Resumos
Este artigo mostra que os argumentos apresentados em Ramos (1997) e Vitral (1996) ao defenderem a proposta de classificação da proforma cê como um clítico não conseguem dar conta do comportamento particular desta proforma no sistema pronominal do português brasileiro. Para resolver o problema, realizo uma reanálise destes argumentos em função da teoria da tripartição pronominal de Cardinaletti e Starke (1999). De acordo com esta perspectiva, as evidências apresentadas pelos autores a favor da cliticização de cê mostram apenas que cê não é um pronome forte. Ao ser identificado como um pronome fraco, pode-se então explicar o contraste entre esta proforma e ocê e você, proformas que possuem uma variedade forte e outra fraca.
proformas; clíticos; pronomes fracos; pronomes fortes
This paper shows that the arguments presented by Ramos (1997) and Vitral (1996) to support the proposal of classifying the proform cê as a clitic do not account for the particular behavior of this proform in the Brazilian Portuguese pronominal system. To solve the problem, I reanalyze these arguments assuming the tripartite pronominal system approach, proposed by Cardinaletti and Starke (1999). According to this perspective, the evidence presented by the authors in favor of the cliticization of cê only shows that cê is not a strong pronoun. Cê is rather shown to be a weak pronoun, which explains its contrast with ocê and você, proforms that have both weak and strong counterparts.
proforms; clitics; weak pronouns; strong pronouns
ARTIGOS
A tripartição pronominal e o estatuto das proformas cê, ocê e você* * Agradeço a Jairo Nunes pela orientação prestada no decorrer desta pesquisa e da elaboração deste artigo, por toda a dedicação dada e pelos comentários valiosos que tornaram possível a concretização deste trabalho. Agradeço também pelos comentários feitos por Rodrigo Garcia e Alessandro Xavier. A pesquisa que deu origem a este artigo integra o projeto temático junto à FAPESP sob o número 2006/00965-2
The tripartition of the pronominal system and the status of the proforms você, ocê and cê
Carol Petersen
Departamento de Lingüística - Universidade de São Paulo
RESUMO
Este artigo mostra que os argumentos apresentados em Ramos (1997) e Vitral (1996) ao defenderem a proposta de classificação da proforma cê como um clítico não conseguem dar conta do comportamento particular desta proforma no sistema pronominal do português brasileiro. Para resolver o problema, realizo uma reanálise destes argumentos em função da teoria da tripartição pronominal de Cardinaletti e Starke (1999). De acordo com esta perspectiva, as evidências apresentadas pelos autores a favor da cliticização de cê mostram apenas que cê não é um pronome forte. Ao ser identificado como um pronome fraco, pode-se então explicar o contraste entre esta proforma e ocê e você, proformas que possuem uma variedade forte e outra fraca.
PALAVRAS-CHAVE: proformas, clíticos, pronomes fracos, pronomes fortes.
ABSTRACT
This paper shows that the arguments presented by Ramos (1997) and Vitral (1996) to support the proposal of classifying the proform cê as a clitic do not account for the particular behavior of this proform in the Brazilian Portuguese pronominal system. To solve the problem, I reanalyze these arguments assuming the tripartite pronominal system approach, proposed by Cardinaletti and Starke (1999). According to this perspective, the evidence presented by the authors in favor of the cliticization of cê only shows that cê is not a strong pronoun. Cê is rather shown to be a weak pronoun, which explains its contrast with ocê and você, proforms that have both weak and strong counterparts.
KEY-WORDS: proforms, clitics, weak pronouns, strong pronouns.
"Cê vai, ocê fique, você nunca mais volte."
João Guimarães Rosa, "A terceira margem do rio"
1. Introdução
O português brasileiro atual dispõe dos pronomes pessoais de segunda pessoa cê, ocê e você, que se originam da forma de tratamento Vossa Mercê. Para tratar da diferente distribuição destas formas, Vitral (1996) (vejam-se também Ramos (1997) e Paredes Silva (1998)) propôs que cê é um clítico. Este fato explicaria a agramaticalidade gerada pelo emprego da proforma cê nos exemplos em (1), já que um clítico é átono e por isso não pode receber foco ou ênfase, como em (1a) e (1b), nem receber a entonação que caracteriza a construção de topicalização, como em (1c). A atonicidade de cê também impediria que fosse usado como resposta a uma pergunta, como em (1d):
Vitral (1996):
Partindo da noção de gramaticalização (veja-se Hopper e Traugott (1993)), Vitral (1996) propõe que, dentro do processo de evolução da forma de tratamento Vossa Mercê, o item cê está na etapa da cliticização, como esquematizado abaixo:
Vossa mercê (item com significado lexical) > Vosmecê > Você (item gramatical) > Ocê > Cê (clítico)
No presente trabalho, irei (i) apresentar contra-argumentos para a proposta de que cê é um clítico, examinando as explicações oferecidas pelos autores referidos e apontando os seus problemas; (ii) propor uma análise alternativa das restrições percebidas pelos autores em função da distinção tripartida entre formas fortes, fracas e clíticas, como proposto por Cardinaletti e Starke (1999), argumentando que cê é na verdade um pronome fraco; e (iii) classificar as proformas ocê e você de acordo com a teoria de Cardinaletti e Starke (1999).
O artigo está organizado da seguinte forma: na seção 2, apresentarei as justificativas da proposta de Vitral e Ramos em considerar cê um clítico e levantarei os problemas que existem na análise. Na seção 3, apresentarei a teoria de Cardinaletti e Starke (1999), levantando os pontos mais relevantes para a discussão feita no artigo e em seguida mostrarei que os problemas apontados na seção 2 podem ser resolvidos se assumirmos a classificação da proforma cê como um pronome fraco, de acordo com modelo tripartido do sistema pronominal. Na seção 4, tratarei das classificações das proformas ocê e você e na seção 5 farei um breve resumo do artigo.
