Acessibilidade / Reportar erro

“Lei é para quem está de riba”: O coronelismo de O tronco

“Law is for those who are at the top”: The coronelism of O tronco

RESUMO

Este artigo investiga especificidades regionais do coronelismo da Primeira República a partir da experiência histórica de Goiás. Parte significativa da historiografia jurídica e política brasileira aderiu à tese de Victor Nunes Leal, para a qual o coronelismo republicano, mais do que expressão do poder privado dos coronéis, significaria a fraqueza deles em um contexto de incremento do aparato estatal. Os coronéis lutariam para se empossarem da máquina pública, passando a distribuir os seus benefícios aos amigos e os seus rigores aos inimigos. Porém, investigando o caso goiano a partir do romance O tronco, de Bernardo Élis, junto com outros documentos da época, a tese de Leal não consegue explicar a hipertrofia do poder privado dos coronéis do norte de Goiás, que ignorava ou subjugava à força o poder estatal, com suas leis, juízes, polícia etc. Conclui-se que o coronelismo teve expressões diferentes no Brasil, o que exige a diferenciação de suas especificidades.

Palavras-chave:
Pensamento político brasileiro; Bernardo Élis; coronelismo; patriarcalismo; O tronco; história do direito

ABSTRACT

This article investigates regional specificities of coronelism in the First Republic based on the historical experience of Goiás. A significant part of Brazilian legal and political historiography adhered to Victor Nunes Leal’s thesis, according to which the republican coronelism, more than an expression of the private power of the coronels, would signify their weakness in a context of increasing state institutionality. The coronels would fight, with all means, to take over the public machine, starting to distribute its benefits to friends and its rigors to enemies. However, investigating the case of Goiás, based on the novel O tronco, by Bernardo Élis, with other documents from the period, Leal’s thesis cannot explain the hypertrophy of the private power of the coronels in northern Goiás, that ignored or forcibly subjugated state power, with its laws, judges, police, etc. In conclusion, coronelism had different expressions in Brazil, which requires the differentiation of its specificities.

Keywords:
Brazilian political thought; Bernardo Élis; coronelism; patriarchalism; O tronco; legal history

Introdução

A inovação interpretativa que Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal (2012LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1948]. [1948]), ocasionou no conceito de coronelismo foi tão acentuada que parece, ainda hoje, ter superado todo o restante da historiografia. O coronelismo da Primeira República, na concepção de Leal, estabelecia uma relação complexa entre dois núcleos de poder relativamente fracos: o estatal e o privado dos senhores de terras. Os coronéis não seriam, como em outras épocas, suficientemente poderosos para se sobreporem ao Estado, o qual tinha à sua disposição a pretensão de completude dos códigos de direito,1 1 Sobre a pretensão de completude da codificação moderna, ver Paolo Grossi (2010, p. 85). as decisões dos juízes, a avareza dos coletores de impostos e a força das polícias. Mas tampouco o Estado conseguiria afiançar a sua hegemonia ao não ter meios para impor categoricamente a sua ordem à oligarquia governista. Por isso, as facções políticas lutavam entre si, empregando meios lícitos e ilícitos para ganhar as eleições, ocasionando uma política de compromissos entre o poder instituído e o poder privado dos coronéis empossados na máquina pública pela via eleitoral ou à força, que passavam a distribuir os benefícios do direito aos amigos e os rigores da lei aos inimigos.

Diante dessa explicação sofisticada e bem embasada em fontes históricas, qualquer interpretação que reduzisse o coronelismo a uma mera hipertrofia do privatismo parecia infantil. Quando Eul-Soo Pang (1979PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias (1889-1934). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.) tentou recolocar a importância do poderio privado na agenda de discussão do coronelismo, Victor Nunes Leal (1980LEAL, Victor Nunes. “O coronelismo e o coronelismo de cada um”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 23, n. 1, pp. 11-14, 1980.) fez questão de explicitar as suas diferenças teóricas em um artigo de título bem sugestivo: “O coronelismo e o coronelismo de cada um”. Há muito tempo, lá na Colônia, dissera Victor Nunes Leal (2012 [1948], p. 231), o Brasil havia deixado o passado patriarcal, no qual um potentado, do alto de sua arrogância, podia, com quase certeza de impunidade, ignorar determinações estatais e mandar em tudo e em todos nas suas zonas de influência. No contexto republicano de consolidação institucional, os coronéis que assim se comportavam o faziam porque, com grande probabilidade, estavam “por cima na política”, gozando da chancela estatal. Caso contrário, poderiam sofrer perseguições do aparato institucional a mando de coronéis governistas.

