Open-access A Cracolândia sob urbanismo militar: A implantação do SIAT II Acolher Helvétia e a continuidade da lógica de dor e sofrimento

Cracolândia under military urbanism: The implementation of SIAT II Acolher Helvétia and the continuity of the logic of pain and suffering

RESUMO

Neste artigo nos propomos a pensar a implantação do SIAT II Acolher Helvétia, durante a chamada Operação Caronte, como parte de uma lógica de atuação governamental na Cracolândia explicitada pela primeira vez na operação Dor e Sofrimento. Ancorados na experiência pregressa dos autores em pesquisas de campo na região, realizamos uma ampla pesquisa bibliográfica e documental que nos permitiu verificar que as ações dos governos estadual e municipal passaram a assumir um caráter militarizado de dispersão e concentração dos usuários de crack. No intuito inicial de ocupar serviços públicos subutilizados, essas ações acabaram por estabelecer ali uma situação de guerra generalizada. Concluímos que as ações do município e do governo do estado em torno da Operação Caronte mantiveram a principal tendência da atuação governamental na Cracolândia: a de tornar insuportáveis as condições de vida nas ruas e, ao provocar dor e sofrimento, expulsar os usuários de crack pela imposição do tratamento baseado na abstinência.

Palavras-chave: Cracolândia; políticas públicas; violência policial; urbanismo militar; Operação Caronte

ABSTRACT

In this article, we propose to think about the implementation of SIAT II Acolher Helvétia, during the so-called Operation Caronte, as part of a logic of government action in Cracolândia explained by the first time in Operation Dor e Sofrimento. Anchored in the authors’ previous experience in field research in the region, we carried out an extensive bibliographical and documentary research that allowed us to verify that the actions of state and municipal governments began to assume a militarized character of dispersion and concentration of crack users. With the initial intention of occupying underutilized public services, these actions ended up establishing a situation of generalized war there. We conclude that the actions of the municipality and state government around Operation Caronte maintained the main tendency of government action in Cracolândia: to make living conditions on the streets unbearable and, by causing pain and suffering, expel crack users by imposing abstinence-based treatment.

Keywords: Cracolândia; public policies; police violence; military urbanism; Operation Caronte

Introdução

Este artigo trata da criação do Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT II Acolher Helvétia), que, embora seja um equipamento municipal, acompanha o início das intervenções do novo governo estadual na Cracolândia, como continuidade de décadas de políticas repressivas sintetizadas na ideia de dor e sofrimento (ALVES, 2017), explicitada pela primeira vez em 2012 durante uma ação policial de violência até então inédita. A operação propunha a internação de usuários de crack a partir de ações repressivas que tornassem o ambiente da Cracolândia insuportável. Dois nomes foram escolhidos para a ação que essa elaboração inspirou: Operação Sufoco e Operação Dor e Sofrimento.

Escolhemos esse tema por assinalar o começo de um período de ao menos dois anos de trabalho conjunto entre o governo estadual de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o municipal de Ricardo Nunes (Movimento Democrático Brasileiro [MDB]). Trata-se de um momento que se inicia com promessas de endurecimento das ações repressivas por parte do prefeito, o qual aparenta contar com a colaboração do estado, tanto na repressão policial quanto nas internações dos usuários de crack. Consideramos ser uma ocasião rica em suas características políticas únicas de um tempo que se inicia, mas também por sintetizar anos de políticas pregressas que buscavam promover a internação de usuários de crack a partir da lógica de dor e sofrimento (ALVES, 2017).

A Cracolândia é uma cena aberta de consumo de crack, e que perdura na região central de São Paulo por quase três décadas (ALVES; PEREIRA, 2023a), compondo uma territorialidade própria como local perigoso, degradado e a se evitar. Mesmo assim, o lugar exerce atração e abriga os degredados de outras partes da cidade (RUI, 2014). As pessoas que ali frequentam ou habitam acabam sendo objeto de tentativas de controle por parte do Estado, que mistura repressão e vigilância com assistência e cuidado (RUI, 2012). A trama institucional que busca extinguir a Cracolândia acaba por fomentar a circulação dos sujeitos pelos distintos programas implementados na região, ao mesmo tempo em que os auxilia a permanecer nas ruas (FROMM, 2017). A Cracolândia se constituiria como uma territorialidade itinerante em meio a outras territorialidades que disputam a região, por meio, principalmente, de grandes intervenções urbanas (FRÚGOLI JÚNIOR; CAVALCANTI, 2013).

Nesse artigo, discutiremos as possíveis razões e desdobramentos da implantação do SIAT II Acolher Helvétia. Para tal empreitada nos valeremos, além da bibliografia selecionada sobre o tema, de certas ideias de Graham (2016) em torno do urbanismo militar, que considera as grandes cidades como território inimigo, reorganizando fronteiras e limites sob paradigmas militares de ação e pensamento. Utilizaremos essas ideias principalmente quanto (1) à reorganização de fronteiras e limites; (2) ao controle de zonas de pobreza por meio de técnicas de monitoramento; (3) à relativização dos direitos de mobilidade e acesso ao espaço urbano; (4) aos simulacros que emulam um novo urbanismo; e (5) à produção da barbárie pela representação de certas populações como bárbaras.

