NOTAS SOBRE LIVROS BOOKNOTES
Por/by: Fábio Lopes da Silva
Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC
CAMPOS, C. M. 2006. A Política da Língua na Era Vargas. Proibição do Falar Alemão e Resistências no Sul do Brasil. Campinas: Editora da Unicamp.
Em fins de 2006, Cynthia Machado Campos, professora do Departamento de História da UFSC, lançou, pela Editora da Unicamp, A política da língua na era Vargas, livro que resulta de sua tese de doutorado, defendida em 1998, na própria Unicamp.
Em particular, a autora aborda a série de iniciativas por meio das quais as políticas do varguismo articularam a repressão das línguas faladas por imigrantes europeus e seus descendentes. Interessa-lhe, sobretudo, o controle que, no Sul do Brasil, com ênfase em Santa Catarina, o governo procurou exercer sobre o uso do alemão durante as décadas de 30 e 40.
O tema é relativamente conhecido. O que distingue e qualifica o trabalho de Cynthia Machado Campos é, para começar, o fato de que, para além do exame dos documentos oficiais, ela se ocupou das formas com que as populações responderam aos investimentos repressivos do governo. Uma larga variedade de fontes cartas, artigos em jornais, depoimentos e textos literários permitiram à autora aceder ao conflito lingüístico em suas manifestações infinitesimais, cotidianas. Ora, surpresas geralmente nos aguardam quando dirigimos o olhar para isso que Foucault (1986) chamou de "extremidades cada vez menos jurídicas do poder" e, com o trabalho de Cynthia Machado Campos, não foi diferente. Suas análises dos textos de época propiciaram, por exemplo, o reconhecimento de uma diversidade de posições ideológicas que deixa muito para trás o conhecido argumento, fartamente utilizado pelos varguistas, de que o nazismo encontrava plena acolhida entre os teuto-brasileiros.
Não, é claro, que Cynthia Machado Campos negue o apego, mais ou menos generalizado, das populações de origem alemã à "pátria dos pais e avós". Mas ela procura mostrar que a genealogia desse sentimento precede, de longe, o nazismo, que é apenas uma de suas muitas ramificações. De resto, a autora salienta que a configuração do campo de forças, no caso que ela estuda, era informada por um jogo de interesses momentâneos que incluía, naturalmente, as grandes questões geopolíticas a expansão do Terceiro Reich entre elas , mas também um espectro muito amplo de outras tensões: desde a disputa entre as lideranças comunitárias em cidades como Blumenau e Joinville, até as expectativas do governo Vargas de se apropriar dos lucros gerados pela economia catarinense.
Se o trabalho de Cynthia Campos Machado foi orientado pela tentativa de escapar às visões esquemáticas e totalizantes sem prejuízo do rigor e da fidelidade às fontes, pode-se concluir, pelo exposto, que ela foi amplamente bem-sucedida, em que pesem, talvez, algumas vacilações quanto à caracterização do governo Vargas, sobre as quais, a seguir, gostaria de me deter um pouco.
A meu juízo, a despeito de seu grande esforço no sentido de evitar estereótipos e lugares-comuns, Cynthia Machado Campos acaba, eventualmente, resvalando em uma representação do varguismo cristalizada por uma certa sociologia e uma certa historiografia paulistas que valeria a pena questionar (embora, justiça seja feita, as bases teóricas de seu trabalho sejam muito ricas e diversificadas, incluindo coisa rara de se ver várias referências a colegas da própria UFSC).
Um exemplo do que, em seu livro, pode haver de problemático na caracterização do varguismo surge na seguinte passagem (não por acaso, a única citada, na apresentação do livro, por Stella Bresciani legítima representante da tradição historiográfica paulista de que eu falava há pouco): "o Estado getulista perseguiu certos segmentos como inimigos da pátria e da nação, acusando parte de seus descendentes de nazistas, mas ao mesmo tempo adotou métodos muito semelhantes àqueles vigentes na Alemanha no mesmo período." (p.18) Ora, sem que se deixe de admitir a natureza eminentemente ditatorial e discricionária do Estado Novo, a comparação com o nazismo é, contudo, cabível? Certo, Getúlio flertou com Hitler mas o próprio governo americano, na figura do embaixador Joseph Kennedy, pai de Jack Kennedy, não fez o mesmo? E o que dizer das Olimpíadas de 1936, em Berlim? O que foi aquele evento senão uma grande celebração internacional do Reich? Considerem-se, ademais, as prisões ilegais, as perseguições, as deportações, a censura ou o tipo de nacionalismo elevado a objeto de culto pelo varguismo: ainda assim, há como emparelhar essas ações com o horror do holocausto e a fúria expansionista do Reich? Em memória dos milhões aos quais o nazismo levou a morte e a devastação, devemos ser muito cuidadosos com o assunto.