As críticas de Victor Nunes Leal contra Eul-Soo Pang podem ser estendidas a outros teóricos do coronelismo que genericamente endossaram a “tese privatista”, como Nestor Duarte (1966DUARTE, Nestor. A ordem privada e a organização política nacional. São Paulo: Editora Nacional, 1966 [1939]. [1939]) e, com um pouco menos de razão, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. “O coronelismo numa interpretação sociológica”. In: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de (org.). O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.)2 2 Penso em passagens como: “O centro da política continuava, malgrado todas as limitações estabelecidas por lei, o município, e, dentro do município, o coronel” (QUEIROZ, 1976, p. 117). “Assim, o chefe regional, o chefe municipal, continuava verdadeiro caudilhete, sem que o governo estadual se animasse a contradizê-lo” (QUEIROZ, 1976, p. 121). Mas toda tipologia é simplificadora, e, embora o poder privado seja importante na análise do coronelismo de Maria Isaura Pereira de Queiroz, sua obra não deixa de analisar a complexidade do fenômeno político e institucional da Primeira República. Para explorar melhor a profundidade de seu pensamento, recomendo estudos de César Barreira (1999), Gláucia Villas Bôas (2009) e André Botelho e Lucas Correia Carvalho (2011). e Edgard Carone (1971CARONE, Edgard. A República Velha (evolução política). São Paulo: Difel, 1983 [1971].).3 3 “Desde a Colônia, os grandes proprietários de terras vêm dominando de fato e tornando-se os homens bons (ricos) que compõem as câmaras municipais. Os barões e coronéis representam simples continuidade do sistema anterior, havendo, no entanto, maior amplitude de representação legal” (CARONE, 1971). Seguindo as trilhas de Leal como signatária da “teoria da política de compromissos”, a obra O coronelismo: Uma política de compromissos, de Maria de Lourdes Monaco Janotti (1981JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. O coronelismo: Uma política de compromissos. São Paulo: Brasiliense, 1981.) teve relevância especial. Mas um artigo de grande repercussão de José Murilo de Carvalho (1997CARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: Uma discussão conceitual”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 40, n. 2, pp. 229-250, 1997.), “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: Uma discussão conceitual”, pode ser visto como responsável por enterrar de vez a validade das explicações dos “autores privatistas”.4 4 A rigor, José Murilo de Carvalho também criticava a concepção de coronelismo de Victor Nunes Leal ao notar que sua interpretação não teria analisado a concentração de poder nas capitais dos estados. Mas as críticas de Carvalho aos “privatistas” não deixam de ser incisivas. Carvalho apontava um anacronismo de mais de um século nas análises dos “privatistas”, que confundiriam o conceito de coronelismo, funcional para investigações sociopolíticas da Primeira República, com o de mandonismo, ou patriarcalismo, mais articulados à Colônia e ao Império. A partir de então, o pesquisador que concebesse o poder privado como fator preponderante do coronelismo republicano praticava uma heresia punível com a excomunhão acadêmica se tivesse pela frente um inquisidor conceitualmente rigoroso.5 5 Para analisar as continuidades e as rupturas no pensamento de alguns dos intérpretes citados, recomendo o trabalho de Liliane Faria Corrêa Pinto (2017).

Neste artigo, não pretendo questionar a validade da interpretação de Victor Nunes Leal, que pode ser visualizada a partir de fontes históricas de tipos diversos. Recentemente, um artigo de minha autoria (MANSUR, 2021MANSUR, João Paulo. “‘Terras adubadas com sangue’: O coronelismo de Terras do sem fim”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 36, n. 105, pp. 1-19, 2021.), ao mobilizar o romance histórico Terras do sem fim, de Jorge Amado (2006AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Rio de Janeiro: Record, 2006 [1943]. [1943]), observou como a mera lei do mais forte, argumento típico da “tese privatista”, não explicava as relações de poder na Ilhéus da Primeira República, que são melhor entendidas a partir da “tese do compromisso”. Investigando obras de José Lins do Rego também se pode encontrar um coronelismo similar. No enredo de Pedra Bonita, um escrivão de polícia partidário do coronel que chefiava a política local se comprometeu com o personagem Bentão a retirar o seu filho Bentinho da cadeia. Dispôs-se também a resolver o júri de Aparício, outro filho do protegido. Mas faria tudo isso em troca dos votos da família. À medida que manipulava as instituições a favor de seus eleitores, o coronel angariava votos no intuito de manter o aparato estatal em suas mãos: “Gente minha não sofre em Dores. Vou agora mesmo falar com o sargento e tudo se acaba. Gente que vota comigo não sofre. Veja se o senhor pode mandar um recado para o seu filho Aparício, eu arranjo tudo no júri. É para isto que servem os amigos” (REGO, 2011bREGO, José Lins do. Pedra Bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011b [1938]. [1938], pp. 195-196).