Depois de dez anos de pesquisas dos autores sobre a Cracolândia, abordando temas como a dinâmica do uso do crack (ALVES, 2017); a análise da sucessão das políticas públicas ali implementadas (ALVES; PEREIRA, 2023a); a Operação Caronte e suas consequências (ALVES; PEREIRA, 2023b); e a exploração política e midiática da região (ALVES; PEREIRA, 2021a, 2021b), vimos que seria importante discutir a instalação de um equipamento como o SIAT II Acolher Helvétia em meio a Operação Caronte. Daí, impôs-se a necessidade de nos dedicarmos a uma pesquisa que fosse capaz de captar o sentido da implementação desse novo equipamento público na Cracolândia. Assim, com uma visão orientada por esforços anteriores, resolvemos nos dedicar a uma pesquisa bibliográfica nos mecanismos virtuais de pesquisa de literatura acadêmica, Google Acadêmico e Biblioteca Eletrônica Científica On-line (SciELO), além de pesquisa documental em notícias da grande mídia e documentos oficiais.

A pesquisa, análise do material coletado e elaboração do artigo foram realizadas entre o início de 2022 e março de 2023. Foi devotada especial atenção ao material sobre os SIATs, em particular sobre o SIAT II Acolher Helvétia, mas também textos sobre a Cracolândia com referência à operação Dor e Sofrimento. Embora tenhamos encontrado cinco artigos, um trabalho de conclusão de curso, três dissertações e cinco teses que citaram o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT), não são muitos os trabalhos acadêmicos que se debruçam sobre sua organização e funcionamento. O material foi selecionado segundo critérios de relevância, disponibilidade e atualidade. Sua organização e análise deram amparo ao objetivo deste trabalho: pensar a implantação do SIAT II Acolher Helvétia sob a ótica do urbanismo militar, de um ponto de vista que leve em conta políticas e ações pregressas do poder público na Cracolândia.

Breve contextualização histórica das políticas públicas na Cracolândia

A história da Cracolândia é marcada por uma sucessão de operações e programas que envolveram, desde meados dos anos 1990, os governos estadual e municipal de São Paulo. Segundo Alves e Pereira (2021a), as intervenções na região foram marcadas, ao menos até o lançamento do programa De Braços Abertos, em janeiro de 2014, pela violência e falta de planejamento. A primeira dessas operações, conhecida como Tolerância Zero, foi levada à frente pelo então governador Mário Covas (Partido da Social Democracia Brasileira [PSDB]) e o prefeito Celso Pitta (Partido Trabalhista Nacional [PTN]), e logrou deslocar a cena de uso de drogas por algumas ruas no interior da Cracolândia. Um segundo momento de ações repressivas veio durante a prefeitura de José Serra (PSDB), com a Operação Limpa (SPAGGIARI; FRÚGOLI JÚNIOR, 2010). Seu sucessor, Gilberto Kassab (Partido Social Democrático [PSD]), lançaria uma operação que ficou conhecida como Derruba Quarteirão (SILVA; ADORNO, 2013). Nessas duas últimas intervenções foram lançados programas para atrair o capital imobiliário, o mais conhecido deles foi o Nova Luz, de 2007. A repressão e violência não cessaram, chegando a gerar fenômenos pitorescos como deslocamentos massivos e pendulares de usuários de crack, de uma rua para outra, conhecidos como procissões do crack (MAGALHÃES, 2017).

Na tentativa de fazer cessar tal circulação de pessoas e direcioná-las para tratamento, a prefeitura e o governo estadual, sob as direções, respectivamente, de Kassab e Geraldo Alckmin (PSDB), desencadearam a Operação Sufoco, ou Dor e Sofrimento, como também ficou conhecida, que marcou um embate entre a segurança pública e o direito de ir, vir e permanecer dos frequentadores da Cracolândia (MAGALHÃES, 2017). A operação foi encerrada com denúncias, por parte da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, de abuso policial. A operação Dor e Sofrimento foi deflagrada em janeiro de 2012. Nela, o primado da segurança pública ficou evidente como forma privilegiada de gestão do espaço urbano na Cracolândia (MAGALHÃES, 2017). Em Taniele Rui (2014) vimos que essa operação pouco visava o cuidado e pretendia retomar o espaço ocupado pela cena aberta de uso de crack, o que não se deu sem desentendimentos entre instâncias governamentais e críticas da imprensa, que ressoaram em parte da população, inclusive com oposição às propostas de internação massiva; e ainda, segundo a autora, ao comentar o fracasso de tal operação, “vira e mexe, inovações nos serviços de atenção, nas tecnologias gerenciais e no monitoramento governamental da área são anunciadas. Quase todas nascendo já fadadas ao fracasso e à consequente substituição” (RUI, 2014, p. 96).

O aparente imbróglio legal em induzir a internação via dor e sofrimento possivelmente foi o grande incentivo para que o governo estadual firmasse um termo de cooperação técnica com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) e a Ordem dos Advogados do Brasil, seção de São Paulo (OAB-SP), para dar suporte às internações, realizadas a partir de um novo programa estadual para a Cracolândia: o Recomeço. O equipamento escolhido para receber os candidatos à internação foi o Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (CRATOD), localizado no bairro Bom Retiro. A iniciativa chegou a realizar internações compulsórias sob a recomendação da equipe de saúde do programa Recomeço, porém, como observado por Souza (2015, p. 167), sem que as pessoas tivessem antes acesso aos “serviços extra-hospitalares, como os CAPS [Centros de Atenção Psicossocial]”. Tanto a operação Dor e Sofrimento quanto o programa Recomeço, lançado em 2013, teriam, segundo Alves (2017), o objetivo de fazer prevalecer os interesses do consórcio Nova Luz, que pretendia demolir a maior parte dos edifícios da Boca do Lixo em busca de sua valorização imobiliária.