2. Proposta Anterior
As sentenças em (1) trazem evidências de uma distribuição distinta entre cê de um lado e ocê/ você de outro e foram usadas por Vitral (1996) para argumentar que cê fosse um clítico. A sua argumentação tinha como pressuposto a bipartição tradicional dos pronomes entre clíticos e fortes. Seguindo esta análise, cê, em sua condição de clítico, é um pronome átono, o que impede a sua boa-formação nas construções que aparecem em (1).
Vitral (1996) adiciona também outras evidências para validar sua hipótese. Para explicar a inaceitabilidade das sentenças em (2) abaixo (Vitral 1996:120), o autor admite que, devido à impossibilidade da ênclise na gramática do português brasileiro falado, a proforma cê enquanto um clítico não pode permanecer enclítica ao verbo. De acordo com a análise, se clíticos no PB são proclíticos ao verbo, é esperado que cê se comporte a mesma maneira. As sentenças em (2), por violarem este requerimento, são corretamente excluídas.
Para confirmar a validade do seu argumento, Vitral procura mostrar que não é simplesmente a seqüência V + Cê que não pode ocorrer no PB falado, mas é a impossibilidade da ênclise que leva à agramaticalidade das sentenças em (2). Ele traz a sentença (3) abaixo, com a avaliação de bemformada. Nela, a proforma cê está após o verbo (V + Cê). Como é defendido pelo autor, o clítico cê estaria em uma relação de predicação que possibilitaria o seu posicionamento pós-verbal sem que haja uma violação da obrigatoriedade da próclise1 1 . Vitral (1996: 120) não explicita a análise que dá à estrutura da sentença em (3) para justificar sua afirmação de que nela não ocorre um processo de ênclise. .
(3) Eu vou fazer cê feliz.
Em primeiro lugar, convém apontar que a sentença em (3) não é aceitável para todos os falantes. Para aqueles que a consideram bem-formada, parece se tratar de uma exceção. A imperfeição de outras sentenças semelhantes parece deixar claro que há em (3) um licenciamento atípico. Ou seja, em outras construções do mesmo tipo que (3), como as que seguem em (4) abaixo, a posição específica ocupada por cê não comporta este pronome, já que as sentenças são inaceitáveis. Em contraste, note as sentenças gramaticais em (5), ao substituirmos ocê por ocê ou você.
Os dados acima são evidências, portanto, de que a argumentação feita por Vitral (1996) em torno do exemplo (3) não procede. Além disso, duas previsões incorretas são suscitadas a partir destas considerações. Em primeiro lugar, se em (3) a posição da proforma cê na sentença não viola a obrigatoriedade da próclise, como Vitral (1996) propõe, conseqüentemente, pode-se acreditar que esta seja uma posição adequada também para outros clíticos. No entanto, ao substituir cê pelo clítico te nesta construção, percebemos que as duas proformas se comportam de maneira distinta. O clítico te pode permanecer unicamente em próclise ao verbo fazer, como vemos em (6a) e (6b) abaixo. Em (6c), notamos que, ao contrário, a proforma cê não pode se manter nesta mesma posição.
Utilizando propriedades dos clíticos no PB, a hipótese de Vitral (1996) também prevê que sentenças como (7) abaixo, com próclise da proforma cê ao verbo vi, deveriam ser perfeitas, mas são categoricamente rejeitadas pelos falantes. Vitral (1996) nota este problema e sugere que deve haver uma concorrência com estruturas com o clítico te, como em (8), que são ainda produtivas em PB, e que isso pode impedir o uso da estrutura em (7).
Ainda em relação a propriedades de colocação de clíticos nas sentenças, é interessante considerar as locuções verbais. Como aponta Galves (2001:133):
"Além de seu caráter essencialmente proclítico, o PB apresenta ainda outra particularidade em relação ao PE: nas locuções verbais compostas por um auxiliar seguido de um particípio ou de um gerúndio, ou por um verbo modal seguido de um infinitivo, o pronome se liga, em próclise, ao verbo principal (temático)."
Assim, se cê fosse um clítico, seria esperado que cê se comportasse como os demais clíticos, e que se mantivesse em próclise com os verbos temáticos das sentenças. Mas não é o que ocorre. Como vemos no paradigma em (9), a proforma cê só pode ocorrer proclítica ao verbo auxiliar (9a), enquanto que o clítico me, por exemplo, não é permitido nesta mesma posição (9b). Me, como previsto enquanto uma forma clítica, deve se manter proclítico ao verbo principal, como vemos em (9c), posição que, quando preenchida por cê, cria uma estrutura mal-formada, como temos em (9d).
Novamente, em (9) cê não exibe a mesma distribuição que os clíticos do PB. Portanto, parece que analisar cê como um clítico implica admitir um comportamento bastante idiossincrático desta proforma.
Partindo para outro ponto, Vitral (1996) e Ramos (1997) também sinalizam uma aproximação entre cê e o clítico nominativo se. Assim, ambos os clíticos estariam sendo usados como marcadores de indeterminação do sujeito de sentenças como em (10).
