 173).

“Desde que o trabalho intelectual e o trabalho corporal cindiram-se sob o signo do domínio do espírito e da justificação do privilégio” (Adorno, 2009Adorno, Theodor W. (2009). Dialética Negativa. Zahar., p. 153), estabeleceu-se o primado da teoria sobre a prática e se esqueceu que nossa relação com a verdade passa pelos outros: ou procuramos a verdade na relação ou não a descobriremos. Compreende-se a luz apenas pela sombra e a verdade supõe o erro. São esses contrários misturados que povoam nossa vida, que lhe dão sabor e inebriamento (Aragon, 1996Aragon, Louis. (1996). O camponês de Paris. Imago.).

3. Notas sobre o método dialético no contexto do materialismo histórico

A soleira é o limiar que separa dois mundos. Um portal que é espacial e temporal: significa expor-se ao desconhecido, ousar abandonar as ilusões da verdade absoluta - morada do sonho.

Da perspectiva da dialética, a atenção volta-se para o movimento, as transições, o encadeamento, a articulação entre o particular e o conjunto de relações, pressupondo que o objeto se move, modifica-se e se interliga com o todo. Ao contrário da lógica formal, o pensamento, assim como a realidade, é movimento, conjunto de relações, totalidade aberta a ser identificada e explicitada. Como acentuam Lefebvre; Guterman (2018Lefebvre, Henri e Guterman, Norbert. (2018). Introdução. In: Lenin, Vladimir Ilitch. Cadernos filosóficos (pp. 13-98). Boitempo., p. 49), “toda verdade é, ao mesmo tempo, relativa e absoluta”, apresentando-se como “um momento, uma etapa do pensamento, da praxis, da história humana”.

A metafísica era a afirmação entusiástica, mas ineficaz, de uma vontade de prospecção e, por vezes, de progresso. O pensamento dialético sonda sistematicamente o desconhecido, localiza os escolhos e arrecifes, instala faróis, estabelece pontes e rotas, alcança continentes novos. Método prudente, à primeira vista mais prosaico que a grande metafísica, porém muito mais eficaz e profundo... (Lefebvre e Guterman, 2018Lefebvre, Henri e Guterman, Norbert. (2018). Introdução. In: Lenin, Vladimir Ilitch. Cadernos filosóficos (pp. 13-98). Boitempo., p. 51).

A dificuldade de compreensão se encontra no fato de que a dialética não é didática, ou seja, implica a apreensão do contexto histórico, que não pode ser dividido em partes como pede a análise cartesiana, sedimentada numa linguagem estática. “Já Hegel se lamentava da estrutura das frases que, para exprimir a reciprocidade, a contradição e o movimento dialético, devem ser forçadas”, na medida em que as frases e a gramática em geral se estruturam a partir de “uma tradição lógica estática” (Lefebvre e Guterman, 2018Lefebvre, Henri e Guterman, Norbert. (2018). Introdução. In: Lenin, Vladimir Ilitch. Cadernos filosóficos (pp. 13-98). Boitempo., p. 52).

Neste movimento permanente, como identificar a verdade dialética? Trata-se de pressupor o “conteúdo das ideias precedentes para romper seus limites e alcançar a unidade”. O verdadeiro se constrói na relação entre sujeito e objeto: o “objeto sem o sujeito não é conhecido” e o “sujeito sem o objeto permanece vazio. A verdade é a unidade entre ambos”. Neste processo, desvelam-se ser e conhecer articulados num movimento perpétuo de construção e reconhecimento da verdade nas suas múltiplas determinações. A “dialética materialista coloca a atividade prática na base do conhecimento como relação do sujeito e do objeto” (Lefebvre e Guterman, 2018Lefebvre, Henri e Guterman, Norbert. (2018). Introdução. In: Lenin, Vladimir Ilitch. Cadernos filosóficos (pp. 13-98). Boitempo., p. 46-48).

