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Sobre a estrutura dos PPs locativos no português brasileiro: nome ou parte axial?

On the structure of locative PPs in Brazilian Portuguese: noun or axial part?

RESUMO

Neste artigo, analisamos com dados do português brasileiro a proposta sintático-semântica de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) para as chamadas “estruturas axiais”, construções como ‘em frente a’ que são interpretadas como denotando uma região espacial projetada a partir de um FUNDO. Depois de avaliarmos criticamente a proposta de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.), que defende um núcleo funcional específico para abrigar lexemas como ‘frente’, apresentamos a solução de Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).), que defendem que esse tipo de item é, na verdade, um “nome fraco”. Ao analisarmos as estruturas axiais do PB, argumentamos a favor da abordagem de Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).).

Palavras-chave:
Preposições espaciais; Estruturas axiais; Semântica; Sintaxe

ABSTRACT

In this paper, we investigate with Brazilian Portuguese (PB) data Svenonius’ (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) syntactical-semantic proposal to the so-called “axial structures”, expressions such as ‘em frente a’ that are interpreted as denoting a spatial region projected from a GROUND. After critically evaluating the Svenonius’ (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) proposal, which claims in favor of a specific functional head as the host for a lexeme such as ‘frente’, we present Matushansky and Zwarts’ (in press_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).) solution, which claims that this is, in fact, a “weak noun”. Our analysis of PB axial structures leads to favor Matushansky and Zwarts’ (in press_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).) proposal.

Keywords:
Preposition; Axial structures; Semantics; Syntax

Introdução

Neste artigo, investigamos o funcionamento do que Jackendoff (1996_____. 1996. The architecture of the linguistic-spatial interface. In: BLOOM, P et al. (Orgs.) Language and Space. p.1-30. MIT Press, Cambridge, Ma.) chama de linguagem axial, tendo como foco o caso dos sintagmas preposicionais (PPs) espaciais do português brasileiro (PB) exemplificados por ‘na frente de’. O termo “linguagem axial” foi cunhado com base na observação de que há um conjunto de itens nas línguas naturais, como certas preposições espaciais (‘acima’, ‘atrás’) e alguns adjetivos dimensionais (‘alto’, ‘largo’), que dizem respeito a uma região (i.e., um conjunto de pontos no espaço) determinada pela extensão de um eixo que parte de um objeto para o espaço que o circunda. Em linhas gerais, quando tratamos, por exemplo, da expressão ‘na frente da casa’, não necessariamente estamos falando da fachada de uma casa; podemos, nesse caso, fazer referência ao espaço localizado a partir de sua parte da frente.

Recentemente, essa ideia ganhou corpo com os trabalhos de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.), que propôs uma análise sintática robusta para tais construções. Grosso modo, o autor toma a ideia de Jackendoff (1996_____. 1996. The architecture of the linguistic-spatial interface. In: BLOOM, P et al. (Orgs.) Language and Space. p.1-30. MIT Press, Cambridge, Ma.) de que há um vocabulário axial, que apresenta um comportamento sistemático, e propõe a existência de um núcleo sintático específico responsável por tal comportamento. Esse núcleo, denominado AxPart (axial part), integraria a hierarquia funcional universal e estaria lexicalizado em itens como ‘frente’, ‘lado’ e ‘topo’, que podem compor PPs como ‘na frente de’. Ao analisar esse tipo de sintagma, portanto, Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) defende que o núcleo de PPs locativos que denotam uma região do espaço projetada a partir de um eixo não é de natureza nominal, mas sim funcional. Embora a existência de AxPart seja amplamente aceita na literatura, questionaremos aqui tal assunção e avaliaremos a adequação da proposta de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) aos dados do PB.

Para tanto, tratamos na seção 1 da origem da discussão que pretendemos abordar, discorrendo sobre a cisão do domínio espacial em diversos núcleos funcionais e apresentando brevemente a proposta de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) e os problemas que norteiam essa abordagem. Após apresentarmos nossas questões de pesquisa, expomos, na seção 2, os argumentos do autor para defender a independência sintática de AxPart, contrastando os dados do inglês aos de nossa língua objeto, sobretudo para verificar a aplicabilidade dos testes propostos pelo autor ao PB. Na seção 3, tratamos do trabalho de Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
), que questiona a existência do núcleo funcional AxPart, propondo que os lexemas “axiais” sejam, na verdade, “nomes fracos” (cf. Aguilar-Guevera & Zwarts, 2013AGUILAR-GUEVARA, A.; ZWARTS, J. 2013. Weak definites refer to kinds. Weak definites across Languages, Recherches Linguistiques de Vincennes, v. 42, p.33-60.). Na seção 4, exploramos a arquitetura dos dados do PB. Conforme veremos, as sentenças tidas como axiais nessa língua envolvem ou outras estruturas ou interpretações não previstas para uma certa estrutura, o que acaba desafiando a construção proposta por Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.), favorecendo, assim, a proposta de “definidos fracos” de Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
). Com a análise dos dados, buscamos apresentar uma solução para a controvérsia semântica e categorial sobre a natureza dos itens axiais em PB, que incorpora insights tanto da argumentação sintática de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) quanto da abordagem semântica de Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
, no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).). Finalmente, na conclusão, retomamos o caminho percorrido, e assinalamos alguns dos problemas em aberto.

1. A ideia de expressões axiais

O domínio espacial há muito tem sido investigado nas mais diversas vertentes teóricas (Jackendoff, 1983JACKENDOFF, R. 1983. Semantics and cognition. MIT press.; Pantcheva, 2011_____. 2011. Decomposing path: The nanosyntax of directional expressions. (Tese - Doutorado em Linguística), Universidade de Tromso.; Svenonius, 2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.; Talmy, 2000TALMY, L. 2000. Toward a cognitive semantics. MIT press.; Zwarts, 1997ZWARTS, J. 1997. Vectors as relative positions: A compositional semantics of modified PPs. Journal of Semantics, v. 14, p. 57-86., 2005). Nesse quadro, o trabalho de Jackendoff (1983JACKENDOFF, R. 1983. Semantics and cognition. MIT press.) inaugura um novo modo de compreender as relações espaciais que se observam nas línguas naturais, pois divide a noção de espaço em duas informações conceituais: PLACE e PATH. Tal proposta ganhou força na literatura sobretudo com o surgimento do “Projeto Cartográfico” (Cinque, 1999CINQUE, G. 1999. Adverbs and functional heads: A cross-linguistic perspective. Oxford University Press on Demand.), que, ao tomar como heurística a máxima “um traço-um núcleo” (Kayne, 2005), procura desenhar mapas precisos da estrutura funcional universal (f-seq) das línguas naturais, estabelecendo uma posição sintática específica para cada elemento linguisticamente relevante. Assim, somando-se a estrutura conceitual de Jackendoff (1983JACKENDOFF, R. 1983. Semantics and cognition. MIT press.) aos mapas cartográficos (Cinque & Rizzi, 2010_____.; RIZZI, L. (Orgs.). 2010. Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.), “espaço” passou a ser entendido semântica e sintaticamente como um domínio composto por duas camadas ordenadas hierarquicamente, de tal modo que a trajetória é sempre construída acima do elemento que codifica lugar, conforme o exemplo abaixo do macedônio demonstra (Pantcheva, 2006aPANTCHEVA, M. 2006a. Persian preposition classes. Nordlyd, Tromsø Working Papers in Language & Linguistics, v. 33, n. 1, Special Issue on Adpositions, p.1-25.: 13).

(1) a. Kaj parkot sum. b. Odam na-kaj parkot.

em.LOC parque.DEF estar.1SG ir.1SG para.DIR-em.LOC parque.DEF

“eu estou no parque” “eu vou para o parque”

Embora essa divisão do domínio espacial tenha sido muito utilizada, especialmente para o tratamento de verbos de movimento e da suposta ambiguidade de certas preposições, alguns autores, tais como Kracht (2008KRACHT, M. 2008. The Fine Structure of Spatial Expressions. In: ASBURY, A. et al. (Eds.) Syntax and Semantics of Spatial P. p. 35-62.), Pantcheva (2011_____. 2011. Decomposing path: The nanosyntax of directional expressions. (Tese - Doutorado em Linguística), Universidade de Tromso.), Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) e Zwarts (2005), demonstraram sua insuficiência para lidar com a riqueza de significados espaciais presentes nas línguas naturais. Por conta disso, atualmente assume-se que “trajetória” e “lugar” são, na verdade, rótulos simplificados para uma estrutura funcional muito mais rica.

Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.), por exemplo, aventou uma estrutura para a categoria de lugar composta minimamente por quatro núcleos funcionais distintos: Loc, AxPart, K e DP. Segundo o autor, o DP atua como o FUNDO para a localização de uma FIGURA (Talmy, 2000TALMY, L. 2000. Toward a cognitive semantics. MIT press.); ou seja, o DP é uma entidade que pode ser tomada como o ponto de referência para que a relação de localização se estabeleça. O núcleo K, relacionado ao caso abstrato genitivo, é uma função que toma como argumento o DP FUNDO e retorna a região específica do espaço ocupada por esse elemento, seu Eigenplace (Wunderlich, 1991). Logo acima desse núcleo, encontra-se o que Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) chama de “parte axial”, uma projeção que identifica uma sub-região do Eigenplace determinada por uma extensão espacial a partir de algum dos eixos do objeto de referência (Jackendoff, 1996_____. 1996. The architecture of the linguistic-spatial interface. In: BLOOM, P et al. (Orgs.) Language and Space. p.1-30. MIT Press, Cambridge, Ma.). Certas preposições como ‘atrás’ e ‘acima’ e locuções como ‘na frente de’, ‘em cima de’ e ‘ao lado de’, codificariam essa informação axial, que expressa uma relação de parte-todo com o FUNDO. Por fim, o núcleo Loc hospeda as adposições locativas, mapeando a região do FUNDO para um espaço vetorial4 4 Conforme proposto por Zwarts (1997) e Zwarts e Winter (2000), na chamada “teoria dos vetores espaciais” (VSS, em inglês). .

O trabalho de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) foi amplamente explorado e incorporado em estudos concentrados no domínio espacial locativo - em Cinque e Rizzi (2010_____.; RIZZI, L. (Orgs.). 2010. Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.), é possível observar a produtividade dessa proposta, extensivamente investigada e reformulada nos últimos anos. Nota-se, sobretudo, um consenso na literatura sobre a existência de um elemento funcional que especifica a posição da FIGURA em relação a algum eixo projetado do FUNDO (Fábregas, 2007FÁBREGAS, A. 2007. (Axial) parts and wholes. Nordlyd, v. 34, n. 2.; Kracht, 2008KRACHT, M. 2008. The Fine Structure of Spatial Expressions. In: ASBURY, A. et al. (Eds.) Syntax and Semantics of Spatial P. p. 35-62.; Den Dikken, 2010DEN DIKKEN, M. 2010. On the functional structure of locative and directional Pps. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.). Mapping spatial Pps: The cartography of syntactic structures. p.74-126.; Pantcheva, 2011_____. 2011. Decomposing path: The nanosyntax of directional expressions. (Tese - Doutorado em Linguística), Universidade de Tromso.; Saeed, 2014SAEED, S. 2014. The Syntax and semantics of Arabic spatial Ps. Newcastle And Northumbria Working Papers In Linguistics, v. 20, p. 44.; Pretorius, 2017PRETORIUS, E. 2017. Spelling out P: a unified syntax of Afrikaans adpositions and V-particles. Tese de Doutorado. Stellenbosch: Stellenbosch University.). Conforme é possível observar nos dados abaixo do PB, parece haver evidências semânticas e morfossintáticas para que haja de fato um núcleo independente na f-seq que codifique esse tipo de informação, indicado pelos termos em itálico:

(2) a. O livro está na frente do computador.

b. O cachorro está do lado da casa.

c. As chaves estão no fundo da gaveta.

d. O tapete está no da cama.

Nas sentenças (2a)-(2d), observamos que os itens em destaque não tratam de uma parte concreta de um objeto, mas sim de um espaço projetado. Por conta disso, itens como ‘frente’, ‘lado’ e ‘pé’ não podem ser classificados apenas enquanto nomes relacionais, por mais que historicamente possam ter sido derivados dessa classe. Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) argumenta sistematicamente para defender tal posição e sustenta que itens como ‘frente’ lexicalizam um núcleo sintático específico denominado AxPart. Prova de que esses itens carregariam uma estrutura diferente da dos nominais (e das preposições) é a impossibilidade de serem (i) introduzidos por determinante, (ii) pluralizados ou (iii) modificados por estrutura adjetival. Além disso, a interpretação dada aos elementos axiais é distinta daquela recebida por sua contraparte nominal. Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.: 49-50) ilustra esse contraste com o seguinte par de sentenças:

(3) a. There was a kanguru in the front of the car.

“tinha um canguru na frente do carro”

b. There was a kanguru in front of the car.

“tinha um canguru em frente ao carro”

Em (3a), ‘front’ é interpretado como uma parte do carro, sendo, assim, um nome; para Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.), a presença do determinante definido ‘the’ na construção do sintagma seria uma evidência para a estrutura nominal. Com (3a), entende-se que o canguru está localizado dentro do carro, em sua parte frontal, provavelmente em algum dos bancos. (3b) faz referência a outra situação; nesse caso, a interpretação é a de que o canguru está fora do carro, em algum lugar projetado a partir de sua frente5 5 Essa interpretação vale somente para os dados em inglês, porque em PB a tradução sugerida para (3a) é ambígua entre a leitura de parte de objeto e a leitura axial; voltaremos a esse ponto adiante. . Essas diferentes interpretações levam Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.: 51-52) a postular duas estruturas sintáticas distintas:

Quando pensamos nos dados do PB, indicados como tradução dos exemplos de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.), também notamos o contraste entre uma leitura de parte do objeto (Figura 1) e outra de um espaço projetado a partir do objeto (Figura 2). No entanto, as expressões que envolvem elementos axiais nessa língua parecem impor problemas para a proposta do autor, pois são sistematicamente acompanhadas por determinante, o que caracterizaria esses elementos como sendo de natureza nominal.

Figura 1
Representação da estrutura nominal ‘in the front of’.

Figura 2
Representação da estrutura axial ‘in front of’.

De um modo mais específico, os dados do PB colocam um impasse entre a estrutura sintática e a interpretação semântica observadas porque, em sentenças como “o livro está na frente do computador”, sabemos que ‘frente’ diz respeito a um espaço localizado a partir da estrutura do FUNDO, o que seria adequadamente capturado pela sintaxe representada na Figura 2; por outro lado, a presença do artigo definido nessa sentença parece exigir a estrutura sintática apresentada na Figura 1. Com base em sentenças do PB que contêm um elemento axial, portanto, não parece ser possível sustentar a distinção proposta por Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) entre elementos estritamente nominais, que teriam uma interpretação de parte de um objeto, e elementos estritamente axiais (funcionais), que seriam interpretados unicamente como uma região projetada do FUNDO com base em um eixo. Em suma, o que observamos no português brasileiro é que muitos itens axiais parecem lexicalizar AxPart, por corresponderem a um espaço projetado, mas possuem uma sintaxe semelhante à representada na Figura 1, prova disso pode ser dada pela agramaticalidade das sentenças em (4), em que se exclui o artigo definido da estrutura.

(4) a. *o cachorro está em lado da casa. (no lado da casa)

b. *as chaves estão em fundo da gaveta. (no fundo da gaveta)

c. *o tapete está em pé da cama. (no pé da cama)

Considerando a discussão apresentada, analisaremos os sintagmas preposicionais que parecem carregar um elemento axial em PB. Notadamente, averiguaremos a adequação sintática da proposta de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) a respeito da necessidade de se assumir um núcleo de parte axial (AxPart) na f-seq codificada pelo português brasileiro, bem como a análise semântica a ser atribuída aos constituintes tidos como axiais, independentemente de lexicalizarem AxPart ou N, uma vez que sua interpretação parece ser sistemática. Tendo isso em vista, as perguntas que guiam esta investigação podem ser formuladas nos seguintes termos: (i) os dados do PB que dizem respeito à projeção de um espaço a partir de um eixo têm como núcleo um elemento de natureza nominal ou não?; (ii) qual semântica deve ser atribuída à interpretação desses itens? Tentaremos responder essas questões nas próximas seções, a começar por uma avaliação dos argumentos de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) para defender a existência de um núcleo funcional AxPart.