Ramos (1997) considera haver um tipo de "especialização" da forma cê, devido à sua tendência em aparecer nestas construções indeterminadas, satisfazendo a característica do PB de ter o sujeito das sentenças foneticamente realizado (cf. Vitral (1996: 121)). Esses fatos, no entanto, não comprovam o estatuto de clítico de cê. Deve-se pontuar que este tipo de construção com um sujeito genérico/arbitrário pode ser conseguido, sem prejuízo quanto ao grau de arbitrariedade das sentenças, com as formas ocê e você, como é exemplificado em (11):
Além disso, podemos perceber que o emprego de cê pressupõe posições distintas das do emprego de se, quando em construções negativas. Se permanece adjacente ao verbo, enquanto cê antecede a negação (assim como as proformas ocê e você):
Para finalizar esta seção, examinarei alguns pontos abordados por Ramos (1997). A autora promove uma análise variacionista entre as proformas cê, ocê e você e conclui que a hipótese de cliticização de cê feita por Vitral (1996) se mostra adequada. A autora argumenta que ocê é favorecido em alguns contextos. O favorecimento ocorre exatamente em configurações nas quais um clítico seria possível e preferido enquanto ao seu uso/escolha. Uma delas é a construção de interrogativas que que, como a do exemplo em (10b), repetido em (13) abaixo, em que o caráter clítico de cê favoreceria o seu uso quando em sentenças com o COMP duplamente preenchido2 2 . Ramos (1997: 52) não oferece uma explicação do motivo pelo qual considera que este contexto particular, de alguma forma, deveria favorecer o uso de um clítico. .
(13) O que que cê procura fazer nestes momentos?
A posição sintática contígua ao verbo também seria um destes contextos, já que a ordem [clítico - item lexical - verbo] não é produtiva no PB (cf. Galves (1993, 2001), Pagotto (1993)). Ramos (1997) nota que, apesar de favorecido em contexto de contigüidade ao verbo, como em (14a), cê pode não respeitar esta configuração, como vemos em (14b):
Apesar de a autora considerar que seus resultados quantitativos3 3 . No seu corpus, Ramos (1997) obteve um total de 7,6% de casos de não contigüidade entre cê e verbo. Considerou este número marginal e manteve a leitura de que o favorecimento do contexto [ cê - V], 84,4% dos casos, reforça o estatuto clítico da proforma. reforçam a hipótese da cliticização, os dados, na verdade, não comprovam o estatuto de clítico para a proforma cê. Os contextos apontados não excluem a possibilidade de se tratar de outro tipo de pronome. Como podemos verificar em (15), as posições ocupadas por cê podem ser ocupadas por proformas não clíticas ou também por DPs:
Até aqui, pudemos constatar que cê apresenta um comportamento muito distinto dos demais clíticos do PB. A sua distribuição em comparação com os clíticos é qualitativamente diferente, o que parece separá-lo desta classe de pronomes. Vimos que cê diferencia-se também dos demais pronomes, ocê e você, pois as posições sintáticas em que pode aparecer são mais restritas. Estas evidências indicam que este item lexical possui uma natureza distinta destes dois grupos de pronomes. Foi com base neste tipo de ocorrência que Cardinaletti e Starke (1999) propuseram a existência de um sistema pronominal dividido em três classes subjacentes. Sintetizarei a proposta dos autores na primeira parte da seção que segue.
3. Reanálise dos Dados
3.1. Pressupostos Teóricos: A Tripartição do Sistema Pronominal
Cardinaletti e Starke (1999), tomando por base estudos comparativos feitos dentro do quadro da teoria de Princípios e Parâmetros acerca do sistema pronominal das línguas naturais, observaram que propriedades exibidas pelas proformas as separavam em três séries, com características fonológicas, morfológicas, sintáticas e semânticas distintas. Propuseram um modelo tripartido do sistema pronominal, dividido em proformas fortes, fracas e clíticas, que respondesse às características apresentadas por cada série de pronomes e que pudesse melhor descrevê-las.
A análise aponta para a existência de dois níveis de deficiência, hierarquicamente organizados como segue:
Clíticos < Fracos < Fortes
Os pronomes fracos são deficientes em relação aos pronomes fortes; os clíticos são deficientes em relação aos pronomes fracos. Cada classe compartilha a propriedade de deficiência da sua classe superior e acrescenta novas deficiências.
Os autores estabelecem as seguintes generalizações empíricas que permitem distinguir entre as classes de pronomes. Sintaticamente, os pronomes deficientes (fracos e clíticos) devem ocorrer em uma posição especial derivada, não podendo ocorrer em posição temática; não podem aparecer em posições periféricas, como deslocamento, isolamento, clivagem, etc; não podem ser coordenados ou c-modificados (entende-se c-modificação por modificação de todo o DP)4 4 . Os índices D e S correspondem a "deficient" e "strong", traduzidos em português respectivamente por "deficiente" e "forte". .
{itD; sheS; Mary} maybe it-has done DA alone.
maybe it-has done {(3,sg,f)D; (3,sg,f)S; Maria} DA alone.
Em (16a), o pronome deficiente, assim como um DP pleno Maria e um pronome forte, pode ocorrer em posição derivada de sujeito. Porém, em (16b), em que o sujeito é realizado em sua posição temática, somente o pronome forte ou o DP pleno é possível.
Vejamos abaixo exemplos das outras assimetrias sintáticas:
Anche/Solo {*EssaD; LeiS; Maria} è bella
Also/only {itD; sheS; Mary} is pretty
{*EssaD; LeiS; Maria}, lei è bella.
{itD; sheS; Mary}, she/it is pretty
E' {*EssaD; LeiS; Maria} che è bella.
it is {itD; sheS; Mary}that is pretty
Chi è bella? {*EssaD; LeiS; Maria}
Who is pretty? {itD; sheS; Mary}
Como vemos em (17), pronomes fracos não podem ser c-modificados. Em (18), numa construção de deslocamento à esquerda, como a topicalização, apenas um pronome forte é licenciado. A mesma coisa ocorre em construções de clivagem (19) e isolamento (20). Estas e todas as outras assimetrias apresentadas por Cardinaletti e Starke (1999), por se mostrarem constantes nas línguas naturais, levaram os autores a postularem as três classes pronominais.