Importante assinalar que toda elaboração do pensamento se faz a partir de construções anteriores, de modo que os métodos tradicionais e a própria lógica formal são relevantes para a apreender a relação entre sujeito e objeto na dialética materialista. Lenin identifica este reconhecimento na sua leitura da Lógica de Hegel como “certamente a melhor exposição da dialética”, acentuando o “materialismo histórico como uma das aplicações e um dos desenvolvimentos de ideias geniais; sementes existentes em embrião em Hegel” (Lenin, 2018Lenin, Vladimir Ilitch. (2018). Cadernos filosóficos. Boitempo., p. 201-203).

Os pressupostos do método dialético podem ser assim resumidos: os fenômenos sociais são históricos, transitórios e suscetíveis de transformação pela ação política dos homens; sujeito e objeto se relacionam e se constroem mutuamente; o conhecimento de si implica o conhecimento do conjunto das relações sociais; a verdade se define a partir de uma perspectiva de classe. A realidade é movimento que integra em si o positivo e o negativo: uma coisa existe em si e é, ao mesmo tempo, a sua própria falta, ou seja, algo em movimento e em construção, que pode se apresentar como um movimento contraditório e conflituoso (eu estou sendo ou estou me fazendo).

A visibilidade e compreensão dos fatos depende da perspectiva da qual se aborda a realidade. O “poder distorce a visão dos céus impondo seus pesados telescópios sobre certas áreas, de modo que sua importância se amplia, obstruindo outras de forma avassaladora, que ficam completamente invisíveis” (Buck-Morss, 2000Buck-Morss, Susan. (2002). Dialética do olhar: Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Argos/UFMG., p. 51). A abordagem dialética permite romper estes limites e transpor o limiar, como prelúdio de uma realidade permeada pelo conflito, a partir do modo como é estruturada no campo da economia e da política; uma abordagem que pergunta, duvida, identifica as contradições.

Da perspectiva dialética o fato ou coisa se insere em uma imagem de conjunto, em que os pormenores ainda ficam em segundo plano; a atenção volta-se para o movimento, as transições, o encadeamento, a articulação entre o particular e o conjunto de relações, pressupondo que nosso objeto se move, modifica-se e se interliga com o todo.

Da perspectiva da dialética (ou do materialismo histórico) toda a realidade precisa ser abordada do ponto de vista de seu movimento, implicando: a) a historicidade do pensamento e sua interlocução com esta realidade; b) a relação sujeito-objeto; c) o conhecimento de si articulado com o conhecimento do mundo; d) que a realidade não é translúcida e que precisamos explicitar o que subjaz à aparência e se esconde por trás do imediatamente dado. A dialética é a lógica do movimento e integra o positivo e o negativo, considerando-se que este é tensão entre a unidade que se busca e a pluralidade frágil que define o particular.

A tensão expressa a contradição, que traz uma negação interna: não é algo exterior, que se acrescente à coisa; a negação está implícita. Os seres são uma realidade dividida em si mesma. A produção e a superação das contradições caracteriza o movimento da história, revela o real realizando-se como luta, ou seja, não se tem a identidade indiferenciada e positiva dos termos, mas sim a unidade guardando-se a diferença num movimento que constitui o conjunto de relações vividas.

Para entender como se constitui a consciência dialética, ou seja, a compreensão da unidade entre ser e conhecer temos que retornar aos clássicos: Hegel e Marx, no primeiro, de como a inteligibilidade da contradição no movimento da história exige esforço e formação continuada; no segundo, de como se trata da realidade empírica e da objetividade da contradição a partir da ação de sujeitos reais e não da mera consciência subjetiva, como interpretam os idealistas. Conforme Lefebvre e Guterman (2018Lefebvre, Henri e Guterman, Norbert. (2018). Introdução. In: Lenin, Vladimir Ilitch. Cadernos filosóficos (pp. 13-98). Boitempo., p. 26), “Hegel não se cansa de repetir (e Lenin sublinha) que tudo o que existe é contraditório, que a dialética é objetiva”, ao contrário do que entendem os seus comentadores idealistas. A contradição existe na realidade efetiva e cabe ao pensamento dialético apreendê-la e isso é possível somente se o pressuposto de leitura for o materialismo histórico, a partir do qual o ponto de partida da interpretação é a realidade social e política, constituída de relações reais pelas quais os homens constroem a sua vida.