2. O núcleo funcional AxPart: Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.)

Uma das grandes críticas apresentadas para trabalhos relacionados à Cartografia (Cinque, 1999CINQUE, G. 1999. Adverbs and functional heads: A cross-linguistic perspective. Oxford University Press on Demand.; Schlonsky, 2010) recai sobre o excesso de núcleos funcionais presentes na arquitetura sintática universal. Desse modo, para que se aceite a existência de uma categoria na f-seq, é necessário que evidências semânticas e morfossintáticas sejam apresentadas e ilustradas translinguisticamente. Por conta disso, o trabalho de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) é desenvolvido com uma metodologia rigorosa e apresenta uma série de argumentos favoráveis à presença de um núcleo sintático denominado AxPart (“parte axial”) na f-seq. Esse núcleo, conforme dissemos anteriormente, estaria codificado em construções como ‘na frente de’, ‘ao lado de’ e ‘no topo de’ e, devido à sua presença, essas expressões seriam interpretadas como uma determinada região projetada a partir de um eixo e não como uma parte material de um objeto. Essa distinção semântica, exemplificada pelas sentenças abaixo, é o primeiro fator para defender a existência do núcleo AxPart.

(5) a. Joana está do lado da casa.

b. Joana pintou o lado da casa.

Em (5a), entende-se que o sujeito (FIGURA) está localizado em algum espaço identificado a partir do lado da casa (FUNDO). Em (5b), pelo contrário, ‘o lado da casa’ não é o FUNDO para a localização da FIGURA, mas sim uma parte da casa. De acordo com Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.), semanticamente a função de AxPart é identificar uma região com base na estrutura do FUNDO; desse modo, quando esse núcleo está presente, a FIGURA passa a ser localizada em relação a um espaço projetado a partir de algum eixo do objeto de referência: ‘frente’, ‘costas’ e ‘lado’, por exemplo, são identificados por um eixo horizontal, ao passo que itens como ‘topo’ e ‘pé’ dizem respeito a uma região delineada a partir de um eixo vertical. De acordo com Jackendoff (1996_____. 1996. The architecture of the linguistic-spatial interface. In: BLOOM, P et al. (Orgs.) Language and Space. p.1-30. MIT Press, Cambridge, Ma.: 14), as partes axiais de um objeto (FUNDO) “se comportam gramaticalmente como partes do objeto, mas, diferentemente das partes convencionais, tais como uma alça ou uma perna, elas não têm um formato distintivo. Pelo contrário, são regiões do objeto determinadas por sua relação com os seus eixos”6 6 No original: “the ‘axial parts’ of an object - its top, bottom, front, back, sides, and ends - behave grammatically like parts of the object, but, unlike standard parts such as a handle or a leg, they have no distinctive shape. Rather, they are regions of the object (or its boundary) determined by their relation to the object’s axes” .

Para Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.), embora haja alguma semelhança entre os itens que denotam uma parte axial e os nomes, há uma série de indícios morfossintáticos que demonstram a necessidade de assumir a noção de parte axial enquanto um núcleo funcional sintático particular, como na Figura 2 acima. Pensando nisso, o primeiro teste morfossintático apresentado para distinguir um nome de uma parte axial é a pluralização: nominais podem receber marca de plural, mas partes axiais não.

(6) a. There were kangaroos in the fronts of the cars.

b. *There were kangaroos in fronts of the cars.

(7) a. ?Tinha cangurus nas frentes dos carros.

b. *Tinha cangurus em frentes dos carros.

O contraste em PB é um tanto distinto daquele observado no teste em inglês. A pluralização não parece funcionar bem com ‘frente’ mesmo em uma estrutura da qual se esperaria a leitura nominal, em que os cangurus estariam sentados na parte da frente de diferentes carros. No entanto, deve-se observar que encontramos ‘frente’ com marca de plural em sentenças como “os soldados estão presos nas frentes de batalha”, em que ‘frente’ é notadamente um nome, podendo, portanto, sofrer pluralização. Outra diferença sintática entre o uso nominal e o axial de itens como ‘frente’ e ‘pé’ é a possibilidade de modificação adjetival, disponível apenas para elementos nominais.

(8) a. There was a kangaroo in the smashed-up front of the car.

b. *There was a kangaroo in smashed-up front of the car.

(9) a. Tinha um canguru na frente esmagada do carro.

b. *Tinha um canguru em frente esmagada do carro.

Segundo Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.: 50), embora muitas expressões locativas possam ser modificadas por sintagmas de medida, apenas itens axiais permitem essa operação. A contraparte nominal de ‘frente’, por exemplo, que diz respeito a uma parte de um objeto, não pode ser modificada.

(10) a. *There was a kangaroo sixty feet in the front of the car.

b. There was a kangaroo sixty feet in front of the car.

(11) a. Tinha um canguru seis metros na frente do carro.

b. Tinha um canguru seis metros em frente ao carro.

Note que a sentença (11a) é gramatical apenas ao assumirmos ‘frente’ como parte axial, ou seja, ao tratarmos ‘na frente do carro’ como o espaço projetado a partir da parte da frente do FUNDO, é possível que a FIGURA esteja localizada seis metros à frente do FUNDO. Caso o sintagma ‘na frente do carro’ seja entendido como uma parte física do carro, a sentença passa a ser agramatical. Tal fato reforça o argumento de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) de que nomes não podem ser modificados por sintagmas de medida. É interessante comparar ainda a possibilidade de modificação entre PPs que podem conter uma parte axial e preposições topológicas, pois, conforme o contraste entre as sentenças abaixo ilustra, só pode haver modificação quando o PP representa uma região delineada a partir de algum eixo do FUNDO. Talvez a única possibilidade de interpretação para (12b) seja a de que, da extensão total da FIGURA, apenas a quantidade especificada pelo sintagma de medida se localiza dentro do FUNDO, isto é, “tem dois metros do tapete dentro da casa (o resto está pra fora)”.

(12) a. Joana está dois metros na frente da casa.

b. #O tapete está dois metros dentro da casa.

c. *Tem um copo dez centímetros no armário.

Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) também constata que apenas estruturas nominais podem ser substituídas por pró-formas. Os dados abaixo exemplificam essa restrição. Em (13a), o pronome ‘it’ pode fazer referência a ‘a parte da frente do carro’, mas o mesmo não ocorre em (13b), em que a ‘frente’ é uma parte axial, fazendo referência a uma região. Em PB, esse teste não se aplica, posto que tanto estruturas nominais quanto estruturas axiais não podem ser recuperadas por pronomes como ‘ela’.

(13) a. The kangaroo was in [the front of the car]i, but the koala wasn’t in iti.

b. The kangaroo was in [front of the car]i, but the koala wasn’t in *iti.

c. O canguru estava [na frente do carro]i, mas o coala não estava *nelai.

d. O canguru estava [em frente ao carro]i, mas o coala não estava *nelai.

Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) argumenta que nomes se diferenciam de partes axiais também no que se refere à possibilidade de fronteamento: itens nominais podem se mover para o início da sentença, deixando a preposição in situ, ao passo que itens axiais não permitem tal operação. Em PB, não observamos esse mesmo contraste e, além disso, nessa língua a preposição também deve passar por movimento, não permanecendo in situ por uma restrição de pied-pieping obrigatório.

(14) a. It was the front of the car that the kangaroo was in.

b. *It was front of the car that the kangaroo was in.

(15) a. Era na frente do carro que o canguru estava.

b. Era em frente ao carro que o canguru estava.

Apesar de alguns itens axiais exibirem certas características nominais, como carregarem marca de gênero intrínseca, poderem sofrer pluralização e poderem vir acompanhados de artigo, demonstrativos ou quantificadores, Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.: 65) apresenta, ainda, outros argumentos para demonstrar que os elementos de parte axial não podem ser apenas uma subclasse da categoria nome. Um desses argumentos é baseado na observação de Muriungi (2006MURIUNGI, P. 2006. Categorizing adpositions in Kîîtharaka. Nordlyd, Tromsø Working Papers in Language & Linguistics, v. 33, n. 1, Special Issue on Adpositions, p.26-48.) de que em kîîtharaka, uma língua bantu falada no Quênia, há um elemento axial que não tem gênero, apresentando um comportamento contrário ao dos outros itens da mesma classe nessa língua. Em PB, há também alguns itens que não apresentam traços nominais, como a marca de gênero, e parecem pertencer à classe dos “axiais”, por denotarem uma região do espaço projetada a partir de um eixo. Contudo, como esses itens não podem ser interpretados também enquanto uma parte material de um objeto e, em geral, integram a classe dos adjetivos e advérbios, não serão relevantes para o presente trabalho, porque notadamente a discussão recai sobre itens que podem ser classificados enquanto nominais. Abaixo apenas tratamos de alguns desses elementos a título de exemplificação.