Uma das evidências fundamentais que motivou a distinção entre os pronomes fortes e deficientes diz respeito a sua interpretação semântica. Pronomes fortes e deficientes, quando comparados em construções de coordenação, mostram resultados de referência bastante curiosos:
humano
<+>
<->
ok
ok
ok
*
humano
<+>
<->
ok
ok
ok
*
Um grupo de pronomes pode ser coordenado, os pronomes fortes, mas deve ter um referente humano. O segundo grupo de pronomes, os pronomes deficientes, não pode ser coordenado e pode ter uma referência humana ou não humana. Note-se que no Italiano, as duas classes de pronomes são morfologicamente distintas, esse (deficiente; fraco) e loro (forte).
Já no hebraico, as duas classes de pronome podem ser distinguidas quando coordenadas, porém são foneticamente não distintas.
Para resumir o que está em jogo na interpretação semântica, os autores chegam à conclusão de que pronomes fortes precisam sempre ter uma restrição em relação à sua referencialidade, devem ter um escopo (range). Na falta de um, seu escopo default é [+humano]. Os pronomes deficientes são incapazes de carregar uma restrição de escopo própria, por isso podem e devem ser anafóricos, expletivos, impessoais ou dativos não-referenciais.
Para identificar uma entre as duas classes de pronomes deficientes, Cardinaletti e Starke (1999) mostram que a categoria sintática destes elementos difere: enquanto os clíticos são cabeças de uma cadeia Xº, os pronomes fracos são analisados como sintagmas nominais, categorias sintáticas do tipo XP. Neste ponto, os contrastes apresentados por Kayne (1975), Rizzi (1986) e Brandi e Cordin (1989) contribuíram para a motivação da proposta de Cardinaletti e Starke (1999). Os pronomes sujeitos do francês e dos dialetos do norte da Itália (DNI) possuem certas propriedades em comum, como a impossibilidade de serem modificados, receberem foco ou serem coordenados, como vemos abaixo em (23)5 5 . Estas semelhanças estão relacionadas com o estatuto de proformas deficientes, em oposição às fortes, como já discutido nesta seção. Para mais detalhes, ver Cardinaletti e Starke (1999). .
Cardinaletti e Starke (1999)
she and the Mary are come yesterday
he and his brother have agreed
Apesar disso, ao compararem as posições sintáticas destes pronomes, Rizzi (1986) e Brandi e Cordin (1989) observaram que havia diferenças consideráveis entre eles. Para ilustrar, note que em (24a) abaixo, o clítico sujeito dos DNI obrigatoriamente aparece nas sentenças, mesmo que estas já possuam a posição de sujeito preenchida por um DP. O francês, por outro lado, não admite este tipo de construção (24b)6 6 . Tratarei, ao longo do artigo, sobre as propriedades discutidas por estes autores que se fizerem mais relevantes para a presente discussão. :
Brandi e Cordin (1989)
The Mary she speaks
Mary speaks
Jean he speaks
Jean speaks
Rizzi (1986) e Brandi e Cordin (1989), em suas análises, chegam à conclusão que as diferentes distribuições existem devido a diferentes posições sintáticas que cada pronome ocupa. No francês, os chamados de clíticos sujeitos ocupam a posição de sujeito sintático da sentença, se comportam como um XP em [Spec, AGRP]. Já os clíticos sujeitos dos diletos italianos em questão se comportam como um núcleo de uma categoria funcional de AGR, que, quando sem sujeito explícito, licencia um pro na posição de sujeito sintático da sentença (ou outro DP qualquer).
Dentro da análise de Cardinaletti e Starke (1999), esse contraste entre as proformas separa um pronome fraco, il do francês, de um verdadeiro clítico, la do trentino, já que na perspectiva da tripartição, o estatuto das diferentes projeções é fundamental para distinguir entre clíticos e pronomes fracos. Os exemplos em (25) mostram que a posição inicial de construções V2 em línguas germânicas, em que somente sintagmas plenos (XP) podem aparecer, é compatível com pronomes fracos (25b), mas nunca com clíticos (25a):
Na próxima seção, serão apresentadas algumas das diferentes propriedades que as construções com clíticos e pronomes fracos exibem, de modo a podermos comparar cê com as duas classes de pronomes.
3.2. Estatuto de Cê na Tripartição Pronominal
Os exemplos dados em (1) são aqui retomados em (26).
(Vitral 1996):
De acordo com a análise feita por Cardinaletti e Starke (1999), estes são ambientes em que apenas pronomes fortes podem aparecer. Os autores mostram que pronomes deficientes (incluindo tanto pronomes fracos quanto clíticos) não podem ser c-modificados, ou seja, não podem sofrer uma modificação de todo o DP, não podem ser topicalizados nem isolados, visto que possuem uma deficiência estrutural que os impede de sê-lo. Em (27), elenco mais alguns contextos em que um pronome deficiente não é permitido:
Como vemos em (26) e também em (27), as condições que exigem necessariamente um pronome forte, como coordenação e clivagem, só são bem formadas com os pronomes ocê e você, nunca com cê. Assim, a motivação que levou Vitral (1996) a postular que o pronome cê fosse um clítico, dentro do modelo de tripartição, passa a indicar, na verdade, que não se pode tratar cê como um pronome forte. Ele é deficiente. Deve-se agora procurar evidências para identificar que nível de deficiência cê exibe. Para tal, será necessário encontrar as propriedades relevantes que distinguem clíticos dos demais pronomes.