Figura 1
Linha do tempo das políticas públicas na Cracolândia

O De Braços Abertos (DBA) foi a primeira política pública integrada na Cracolândia (GARCIA; TYKANORI; MAXIMIANO, 2014). Lançado no início de 2014, transferiu mais de trezentas pessoas que residiam em barracos para hotéis do entorno. Ao beneficiário do programa estavam previstas três refeições diárias em restaurantes Bom Prato, do governo estadual; bolsa trabalho; qualificação profissional; e acesso a serviços de saúde e assistência social. Pouco mais de três anos após seu lançamento, o DBA seria encerrado, com uma violenta operação policial, pela nova administração municipal, comandada por João Doria Júnior (PSDB) que havia derrotado Fernando Haddad (Partido dos Trabalhadores [PT]). Em Alves e Pereira (2023a) vimos que o programa Redenção, lançado em 2017, seria a nova política municipal e dispensaria as acomodações em hotéis, substituindo-as por vagas nos equipamentos de Atendimento Diário Emergencial (ATENDE), que, também, ofereciam serviço médico, alimentação e, como procuravam trabalhar em consonância com o programa Recomeço, internações. Pouco mais de dois anos após o início do Redenção, em abril de 2020, o último ATENDE localizado na Cracolândia seria desativado e substituído por outro tipo de equipamento, o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT).

Dos equipamentos tipo ATENDE ao SIAT II Acolher Helvétia

O encerramento das atividades do ATENDE II, como era denominado o equipamento municipal de atendimento aos usuários de crack localizado na Cracolândia, mais especificamente na rua Helvétia, em frente à sede do programa estadual Recomeço, deu vazão a uma sucessão de ações violentas que, em meados de 2021, seriam batizadas de Operação Caronte; essa operação logrou deslocar continuamente a cena de uso de crack. Assim, em março de 2022, o “fluxo” - nome dado à aglomeração de usuários de crack - foi movido da esquina da rua Helvétia com a alameda Cleveland, em frente ao antigo ATENDE II e ao edifício do Recomeço Helvétia - como é denominado o edifício que hospeda o programa - para a praça Princesa Isabel. Depois, em maio do mesmo ano, o fluxo foi novamente deslocado dessa praça para a esquina da rua Helvétia com a avenida São João, a oitocentos metros do endereço onde havia sido o ATENDE II, e nos fundos da 77ª Delegacia de Polícia (DP). Nessa mesma esquina, seria inaugurado, poucos dias depois, o SIAT II Acolher Helvétia (ALVES; PEREIRA, 2023b).

Figura 2
Principais serviços e localidades citadas

O SIAT é parte do Redenção, política de atenção em álcool e drogas das gestões municipais de João Doria Júnior (2017-2018), Bruno Covas (PSDB, 2018-2020, 2021) e Ricardo Nunes (MDB, 2021-atual). Segundo Souza (2021), no contexto do Redenção, os SIATs são de três tipos e cumprem funções distintas: (1) de abordagem na rua e encaminhamento, SIAT I; (2) acolhimento de curto prazo, SIAT II; e (3) acolhimento de médio prazo, SIAT III. Nos SIATs II e III estão presentes profissionais das áreas de assistência social e saúde; no SIAT III temos também uma articulação com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo (SMDET). O acesso aos serviços disponibilizados por esses equipamentos às pessoas que usam drogas nas ruas é progressivo, no sentido dos SIATs I para os SIATs II e III.

Os SIATs vieram substituir os três equipamentos do tipo ATENDE (ATENDE I, ATENDE II e ATENDE III) localizados nas proximidades do antigo fluxo, um ATENDE II se localizava na esquina da rua Helvétia com a alameda Cleveland, e, depois, foi transferido para a praça Princesa Isabel. Segundo Trigo (2022), em meados de 2019, os ATENDE I e III foram unificados e transferidos para as proximidades do metrô Armênia, o SIAT II Armênia, a quase três quilômetros de distância do fluxo; outro SIAT seria instalado no bairro do Glicério, o SIAT II Glicério. O ATENDE II seria fechado no mês de abril de 2020 e, segundo a prefeitura, seu espaço estava sendo usado pelo tráfico de drogas (ALVES; PEREIRA, 2020). Ainda conforme Trigo (2022), os SIATs não conseguiram resolver o problema da descontinuidade dos atendimentos na Cracolândia. Pelo contrário, com seu afastamento do fluxo, as equipes de abordagem nas ruas ficaram dependentes de veículos, que nem sempre estavam disponíveis, para transportar as pessoas abordadas. Talvez por essas e outras dificuldades, Rui (2020) tenha observado como a Cracolândia se tornou, com o passar dos anos, um epicentro de serviços de saúde e assistência social que atendiam no território, possivelmente, como meio de superar percalços desse tipo, entre outros. Além desse aspecto, ao se manter como serviço semelhante aos ATENDE e não trabalhar de portas abertas, obrigando a pessoa interessada em ser atendida a passar necessariamente pela abordagem e pelo encaminhamento das equipes do SIAT I (Consultório na Rua e/ou Redenção na Rua), os SIATs II e III acabaram subutilizados.