(16) a. Joana está atrás/em cima da árvore.

b. *Joana está em a/o atrás da árvore.

c. *Joana está em a/o cima da árvore.

Deve-se observar também que a distribuição de artigo em construções de parte axial é altamente idiossincrática, sendo possível haver determinação mesmo em sentenças que indubitavelmente tratam da localização da FIGURA em relação a uma região projetada do FUNDO. Conforme o exemplo abaixo demonstra, ‘lado’ pode vir acompanhado de artigo mesmo sendo interpretado necessariamente enquanto uma parte axial e não enquanto uma parte de um objeto.

(17) a. Joana está do lado da casa.

b. *Joana está de lado da casa.

Outro fato intrigante a respeito desse mesmo item (‘lado’) é a possibilidade de compor uma estrutura que não exibe a interpretação de projeção de uma região na ausência de um artigo definido. Ou seja, quando ‘lado’ entra em uma estrutura composta por preposição com determinação, temos a leitura axial (“Pedro está do lado da casa”), mas quando a preposição não é seguida por artigo (“Pedro está de lado pra casa”), temos outro tipo de interpretação, não axial. Esse comportamento inesperado demonstra que não há uma correlação entre a presença de um artigo definido na estrutura e a interpretação de parte de objeto, esperada para itens nominais, reforça o argumento da idiossincrasia da distribuição do artigo em estruturas axiais.

Um último fator que Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) destaca para diferenciar os itens axiais dos nomes é a marcação de plural, já mencionada no início desta seção. Quando itens axiais podem ser pluralizados, a interpretação que recebem é um tanto diferenciada, isto é, não diz respeito a diversos espaços identificados a partir de um eixo projetado de diversos objetos (FUNDO). Em persa, por exemplo, se um item como ‘embaixo’ (‘zir’) recebe marca de plural, o que se obtém é uma leitura distributiva. Pantcheva (2006aPANTCHEVA, M. 2006a. Persian preposition classes. Nordlyd, Tromsø Working Papers in Language & Linguistics, v. 33, n. 1, Special Issue on Adpositions, p.1-25.) oferece a seguinte sentença para exemplificar essa leitura; no caso, ‘embaixo + plural’ indica que há açúcar por toda a região projetada do FUNDO.

(18) Shekær rixt in zir-ha-ye miz.

açúcar derramar.3SG isso embaixo-PL-EZ mesa.

“o açúcar derramou embaixo da mesa toda”

Esses são os principais argumentos de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) em defesa da existência do núcleo AxPart. Como síntese, podemos dizer que, para o autor, AxPart deve ser um elemento independente na sintaxe porque (i) partes axiais são interpretadas de um modo distinto de sua contraparte nominal; (ii) elementos que denotam uma parte axial não podem receber marca de plural e, em línguas em que isso ocorre, a presença do plural evoca outro tipo de interpretação; (iii) apesar de muitos itens axiais serem acompanhados por determinante, isso parece ser altamente idiossincrático, pois em uma mesma língua há axiais com e sem determinação; (iv) apenas elementos nominais podem receber modificação adjetival; (v) apenas elementos axiais podem receber modificação por sintagmas de medida; e, por fim, (vi) apenas nominais podem ser substituídos por pró-formas e (vii) sofrer fronteamento. O quadro abaixo resume os testes elencados por Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) e sua aplicabilidade aos dados do PB.

Quadro 1
Testes de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) e sua aplicabilidade ao PB

O primeiro teste - possibilidade de pluralização -, quando aplicado ao PB, leva a resultados inconclusivos, posto que há estruturas axiais que licenciam e que bloqueiam essa operação. Estruturas axiais sem determinação parecem sistematicamente não aceitar marca de plural (19a), ao passo que outras estruturas permitem essa marcação, tendo uma interpretação de que há diferentes lugares projetados a partir de um eixo que parte de diferentes objetos.

(19) a. *Tem crianças brincando em frentes das casas.

b. Tem neblina nos topos das montanhas.

O segundo teste proposto por Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) - modificação adjetival - também se mostra inconclusivo, pois em certos contextos a modificação é bloqueada (cf., (9b)), mas em outros, sobretudo quando há um nome nu tanto na posição de sujeito (FIGURA) quanto na de objeto (FUNDO), a modificação passa a ser uma operação disponível:

(20) a. *Tinha um canguru em frente esmagada do carro.

b. Tinha canguru em frente esmagada de carro.

c. Tinha cogumelo em pé úmido de árvore.

Em PB, apenas nomes que dizem respeito a uma região projetada a partir do FUNDO podem ser modificados, desse modo, como o comportamento de nomes e partes axiais nessa língua é o mesmo que aquele observado em inglês, o teste da modificação por sintagma de medida é aplicável ao PB.

A presença de um determinante também é idiossincrática em PB: há itens axiais que são obrigatoriamente acompanhados por artigo definido (‘lado’) e há itens que podem opcionalmente compor uma estrutura com determinação (‘frente’), o que demonstra a arbitrariedade da combinação ‘DP + parte axial’. Os testes de substituição por pró-forma e de fronteamento não se aplicam ao PB, pois tanto nomes quanto itens axiais não podem ser recuperados por pronome e ambos podem ser alçados ao início da sentença sem prejudicar a interpretação. Em suma, temos dois testes inconclusivos, dois que se aplicam e dois que não podem ser aplicados em PB. Portanto, com base apenas nos testes oferecidos por Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) para identificar um elemento que lexicaliza AxPart, não podemos dizer se no PB o núcleo de sintagmas preposicionais que denotam uma região projetada a partir do FUNDO é um elemento nominal ou não, ao menos em uma primeira análise.

3. Contra o núcleo funcional AxPart: a abordagem dos definidos fracos (Matushansky & Zwarts, 2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
)

Para Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
), a análise funcional dos lexemas axiais, disseminada na literatura, cria mais problemas do que soluciona. Segundo os autores, é inadequado tratar os itens de parte axial enquanto elementos puramente funcionais, pois há diversas evidências que apontam para sua natureza nominal: (i) a relação íntima que apresentam com sua contraparte nominal; (ii) a possibilidade de serem acompanhados por artigo e carregarem marca de gênero, número e caso; e (iii) o fato de exibirem conteúdo descritivo, sujeito a restrições idiossincráticas (uma árvore não tem lados, como uma cadeira). Caso ‘frente’, ‘topo’ e ‘lado’, por exemplo, fossem elementos funcionais, seria muito difícil explicar os fatos mencionados7 7 Devemos ter em vista, ainda, o fato de que em PB a estrutura ‘na frente de’ deveria ser interpretada como nominal, uma vez que carrega explicitamente um sintagma determinado; no entanto, conforme vimos, ela pode ser interpretada tanto como nominal (parte de um objeto) quanto como axial (região projetada). O mesmo vale para ‘no topo de’ (“tem uma rachadura no topo do prédio” - parte de objeto - vs. “tem uma águia voando no topo do prédio” - região axial), ‘no pé de’ (“tem uma rachadura no pé da mesa” - parte de objeto - vs. “tem uma poça d’água no pé da mesa” - região axial), etc.; isso poderia levar a crer que não há qualquer necessidade de se postular um outro núcleo funcional apenas para dar conta desse tipo de estrutura. Voltaremos a isso adiante. .

Por isso, para os autores, as diferenças observadas entre partes axiais e nomes, discutidas por Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) para sustentar a existência de AxPart na f-seq, são, na verdade, uma consequência de itens axiais pertencerem a uma classe específica de nomes, os “nomes fracos” (weak nouns). Ou seja, a proposta de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) é adequada no nível observacional, mas a interpretação que o autor oferece aos fatos não pode ser defendida, pois ao considerarmos o nível descritivo, notamos que itens axiais são elementos lexicais, e não funcionais, não apresentando nem ao menos uma sintaxe uniforme.

Assim, para explicar o comportamento atípico dos “nomes axiais”, Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).) propõem uma análise em termos de uma categoria nominal fraca. Na literatura, entende-se que os sintagmas definidos fracos não apresentam a principal propriedade semântica do artigo definido, isto é, a unicidade (uniqueness) (Russell, 1905RUSSELL, B. 1905. On denoting. Mind, New Series, Oxford University Press, v. 14, p.479-493.). Essa propriedade tem a função de indicar a existência de uma única entidade no mundo como sendo a referência do nome determinado. No exemplo abaixo, interpretamos que ‘a conferência’ na qual Joana e Maria foram é a mesma, e isso só ocorre porque há unicidade.