Um primeiro ponto que se pode ressaltar, notado por Kayne (1975) e depois retomado no estudo de Poletto (2000), está ligado ao comportamento especial dos clíticos em construções de coordenação de VP. Os dados indicam que os chamados naquela época de "clíticos sujeitos" do francês, que são posteriormente reanalisados, no modelo tripartido, como pronomes fracos, tomam posição nestas estruturas de sujeito "compartilhado", em oposição ao que ocorre com os clíticos objetos desta mesma língua, estes sim clíticos também nos termos de Cardinaletti e Starke (1999). Na sentença em francês em (28a), por exemplo, temos uma construção com o pronome sujeito fraco il, que pode ser omitido no segundo VP coordenado. Já em (28b), o clítico objeto les precisa ser repetido no segundo VP)7 7 . Ainda no francês, é interessante notar que em uma construção com - il interrogativo, como em (i) abaixo, é exigida a repetição do pronome no segundo VP coordenado, paralelamente ao que acontece com os clíticos objeto desta língua. Crucialmente, a forma - il das sentenças interrogativas são analisadas como clíticas, nos termos de Cardinaletti e Starke (1999), em contraste com o pronome sujeito fraco il visto acima em (28a). .
He will-eat some drink and will-drink some good wine
'He will eat some mest and drink some good wine'
Paul them reads very rapidly and rereads carefully immediately afterward
'Paul reads them very rapidly and rereads them carefully'
Também Poletto (2000), ao tratar das posições dos sujeitos clíticos nos dialetos do norte da Itália, atestou a necessidade da repetição do pronome clítico na segunda coordenação do VP. Nestas línguas, com exceção daquelas que dispõem de um paradigma de clíticos invariáveis8 8 . Polleto (2000) investiga a distribuição do paradigma de clíticos sujeitos com dados de mais de 100 dialetos italianos. Através de uma análise comparativa de microvariação, a autora postula domínios sintáticos minimamente distintos para cada uma das quatro classes morfológicas de sujeitos clíticos que identifica: clíticos invariáveis, dêiticos, de número e de pessoa. Neste trabalho, desconsiderei os dados que envolvem os clíticos invariáveis, já que possuem propriedades bastante peculiares que os distanciam dos demais clíticos dos DNI e das línguas que estou tratando, como o PB e o francês. , uma construção de coordenação de VP sem repetição do clítico na segunda sentença nunca é bem formada (29):
Como podemos observar no exemplo (30) abaixo, a sentença é perfeita em PB, com o uso docê. Neste primeiro diagnóstico, cê afasta-se do padrão de comportamento dos clíticos, já que como clítico sujeito, seria esperado que, para a sentença em (30) ser gramatical, obrigatoriamente houvesse a repetição deste pronome no segundo VP coordenado. Por outro lado, mantém-se compatível com o comportamento de um pronome fraco, como é o caso do Il do francês.
(30) Cê come bolo e bebe refrigerante todo dia.
Foi notado por Brandi e Cordin (1989) e abordado no estudo de Poletto (2000) uma outra propriedade dos DNI: o clítico sujeito deve permanecer adjacente ao verbo. O exemplo do fiorentino em (31) abaixo evidencia que os clíticos sujeitos nestas línguas não podem estar separados do verbo por nenhum material lexical.
Somente outros clíticos podem intervir entre verbo e clítico sujeito. A combinação de clíticos de diferentes funções sintáticas cria uma ordem rígida entre eles, os clitic clusters. Os exemplos em (32) abaixo do trentino mostram que a quebra da ordem permitida em (32a) leva à agramaticalidade da sentença em (32b).
not you to-him it have said
you not to-him it have said
A impossibilidade de se separar o clítico do verbo é também uma propriedade do PB atual. Abaixo, temos em (33) a repetição dos exemplos dados em (12) com o clítico se e exemplos com o clítico te em (34). Podemos notar que eles não podem tomar outra posição que não a de próclise verbal.
O uso do cê, pelo contrario, não está sujeito a esta restrição. Como vemos em (35), diferentes itens lexicais podem figurar entre esta proforma e o verbo sem que isso provoque agramaticalidade:
Os dados em (35) trazem evidências contra a hipótese da cliticização de cê, visto que deveriam conter efeitos de agramaticalidade em virtude da violação de uma propriedade que envolve os clíticos nominativos em línguas que os possuem (DNI) e os clíticos do PB em geral. Novamente, cê mostra ter uma condição diversa da condição de um clítico. Por ter sido diagnosticado como proforma deficiente, a classe que acomoda as suas particularidades é a de pronomes fracos.
De fato, podemos comparar as construções de topicalização de línguas com clítico sujeito (DNI) e pronomes fracos (francês), e notaremos que cê do PB atua equiparadamente às proformas fracas neste sentido. Vejamos o paralelismo dos exemplos abaixo do português brasileiro e do francês:
O deslocamento à esquerda é marcado por uma entonação característica. No PB e no francês, é o pronome fraco (cê, il, je) que dobra o sintagma topicalizado, que está antes da vírgula. Já em fiorentino, além da entonação especial, o clítico e é usado como marcador de tópico. O clítico sujeito la aparece em seguida na sentença, como temos em (38) abaixo9 9 . CMT é a sigla para Clítico Marcador de Tópico. :
Agora compare os dados acima que mostram topicalizações com as sentenças em (39) em seguida, que não envolvem este fenômeno. Em muitos dos DNI, os clíticos sujeitos são obrigatórios para a boa formação das sentenças, mesmo na presença de um DP pleno na posição de sujeito.