Acaso perdesse o controle do Estado, os privilégios que dele advinham acabariam. Dali em diante na oposição, o coronel estaria sujeito às perseguições dos adversários empossados na máquina estatal: não seria mais capaz de proteger a si e aos seus. Foi isso o que aconteceu com o dr. Cunha Lima, coronel que perdeu as eleições em Cangaceiros, outro romance de José Lins do Rego. Não detinha mais os recursos institucionais para livrar o Mestre Jerônimo, gente sua que tinha um homicídio nas costas: “- Doutor [Cunha Lima], eu sei que o senhor não está forte na política e eu não quero ficar por aqui não. Tem aí esta gente do finado Casemiro e eu sei que, mais cedo ou mais tarde, eles vêm pra cima de mim” (REGO, 2011aREGO, José Lins do. Cangaceiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011a [1953]. [1953], p. 197). Observa-se, portanto, como deter o controle do Estado também era um recurso estratégico para os coronéis do sertão pernambucano narrados por Rego.

Mas acredito que a interpretação de Victor Nunes Leal não dá conta de explicar o coronelismo da Primeira República em toda e qualquer região brasileira. Terras do sem fim se passa no litoral nordestino,6 6 Para designar a região conhecida atualmente como “Nordeste”, ao menos até 1919, era mais habitual o uso do termo “Norte” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 81). enquanto Pedra Bonita e Cangaceiros se ambientam em cidades do interior, mas que são relativamente próximas a grandes centros administrativos e capitais de estados da federação, como Salvador e Recife. Facilitadas pela disponibilidade de alguns meios de transporte e comunicação, as instituições se faziam relativamente presentes nesses locais, possibilitando se falar do pacto coronelista no modelo de Victor Nunes Leal, em que dominar a máquina estatal era estratégico para os coronéis. Adentrando, porém, em regiões mais remotas dos grandes sertões brasileiros, o poder estatal rarefeito não assumia a mesma relevância e a hipertrofia privada ganhava destaque. Em vez de dominar o poder público, os coronéis podiam, simplesmente, ignorá-lo ou se sobrepor a ele. Mantendo o propósito de investigar fenômenos sociopolíticos em romances históricos, pode-se verificar essa configuração de poderes em Os cabras do coronel, obra escrita por Wilson Lins com inspiração na vida de seu pai, o famoso coronel Franklin Lins de Albuquerque (COSTA, 2014 [1964]COSTA, Aramis Ribeiro. “Um romance de coronéis e jagunços”. In: LINS, Wilson (org.). Os cabras do coronel. Salvador: Highway Sans, 2014 [1964].; LINS, 1983LINS, Wilson. O médio São Francisco: Uma sociedade de pastores guerreiros. São Paulo: Editora Nacional, 1983 [1952]. [1952], p. 59). Ao tratar de municípios do vale do rio São Francisco no extremo oeste baiano, Lins (2014 [1964], p. 68) dizia: “Os coronéis governavam seus municípios sem dar muita importância aos governos do estado e da União, pois as dificuldades de transporte e a precariedade das comunicações postais-telegráficas deixavam os sertões inteiramente isolados dos grandes centros urbanos”.

São essas diferenças que me motivam a falar do “coronelismo de cada lugar” e a propor uma tipologia (WEBER, 2014, pp. 12-13)7 7 Enquanto tipos puros, esses dois modelos do coronelismo não existiram em absoluto. São esquemas interpretativos, chaves de leitura que colocam lentes de aumento em certos aspectos centrais dos objetos estudados para os revelar com nitidez. das formas coronelistas de poder e dominação no Brasil República: uma nos moldes retratados em Terras do sem fim, Pedra Bonita e Cangaceiros, que pode ser traduzida em linguagem científica pela tese do “compromisso coronelista” de Victor Nunes Leal, e outra mais próxima à leitura “privatista”, visualizada, entre outros romances, em Os cabras do coronel e Terra de ninguém (GALVÃO, 2002GALVÃO, Francisco. Terra de ninguém: Romance social do Amazonas. Manaus: Valer, 2002 [1934]. [1934]), nos quais a vontade patriarcal sobrevivia com muito mais potência e as instituições estatais inócuas pouco tinham a fazer contra os mandos e desmandos dos potentados mais poderosos, mesmo quando eles estavam por baixo na política.