(21) Joana foi na conferência e Maria também.

Por conta da ausência de unicidade nos definidos fracos (Carlson & Sussman, 2005CARLSON, G.; SUSSMAN, R. S. 2005. Seemingly indefinite definites. In: KEPSAR, M. R. S. (Eds.) Linguistic Evidence. Berlin: de Gruyter.; Aguilar-Guevara e Zwarts 2013), construções com esse tipo de sintagma apresentam identidade sloppy em um contexto de elipse de VP. Na sentença (22), podemos interpretar que o mercado em que Joana e Pedro foram não é o mesmo, ou seja, não há referência a uma única entidade no mundo:

(22) Joana foi ao mercado e Pedro também.

Além da interpretação sloppy, definidos fracos exibem uma série de outras propriedades semelhantes àquelas discutidas em Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) a respeito dos itens axiais. Desse modo, é pelo fato de não poderem receber marca de plural (cf. sentença 23), não serem modificados por adjetivos, nem serem pronominalizados, ou ainda devido à idiossincrasia da presença do artigo definido, que Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).) aventam a hipótese de que itens que codificam uma parte axial são, na verdade, nomes fracos. Como exemplo dessas propriedades, em (24) mostramos que quando o nominal é modificado por um adjetivo, a leitura não é mais a de um definido fraco, mas sim a de um definido forte, pois ‘mercado’ nessa sentença é necessariamente correferencial. Além disso, a referência unívoca do nome é também observada quando o item de determinação fraca é recuperado por um pronome, passando, portanto, a ter uma leitura forte como em (25).

(23) Joana pegou #os elevadores.

(24) Joana foi no mercado central e Pedro também.

(25) Joana foi no mercadoi e Pedro também. Elei tem ótimas ofertas.

Assumir que os itens axiais são nomes, mas não nomes ordinários e sim pertencentes à classe dos definidos fracos, explicaria porque estruturas com parte axial podem apresentar marcação de gênero, eventualmente de número, e serem acompanhadas por artigo. Porém, é necessário explicar ainda (i) a que um definido fraco como ‘frente’ se refere em uma estrutura como ‘em frente ao carro’, e (ii) como as versões forte e fraca de um nome como ‘frente’ estão relacionadas. Para tanto, Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).) mobilizam a noção de eixo subjacente, dado que itens como ‘frente’, ‘lado’ e ‘topo’ têm o uso nominal (parte de objeto) e o axial (projeção de uma região) baseados em um eixo atribuído ao objeto de referência. Tomando o nome ‘frente’ como exemplo, os autores esclarecem essa ideia demonstrando que há um eixo subjacente a esse nome que atua tanto para a identificação da parte relevante do objeto denotada pelo nome (‘a frente da casa’) quanto para a determinação da região à qual essa parte se refere. Para representar formalmente essa proposta, os autores apresentam uma formulação no quadro da semântica de vetores (cf. Zwarts & Winter, 2000_____.; WINTER, Y. 2000. Vector space semantics: A model-theoretic analysis of locative prepositions. Journal of Logic, Language, and Information, v. 9, p.169-211.).

(26) FRENTE = λx De . λu Dy [(INÍCIO(u) = CENTRO(x)) & (FIM(u) LIMITE(x)) & PARA PRENTE(u)]

O que a fórmula em (26) estabelece é que o item ‘frente’ atua como uma função, a qual toma como argumento um indivíduo x que pertence ao domínio das entidades e o mapeia para o conjunto de vetores u, que são direcionados para frente, tendo como ponto inicial o centro de x e ponto final a fronteira ou o limite de x. Com essa fórmula, de acordo com os autores, é possível derivar tanto a interpretação de ‘frente’ como uma parte de um objeto quanto como uma região projetada a partir daquela parte (axial). Graficamente, Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
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: 3) representam as derivações nominal e axial do seguinte modo.

Figura 3
Representação das derivações nominal e axial de ‘frente’

A figura central, legendada por FRONT(the-car), demonstra o funcionamento da fórmula proposta em (26): ‘frente’ denota um conjunto de vetores (u) que partem do centro do carro (x) apontando para frente em direção ao capô, que seria seu limite. Disso, é possível derivar a figura à direita que representa a leitura de ‘frente’ enquanto parte de um objeto, e a figura à esquerda, que representa a leitura axial de região projetada a partir da ‘frente’. Em cada uma dessas interpretações há, de acordo com Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
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), uma função diferente em sua denotação, de tal modo que ‘the front of the car’ denota uma parte de um objeto e ‘in front of the car’ denota uma projeção que mapeia um eixo para uma região externa de um dado objeto, estendendo seu comprimento.

(27) a. [[frenteparte]] = λx De [OBJETO(FRENTE( x ))

b. [[frenteprojeção]] = λx De [PROJEÇÃO(FRENTE( x ))

A denotação apresentada em (27a) dá conta da leitura nominal de ‘parte do carro’ do item ‘frente’, o que, de acordo com os autores, explica também a presença obrigatória em muitas línguas de um artigo definido acompanhando o nome. Em (27b), temos a denotação de parte axial de ‘frente’, em que os eixos internos são projetados para fora, identificando um conjunto de vetores que apontam na mesma direção, mas em uma região externa ao carro. Embora a função PROJEÇÃO pareça ser a responsável pelo comportamento atípico dos nomes axiais que denotam uma região do espaço, Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).: 6) observam que é possível encontrar expressões axiais que não aparentam projetar vetores para fora do FUNDO, apesar de corresponderem legitimamente à interpretação de uma região. Em casos como o descrito, entende-se que a FIGURA está localizada no limite do objeto FUNDO, havendo contato, como em ‘no topo de FUNDO’. Para dar conta dessa observação, os autores propõem uma nova versão de PROJEÇÃO denominada TOP, que garante a projeção de um espaço, mas limita o comprimento dos vetores de um modo adequado para capturar expressões como “o helicóptero está no topo do prédio” - TOP resultaria nos vetores que apontam para a superfície limite superior do prédio e estabeleceria a localização da FIGURA naquele espaço.

Antes de tratarmos dos dados do PB e sua análise, devemos abordar outra característica em comum entre os nomes fracos e os itens axiais que parece ser sistemática. De acordo com Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
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), expressões axiais não se referem diretamente a uma região do espaço, mas sim a um conceito de espaço. Ou seja, quando se fala ‘na frente de x’, ‘no lado de x’ ou ‘no topo de x’, a referência do sintagma não é acessada diretamente, trata-se, na verdade, de uma abstração do que esses espaços podem ser. Por conta disso, os autores assumem que tanto itens axiais quanto definidos fracos denotam espécies (kind) (Aguilar-Guevera & Zwarts, 2013AGUILAR-GUEVARA, A.; ZWARTS, J. 2013. Weak definites refer to kinds. Weak definites across Languages, Recherches Linguistiques de Vincennes, v. 42, p.33-60.), o que acaba exigindo a presença de outros elementos no contexto sintático que possam lidar com esse nível de referência. Os definidos fracos, por exemplo, são governados por certos verbos e preposições, tais como ‘ir’, ‘estar’, ‘checar’ e ‘para’ (Aguilar-Guevera, 2014). Os nomes axiais, ao que tudo indica, são governados por preposições como ‘em’, ‘a’, em PB, e ‘in’ e ‘on’ em inglês, que instanciam esses elementos na composição semântica da estrutura.

Assim, para dar conta do paralelo existente entre itens axiais e definidos fracos, Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).) propõem uma modificação na fórmula apresentada em (27b), com vistas a formalizar a ideia de que elementos axiais fazem referência a uma espécie, num nível conceitual. Desse modo, alteram a notação da função PROJEÇÃO para PROJEÇÃOc, que indica o conceito correspondente a uma determinada região, e incluem uma função de instanciação INS, necessária para que a preposição que encabeça o sintagma mapeie o conceito identificado para vetores que realmente determinam o FUNDO.