The Mary she speaks
'Mary speaks'
Nobody he said anything
'nobody said anything'
Em (39a), temos uma seqüência que revela a existência de um sujeito lexical acompanhado de um clítico. Esta seqüência não envolve topicalização. Como argumentam Rizzi (1986) e Brandi e Cordin (1989), uma primeira evidência é que ela não possui um contorno entonacional típico de deslocamento à esquerda. Além disto, como foi mostrado em (38), esta língua possui uma outra estrutura específica para marcar a topicalização. Levando em conta que na sentença apresentada em (39b), o sintagma Nessuno não pode estar em posição de tópico, visto que um sintagma quantificado não pode sofrer deslocamento à esquerda (cf. Rizzi (1986)), podemos concluir que Nessuno deve estar na posição de sujeito sintático. Portanto, dialetos italianos que dispõem de um paradigma de clíticos sujeitos permitem que um DP os preceda e preencha a posição de sujeito da sentença. Compare agora os dados em (39) com o contraste de gramaticalidade apresentado nas sentenças do francês abaixo em (40):
Noone he not has anything said
'Noone said anything'
Estes exemplos mostram que il não pode co-ocorrer com o DP personne. Il é um pronome fraco. Vemos, portanto, que só clíticos podem coocorrer com DPs sujeitos.
Note que cê não é compatível com construções do tipo de (39), paralelamente ao ocorre com os pronomes fracos do francês. Como foi mostrado em (36), cê pode aparecer junto a outro constituinte nominal apenas quando este sofre deslocamento à esquerda, o que está de acordo com sua condição de proforma fraca.
Essa assimetria entre os pronomes sujeitos dos DNI e do francês revela o comportamento de duas classes distintas de proformas: respectivamente, as clíticas e as fracas. Esta é a análise assumida na teoria de Cardinaletti e Starke (1999), já que, crucialmente, pela categoria superficial assumida pelos elementos eles podem ser distinguidos entre clítico, com status de núcleo de uma projeção funcional, e pronome fraco, com status de projeção máxima.10 10 . Ramos (1997), ao notar características específicas de cê que o opunha aos demais clíticos do PB, como a sua possibilidade de manter-se distante do verbo, propõe uma análise de cê como os "clíticos" do Francês, que ocupam a posição de especificador de FLEX, adotando o quadro teórico de Kayne (1983) e Rizzi (1986). A proposta de Rizzi (1986) considera que a cliticização do pronome pode ser puramente fonológica, que é o que aconteceria com o pronome sujeito do Francês. Isso significa dizer que os clíticos não constituem uma classe sintática única, não estando obrigatoriamente em posição de núcleo. Reforçamos aqui que, de acordo com a tripartição pronominal, quadro teórico assumido neste artigo, os pronomes il, je do Francês são analisados como pronomes fracos.
Abordaremos agora duas estruturas do PB que permitem diferenciarmos os pronomes fracos dos clíticos. A partir dos contrastes mostrados nos trabalho de Ferreira (2000, 2004) sobre hiperalçamento de sujeito no PB, adicionamos mais uma evidência que corrobora a hipótese de se considerar cê um pronome fraco. Ferreira (2000, 2004) argumenta a favor da análise de hiperalçamento do DP a Maria na construção em (41) abaixo.
(41) A Maria parece que está cansada.
Como uma de suas evidências, Ferreira (2000, 2004) mostra que elementos que não podem sofrer topicalização, como sintagmas quantificados e pronomes fracos, podem sofrer hiperalçamento nestas construções. Desta maneira, Ferreira (2000, 2004) consegue diferenciar a posição de sujeito deslocado ocupada pelo pronome Cê em (42) abaixo da posição de tópico, como em (43), explicando assim o contraste entre a aceitabilidade das duas sentenças.
(42) Cê parece que não quer sair.
(43) *Cê, o João me contou que não quer sair.
Tópicos marcados, como já foi discutido anteriormente, não são compatíveis com pronomes fracos. Como observado por Martins e Nunes (2006), as sentenças em (44) abaixo permitem reconhecer entre as versões homófonas forte e fraca do pronome ele. A possibilidade da interpretação do pronome ele como 'um livro', elemento com o traço [-humano], mostra que este pronome é necessariamente fraco, visto que os pronomes fortes só podem se referir a entidades com o traço [+humano], nos termos de Cardinaletti e Starke (1999). Assim, o pronome topicalizado Ele em (44a) é um pronome forte, já que só permite ter referência humana. Já em (44b), quando Ele está numa posição de hiperalçamento, a interpretação deste pronome como 'um livro' indica que este é fraco.
De acordo com esta análise feita por Ferreira (2000, 2004) e confirmada com os dados de Martins e Nunes (2006), um pronome fraco é licenciado na posição de hiperalçamento de sujeito. Em (45) abaixo, vemos que esta mesma construção é incompatível com clíticos. Desta forma, se cê fosse de fato um clítico, deveríamos esperar que a sentença (42), repetida abaixo em (46), não fosse bem formada, ao contrário do resultado obtido.
Martins e Nunes (2006) e Nunes (2007), a partir das investigações de Ferreira (2000, 2004) e Duarte(2003), discutem ainda uma construção semelhante a do hiperalçamento de sujeito. Trata-se de um caso que aparentemente envolve hiperalçamento de sujeito com resumptivos, mas, na verdade, não há sujeito hiperalçado na estrutura. De acordo com os autores, os pronomes em (47) abaixo estão numa posição de tópico não-marcado, acima de [Spec, TP] e distinta da posição de tópico marcado associado ao sistema do CP. Enquanto pronomes fracos não podem nunca ocupar uma posição de tópico marcado, eles mostram-se compatíveis com estas construções:
Martins e Nunes (2006):
Em (47a), a interpretação do pronome Ele como 'um livro', elemento com o traço [-humano], mostra que este pronome é necessariamente fraco. Em (47b), conferimos que a proforma cê pode ser gerada como tópico não-marcado, como mostram Martins e Nunes (2006). Observe agora o exemplo em (48) abaixo. A inaceitabilidade desta sentença deixa claro que pronomes clíticos não figuram neste ambiente.