Selecionei o romance O tronco, escrito pelo goiano Bernardo Élis em 1956,8 8 Para informações biográficas de Bernardo Élis, ver Jaime Sautchuk (2018, p. 67) e Pauliane de Carvalho Braga (2019, p. 29), além de textos autobiográficos e entrevistas (ÉLIS, 1974b [1956], 1983, 1997). para aprofundar o exame por considerá-lo um dos mais pertinentes para observar o segundo tipo de coronelismo, na medida em que ele traduziu para a literatura a luta histórica da polícia de Goiás contra o exército de jagunços do coronel Abílio Wolney, representado pelo personagem Pedro Melo no romance. Ambientado no Cerrado brasileiro, mais propriamente no norte de Goiás, atual Tocantins, O tronco surpreenderá com uma estrutura de poder coronelista com muitos resquícios daquele patriarcalismo oriundo da época colonial. Nos rincões da vila de São José do Duro, os jagunços dos Melos, mesmo sem a chancela da oligarquia governista, botavam qualquer juiz, delegado ou força policial de Goiás para correr!

Nativo da região, Bernardo Élis cresceu ouvindo histórias do fantástico embate. Mas a vivência, que lhe permitiu escrever o romance, também pode ocasionar questionamentos quanto a possíveis enviesamentos. A rigor, porém, toda e qualquer fonte empregada na operação historiográfica carrega consigo algum tipo de subjetividade. A pretensão de atingir um conhecimento totalmente objetivo utilizando apenas documentos estatais alcança a pretensão diversa: objetifica a subjetividade oficial (CHARTIER, 2002CHARTIER, Roger. À beira da falésia: A história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.; WHITE, 2001WHITE, Hayden. “As ficções da representação factual”. In: WHITE, Hayden (org.). Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 2001.). Seja lidando com cartas, memórias, relatos orais e romances históricos, ou com arquivos estatais e jornais, é necessário criticar o potencial e os limites de suas mensagens a partir de seu devido tratamento e do cruzamento com outras fontes. Essa tônica se torna ainda mais imperiosa quando lidamos com o romance histórico, que, embora se aproprie dos acontecimentos do passado, deliberadamente pode enviesá-los, manejá-los, recriá-los ou esquecê-los. Por isso, legislações vigentes na Primeira República, mensagens de presidentes de Goiás ao poder legislativo, memórias de quem vivenciou a luta histórica, mapas, entre outros tipos de fontes, são aqui cotejados com o romance O tronco.

Pedro Melo, o “Vice-rei no Norte”

Na trama de O tronco, o personagem Pedro Melo, grande proprietário de fazendas de gado no norte de Goiás, havia participado da Revolução Estadual de 1909 em conjunto com o clã político formado por Eugênio Jardim, João Alves de Castro e Totó Caiado. Revoltas como essa, que objetivavam depor violentamente o governo estadual, foram frequentes na Primeira República, como ocorreu na Sedição de Juazeiro de 1914, encabeçada pelo padre Cícero e pelo deputado Floro Bartolomeu, e na Revolução Baiana de 1919, liderada por Horácio de Matos. Com o objetivo de estabilizar o governo federal diante das inconstâncias dos governos estaduais, Campos Sales, quando presidente da República, instituiu a “política dos governadores”, medida que foi mantida sempre que seus sucessores julgaram conveniente. O governo federal se comprometia a não intervir nos estados, mesmo diante de golpes e eleições fraudadas. Reconheceria como de direito quem de fato detivesse o poder.9 9 Ver nesse sentido Edgard Carone (1983 [1971], p. 194). Em troca, exigia-se apoio do governo do estado ao governo federal. A partir da política dos governadores, as intervenções federais em revoltas oligárquicas estaduais passaram a ser menos frequentes, embora ainda existentes. É, portanto, a política dos governadores que explica a legitimidade que garantiu a manutenção do governo formado em Goiás a partir da Revolução de 1909.