(28) a. Pedro está na frente da casa.

b. INST(PROJEÇÃOc(FRENTE(A CASA)))

Com isso, em suma, os autores propõem que sintagmas como ‘frente do carro’ e ‘pé da mesa’ têm como núcleo um nome fraco capaz de fazer referência unicamente a um conceito, o que impossibilita o acesso direto ao espaço denotado pelo sintagma, exigindo, assim, a presença de uma preposição externa capaz de incorporar o nome fraco na composição semântica de um modo natural, instanciando o conceito espacial relevante.

A proposta de Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
, no prelo) de que itens axiais são, na verdade, definidos fracos é promissora, sobretudo pelo fato de essa subclasse nominal já ter sido independentemente motivada na literatura. Note-se que o núcleo sintático AxPart (Svenonius, 2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) existe unicamente para dar conta dessas construções em que há projeção de uma região a partir de um eixo. Além disso, a proposta de Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
, no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).) é interessante por demonstrar a presença de uma noção de eixo mais abstrata presente em ambas as leituras de itens como ‘frente’, que permite explicitar o que há de axial nos nomes e o modo como o eixo é projetado para fora (ou no limite) do objeto de referência para identificar uma determinada região como FUNDO. Na próxima seção, investigamos a estrutura dos PPs axiais do PB, observando se os dados dessa língua advogam em favor da existência do núcleo AxPart ou em favor de uma leitura de nome fraco para esses itens.

4. Os sintagmas preposicionais axiais do português brasileiro

Em PB, encontramos muitos PPs locativos constituídos por um nome normalmente utilizado para indicar uma parte de um objeto, mas que parecem fazer referência a uma região projetada a partir do FUNDO, e não a um objeto. Alguns desses sintagmas são construídos obrigatoriamente com artigo definido, o que lhes confere marcação de gênero idiossincrática e possibilita, em certos casos, pluralização e modificação adjetival. Dados como os apresentados de (29a) a (29c) exemplificam alguns desses PPs com DP obrigatório, que parecem exigir a sintaxe representada em (29d).

(29) a. Joana está na frente da farmácia.

b. O helicóptero está no topo do prédio.

c. Pedro tem pintas nas costas da mão.

d. [Place>DP>NP>KP>DP]

A presença do determinante definido nessas expressões não leva necessariamente a uma leitura de parte de objeto, que seria esperada para uma estrutura como a representada em (29d) de acordo com a hipótese de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.). Caso a tese do autor seja adequada aos dados do PB, os itens axiais ‘frente’ e ‘topo’, presentes em (29), deveriam lexicalizar o núcleo AxPart, uma vez que dizem respeito a uma região projetada a partir de um eixo. Tal fato deveria ser capturado pela estrutura [Place>AxPart>KP>DP]; no entanto, nessa arquitetura proposta por Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) não há qualquer espaço para a relação de determinação existente nos exemplos oferecidos, o que causa um impasse entre estrutura sintática e interpretação semântica, já observado na seção 1.

Apenas na sentença (29c) há uma interpretação legítima de parte de um objeto: o sintagma ‘as costas da mão’ corresponde a uma parte da mão identificada em oposição às suas palmas. Essa sentença, portanto, tem como parte de sua interpretação a denotação apresentada em (30), ao passo que os exemplos que tratam de uma região projetada do FUNDO apresentam como parte de sua composição a fórmula em (31).

(30) [[costasparte]] = λx De [OBJETO(COSTAS(x)) (mão)

(31) [[item axialprojeção]] = λx De [PROJEÇÃOc(ITEM AXIAL(x)) (FUNDO)

A classificação da configuração de ‘topo’ em (29b) é um tanto mais complicada. Considerando que o teste de modificação por sintagma de medida proposto por Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) seja capaz de capturar a interpretação de que há uma região identificada a partir da projeção de um eixo, ‘topo’ nesse caso parece fazer referência a uma parte de um objeto, posto que não parece ser compatível com um sintagma como ‘dois metros’ (32). No entanto, parece ser seguro dizer que ‘o topo do prédio’ em (29b) corresponde a uma região localizada a partir do limite superior da construção e não a uma parte do prédio; o contraste entre as sentenças apresentadas em (33) evidencia isso:

(32) *O helicóptero está dois metros no topo do prédio.

(33) a. A empresa pintou o topo do prédio.

b. Pedro está no topo do prédio.

c. Pedro estudou no topo do prédio.

Em (33a), ‘topo’ é claramente uma parte de um objeto, é aquilo que “a empresa pinta”, ao passo que (33b) e (33c) dizem respeito a uma região projetada a partir do limite superior do prédio, é o lugar onde Pedro está localizado e no qual o evento de estudar ocorreu. O funcionamento de ‘topo’ observado em (33) e sua consequente interpretação enquanto parte de objeto e região podem ser um argumento a favor da abordagem de “definidos fracos” advogada por Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
). Afinal, em (33a), quando há a interpretação de parte de objeto, não temos na estrutura uma preposição que instanciaria o nome fraco, como ocorre nas sentenças (33b) e (33c), em que temos a interpretação de região. Ao que tudo indica, portanto, em (33a) ‘pintar’ seleciona a versão forte do nome, com leitura não espacial, ao passo que ‘estar’ e ‘estudar’ em (33b,c) selecionam a versão fraca do nome, que apresenta a interpretação espacial, axial.

Apesar do contraste observado entre a presença da preposição e o tipo de interpretação obtida, devemos notar que a preposição parece ser necessária também para a obtenção da leitura de parte de objeto em alguns casos, por mais que o nome nesses exemplos seja alegadamente forte (i.e., não é interpretado enquanto uma região axial). Por isso, é preciso analisar mais atentamente os dados para depreendermos se, de fato, o funcionamento de ‘topo’ em (33) favorece a ideia de que esse item pertence à classe dos nomes fracos. Para tanto, tomemos as seguintes sentenças, em que teríamos a interpretação de ‘frente’, ‘topo’ e ‘pé’ enquanto parte de um objeto (casa, prédio e cadeira, respectivamente).

(34) a. *A porta está a frente da casa.

b. *Pedro chegou o topo do prédio.

c. *Joana se encostou o pé da cadeira.

Como os dados em (34) são agramaticais na ausência de uma preposição, a presença desse elemento na estrutura é uma exigência de seleção do verbo: ‘estar’, ‘chegar’ e ‘encostar’ pedem em certos contextos a subcategorização de uma preposição espacial; portanto, quando não há qualquer preposição desse tipo ligando o verbo ao seu argumento interno, há uma falha na derivação. No entanto, ainda que sentenças em que os nomes ‘frente’, ‘topo’ e ‘pé’ sejam interpretados enquanto parte de um objeto demandem a presença de uma preposição espacial, a existência de exemplos como (34) não é um contra-argumento para a abordagem dos definidos fracos. Afinal, o licenciamento de nomes axiais nesse tipo de contexto pode ser explicado justamente porque esses itens se referem a um conceito de espaço, exigido pela seleção semântica do verbo, e esse conceito pode ser manipulado pela preposição, exigida pela seleção categorial do verbo, que transporta o conceito do domínio dos kinds para o domínio da referência diretamente acessível.

A sistematicidade entre o aparecimento de uma preposição na estrutura e o licenciamento dos nomes axiais ‘frente, ‘topo’ e ‘pé’ parece ser, sim, um argumento favorável à proposta de Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
). Prova disso é que o comportamento de itens axiais encabeçados por preposição em contextos elípticos evoca uma interpretação de referência estrita (sloppy), o que é esperado quando nomes fracos são instanciados na sentença.

(35) a. A bota está no meio da sala e o tênis também.

b. O grampeador está no fundo da gaveta e os grampos também.

c. Joana está no topo do prédio e Pedro também.

Com o teste de elipse de VP, o que temos em (35) são DPs correferenciais: os nomes axiais envolvidos nesses sintagmas nominais só passam a apresentar unicidade porque são instanciados na composição da estrutura pela preposição (‘em’) - em (35a) falamos da mesma sala, em (35b) da mesma gaveta e em (35c) do mesmo prédio.

Outro argumento em favor da abordagem dos nomes fracos é o fato de tanto a interpretação axial quanto a interpretação de parte de objeto serem altamente reguladas por questões idiossincráticas lexicais. Uma sentença como “o quadro está na frente da casa”, por exemplo, pode ter uma leitura de parte de objeto para ‘frente’ e isso só ocorre porque sabemos, com base em nosso conhecimento de mundo, que a localização natural de um quadro é ‘estar pendurado’ em uma parede. O mesmo pode ser observado em uma sentença como “o quadro está no lado esquerdo da casa”, em que a FIGURA (‘o quadro’) tanto pode estar em algum lugar identificado a partir do lado esquerdo da casa (em uma região projetada), quanto pendurado no lado esquerdo da casa, situação da qual obtemos uma leitura de parte de objeto. Uma sentença como “Joana está no lado esquerdo da casa” não provoca o mesmo tipo de situação e dela não obtemos duas leituras, pois há restrições lexicais do sujeito.