Os equipamentos do tipo ATENDE vieram em substituição aos hotéis do DBA. Segundo Silva (2021), à semelhança desses hotéis e dos ATENDE, os SIATs disponibilizam leitos para moradia. Há também nesse serviço uma maior rotatividade de acolhidos em relação aos hóspedes dos hotéis do DBA. Os recém-chegados no SIAT II só passam a ter uma cama em quarto estável após o décimo quinto dia, existindo, portanto, dormitórios diferenciados para os recém-chegados. Outra diferença está na obrigatoriedade de possuir documentação antes de poder passar a noite no SIAT. Nos hotéis, não havia quartos separados para recém-chegados e a falta de documentação não impedia o primeiro alojamento, providenciada a posteriori. Nos hotéis do DBA, as atividades de trabalho, alimentação e formação profissional eram realizadas fora do espaço; nos SIATs são oferecidas oficinas no local, pelos técnicos das áreas de saúde e assistência sobre temas variados, como relação com o dinheiro, artesanato e cidadania. Importante observar que, no DBA, a oferta de frente de trabalho era feita no momento do ingresso e parte constitutiva do programa, enquanto no Redenção, apenas ao ingressar no SIAT III o acolhido terá acesso ao trabalho como forma de, futuramente, se desvincular do programa. Talvez essas diferenças ajudem a explicar a observação de Trigo (2022, p. 123) de que, “com capacidade para receber trezentos usuários, o SIAT Armênia parecia subutilizado; na minha última visita ao local havia pouco mais de vinte dependentes químicos, a maioria homens; apenas cinco eram mulheres”.

Menos de uma semana após a dispersão dos usuários de crack da praça Princesa Isabel, os quais, até março de 2022, ocupavam a chamada praça do Cachimbo, esquina da rua Helvétia com a alameda Cleveland, e, possivelmente, em decorrência da dificuldade logística no deslocamento de pessoas que provocava a subutilização dos SIATs, a prefeitura inaugurou, em 17 de maio de 2022, um SIAT Emergencial na cena aberta de uso da Cracolândia, mais especificamente na rua Helvétia, 876. Nesse local passou a existir uma concentração de usuários de crack em decorrência dessas e de outras ações repressivas da chamada Operação Caronte, promovida pelo governo do estado em parceria com a prefeitura. O serviço iniciou em caráter emergencial, reunindo equipes das áreas de saúde e assistência social atuando 24 horas por dia e sete dias por semana na abordagem e encaminhamento dos usuários de crack para outros serviços, e, atendendo, segundo palavras de Alexis Vargas, Secretário Executivo de Projetos Estratégicos do município, “aqueles que estiverem envolvidos em alguma ocorrência na delegacia” (SECOM, 2022).

Dez dias após a inauguração do SIAT Emergencial da rua Helvétia, a Polícia Civil e a Guarda Civil Municipal (GCM) realizaram, em 27 de maio de 2022, uma operação repressiva em frente a esse equipamento. Diferentemente da ação realizada pouco mais de duas semanas antes para dispersar os usuários de crack da praça Princesa Isabel, essa operação obrigou os frequentadores do local a permanecerem sentados até serem revistados e identificados. Com esse procedimento seis pessoas foram presas acusadas de tráfico (CARVALHO; KER, 2022). A medida foi tomada sob alegação de que, por vezes, a concentração de usuários de crack em determinado local é importante para que a polícia possa efetuar identificação e prisão de traficantes.

Vinte dias depois da inauguração do SIAT Emergencial da rua Helvétia e dez dias após a operação repressiva em frente a esse equipamento, foi anunciado, em 6 de junho de 2022, pelo prefeito, Ricardo Nunes, que 22 usuários de crack, provenientes desse SIAT, haviam sido internados involuntariamente no Hospital Bela Vista Santa Dulce dos Pobres, considerado pela prefeitura referência no atendimento da população de rua (CRUZ, 2022). Localizado a quatro quilômetros do fluxo, na região central da cidade, o Hospital Bela Vista, quando do anúncio das primeiras internações involuntárias de usuários de crack provenientes da Cracolândia, estava operando de forma ilegal por não ter alvará da vigilância sanitária estadual. Além disso, a promotoria responsável por investigar as internações involuntárias realizadas pela prefeitura da capital descobriu que apenas três das pessoas internadas involuntariamente eram consideradas dependentes químicos (LARA, 2022).

Concomitantemente ao anúncio pelo prefeito das 22 internações, o secretário municipal executivo de Projetos Estratégicos, Alexis Vargas, noticiou um aumento de 25% nos encaminhamentos de usuários de crack para atendimento nos SIATs II. A Secretaria Especial de Comunicação (SECOM, 2022) expôs, na chamada para seu informativo sobre o assunto, a vinculação entre repressão violenta e encaminhamentos aos SIATs. A chamada foi: “Dispersão de dependentes de álcool e outras drogas da praça Princesa Isabel faz aumentar procura por tratamento no SIAT”. À época, o Redenção contava com 591 vagas para tratamento baseado na abstinência, aquele em que o usuário de crack é obrigado a abandonar imediatamente o consumo da droga, distribuídas em 400 vagas nos SIATs II, divididas igualmente entre as unidades Armênia e Glicério; 171 vagas nos SIATs III, sendo 55 no SIAT III Brasilândia, 56 no Heliópolis e 60 em Ermelino Matarazzo (SECOM, 2022). Além disso, a prefeitura ofertava, por meio de convênio da Secretaria Executiva de Projetos Estratégicos com o governo do estado, por intermédio da Coordenadoria Estadual da Política sobre Drogas, 1.377 vagas em Comunidades Terapêuticas, divididas em 67 unidades.