No romance, após se apossarem do governo do estado pela via armada, Artur Melo, filho de Pedro Melo e bacharel em direito, foi cogitado para a presidência de Goiás,10 10 Embora o mais usual para a época fosse chamar o chefe de executivo dos estados como “governadores”, a Constituição de Goiás o denomina “presidente”. o que não agradou os aliados, que romperam com os Melos. Ainda assim, Artur elegeu-se deputado federal no pleito que seguiu à tomada do poder, mas, a pedido dos Caiados, teve o mandato depurado no Rio de Janeiro.11 11 Trata-se de um artifício realizado com respaldo jurídico no artigo 18 da Constituição Federal de 1891, que diz: “A Câmara dos Deputados e o Senado Federal trabalharão separadamente e, quando não se resolver o contrário, por maioria de votos, em sessões públicas. As deliberações serão tomadas por maioria de votos, achando-se presente, em cada uma, maioria absoluta de seus membros. Parágrafo único: A cada uma das Câmaras compete: verificar e reconhecer os poderes de seus membros” (BRASIL, 1891). Consultar Rodolpho Telarolli (1982) para uma análise das fraudes eleitorais mais típicas na Primeira República. Ver também depoimento pessoal de Ulysses Lins de Albuquerque (1989 [1957], p. 19). Cláudia Maria Ribeiro Viscardi e Lívia Freitas Pinto Silva Soares (2019, pp. 22-26) fizeram pesquisa sobre representações das fraudes em charges de jornais da época. A depuração, ou degola, era uma forma de fraude eleitoral em que a comissão verificadora de poderes do órgão para o qual o político foi eleito não reconhecia a sua votação. Ou seja, os revolucionários de 1909, pela política dos governadores, angariaram tanto prestígio com o governo federal que este mobilizou sua base parlamentar para depurar o dissidente Artur Melo. O rapaz ficou na capital do estado, que na época era a Cidade de Goiás, e criou um jornal oposicionista “disposto a atacar o caiadismo na sua própria toca” (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 13). O velho retornou para a localidade em que as suas terras se situavam, a vila de São José do Duro, atual Dianópolis, no norte daquele estado, atual Tocantins (IBGE, 2024IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Tocantins, Dianópolis, histórico. Brasília, DF: IBGE, 2024. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/to/dianopolis/historico. Acesso em: 14 fev. 2024.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/to/di...
). Expurgados do governo, dali em diante, os Melos teriam de conviver com a gente da situação dando as cartas nos cargos estatais da região de sua influência: “Em represália, os Caiados, senhores do estado, davam apoio político aos opositores dos Melos, no norte do estado. […] os cargos públicos estão nas mãos dos adversários, o bafejo político faz do humilde bajulador de ontem um rancoroso inimigo. Adeus os bons tempos em que a vontade de Artur ou seu pai era a suprema lei!” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 13).

As querelas entre os Melos e os Caiados, que começaram com os desdobramentos da Revolução Estadual de 1909, conduziriam, uma década mais tarde, à luta armada de São José do Duro, trama central de O tronco, em que os Melos combateriam e repeliriam com êxito as tropas do governo de Goiás, que pretendiam prender membros de seu clã. Tanto a Revolução de 1909 como a luta de São José do Duro de 1919 são crônicas reais da história política de Goiás.12 12 É interessante ler O tronco em comparação com a obra Expedição histórica nos sertões de Goyas, em que Guilherme Ferreira Coelho (2008 [1937]), escrivão de polícia que participara da luta de São José do Duro, contou a sua experiência. Sobre a coleta de fontes para a escrita do romance, Élis (1997, p. 71) disse: “O romance O tronco, inicialmente seria uma pesquisa sociológica sobre a região fronteiriça da Bahia, tanto em seu aspecto geográfico como social ou econômico-financeiro. Para isso, colhi farto material, mas quando parti para entrevistas com pessoas moradoras ou ex-moradoras no lugar, pessoas que participaram diretamente das lutas, encontrei na narrativa delas uma caga emocional tão intensa, tão poderosa que meus intuitos científicos foram absorvidos pelo meu pendor de ficcionista. E fiz, do que era uma pesquisa científica, um romance”. O romance O tronco traduziu eventos históricos para a literatura, incorporando, inclusive, sujeitos históricos, como Totó Caiado, Eugênio Jardim e João Alves de Castro, políticos da época. Artur Melo foi codinome dado pelo romancista ao famoso coronel Abílio Wolney. Há, em O tronco, evidentemente, releituras, pinceladas de dramaticidade, além de construções totalmente ficcionais, que são prerrogativas próprias da liberdade literária (LUKÁCS, 1965LUKÁCS, Georg. “Narrar ou descrever”. In: LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965 [1936]. [1936]). A concatenação dos eventos em um romance, mesmo que de cunho realista e histórico, não tem o mesmo compromisso que se espera de um trabalho historiográfico. Caso tivesse, seria historiografia e não literatura.13 13 Para historiografia política de Goiás na Primeira República, ver Maria Augusta Sant’Anna Moraes (1974), Francisco Itami Campos (2003 [1983], pp. 81-108) e Miriam Bianca Amaral Ribeiro (1988).