(48) *Se parece que se fala muito bem inglês naquela escola de idiomas.
Ainda explorando esta análise, Nunes (2007) aponta também que, em sentenças como em (49a) abaixo, o pronome fraco cê está nesta mesma posição, associada com um tópico não-marcado. A diferença de aceitabilidade para o par em (49) reafirma as considerações feitas nos exemplos acima: o clítico nominativo se se mostra incompatível com esta estrutura.
Analogamente, numa sentença em que cê é um pronome acusativo, obteremos os mesmos efeitos de aceitabilidade: cê é licenciado para a posição, como vemos em (50a) abaixo, enquanto o clítico acusativo te, por exemplo, não é (50b).
Independentemente se a caracterização feita por Martins e Nunes (2006) e Nunes (2007) da posição ocupada por cê nos exemplos (47b), (49a) e (50a) está ou não correta, o ponto relevante para a minha análise é que os contrastes entre (47b) e (48), e (49a) e (49b) mostram que a proforma cê não se comporta como o clítico nominativo se, presumivelmente o único clítico nominativo do português (Cinque 1988, Raposo & Uriagareka 1996). O contraste entre (50a) e (50b) mostra, em primeiro lugar, que cê pode ser acusativo, ao contrário do que conclui Vitral (1996: 120,122). Em segundo lugar, notamos que cê, mesmo quando acusativo, não se comporta como clítico.
Acima, foram elencadas duas construções do PB que permitem distinguir o comportamento de pronomes fracos do comportamento dos clíticos: o hiperalçamento e as estruturas de tópico não-marcado. As evidências mostram que cê é licenciado nestas construções, assim como os pronomes fracos e contrariamente ao que acontece com os clíticos, visto que o uso destes leva à má formação das sentenças.
3.3. Cê e Preposições
Como foi observado por Ramos (1997) e Vitral (1996), de acordo com a análise que assume cê como um clítico, pode ser previsto que este pronome não ocorra na posição de complemento de preposição, já que preposições, no português brasileiro, não tomam clíticos como complemento.
Na busca de confirmar a sua hipótese, os autores apresentam dados que admitem a boa formação das sentenças em que ocorre o uso da proforma ocê e você nesta posição e consideram má formadas as mesmas sentenças quandocê é usado.
Vitral (1996)
Para retirar a dúvida da existência de casos que envolvem o pronome cê com preposições, Ramos (1997) discute a ambigüidade causada por expressões como com ocê terem realizações do tipo [kõ'se] (em contraste com a rejeitada forma com cê [kõ se]). A autora defende haver um processo de redução, devido ao condicionamento fonológico do contexto, e por isso não admite que cê possa ser a forma escolhida em tais ocorrências. De fato, tendo em vista apenas os exemplos em (51) e a realização [kõ'se] comentada por Ramos, seria pertinente concluir que a proforma cê não pode estar associada à posição de caso oblíquo, exatamente como acontece com pronomes clíticos átonos, ver contraste em (52) abaixo:
Os dados abaixo, no entanto, parecem trazer informações novas que nos propõem um reexame da questão:
Considerando que as pronúncias das seqüências pra cê e com cê sejam exatamente como indicadas acima, sem a realização fonética da vogal [o], vemos que é possível, sim, que a proforma cê apareça como complemento de preposição. É necessário enfatizar que isso somente é possível quando há uma reestruturação prosódica na fala. Enquanto que as seqüências [pιa se] e [kõ se], com pausa entre os dois elementos fonéticos, são rejeitadas para falantes do PB, as seqüências [p'se] e [k'se] são perfeitas. Interessante notar também que não é necessário que os falantes que produzem estas seqüências possuam a variante ocê em seus dialetos. Portanto não é óbvio que estas realizações são, de alguma forma, advindas do uso de ocê11 11 . Os dados das realizações [p'se] e [k'se] foram observados empiricamente por falantes de diferentes dialetos do PB (baiano, mireiro, interior de São Paulo, São Paulo capital e interior do Paraná). .
Para verificar a validade desta hipótese, trarei algumas considerações feitas dentro da teoria de Cardinaletti e Starke (1999) a respeito de prosódia e fonologia. Só pronomes deficientes podem formar uma unidade prosódica única com o elemento adjacente. A reestruturação prosódica é uma propriedade tanto dos clíticos quanto dos pronomes fracos e permite que estes sejam submetidos a fenômenos como ligação, contração e redução de fonemas. Assim, analisada como um pronome fraco, não é estranho que a proforma cê ocorra ligada prosodicamente às preposições. Por algum motivo, cê é apenas licenciado nesta posição quando sofre reestruturação.
Outra propriedade que envolve as proformas deficientes é a capacidade que elas possuem de não serem acentuadas (lexicalmente ou prosodicamente). No entanto, apenas pronomes fracos podem receber acento lexical, um clítico é sempre desacentuado lexicalmente. Os blocos fônicos em (54) acima expressam uma acentuação que incide sobre a realização da proforma cê. Como complemento de preposição, lugar canonicamente reservado para as formas oblíquas tônicas, cê recebe uma acentuação lexical. Dentro desta visão, no momento em que o pronome fraco cê é selecionado para ocupar a posição de pronomes oblíquos tônicos, ele desencadeia um processo de reestruturação prosódica e seu conteúdo fonético recebe acentuação.