A lógica formal segue uma ordem causal, separa o particular do todo; a dialética procura inserir o fato particular no conjunto de relações articuladas que forma a estrutura social; a realidade se apresenta como uma trama na qual os elementos interagem entre si; os fenômenos sociais são, ao mesmo tempo, condicionados e condicionantes entre si. Quanto mais conseguirmos inserir um fenômeno (objeto de pesquisa) em um conjunto estruturado, melhor será a sua compreensão. Trata-se de um trabalho que exige esforço visto que o pensamento comum é fragmentado, tanto pela ideologia liberal que reduz ao individual isolado, quanto pela lógica formal, que funciona pela divisão em partes, para analisar as partes e depois reuni-las num arranjo descritivo e linear (causa e efeito).

Ao contrário da abordagem positiva, causal, o ponto de partida não está definido e se pode iniciar a análise do ponto de vista escolhido. Os fatos que escolhemos como ponto de partida não são mais que hieróglifos, ou seja, sinais abstratos e aparência do real, com fundo fortemente ideológico. A abordagem dialética visa decifrar o hieróglifo, ou seja, mostrar as relações que se ocultam por trás deste fato (Kofler, 2010Kofler, Leo. (2010). História e dialética. EdUFRJ.).

Um exemplo conhecido é a noção de mercadoria, em O Capital de Marx: inicialmente entendida como um conceito simples, a análise da mercadoria desvela a trama de relações que se escondem nesta noção, entre elas as bases das relações de trabalho na sociedade capitalista, a exploração do trabalho com a apropriação da mais-valia e o fetiche que se estende a todas as relações sociais.

Esta abordagem metodológica exige que se reflita sobre a dimensão política da linguagem, instrumento de poder e de domínio ideológico nas formas de elaboração de concepções de mundo e de cultura. Entre os autores que tomamos como suporte teórico já citados acima, Antonio Gramsci (1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi.) refletiu sobre a linguagem a partir das novas dimensões da ideologia; Theodor Adorno (1986Adorno, Theodor W. (1986). O ensaio como forma. In: Sociologia (pp. 167-187). Ática.; 1982Adorno, Theodor W. (1982). La ideologia como linguaje - La jerga de la autenticidade. Taurus., 2008Adorno, Theodor W. (2008). Introdução à Sociologia. UNESP.) ressaltou e sublinhou os limites da linguagem no campo do positivismo e seus desdobramentos na noção de objetividade científica; Bernard Edelman (2016Edelman, Bernard. (2016). A legalização da Classe Operária. Boitempo.) acentuou os limites da linguagem no âmbito do direito e do pensamento institucionalizado, que visam a interiorizar o controle mantendo as classes trabalhadoras no horizonte ideológico dominante; Dias (2012Dias, Edmundo Fernandes. (2012). Revolução passiva e modo de vida. Sundermann.) demonstrou o quanto permanecer no horizonte ideológico burguês paralisa os trabalhadores e dificulta qualquer processo de emancipação política. Sem esquecer as dimensões filológicas, semióticas e estruturais das linguagens, salientamos que esta dimensão política, que se sustenta no suporte teórico delimitado supracitado, delimita o acesso das classes subalternas ao conhecimento e contribui para manter a ordem instituída. Desta perspectiva, retomamos algumas anotações sobre o tema.

4. Notas sobre a linguagem e sua dimensão política e pedagógica

Tomem por inexplicável o habitual. Sintam-se perplexos ante o cotidiano. Tratem de achar um remédio para o abuso, mas não esqueçam de que o abuso é sempre a regra (Brecht, 1982Brecht, Bertold. (1982). Antologia Poética. Elo Ed., p. 15).