Três meses após o anúncio de Ricardo Nunes de que 22 usuários de crack provenientes do SIAT Emergencial haviam sido internados involuntariamente no Hospital Bela Vista, a prefeitura anunciou, no início de setembro de 2022, o projeto de um centro de convivência integral, juntamente com a Associação Filantrópica Nova Esperança, gestora do Hospital Bela Vista. O centro contaria com quarenta leitos e receberia usuários de drogas provenientes do SIAT Emergencial localizado na rua Helvétia. Na mesma ocasião, Alexis Vargas declarou que usuários de crack com “rebaixamento de consciência” seriam colocados nas ambulâncias do Redenção e levados ao Hospital Geral Cantareira. Apesar da promessa, a Cracolândia, segundo a coluna Olhar de Repórter, vinha se expandindo com aumento de furtos e roubos (ZYLBERKAN, 2022).

Não apenas os usuários de crack com a consciência rebaixada, apontada pelo secretário Alexis Vargas, estavam sendo conduzidos ao Hospital Geral Cantareira, mas, segundo ele, todos aqueles flagrados consumindo drogas estariam sendo encaminhados pela GCM e pela Polícia Civil para a 77ª DP, localizada nos fundos do SIAT Emergencial. Segundo o Secretário: “A polícia não está mais tendo tolerância com o consumo nas ruas, e a prefeitura está estruturada para dar atendimento às pessoas que participarem de ocorrências policiais” (DIAS, 2022). O processo que levava à internação iniciava com a condução policial da pessoa flagrada consumindo crack em público para a delegacia de onde, após ser ouvida pela autoridade policial, seria encaminhada ao SIAT Emergencial para avaliação, que poderia ou não decidir pela internação. Ainda na opinião do secretário, a condução policial não traria prejuízo para a adesão ao tratamento, contrariando os responsáveis pelo CAPS IV Redenção, entrevistados pela Comissão Extraordinária da Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal. Os profissionais citaram o exemplo de um usuário de crack que chegou a esse serviço “com a polícia [e] praticamente não aceitou o tratamento, deixando o local antes mesmo de acessar a porta de entrada” (DIAS, 2023). Talvez por esse motivo, ao final de 2022, a Polícia Civil deixou de adotar o procedimento da condução policial, contra a vontade do prefeito Ricardo Nunes, para quem esse artifício “estava funcionando muito bem” (ZYLBERKAN, 2023).

No relatório da Comissão Extraordinária da Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal, apontou-se que, no final de 2022, havia divergências no número de profissionais, informados pela prefeitura, trabalhando no SIAT Emergencial da rua Helvétia. A equipe que deveria ser de dois médicos, um psicólogo, um assistente social, um oficineiro, um redutor de danos, uma enfermeira, além de um técnico de enfermagem, era apenas de um médico, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e um assistente social. Além disso, o único médico responsável pelo atendimento havia sido contratado como pessoa jurídica e relatou não ter experiência prévia com população de rua (DIAS, 2023).

O SIAT Emergencial localizado na rua Helvétia iniciou 2023 como SIAT II Acolher Helvétia, após reforma e ampliação de seu espaço físico, além do aumento do pessoal empregado. Duas secretarias municipais dividem o equipamento, a da Saúde (SMS) e a de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS). Ambas atuam na abordagem aos usuários de crack. A primeira com quatro equipes do chamado Redenção na Rua e a SMADS com o Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS). É por meio das abordagens feitas por essas equipes que as pessoas são levadas para atendimento no SIAT II Acolher Helvétia para, depois, serem encaminhadas para o CAPS IV Redenção, localizado próximo à praça Princesa Isabel, e/ou aos SIATs II Armênia ou Glicério. Apesar de terem o SIAT II Acolher Helvétia como ponto de apoio, as equipes da saúde e assistência não concordam com a concentração de usuários de crack na frente do equipamento e preferem sua dispersão pela Cracolândia (DIAS; ZYLBERKAN, 2023), ao contrário da Polícia Civil, interessada na maior concentração dessas pessoas, seja em uma rua pouco movimentada ou mesmo em um imóvel.

Figura 3
Placa de identificação do SIAT II Acolher Helvétia

O prefeito Ricardo Nunes visitou o SIAT Acolher Helvétia no início de 2023 e anunciou seus três pilares para atuação na Cracolândia: acolhimento, policiamento e reurbanização. No pilar policiamento, o prefeito ressaltou a importância em manter as ações de “dispersão” na Cracolândia. Em entrevista concedida à Agência Brasil (SOUZA, 2023), durante a visita, afirmou que contava com o fortalecimento do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod), do governo estadual. A expectativa era que o governo estadual contribuísse com a prefeitura através da internação de usuários de crack com muitos anos na Cracolândia, os quais, de acordo com estudos citados na mesma ocasião pelo secretário municipal da Saúde, Luiz Carlos Zamarco, comporiam 70% das pessoas naquela região. Na opinião do secretário, por estarem há muitos anos na cena de uso, essas pessoas não aceitam facilmente entrar em tratamento. As opiniões de Zamarco estavam baseadas no Levantamento de Cenas de Uso em Capitais (Lecuca), realizado por pesquisadores(as) da Unidade de Pesquisa de Álcool e Drogas (Uniad), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo o relatório da pesquisa, o influxo de novos frequentadores foi o menor da série histórica (2016-2022): “(20,2% de novos frequentadores), porém, apresentou um aumento na prevalência de frequentadores antigos (57,4% há pelo menos cinco anos e 39,2% estão na cena há dez anos ou mais)” (SOUZA, 2023). Portanto, seria importante, na opinião do secretário municipal de Saúde, obter um meio para internar os frequentadores mais antigos da Cracolândia. Em consequência, com um abastecimento menor de novos usuários de crack, a Cracolândia tenderia a diminuir de tamanho, ou desaparecer.