Isso demonstra, conforme Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).) observaram, que ‘topo’, ‘frente’ e ‘lado’, por exemplo, estariam sujeitos a certas restrições lexicais idiossincráticas por apresentarem conteúdo descritivo. Um nome como ‘frente’, portanto, pode ser interpretado enquanto parte de um objeto ou uma região a depender dos outros elementos que entram na composição da sentença. Assim, podemos afirmar que a interpretação de região ou de parte de objeto não parece emergir unicamente quando há uma estrutura sintática fixa, tal como defende Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.). Considerando ainda o fato de que as leituras possíveis não estão necessariamente ligadas à estrutura sintática, mas dependem também de fatores idiossincráticos/pragmáticos, podemos traçar outro paralelo entre os nomes fracos e os lexemas axiais; tomemos a sentença abaixo, considerando o contexto subsequente.

(36) Vamos pro hotel.

Há um grupo de cientistas participando de uma conferência em uma cidade na qual nenhuma das pessoas do grupo reside. Nesse cenário, todos estão hospedados em algum hotel. Assim, quando alguém profere “vamos para o hotel”, temos duas situações possíveis: (i) todos estão hospedados no mesmo hotel e alguém os convida para retornar a esse mesmo lugar; e (ii) os cientistas estão hospedados em diferentes hotéis e a sentença “vamos para o hotel” pode ser parafraseada, basicamente, por “vamos embora”, sendo que cada pessoa segue para o hotel onde está instalada. Na primeira situação, em que todos deverão seguir para o mesmo hotel, temos a leitura forte do nome, contrária à segunda interpretação, que só ocorre porque ‘hotel’ é um nome fraco, permitindo uma referência não estrita. Note-se que as duas leituras são possíveis, mas não há qualquer pista estrutural para que se alcance uma ou outra interpretação. Esse é justamente o cenário que encontramos com os elementos axiais: ora são interpretados enquanto uma parte de um objeto (leitura forte) e ora enquanto uma região projetada do FUNDO (leitura fraca), sendo que qual interpretação é relevante para uma dada sentença depende de questões contextuais. Essa forte dependência pragmática observada indica que não estamos tratando de um item funcional, mas sim de um item nominal.

Com base no exposto até o momento, parece que o núcleo de expressões axiais é de natureza nominal (fraca) e faz referência a um conceito de espaço, que pode ser instanciado pela preposição, um elemento obrigatório em estruturas locativas. A respeito da presença da preposição, note-se que em todas as estruturas discutidas até então, o PP locativo é encabeçado por ‘em’, uma preposição topológica que parece especificar uma informação, grosso modo, de que há contato entre a superfície do FUNDO e a FIGURA a ser localizada. Porém, essa não é a única preposição que pode aparecer com os itens axiais, é possível encontrar nesse contexto também preposições direcionais, como ‘por’, que designam o conceito de ROTA.

(37) Pedro está pela frente da casa.

Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).: 8) também observaram que itens axiais são acompanhados por outras preposições no espanhol, no hebraico e no russo. Contudo, diferentemente do PB, nessas línguas a preposição direcional que pode encabeçar um nome axial é a preposição ‘de’, que indica FONTE do movimento. Em PB, essa construção acaba não sendo relevante para a discussão do núcleo de PPs que denotam uma região projetada do FUNDO, pois nessa língua quando ‘de’ é seguido de um nome tido como axial, a interpretação não é a de uma região, mas sim a de que a FIGURA está orientada para o FUNDO de um certo modo. Além disso, ‘de’ aparece seguido de ‘frente’, ‘lado’ e ‘costas’ apenas em uma estrutura rígida composta por ‘de + nome + para’, em que o quadro de referência não se estabelece como uma relação parte-todo entre o item axial e o FUNDO, mas sim entre o item axial e a FIGURA. Tomando uma sentença como “Pedro está de frente pra porta”, entendemos que Pedro tem sua face voltada para a porta, ou seja, trata-se de como a FIGURA está orientada para o FUNDO. Nesse caso, parece que tratamos de ‘frente’ como um nome forte e não como um nome fraco (axial) que denota a projeção de uma região. Abaixo, repetimos as partes relevantes da denotação das versões forte e fraca dos nomes em discussão.

(38) a. [[nomeforte]] = λx De [OBJETO(N(x))]

b. [[nomefraco]] = λx De [PROJEÇÃOC(N(x))]

Embora as fórmulas apresentadas expliquem boa parte do comportamento dos nomes axiais, as funções OBJETO e PROJEÇÃOC acabam não sendo suficientes para dar conta de alguns casos. Anteriormente, notamos que ‘topo’ não poderia ser modificado por um sintagma de medida, mesmo denotando a projeção de um espaço. Uma explicação para esse fato pode ser dada se assumirmos que certos nomes axiais contêm em sua denotação a função TOP, aventada por Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).). Assim, nomes como ‘topo’ fariam referência a uma região do espaço projetada a partir de um eixo do FUNDO, mas os vetores que apontam ‘para cima’, identificando a região, não teriam um comprimento relevante para ser medido, o que impede o nome de entrar em composição com um sintagma de medida. A generalização, portanto, seria a de que apenas nomes axiais que apresentam PROJEÇÃOC em sua denotação podem ser modificados por sintagmas de medida, enquanto itens representados pela função TOP, cuja denotação é dada em (39), não permitem essa operação, por tratarem de uma relação de contato ou de uma maior proximidade da FIGURA com o FUNDO, limitando a extensão dos vetores. Isso explicaria, por exemplo, a agramaticalidade das sentenças em (40).

(39) [[nomefraco] = λx De [TOPC(N(x))]

(40) a. *Tem uma maçã 20 cm no pé da árvore.

b. *Tem uma maçã 20 cm no fundo da gaveta.

Um último ponto a favor da proposta de Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
) é a idiossincrasia da presença do artigo definido, utilizada por Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.) para defender justamente a ideia oposta, contrária à natureza nominal dos itens axiais. Em PB, o nome ‘frente’ é opcionalmente antecedido por artigo definido, sendo que sua ausência leva necessariamente a uma leitura espacial/axial e sua presença faz com que a sentença possa ter duas interpretações, a de espaço projetado e a de parte de objeto. O nome ‘volta’, por sua vez, não pode ser determinado (“*Pedro está na volta da casa”) e denota apenas uma região identificada a partir de eixos projetados do FUNDO, não apresentando leitura de parte de objeto. Segundo Carlson e Sussman (2005CARLSON, G.; SUSSMAN, R. S. 2005. Seemingly indefinite definites. In: KEPSAR, M. R. S. (Eds.) Linguistic Evidence. Berlin: de Gruyter.) e Aguilar-Guevera e Zwarts (2013AGUILAR-GUEVARA, A.; ZWARTS, J. 2013. Weak definites refer to kinds. Weak definites across Languages, Recherches Linguistiques de Vincennes, v. 42, p.33-60.), esse é o comportamento esperado para os nomes fracos: a variação da presença de um artigo encontrada nos nomes axiais não é um indício de que certos itens seriam funcionais e certos itens seriam nominais, conforme sugere Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.); o que se observa é, na verdade, um traço característico dos nomes fracos, o que faz com que todos os itens que se referem a um conceito de espaço projetado pertençam a essa subclasse nominal.

(41) a. Joana está em frente ao carro.

b. Pedro está em volta da casa.

O quadro abaixo resume o comportamento de alguns dos itens que podem ser tomados como axiais em PB, considerando sua composição com a preposição externa locativa ‘em’, a presença obrigatória de um DP e a possibilidade de ser interpretado enquanto parte de um objeto.