Entre as diversas perspectivas de abordagem deste tema, partimos das observações de Adorno (1982Adorno, Theodor W. (1982). La ideologia como linguaje - La jerga de la autenticidade. Taurus., p. 13), a propósito da naturalização dos conceitos no âmbito da filosofia, cujo objetivo transcendente retira as palavras de seu contexto e de seu conteúdo conceitual, “como se dissessem algo mais elevado do que significam”. As reflexões adornianas sobre o método perpassam os seus estudos sobre Husserl (2015Adorno, Theodor W. (2015). Para a metacrítica da teoria do conhecimento. UNESP.), nos quais explicita os limites da fenomenologia nas dificuldades do filósofo de encaminhar seus resultados de acordo com os pressupostos da lógica tradicional, sem o êxito esperado. A tensão se coloca desde que sujeito e objeto se separam e a experiência não pode ser explicitada se não do ponto de vista das contradições presentes em uma realidade cindida.

A dialética materialista parte precisamente da contestação da metafísica e remete a reflexão para a materialidade social e política. Para Adorno (2008Adorno, Theodor W. (2008). Introdução à Sociologia. UNESP.), tratar da linguagem implica em enfrentar questões metodológicas fundamentais que permitem explicitar como a ideologia permeia a linguagem atuando na separação hierárquica entre as Ciências Naturais e as Ciências Humanas, numa abordagem que amplia as formas de reificação da consciência e dificulta o acesso ao saber.

No contexto da razão instrumental, o que “não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito” (Adorno e Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W., Horkheimer, Max. (1985). Dialética do Esclarecimento. Zahar., p. 21); esta regra tem sido o parâmetro seguido pelo pragmatismo nas ideologias mais recentes que sustentam o neoliberalismo. O conceito de neutralidade científica e a separação sujeito-objeto são pressupostos no processo de conhecimento de modo a ampliar as formas de controle e domínio da materialidade e ocultar sua dialeticidade na pretensão de neutralidade linguística.

Quando a linguagem penetra na história, seus mestres já são sacerdotes e feiticeiros. Quem viola os símbolos fica sujeito, em nome das potências supra terrenas, às potências terrenas, cujos representantes são esses órgãos comissionados da sociedade. O que precedeu a isso está envolto em sombras (Adorno e Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W., Horkheimer, Max. (1985). Dialética do Esclarecimento. Zahar., p. 33).

A linguagem nunca foi neutra e, desde a sua invenção, esteve a serviço dos dominantes. A linguagem é patriarcal, como a razão: desde o seu nascimento os conceitos “refletiam com a mesma pureza das leis da física, a igualdade dos cidadãos plenos e a inferioridade das mulheres, das crianças e dos escravos” (Adorno e Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W., Horkheimer, Max. (1985). Dialética do Esclarecimento. Zahar., p. 35).

O processo do conhecimento, deste ponto de vista, produz-se pela separação sujeito-objeto com a predominância da teoria sobre a prática, a “subsunção do factual, seja sob a pré-história lendária, mítica, seja sob o formalismo matemático” ou, ainda, na forma das categorias abstratas da ciência, efetua a apropriação “da existência enquanto esquema e a perpetua como tal” (Adorno e Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W., Horkheimer, Max. (1985). Dialética do Esclarecimento. Zahar., p. 39). São breves colocações que explicitam a dimensão da alienação no interior do processo de conhecimento, que os autores identificam na origem do movimento cognitivo e que se intensificou ao longo da história humana, como uma trama que enreda a todos no conjunto das relações sociais, onde o oprimido “reproduz a vida do opressor juntamente com a própria vida” (Adorno e Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W., Horkheimer, Max. (1985). Dialética do Esclarecimento. Zahar., p. 45), sem conseguir escapar da tecitura social assim construída.

Esta urdidura se estende ao modo de pensar das classes subalternas, mantendo-as nos limites ideológicos do pensamento dominante. Conforme Dias (2012Dias, Edmundo Fernandes. (2012). Revolução passiva e modo de vida. Sundermann., p. 323), “é na linguagem e por ela que se passa das grandes elaborações ideológicas ao saber das massas”, enquanto produção de sentido que orienta a vida e a expressão destes grupos. A linguagem tem uma eficiência ideológica expressiva na ordenação social e política, a partir da ação dos meios de comunicação de massa e dos intelectuais.