Um dispositivo jurídico chamado justiça terapêutica poderia ser o meio procurado por Zamarco para criar um fluxo de usuários de crack da cena de uso para o tratamento. No entender da prefeitura, segundo a Secretaria Especial de Comunicação (SECOM, 2023), a justiça terapêutica seria

uma proposta de transação penal, feita pelos poderes públicos aos envolvidos em delitos de menor potencial ofensivo ligados à dependência química de álcool ou drogas, que poderão aceitar o encaminhamento para tratamento da dependência química em acolhimento ou internação como alternativa à prisão em flagrante.

Os SIATs II, como é o caso do Acolher Helvétia e SIATs III, são equipamentos capazes de oferecer o tratamento baseado em abstinência e em acolhimento a que se refere o município. O tema do uso da Justiça Terapêutica gerou controvérsia, primeiro porque algo semelhante vinha sendo feito no âmbito da Operação Caronte. Segundo Alderon Pereira Costa, membro do Fórum da Cidade em Defesa da População em Situação de Rua, a Polícia Civil conduzia pessoas em massa para a 77ª DP, localizada nos fundos do SIAT II Acolher Helvétia, para assinatura de Termo Circunstanciado (MENDONÇA, 2023, p. 3). O Termo Circunstanciado registra infrações de menor poder ofensivo e, ainda segundo Alderon Pereira Costa, o que ocorria era a condenação das pessoas ao tratamento, devendo pegar todo mundo, levar para a delegacia e lá encaminhar as pessoas para internação. Na verdade, seria um tipo de internação compulsória.

O mês de janeiro de 2023 terminou com uma ação violenta na Cracolândia para dispersar um fluxo de usuários de crack, então localizados na rua Vitória. Com a mudança no governo estadual, um novo delegado, Arariboia Fusita Tavares, passou a chefiar o que a reportagem de Dias (2023) denominou como “força-tarefa na Cracolândia”.

A ação na rua Vitória, que não eliminou o consumo de drogas na região, só provocou o deslocamento do “fluxo” para uma via paralela, a rua dos Gusmões. Nas palavras do delegado: “Esse combate vai ser diário, não vai parar. Vamos intensificar essas ações”; e ainda acrescentou que: “Onde eles forem, vamos deslocar o policiamento e fazer revista e abordagem”.

Discussão

A pesquisa que embasa esse artigo se deu sobre fontes bibliográficas. As notícias publicadas pela grande mídia e as divulgadas pela própria prefeitura de São Paulo apresentam vieses quanto à visão dominante na imprensa sobre a Cracolândia e quanto ao caráter de discurso oficial municipal; que por sua vez apresenta uma visão do Estado e não das práticas do estado, bem como da agência dos sujeitos que são objetificados por essas políticas, o que impõe limitações quanto às informações obtidas. Pesquisas de campo, notadamente as de cunho etnográfico, poderiam oferecer uma gama de relatos das observações diretas e de entrevistas que enriqueceriam o material disponível para análise. Na ausência dessas fontes, buscamos um olhar sobre nosso objeto de estudo, o sentido da implantação do SIAT II Acolher Helvétia para a Cracolândia, que exibisse a sucessão dos principais acontecimentos que antecederam e marcaram a inauguração desse equipamento.

Acreditamos que o aspecto positivo presente nesse esforço está em desvendar como a implantação de um serviço voltado ao atendimento aos usuários de crack atualiza intervenções do passado, em particular a operação Dor e Sofrimento. A comparação crítica com a literatura pertinente nos possibilitou enveredar por tal empreitada. Os sucessivos ataques contra as pessoas que usam drogas na Cracolândia, e que dão o pano de fundo sobre o qual o SIAT Emergencial e, posteriormente, SIAT II Acolher Helvétia ali se instalaram, corroboram as ideias presentes em Rui (2012, 2014) de que repressão e cuidado caminham juntas na região. As contínuas ofensivas da Operação Caronte fazem as pessoas circularem (FROMM, 2017) e remontam a iniciativas de governos anteriores, como o Tolerância Zero (ALVES; PEREIRA, 2021b), Operação Limpa (SPAGGIARI, 2010), Derruba Quarteirão (SILVA; ADORNO, 2013) e, por fim, a operação Dor e Sofrimento (MAGALHÃES, 2017). Essa última operação foi tão violenta e descompromissada com o destino das pessoas agredidas nas ruas, além da internação massiva, que seu malogro geraria críticas na imprensa (RUI, 2014), até fomentar uma nova articulação entre violência policial, justiça e internação, estruturada em um programa, o Recomeço, que tinha no CRATOD o equipamento público responsável pelo internamento.

A articulação que vimos em torno da Operação Caronte se dá entre: ação policial nas ruas; concentração dos usuários de crack em frente ao SIAT Emergencial, depois SIAT II Acolher Helvétia; dispersão dessas pessoas pela Cracolândia; e encaminhamento para internação. Tais procedimentos presentes na Operação Caronte tiveram seu primeiro ensaio após a operação Dor e Sofrimento, quando da criação do Recomeço. Ali, Tribunal de Justiça, Ministério Público e OAB firmaram um termo de cooperação técnica para dar suporte às internações. O encaminhamento de usuários de crack para a 77ª DP, a assinatura de Termo Circunstanciado e o anúncio do recurso à Justiça Terapêutica sinalizam um retorno a essa articulação, seguindo uma linha de continuidade da violência contra os usuários de crack nas ruas.