De O tronco, portanto, se espera mais a capacidade de revelar características sobre o carácter típico do arranjo coronelista no norte de Goiás, do que uma fidedignidade categórica a todos os fatos que envolveram a luta de São José do Duro. Uma entrevista de Bernardo Élis concedida a Giovanni Ricciardi nos ajuda a perceber como, apesar de retratar eventos históricos, Élis não pretendeu ser completamente fiel a cada fato e personalidade que os envolveram, mas atingir certas estruturas sociais de média ou longa duração (BRAUDEL, 2019BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2019., p. 41 ss.), que conferiam significado a inúmeras lutas oligárquicas similares àquela: “Foi para isso que escrevi O tronco, para mostrar que […] os dirigentes políticos, tanto os municipais quanto os estaduais e os federais, o que faziam era lutar entre si em disputas fratricidas inúteis, com o objetivo de se apropriarem do rendimento dos minguados impostos” (ÉLIS, 1997ÉLIS, Bernardo. “A vida são as sobras”. Remate de Males, Campinas, SP, vol. 17, n. 1, pp. 15-116, 1997., p. 72).

É nesse sentido que se rebatem alguns questionamentos que surgiram contra o modo como Bernardo Élis representou Abílio Wolney (PIVA; UNES, 2008PIVA, Carolina Brandão; UNES, Wolney. “Ficção e realidade”. In: COELHO, Guilherme Ferreira (org.). Expedição histórica nos sertões de Goyas: São José do Duro. Goiânia: ICBC, 2008 [1937]. [1937], p. 15; SILVA, 2017SILVA, Elen Glauciene. Chacina do Duro: Do evento à representação dos acontecimentos. 2017. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017., p. 38). O coronel e, depois, seus descendentes (AIRES NETO, 2002AIRES NETO, Abílio Wolney. No tribunal da história. Anápolis, GO: Biblioteca Virtual AW, 2002., 2006AIRES NETO, Abílio Wolney. O diário de Abílio Wolney. Goiânia: Kelps, 2006.) enxergaram no personagem Artur Melo um espantalho portador exclusivamente de atributos negativos: desordeiro, autoritário, chefe de cangaceiros, homicida. A memória de Abílio teria sido afrontada por uma caricatura grosseira, enquanto seriam os Caiados os verdadeiros responsáveis pela luta. Creio que enquanto ficarmos presos à discussão da personalidade dos envolvidos, bandidos ou legalistas, bonzinhos ou malvados, perdemos de vista a dimensão mais profunda da dominação coronelista, que existia independentemente dos sujeitos envolvidos.14 14 Gracy Tadeu da Silva Ferreira (1998, p. 96) chegou a conclusões parecidas ao estudar o romance Quinta-feira sangrenta, de Osvaldo Póvoa (1980 [1979]), que também retratou a batalha de São José do Duro, mas sob a ótica dos Wolneys. Os Caiados, os Wolneys, os Horácios, os Franklins, todos agiam dentro das possibilidades coronelistas.

O modo como Bernardo Élis, que era formado em direito (ÉLIS, 1974aÉLIS, Bernardo. “O autor e sua obra” [1965]. In: ÉLIS, Bernardo (org.). O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974a [1956]. [1956], p. 302), representou as formas de provimento dos cargos estatais ao longo de O tronco demonstra que o romancista conhecia os mecanismos legais de composição da burocracia estatal goiana, e fazia questão de incorporá-los à narrativa. O presidente de Goiás acumulava, durante a Primeira República, muitas prerrogativas jurídicas em suas mãos. Por isso, deter o governo do estado era muito estratégico às oligarquias. Pela Constituição de Goiás de 1891GOIÁS. Constituição do estado da Goyaz. Cidade de Goyaz: [s. n.], 1891. Disponível em: https://www.casacivil.go.gov.br/images/imagens_migradas/upload/arquivos/2011-08/constituicao-1891.pdf. Acesso em: 14 fev. 2024.
https://www.casacivil.go.gov.br/images/i...
, os juízes de direito eram nomeados pelo presidente do estado (art. 83, §12 e art. 100). Em cada distrito municipal, havia um juiz distrital eletivo, responsável por instruir as causas locais. Eles ficavam no cargo por três anos, não gozando da vitaliciedade e inamovibilidade que os juízes de direito tinham. Os promotores de justiça também eram designados pelo presidente do estado (art. 110) e, para eles, também não havia previsão constitucional de vitaliciedade e inamovibilidade.