Ao retraçar a já mencionada genealogia do nacionalismo alemão, Cynthia Campos Machado ressalta a importância de Lutero, sem, contudo, citar o fato de que ele escreveu um tratado anti-semita que, com certeza teve repercussões sobre a posteridade. O anti-semitismo alemão e teuto-brasileiro é, aliás, parcamente mencionado no livro. Em todo caso, mesmo que fosse mais vigorosamente perscrutado pela autora, as teses de Cynthia Machado Campos quanto ao perfil ideológico dos teuto-brasileiros não se invalidariam não necessariamente, pelo menos. Afinal, pode-se perfeitamente ser luterano sem ser anti-semita. Mais que isso: pode-se ser anti-semita sem ser nazista. Quanto a Getúlio, é claro que seus procedimentos têm alguma relação com o nazismo. Mas esse vínculo talvez pudesse ser fortemente relativizado no elemento de uma análise e isso Cynthia Machado Campos não está tão pronta a fazer que estabelecesse nexos entre o Estado Novo e a tradição autoritária brasileira, sem esquecer o fato de que, no plano mundial, na primeira metade do século, a democracia estava longe de ser um valor universalmente cultivado. No próprio campo da política lingüística, Cynthia Machado Campos poderia ter valorizado mais o fato de que, no Brasil, a começar pelo Diretório dos Índios, de 1758, as iniciativas oficiais, por força de procedimentos decididamente repressivos, sempre tenderam a constituir o monolingüismo fundado no português.
Com tudo isso, o que quero dizer, em suma, é que o trabalho de Cynthia Machado Campos, tão sensível às nuances no caso dos discursos teuto-brasileiros, perde um pouco dessas qualidades ao tomar o getulismo como foco. O próprio título do livro, ao assimilar a "era Vargas" ao primeiro governo de Getúlio, apaga, em alguma medida, o fato de que, reconduzido pelo voto popular ao poder em 1951, Vargas soube conviver com a democracia vigente e preservá-la, até seu suicídio esse ato tão enigmático quanto grandioso em 1954.
Não faço essas observações por picuinha. É que, depois que FHC declarou ser necessário "virar a página do getulismo", a avaliação do legado varguista tornou-se, suponho, uma tarefa urgente e central para o futuro do Brasil. De seu lado, Cynthia Machado Campos, ao falar sobre a possível atualidade de seu livro, nada disse a esse respeito. Em compensação, arrolou um outro tópico igualmente importante, para cujas discussões seu trabalho, de fato, é, a partir de agora, referência obrigatória: o ressurgimento de debates acerca da identidade dos descendentes de imigrantes, cujas conseqüências chegam ao ponto de se radicalizar sob a forma de discursos separatistas no Sul do Brasil.
A esse tema certamente crucial eu acrescentaria um outro tópico capaz de conferir grande atualidade ao livro de Cynthia Machado Campos. Trata-se da polêmica, inaugurada pelo projeto de Lei Aldo Rebelo, em torno do português como patrimônio nacional a ser preservado e mantido acima dos cerca de duzentos outros idiomas hoje falados no território brasileiro. A genealogia da constituição do monolingüismo no Brasil prossegue, e não é possível entendê-la sem referência ao Estado Novo.
A polêmica gerada pela lei Aldo Rebelo e suas raízes históricas deveriam, a propósito, interessar particularmente a nós, lingüistas. Mas não é esse o caso. Nesse sentido, não chega a espantar o fato de que, na volumosa bibliografia consultada por Cynthia Machado Campos, quase nenhum lingüista é arrolado. Certamente, a explicação está no fato de que, como a própria autora observa, "a tradição das ciências modernas [...] separa língua e história em ramos distintos de conhecimento". (p. 27) Creio, contudo, que chegou a hora de interrogar essa separação, suas motivações histórico-sociológicas e seus efeitos sobre a lingüística como instituição contemporânea, com o risco de que, ao fim desse exercício crítico, concluamos que é preciso rever os fundamentos de nosso campo.
A rigor, essa revisão e a análise histórico-sociológica que a baliza já estão em curso. Tal é, em grande medida, o programa da chamada Lingüística Crítica. Autores como Rajagopalan (2002) procuram mostrar que a ciência da linguagem é particularmente afetada pelos efeitos deletérios do internamento do saber na Universidade, tais como Jacoby (1990) os descreve. Na avaliação de Rajagopalan, com a qual concordo inteiramente, a Lingüística se deixa dominar por um discurso cada vez mais fragmentado em especialidades e orgulhosamente esotérico; um discurso, no limite, surdo às questões colocadas pelos próprios pares, pelos representantes de outros domínios das Humanidades e, ainda mais radicalmente, pelos homens e mulheres comuns esses mesmos que, por meio dos impostos que pagam, financiam o trabalho nas Universidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, M. 1986. Microfísica doPoder. Rio de Janeiro: Graal.
JACOBY, Russell. 1990. Os últimos intelectuais. São Paulo: Edusp e Trajetória Cultural.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. 2002. National languages as flags of allegiance, or the linguistics that failed us: a close look at the emergent linguistic chauvinism in Brazil. Journal of Language and Politics. Amsterdam: The Netherlands, v. 1, n. 1: 115-147.
E-mail: flopes@cce.ufsc.br
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Set 2007 -
Data do Fascículo
2007