Os encaminhamentos para tratamento, feitos a partir de abordagens nas ruas de pessoas consumindo crack, depois dirigidas ao SIAT II Acolher Helvétia, eram para dois hospitais, Bela Vista e Cantareira, ou para dois outros SIATs II, Glicério e Armênia. Os SIATs surgiram no âmbito do Redenção, em substituição aos equipamentos do tipo ATENDE, aos poucos encerrados na Cracolândia. Os ATENDE foram uma resposta do governo municipal sob João Doria Júnior aos hotéis do DBA. Os SIATs mantiveram as características fundamentais dos ATENDE, acomodação em containers adaptados, alimentação, atendimento médico. A especificidade apresentada pelo SIAT II Acolher Helvétia, no âmbito da Operação Caronte, foi o retorno do serviço à cena de uso. Porém, não foi o equipamento que se instalou onde os usuários de crack se aglomeravam, no chamado “fluxo”, mas essas pessoas foram, propositalmente, concentradas em sua frente, para melhor servir aos interesses da polícia, ao menos enquanto durou o caráter emergencial desse SIAT. No entanto, não foram apenas os interesses da polícia em executar prisões de traficantes que foram atendidos.

Em Trigo (2022) vimos que os SIATs II Glicério e Armênia estavam subutilizados. Assim, a inauguração do SIAT II Acolher Helvétia, próximo a cena de uso de crack, serviu também para encaminhar essas pessoas para esses dois serviços com falta de público. Talvez por essas e outras dificuldades, Rui (2020) tenha observado como a Cracolândia foi se tornando, com o passar dos anos, um epicentro de serviços de saúde e assistência social, que atendiam no território, possivelmente, como meio de evitar percalços desse tipo, entre outros, tendo em vista que após a abordagem, condução à 77ª DP, encaminhamento ao SIAT II Acolher Helvétia e assinatura de Termo Circunstanciado, os usuários pegos consumindo crack poderiam se ver convencidos, em uma lógica de justiça terapêutica, a aceitarem o tratamento proposto em locais mais distantes, como os SIATs II Glicério e Armênia.

Considerações a respeito do urbanismo militar e a Cracolândia estão em Amaral e Andreolla (2020), para quem há um nítido processo de gentrificação na região, com propósito de transformar aquele espaço em local propício à especulação imobiliária e a negócios globais, mas não sem resistência das pessoas que ali se aglomeram em torno do uso do crack.

O urbanismo militar, conforme apresentado por Graham (2016), trata as grandes cidades como território inimigo; indistingue civis de militares; demoniza opositores e locais hostis; toma como normais paradigmas militares de pensamento, ação e política; reorganiza fronteiras e limites. Ao examinar de maneira abrangente e crítica as complexas relações entre as cidades modernas e as práticas militares, destacando o fenômeno emergente do novo urbanismo militar, a obra de Graham destaca vários aspectos da interação entre o militarismo e o espaço urbano, incluindo (1) a militarização do espaço urbano, em que explora como as cidades se tornaram espaços cruciais para estratégias militarizadas e como as práticas de militarização têm impacto direto na vida urbana. O autor analisa o aumento das operações desse tipo em ambientes urbanos e os desafios que isso apresenta para a gestão urbana e os direitos civis; (2) as tecnologias de segurança e vigilância, em que examina como essas tecnologias estão cada vez mais presentes nas cidades, muitas vezes implementadas em nome da segurança pública, o que inclui câmeras de vigilância, sistemas de monitoramento, análise de dados e outras ferramentas que afetam a privacidade e as liberdades individuais; (3) o controle de população, com o qual discute como as práticas militares urbanas frequentemente envolvem estratégias de controle das pessoas, seja por meio de medidas de segurança mais rígidas, restrições de movimento ou outras formas de intervenção nas suas atividades cotidianas; (4) o impacto nas estruturas urbanas, explorando como as operações que seguem uma lógica militar afetam as estruturas físicas e sociais das cidades, incluindo o desenvolvimento de infraestrutura de tipo militar, a ocupação de áreas urbanas e os efeitos a longo prazo na forma e função das cidades; e (5) a produção da barbárie, a partir da representação de certas populações como impuras, patológicas ou sub-humanas, o que acaba por ensejar a eliminação de pessoas e lugares.

Nesse sentido, a dispersão dos usuários, com recorrentes ataques ao fluxo, retirou os antigos limites dados ao consumo de crack na Luz. Com a Operação Caronte, sua mobilidade pelo centro da cidade, em uma lógica de dispersão e concentração, destruiu antigas fronteiras com a produção de novas, em uma situação de guerra generalizada pela região central da cidade. A lógica da operação Dor e Sofrimento, deflagrada nove anos antes da Operação Caronte, prima pela segurança pública como forma de gestão do espaço urbano na Cracolândia (MAGALHÃES, 2017); e pouco visa o cuidado, mas a retomada do espaço ocupado pela cena aberta de uso de crack (RUI, 2014). As recorrentes novas tecnologias gerenciais de monitoramento governamental da área (RUI, 2014) revelaram, mais uma vez, o primado da segurança e da vigilância, naquilo que Graham (2016) apontou como a necessidade de controle aberto sobre zonas de pobreza transformadas em zonas de guerra. As constantes dispersões do fluxo, a partir de ações violentas, sob pretexto securitário, só fazem aumentar sua fragmentação.