A configuração do judiciário e do ministério público garantia imunidade jurisdicional aos governistas, ou seja, ao clã oligárquico que dominava o estado de Goiás. Nomeando gente sua para o cargo de juiz de direito e manipulando as eleições dos juízes distritais, o presidente garantia que não haveria acusação contra os aliados e que os oposicionistas seriam perseguidos. O sistema de imunidade jurisdicional governista contava ainda com redundâncias para evitar que qualquer circunstância não desejada ocorresse. Caso o judiciário falhasse na sua tarefa política em razão da inamovibilidade, o presidente demitiria o promotor de justiça e designaria outro que conduzisse os processos de forma que agradasse a ele. Esse expediente, aliás, foi usado em O tronco por João Alves de Castro, que dispensou o promotor Sebastião Rojas Imbaúba e investiu no cargo Chaves, até então intendente do município de Natividade, com o objetivo de imputar ao clã de Pedro Melo o cometimento de alguns crimes (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], pp. 82-83).

A Constituição goiana, em seu artigo 83, parágrafos 11 e 13, conferia ainda ao presidente do estado a competência para “dispor da força pública e policial em conformidade com a lei e exigências do serviço e segurança do estado” e para “nomear, suspender e demitir os funcionários da administração, e conceder-lhes licença, com ou sem ordenado na forma da lei” (GOIÁS, 1891GOIÁS. Constituição do estado da Goyaz. Cidade de Goyaz: [s. n.], 1891. Disponível em: https://www.casacivil.go.gov.br/images/imagens_migradas/upload/arquivos/2011-08/constituicao-1891.pdf. Acesso em: 14 fev. 2024.
https://www.casacivil.go.gov.br/images/i...
, p. 11). Não se deve compreender as expressões “em conformidade com a lei” e “na forma da lei” como uma submissão do executivo à legalidade. As justificativas exigidas pela lei eram meras formalidades retóricas para o governo, afinal, qualquer apreciação de violações da legalidade pelos atos estatais não seriam julgados em virtude da imunidade jurisdicional governista. A liberdade de nomear e exonerar os funcionários, assim, politizava a burocracia administrativa. Os situacionistas designavam pessoas de confiança para os cargos públicos, especialmente para aqueles que eram mais estratégicos em razão da natureza de suas funções, como o delegado de polícia, o coletor de impostos e até o agente local dos Correios. Em torno desses funcionários, muitos barulhos ocorreram em O tronco. Mas que importância teria um mero agente dos Correios? Oras, controlar as correspondências que entravam e saíam do fim do mundo, onde não havia telégrafo, telefone ou qualquer outro meio de comunicação e os transportes eram precários - isso é bastante poder! “[Martim] fora nomeado agente do Correio […] um aliado a mais ninguém despreza, ainda mais sendo, como era, o controlador da correspondência” (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], pp. 19-20). Com todas essas prerrogativas legalmente constituídas, o governo de Goiás teria condições, em tese, de sufocar qualquer rebeldia de potentados em seu território. Mas, com o clã dos Melos, a coisa não seria tão fácil assim!

Os adversários políticos estavam presentes “na própria vila do Duro, residência dos Melos, aí mesmo o governo [estadual] contava com dois homens de valor: um era o juiz municipal [distrital], Valério Ferreira; o outro, o coletor estadual, Vicente Lemes, pessoa de confiança de Eugênio Jardim” (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 13). Angariar benesses do Estado por ser partidário da situação estadual era uma prática comum na localidade retratada em O tronco. Por isso, após perderem o governo de Goiás, “dia a dia os correligionários dos Melos abandonavam suas fileiras, passando de armas e bagagens para as hostes de Vicente Lemes e Valério Ferreira, onde vinham buscar as delícias do situacionismo, isto é, vinham buscar as dispensa de impostos, vinham obter impunidade para os crimes e saques” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 15). A concessão de vantagens estatais aos aliados, portanto, permanece igual, seja no coronelismo de Terras do sem fim ou no de O tronco; seja no coronelismo das áreas mais litorâneas do Brasil ou no dos sertões mais distantes. Vicente Lemes e Valério Ferreira, porém, de modo muito atípico, eram personagens não muito afeitos às práticas clientelistas. Mas a regra era que os servidores concedessem regalias aos partidários do governo, como Bernardo Élis sugere ao se referir às “delícias do situacionismo” enquanto uma prática generalizada.