Portanto, defender que nos exemplos dados em (54) a proforma escolhida é cê está de acordo com os pressupostos da teoria de Cardinalleti e Starke (1999). Sobretudo, esse dado é uma evidência contra a hipótese de que cê seja um clítico, já que clíticos são átonos. Esta afirmação também implica assumir que a posição de complemento de preposição no PB pode também ser ocupada por proformas fracas. Em (55) abaixo, a interpretação de ele como 'um carro' é uma evidencia independente de que isso é de fato possível:
Para concluir, o comportamento de cê neste ponto revela mais uma evidência de que esta proforma não é um clítico. Um clítico não pode ser complemento de preposição no PB, nem receber, em ocasião alguma, acentuação lexical. O padrão apresentado nos exemplos de (54) mostram que cê atua de maneira oposta aos clíticos em ambas as questões. Por outro lado, o seu comportamento é totalmente compatível com a sua condição de pronome fraco.
4. Outras Conseqüências: Ocê e Você como Formas Fracas e Fortes
Até aqui foi possível mostrar que o comportamento que diferencia cê das proformas ocê e você pode ser explicado em termos da distinção tripartida do sistema pronominal: enquanto as proformas ocê e você são fortes, cê é uma proforma fraca, o que desencadeia as restrições e particularidades no seu uso, como foi apresentado ao longo do artigo. Assumindo o modelo teórico de Cardinaletti e Starke (1999), é interessante investigar mais algumas propriedades do microssistema pronominal de segunda pessoa você/ ocê/ cê para que se possa fazer a classificação definitiva de todos os seus itens.
A tripartição pronominal pressupõe existirem proformas de três diferentes níveis de "força". Estes níveis estão relacionados à quantidade de estrutura (fonológica, morfológica, sintática e semântica) que cada classe possui. Quanto mais deficiente é a proforma, menos estrutura ela possui. Em termos empíricos, temos que a proforma cê é reduzida morfologicamente em relação aos seus equivalentes fortes ocê e você. Na sintaxe, a ausência de alguma estrutura leva à impossibilidade de estes serem c-modificados ou coordenados, por exemplo. Cardinaletti e Starke (1999) postularam o princípio Minimizar á para dar conta das propriedades que dizem respeito à escolha das proformas. Segundo esse princípio, sempre que duas formas são inicialmente possíveis, a forma mais deficiente, com menos estrutura, tem preferência sobre a mais forte. Descritivamente, uma forma forte é impossível se uma deficiente está disponível. Mas, assim que uma forma deficiente for impedida, por razões independentes, a proforma forte prevalece.
Vejamos os dados do francês:
he also me sees
Em (56a) e (56b), a atuação do princípio Minimizar á determina que a menor estrutura seja a escolhida. O pronome forte lui, nesta sentença, induz a introdução de um referente novo no discurso e a interpretação anafórica fica bloqueada. Para que o pronome garanta a co-referência com o seu antecedente no discurso e não induza uma interpretação contrastiva, deve haver necessariamente o uso do pronome fraco il. Já em (56c) e (56d), o pronome fraco é barrado devido à introdução de um c-modificador na sentença. Já que, por esse motivo independente, a proforma mais deficiente não pode ser empregada nesta construção, a forma forte novamente é possível em (56d).
Ao considerar o princípio Minimizar á dentro do domínio de escolha das proformas cê, ocê e você, enfrentamos a seguinte questão: como explicar a inexistência de algum tipo de restrição que barre o uso das proformas fortes ocê e você sempre que o uso da proforma cê é possível? Em termos empíricos, deveríamos esperar que, em (57) abaixo, apenas a sentença (57a), com o pronome fraco cê, fosse bem-formada.
No entanto, vemos que o emprego de qualquer uma das formas é igualmente aceito, sem que haja alteração alguma nas suas interpretações (sem indução de contrastividade, por exemplo).
Para manter a coerência com a teoria de Cardinaletti e Starke (1999), devemos admitir que as proformas ocê e você são ambíguas: possuem duas formas subjacentes homófonas, uma fraca e outra forte. Este é um fato muito comum. Diversas línguas, entre elas alemão, húngaro, eslavo, hebraico e gun12 12 . Maiores detalhes podem ser encontrados em Cardinaletti e Starke (1999: 147). , possuem paradigmas de proformas fortes e fracas que são idênticas morfológica e foneticamente. Desta maneira, podemos explicar o motivo de não haver violação do princípio Minimizar α. Em contextos que um pronome fraco é licenciado, cê concorre com as variedades fracas das proformas ocê e você, e, por isso, não há preferência entre elas, visto que todas têm o mesmo nível de "força". Quando, por algum fator independente, a construção só puder acomodar um pronome forte, cê, por ser unicamente fraco, é automaticamente excluído enquanto possibilidade. Restam, assim, como candidatos, as variedades fortes de ocê e você.
5. Conclusão
Assumindo o modelo tripartido proposto por Cardinaletti e Starke (1999), pudemos reexaminar a proposta de Vitral (1996) e Ramos (1997) de que cê seja um clítico e concluir que os argumentos apresentados pelos autores, na verdade, mostram que cê não é um pronome forte. Através dos diagnósticos previstos na teoria da tripartição e através também da comparação do comportamento de cê e dos demais clíticos do português brasileiro e de outras línguas, pôde-se chegar à conclusão de que cê é um pronome fraco, não um clítico. Pôde-se ainda determinar que as proformas ocê e você possuem duas formas subjacentes homófonas, uma fraca e uma forte.
Temos, assim, como um esquema final:
Pronomes fortes: ocê, você
Pronomes fracos: cê, ocê, você
Recebido em julho de 2007
Aprovado em maio de 2008
E-mail: carolinapetersen@gmail.com
Para mais detalhes sobre o fenômeno da inversão complexa do francês como em (i) acima, vejam-se Cardinaletti e Starke (1999: 167, 169), Brandi e Cordin (1989: 132-136), Kayne (1983) e Kayne e Pollock (2001).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Set 2009 -
Data do Fascículo
2008
Histórico
-
Aceito
Maio 2008 -
Recebido
Jul 2007