Retomando o pensamento de Gramsci (1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi., p. 679), precisamos distinguir a linguagem “composta ‘pelo povo e para o povo’” daquela “composta ‘para o povo, mas não pelo povo’”. O que distingue a linguagem popular no contexto de sua cultura não é o fato de ser artística “nem a sua origem histórica, mas o seu modo de conceber o mundo e a vida, em contraposição à sociedade oficial”. A dimensão política da linguagem se apresenta no modo como outras linguagens se sobrepõem àquela composta pelas classes populares reduzindo-as aos limites do ideário dominante.

Gramsci parte do pressuposto que “linguagem” é um nome coletivo que não pressupõe uma coisa “única” nem no tempo nem no espaço; significa essencialmente cultura e filosofia (Gramsci, 1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi.), ou seja, com uma clara dimensão política pela radicalização da unidade entre teoria e prática na relação profunda dos saberes entre si e com a realidade social. Tratar da linguagem implica, a partir daí, entender seu caráter ideológico e seus efeitos políticos, ou seja, seu significado para a formação de uma classe dirigente e para o exercício da hegemonia. Do ponto de vista da ordem instituída, a consolidação da hegemonia acontece quando os “subalternos pensam, agem e vivem no interior do modo de vida dos dominantes, de suas normas e instituições”. Forma-se uma concepção de mundo que condiciona a nossa forma de ver, agir e até amar (Dias, 2012Dias, Edmundo Fernandes. (2012). Revolução passiva e modo de vida. Sundermann., p. 133). A expressão desse modo de vida se faz pela linguagem, elemento vital que, a partir de sua naturalização e neutralidade, atua para manter o processo hegemônico. “É na linguagem e por ela que se passa das grandes elaborações ideológicas ao saber das massas”, enquanto construção do sentido, da fala e de adesão ao projeto político dominante (Dias, 2012Dias, Edmundo Fernandes. (2012). Revolução passiva e modo de vida. Sundermann., p. 323). Dessa perspectiva, a linguagem funciona como matriz de adaptação ao sistema vigente e também de exclusão social, que já se inicia no ensino fundamental e médio, no analfabetismo funcional nunca superado, nas dificuldades no domínio da língua que se torna “normal” entre as classes populares.

Parafraseando Wittgenstein (1975Wittgenstein, Ludwig. (1975). Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril cultural., p. 136), quem não sabe expressar seu pensamento, não sabe: a “frase, o pensamento, parecem saber o que os torna verdadeiros, mesmo quando isto não se faz presente!”. Em Gramsci (1975Gramsci, Antonio. (1975). Scritti Giovanili (191401918). Einaudi., p. 146) encontramos o seguinte: “tenho da cultura um conceito socrático: creio que seja um pensar bem qualquer coisa que se pense e, portanto, um realizar bem qualquer coisa que se faça”. Em ambos os casos, a linguagem é elemento vital de autonomia do pensamento.

A necessidade de uma crítica da linguagem, de seus efeitos políticos e de seu conteúdo ideológico na ação continuada dos intelectuais para a conservação da hegemonia dominante se mostra importante na proposição de um novo projeto de sociedade no contexto das reflexões de Gramsci (1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi.) que, nos Cadernos do Cárcere, faz frente às concepções neopositivistas e pragmáticas, abordando o pensamento de Vailati, seguidor de Peano e simpatizante de Russell e Pierce. Ao mesmo tempo, aprofunda sua concepção de filosofia da praxis no esclarecimento da unidade dialética entre teoria e prática, na redefinição da filosofia no sentido de criar condições aos que “não sabem” de ter voz e palavra, de organizar uma nova cultura. Trata da importância e da necessidade da formação de intelectuais orgânicos das classes subalternas, que atuem junto a estas classes na crítica ao senso comum e à ideologia dominante no sentido de produzir a unidade entre teoria e prática. Não se pode esquecer que as ideologias têm base material, radicam-se na estrutura da sociedade, têm um caráter dinâmico, orgânico, a partir das contradições que permeiam o social, porque “não existe economia sem cultura, atividade prática sem inteligência e vice-versa” (Gramsci, 1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi., p. 1340).