A constante reorganização violenta da cidade, observou Graham (2016), acaba por relativizar os direitos de mobilidade, permanência e acesso aos lugares. Não à toa os pilares anunciados pelo prefeito Ricardo Nunes para a atuação na Cracolândia são acolhimento, policiamento e reurbanização. Para serem acolhidas, as pessoas que aparentam serem usuárias de crack são inicialmente alvo da barbárie produzida pela violência policial. Na prática, elas não podem mais circular pelos quarteirões da rua Helvétia, da avenida Cleveland até a praça Princesa Isabel. Novas fronteiras foram traçadas pela Operação Caronte para impedir o acesso e determinar outras formas de circulação em momentos de dispersão e concentração da cena de uso de crack, produzindo inimigos a serem atacados como em uma guerra.

Podemos vislumbrar o SIAT II Acolher Helvétia como uma nova estrutura física montada no interior da Cracolândia, voltada ao controle da população que por ali consome crack. Ao sediar equipes que abordam e encaminham essas pessoas para outros equipamentos, cada vez mais distantes da cena de uso, cria-se uma forma de gerir o espaço urbano em que, em nome da segurança pública, se estabelece o controle sobre uma população. Por isso, parte dos serviços de tipo ATENDE, os que representavam uma porta de saída do sistema, foi deslocada para longe da cena de uso, isto é, uma estratégia de controle dos usuários de crack, que passam a sofrer uma força centrífuga, para longe do fluxo (GRAHAM, 2016).

Após serem deslocados, quando não enviados para internação involuntária em hospitais psiquiátricos, um a quatro quilômetros do fluxo e outro a nove, os usuários de crack eram mantidos, através de atividades que deveriam ser cumpridas no interior dos SIATs, dentro desses equipamentos; e não mais circulavam pelo bairro para cumprir suas tarefas, como faziam nos tempos do DBA. A própria inauguração do SIAT II Acolher Helvétia se deu provavelmente para superar as dificuldades logísticas em enviar os frequentadores da Cracolândia para os equipamentos públicos mais distantes; ao mesmo tempo em que a prefeitura informa haver relação positiva entre a violência exercida, na forma de dispersão de usuários, e a adesão aos SIATs. Como o objetivo é restringir o movimento pela intervenção nas atividades cotidianas das pessoas (GRAHAM, 2016), que é em grande parte consumir crack, principalmente os que ali o fazem por mais tempo, que sequer havia pessoal técnico necessário ao funcionamento do SIAT Acolher Helvétia; o que é compreensível se considerarmos esse estado de coisas como destinado a possibilitar que a polícia civil e o pessoal da área da saúde possam trabalhar juntos para condenar pessoas ao tratamento baseado na abstinência.

Por fim, a representação do centro de São Paulo como região insegura da cidade e dos que ali frequentam, para fazer uso de crack, como zumbis, acaba por produzir uma sensação de insegurança e a patologização dessas pessoas; piorando ainda mais a situação dos usuários por meio de ações repressivas que dispersam a cena de uso, espalhando-a por todo o centro (ALVES, 2017). Como observou Graham (2016), a representação de certos segmentos como bárbaros acaba por apoiar práticas que reproduzem a barbárie pelo aniquilamento das cidades.

Notas finais

Os resultados apresentados neste artigo, em relação à implantação do SIAT II Acolher Helvétia, na Cracolândia, permitem concluir que as ações do município e do governo do estado em torno da Operação Caronte mantiveram a principal tendência da atuação governamental na Cracolândia: a de tornar insuportáveis as condições de vida nas ruas e, ao provocar dor e sofrimento, expulsar os usuários de crack pela imposição do tratamento baseado na abstinência. As ações dos governos, estadual e municipal, assumem um caráter militarizado que provoca uma tensão estrutural entre cuidado e repressão, manifestando-se em um movimento pendular de dispersão e concentração dos usuários de crack que visa, além de buscar superar a subutilização de outros equipamentos municipais semelhantes, localizados distantes da cena de uso, estabelecer uma situação de guerra generalizada na região central da cidade e tornar a vida ali intolerável para aquelas pessoas.

Inaugurado após sucessivas ações violentas que marcaram a Operação Caronte, o modo de funcionamento do SIAT II Acolher Helvétia, com a busca de pessoas na cena de uso e encaminhamento para uma delegacia policial, contribuiu para traçar novas fronteiras na Cracolândia, impedir o acesso a certos locais e determinar novas formas de circulação. Em nome da segurança pública, produziram-se inimigos a serem atacados, para que, em meio a um ambiente insuportável, aceitassem as opções de tratamento baseadas na abstinência, remontando à lógica da operação Dor e Sofrimento.

Após décadas de intervenções do poder público na Cracolândia, a instalação do SIAT II Acolher Helvétia representa mais um capítulo de uma história marcada pela violência, controle e restrição do direito de mobilidade das pessoas que ali consomem crack. Violência, controle e restrição da mobilidade, características do que Stephen Graham designa como urbanismo militar, o qual como formas de gerenciar aquele espaço urbano, gerando uma força centrífuga que expulse essas pessoas para outras áreas localizadas a quilômetros de distância; parece residir aí o sentido da Operação Caronte. A construção de equipamentos distantes do fluxo, da cena aberta de uso de crack, como são os SIATs, e o estabelecimento de convênios com instituições psiquiátricas, igualmente afastadas, mal disfarçam o imperativo da dispersão dos usuários de crack, por uma área ainda mais vasta do que por décadas se conhece como Cracolândia.

Referências

  • Editor responsável:
    Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2023
  • Aceito
    13 Mar 2024
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