Quadro 2
Possíveis nomes axiais do PB e suas propriedades

Conforme notamos previamente, os nomes axiais investigados podem ser selecionados pela preposição ‘em’, mas isso não significa que não seja possível que outras preposições apareçam na composição. A questão para a qual chamamos atenção é que o PP ‘em + nome axial + de + FUNDO’ parece ser a construção mais produtiva do PB. Em relação à determinação, apenas ‘frente’ e ‘volta’ podem aparecer em uma estrutura sem artigo definido, sendo a ausência do determinante opcional para ‘frente’ e obrigatória para ‘volta’, que é o único nome que não pode ser também interpretado enquanto uma parte de objeto, ou seja, não apresenta uma contraparte forte. Retomando a estrutura axial proposta por Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.), reproduzida em (42), podemos observar que apenas a versão não determinada de ‘frente’ (como em “tinha um canguru em frente ao carro”) e o item ‘volta’ seriam adequadamente capturados por um núcleo axial independente. Essa estrutura que possibilita apenas a interpretação de região projetada não é produtiva em PB e está alinhada a construções com ‘atrás’, ‘embaixo’ e ‘em cima’, que têm como núcleo elementos adverbiais e adjetivais, não apresentando também uma leitura de parte de objeto. Por conta disso, podemos dizer que (43) representa melhor a sintaxe dos dados discutidos.

(42) Locem>AxPart>Kde>DP

(43) Locem>DP>NPaxial>Kde>DP

Tanto a sintaxe quanto a semântica das sentenças investigadas parecem oferecer mais evidências favoráveis à abordagem de definidos fracos de Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
). Afinal, os itens discutidos exibem sistematicamente traços nominais e são acompanhados por artigo definido; são licenciados sob o escopo de uma preposição que os instanciaria; estão sujeitos a restrições lexicais idiossincráticas, pois podem ter uma interpretação de parte de objeto e outra de região, a depender de quais elementos aparecem na posição de FIGURA; e, além disso, a presença do artigo determinando o nome nesses sintagmas parece ser também idiossincrática, característica fundamental dos nomes fracos. Todas essas observações parecem contrariar a ideia de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010) de que há uma relação um-para-um entre estrutura sintática e interpretação semântica axial e nos levam a crer que, ao menos em PB, não há a necessidade de se postular na f-seq um núcleo sintático denominado “parte axial” para dar conta do comportamento de nomes como ‘frente’, ‘topo’, ‘costas’ e ‘pé’. Assim, ao avaliarmos os fatos discutidos, podemos dizer que o núcleo de sintagmas preposicionais axiais em PB é de natureza nominal e não funcional. Conforme observou Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77.), os nomes axiais realmente apresentam um comportamento diferenciado dos nomes ordinários, mas isso ocorre porque pertencem à classe dos nomes fracos, sendo regidos, sobretudo, pela presença em sua denotação de duas funções: PROJEÇÃOC (responsável pela possibilidade de modificação por sintagma de medida) e TOPC (que impossibilita a modificação). Como resumo, encontramos nos dados do PB evidências a favor da abordagem de definidos fracos, que é metodológica e ontologicamente mais econômica do que a saída de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) para lidar com os mesmos fenômenos. Passemos, com isso, às conclusões nas considerações finais.

5. Considerações finais

Neste artigo, discutimos a sintaxe e a semântica de estruturas axiais, cuja função é denotar regiões espaciais projetadas a partir de um eixo relacionado a um dado FUNDO, como ‘no pé de’, ‘no topo de’, ‘no fundo de’, etc. A investigação linguística sistemática desse fenômeno teve início em meados dos anos de 1990, e com os trabalhos de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) ganhou uma roupagem sintática mais atualizada e explícita, adotada por inúmeros pesquisadores. Segundo tal abordagem, há um núcleo funcional específico na f-seq das línguas naturais que abrigaria os itens responsáveis pela informação de parte axial dessas estruturas, ou seja, o item que denota uma região específica identificada em uma relação parte-todo com um FUNDO. O autor procura mostrar, com uma série de argumentos morfossintáticos, que esses itens não são nomes, apesar de sua aparência superficial, mas sim elementos funcionais que lexicalizariam um núcleo sintático denominado AxPart.

Avaliamos criticamente os argumentos de Svenonius (2006SVENONIUS, P. 2006. The emergence of Axial Parts. Nordlyd, v. 33, n. 1, p. 49-77., 2010_____. 2010. Spatial P in English. In: CINQUE, G.; RIZZI, L. (Orgs.) Mapping spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Oxford University Press.) com base nos dados do PB e mostramos que seus testes são inclusivos para essa língua, o que leva a crer que talvez seja interessante procurar uma outra solução, menos custosa, para lidar com as estruturas de partes axiais. Encontramos nos trabalhos de Matushansky e Zwarts (2018MATUSHANSKY, O.; ZWARTS, J. The partial nominality of axial parts. Disponível em: <http://www.trees-and-lambdas.info/matushansky/Downloads/Axial-handout-SIM.pdf>
http://www.trees-and-lambdas.info/matush...
, no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).) uma possibilidade de solução, segundo a qual o comportamento dos itens axiais pode ser explicado se considerarmos que tais itens são, na verdade, nomes fracos. Usando dados do PB, avaliamos a proposta dos autores, e concluímos que tal saída dá conta dos dados dessa língua, tanto sintática quanto semanticamente, sem a necessidade de se postular uma categoria funcional como AxPart, dado que os nomes fracos são sustentados por argumentos e fenômenos independentemente motivados.

Finalmente, há um saldo interessante de questões em aberto que merecem uma futura investigação, como a relação sistemática entre o nome fraco axial e sua contraparte nominal. Para Matushansky e Zwarts (no prelo_____. Tops and Bottoms: Axial Nominals as Weak Definites (no prelo).), esses itens são de saída distintos, mas considerando a relação íntima que apresentam, advogada pelos próprios autores, devemos nos questionar se não seria possível evitar essa proliferação de itens e pensar em uma versão como básica e outra como derivada por alguma operação. Além disso, é preciso também investigar a relação entre sintagmas como ‘no topo de’, ‘em frente a’, ‘nas costas de’ e PPs como ‘em cima de’, ‘embaixo de’ e ‘atrás’, que denotam uma região projetada do FUNDO e parecem ser altamente composicionais, por mais que não tenham como núcleo um elemento nominal. Outra questão muito interessante que deve ser também explorada futuramente é a possibilidade de outros contextos instanciarem os nomes fracos discutidos: em “a caneta sujou o fundo da gaveta” e “Pedro varreu o pé da árvore”, não temos uma preposição capaz de manipular o nome fraco, mas ainda assim encontramos a interpretação axial. São questões que devem ser exploradas e melhor delineadas em trabalhos futuros. Com este artigo, esperamos ter contribuído para esse importante e atual debate sobre a codificação de espaço, localizado na fronteira entre a semântica e sintaxe das línguas naturais.

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  • 2
    Agradeço à FAPESP (processo 2017/21110-0).
  • 4
    Conforme proposto por Zwarts (1997ZWARTS, J. 1997. Vectors as relative positions: A compositional semantics of modified PPs. Journal of Semantics, v. 14, p. 57-86.) e Zwarts e Winter (2000_____.; WINTER, Y. 2000. Vector space semantics: A model-theoretic analysis of locative prepositions. Journal of Logic, Language, and Information, v. 9, p.169-211.), na chamada “teoria dos vetores espaciais” (VSS, em inglês).
  • 5
    Essa interpretação vale somente para os dados em inglês, porque em PB a tradução sugerida para (3a) é ambígua entre a leitura de parte de objeto e a leitura axial; voltaremos a esse ponto adiante.
  • 6
    No original: “the ‘axial parts’ of an object - its top, bottom, front, back, sides, and ends - behave grammatically like parts of the object, but, unlike standard parts such as a handle or a leg, they have no distinctive shape. Rather, they are regions of the object (or its boundary) determined by their relation to the object’s axes”
  • 7
    Devemos ter em vista, ainda, o fato de que em PB a estrutura ‘na frente de’ deveria ser interpretada como nominal, uma vez que carrega explicitamente um sintagma determinado; no entanto, conforme vimos, ela pode ser interpretada tanto como nominal (parte de um objeto) quanto como axial (região projetada). O mesmo vale para ‘no topo de’ (“tem uma rachadura no topo do prédio” - parte de objeto - vs. “tem uma águia voando no topo do prédio” - região axial), ‘no pé de’ (“tem uma rachadura no pé da mesa” - parte de objeto - vs. “tem uma poça d’água no pé da mesa” - região axial), etc.; isso poderia levar a crer que não há qualquer necessidade de se postular um outro núcleo funcional apenas para dar conta desse tipo de estrutura. Voltaremos a isso adiante.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2019
  • Aceito
    05 Mar 2020
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