Gramsci acentua, na sua crítica aos neopositivistas, que as causas de erro não estão nas palavras, mas no conteúdo ideológico que elas veiculam, nas diferenças culturais que expressam, na multiplicidade de sentidos que podem apresentar, a partir do fato que a “linguagem é sempre metafórica [...] com relação ao significado e ao conteúdo ideológico que as palavras tiveram nos períodos precedentes de civilização”. E Gramsci (1978Gramsci, Antonio. (1978). Quaderni del Carcere. Einaudi., p. 1427) cita o tratado de semântica de Michel Bréal, como um “catálogo histórica e criticamente reconstruído de mutações semânticas de determinados grupos de palavras”.

A linguagem expressa situações reais, é a forma ideológica de uma consistente estrutura econômica e social, embora se apresente, na maioria das vezes, como neutra e naturalizada. As desigualdades econômico-sociais que são o produto da estrutura econômica e social, que caracterizam a sociedade capitalista, são omitidas ou mistificadas pela linguagem, principalmente se considerarmos a moda atual do “politicamente correto”, pelo qual se tenta ocultar o conflito social e as diferenças de classe. Muitas das teorias contemporâneas que orientam as pesquisas mais recentes no campo da educação, por exemplo, podem ser entendidas como instrumento de consolidação das relações de poder, na medida em que não questionam as contradições que perpassam a estrutura econômica e social. A adoção de um padrão de qualidade da pesquisa, embora seja importante, encerra a pesquisa em certos parâmetros que delimitam o debate e restringem a visão de mundo de quem ousa adentrar no campo do pensamento crítico.

As últimas orientações de atualização bibliográfica, que nos incitam a abandonar os clássicos e fundamentar nossas pesquisas em bibliografia produzida ao menos nos últimos dez anos, demonstram que o que se entende por qualidade não privilegia o esforço teórico-metodológico de apropriação de uma produção histórica importante para a reflexão crítica. Desta perspectiva, a liberdade de pensamento, mesmo que restrita nos limites do ideário liberal, é condicionada para que se possa atingir os objetivos de “qualificação” colocados pelas instituições financiadoras da pesquisa. Mais do que nunca, a linguagem se torna instrumento político de formação da subjetividade e de manutenção da hegemonia burguesa, e a educação, um instrumento de adaptação ao projeto político que se visa consolidar e manter. As normas de produção intelectual demonstram a eficácia política da ideologia e condicionam também a docência e a aprendizagem. Precisamos questionar as diretrizes de produção do discurso acadêmico que, em geral, escondem a pretensão de um conhecimento científico neutro conforme os objetivos do pragmatismo vigente e nos distanciam da realidade social efetiva, marcada por uma profunda desigualdade econômica, social e cultural ignorada pelas classes dominantes. Neste contexto, a linguagem abstrata, naturalizada e estática perde o seu significado histórico, mas não deixa de ampliar a sua dimensão política e ideológica.

5. Conclusão

O despertar iminente é como o cavalo de madeira dos gregos na Troia dos sonhos (Benjamin, 2009Benjamin, Walter. (2009). Passagens. UFMG., p. 437).

Esta questão tem-nos instigado no curso da docência, principalmente na formação continuada de professores, a maioria sem o hábito de leitura e muito distantes do pensamento crítico, tanto que sentimos estar fazendo um trabalho de Sísifo, ou como se estivéssemos na caverna platônica2 2 “Imagina homens em morada subterrânea, em forma de caverna, que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a luz; esses homens aí se encontram desde a infância, com as pernas e o pescoço acorrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver alhures, exceto diante deles (...) A luz lhes vem de um fogo aceso sobre uma eminencia, ao longe atrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa um caminho elevado; imagina que, ao longo deste caminho, ergue-se um pequeno muro (...) ao longo deste pequeno muro homens transportam objetos de todo gênero (...) em tal situação (os prisioneiros) jamais viram algo se si próprios e de seus vizinhos, afora as sombras projetadas pelo fogo sobre a parede da caverna...” (Platão, 1973, p. 105-106). , tentando convencer os docentes a transporem a soleira e a ousar abandonar preconceitos, a atrever-se a renunciar às ilusões de verdade absoluta e arrojar-se a descobrir a multiplicidade e a riqueza do real. E, a cada passo, reforça-se a compreensão da importância do trabalho dos intelectuais para a manutenção da hegemonia no contexto do modo de produção capitalista, principalmente no âmbito da educação.

A formação continuada dos professores exige a compreensão crítica de si mesmo, que se concretiza na medida em que nos reconhecemos como parte de um processo social, de um conjunto de condicionamentos teóricos e práticos que podemos modificar na medida em que nos apropriemos de um pensamento crítico. Cabe acentuar que se trata de nossa inserção no processo de luta de classes ou de disputa entre hegemonias políticas de direções contrastantes e conflitantes, da qual não se pode fugir quando se vive numa sociedade como a capitalista, se não quisermos cair na alienação permanente. Precisamos transpor a soleira da porta, o limiar entre dois mundos marcados por fundamentos teórico-metodológicos contrastantes e divergentes.

Não foi nossa intenção recuperar o debate sobre ideologia e ciência, que perpassa a história do conhecimento e da produção acadêmica, nem as características essenciais da Teoria Crítica, tema para uma vida, nem um confronto entre filologia e crítica, mas sim apontar algumas dificuldades metodológicas da docência quando se pretende ampliar os caminhos do pensamento crítico no âmbito da educação. A dicotomia que tentamos explicitar se apresenta no trabalho do pesquisador que, a partir de problemas teóricos se dedica à pesquisa sem se preocupar com o conflito que permeia a vida cotidiana e a necessidade de a teoria crítica voltar-se para a conjuntura social e política para responder às exigências colocadas na realidade efetiva das coisas. Esta dicotomia expressa o conflito entre projetos sociais divergentes visto que a pesquisa não é e nunca foi neutra mas, em qualquer instância, responde a interesses de classe.

Desta perspectiva, nosso estudo não consiste em mera pesquisa acadêmica, mas traz à tona um problema didático-metodológico evidenciado na experiência docente e que traduz a situação mais comum vivida em nossas Universidades. Um dilema difícil de resolver e que implica a atuação dos intelectuais e a utilização da linguagem na conservação da ordem instituída. O que pretendemos salientar foi que a trama dos conceitos não é inocente, mas traduz o encadeamento entre estrutura e superestrutura e, na maioria das vezes, oculta a realidade vivida. Assim, retomamos uma expressão de Gramsci sobre o que seria uma reforma cultural, que exigiria um novo posicionamento dos intelectuais diante da realidade efetiva:

Pode haver reforma cultural, ou seja, elevação civil dos estratos oprimidos da sociedade, sem uma precedente reforma econômica ou uma mudança na posição social e no mundo econômico? Por isso uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica, ao contrário, o programa de reforma econômica é precisamente o modo concreto pelo qual se apresenta toda reforma intelectual e moral (Gramsci, Q. 13, p. 1561).

Neste contexto, que implica o reconhecimento da estrutura social como condicionante da pesquisa, fizemos algumas considerações sobre a dimensão política da linguagem que, nas disputas entre projetos políticos conflitantes, pode ser o instrumento para a unificação de uma vontade nacional, possibilidade que envolve uma análise da realidade popular. Tudo depende do processo educativo, que também tem uma dimensão política.

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    “Imagina homens em morada subterrânea, em forma de caverna, que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a luz; esses homens aí se encontram desde a infância, com as pernas e o pescoço acorrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver alhures, exceto diante deles (...) A luz lhes vem de um fogo aceso sobre uma eminencia, ao longe atrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa um caminho elevado; imagina que, ao longo deste caminho, ergue-se um pequeno muro (...) ao longo deste pequeno muro homens transportam objetos de todo gênero (...) em tal situação (os prisioneiros) jamais viram algo se si próprios e de seus vizinhos, afora as sombras projetadas pelo fogo sobre a parede da caverna...” (Platão, 1973Platão. (1973). A República. Difel., p. 105-106).
  • Disponibilidade de dados

    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2022
  • Aceito
    28 Mar 2024
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