Se as regalias aos amigos estavam garantidas, não se pode falar igual em relação à imposição da força estatal contra inimigos que fossem coronéis muito poderosos. Em Terras do sem fim, o poderio das instituições estatais de repressão, que os governistas usavam para perseguir os adversários, foi o fiel da balança no desfecho da luta entre Horácio e os Badarós. Mas, em Goiás, a força policial, também usada contra os Melos, foi categoricamente esmagada. Aqui a hipertrofia do poder privado de alguns patriarcas não encontraria freios sequer no Estado. O governo estadual mandava na capital; no Duro, mandavam os Melos, dizia o velho fazendeiro Pedro Melo: “- Nossa força é aqui, cuma a força de Totó Caiado é lá na capital dele. Tu pode derrotar Totó mais Eugênio Jardim lá na capital? Num pode não, meu filho! Pois é. Aqui também eles não são homem para derrotar nós” (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 111).

Embora nas folhas de papel em que se escreveu a Constituição de Goiás se conferissem muitas atribuições jurídicas ao presidente do estado, condições de outra natureza, que vão além do palavreado, eram requeridas para os governistas se afirmarem na longínqua vila do Duro: exigiam-se recursos materiais e a efetiva presença das instituições estatais e das forças policiais para resguardá-las. Mas a precariedade institucional era tanta ali no sertão goiano que inviabilizava até mesmo o pacto coronelista no modelo descrito por Victor Nunes Leal: o coronel não era aquela figura enfraquecida que se escorava no Estado, nem o Estado conseguia impor a sua presença de forma relativamente emancipada. Por isso, a situação estadual, mesmo com aporte da máquina estatal, não detinha forças para enfrentar um coronel da envergadura de Pedro Melo em seu hábitat. O governo estadual tentava acabar com o seu prestígio local. Colocava os cargos nas mãos de seus inimigos, mas isso não era suficiente contra o patriarca, que contava com mais de cem homens armados para a sua proteção:

- Por que é que você não deixa o terreno das armas e da violência, coronel Artur? Você é advogado, parlamentar, jornalista, você sabe que a violência e a truculência não levam a bom termo. - Mas nós não podemos confiar no governo! - retrucou Artur. - Ele coloca os cargos públicos em mãos de nossos adversários, para nos perseguir […]. Nos sentimos sem garantia. Para defender minha vida, tenho que manter em armas mais de cem rapazes […]. E é já que vamos ter para mais de trezentos no coice da repetição, com a graça de minha mãe Maria Santíssima - disse de lá o velho Pedro (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], pp. 96-97).

Pedro Melo passava por cima de tudo: leis, códigos e outros pretextos jurídicos quaisquer usados, com ou sem razão, para perseguir o seu clã. Gabando-se de seus homicídios, dizia: “- Lei, código… Teve lei para Vigilato? Teve lei para Norato? Lei é para quem está de riba [por cima na política]. Para quem está no chão é pau no vão das orelhas, home!” (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 111). E para tentar desmoralizar de vez o aparato estatal goiano, o compadre João Rocha sugeria até reunir aliados para uma nova revolução estadual: “- Arreuni os cabras, atacar a capital de Goiás, tomar o governo e botar em riba desse governo o dr. Arturzinho. Se Artur quisesse era gritar que [Abílio] Batata vinha com mil homens acostumados com a fumaça” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 112). Parece-me que há um exagero de João Rocha. Lá na Cidade de Goiás, os Caiados teriam não apenas a força estadual à sua disposição, mas também os jagunços dos fazendeiros pertencentes ao seu clã político. A fórmula sugerida por Pedro Melo parece ser mais coerente: no Duro manda ele; em Goiás, mandam os Caiados.

Ao lermos a Constituição de Goiás com todas aquelas competências do presidente, não podemos nos esquecer da advertência do teórico do direito Luís Alberto Warat sobre o caráter da ciência jurídica - e da legislação, acrescento -, cuja força comunicacional de suas palavras passam “por um jogo de significados ilusórios; um território encantador onde todos fazem de conta que o direito, em suas práticas concretas, funciona à imagem e semelhança do discurso que dele fala” (WARAT, 1995WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995., p. 58). Não! Não para o Duro. Há um enorme lapso entre a legalidade determinada pelo direito do estado de Goiás e a realidade daquele povoado ermitão. A institucionalidade estatal que o viajante Saint-Hilaire (1937 [1823], p. 302) encontrou no início dos oitocentos na província de Goiás era deplorável: “Durante muito tempo, a província de Goiás não teve, toda ela, senão um ouvidor, e, por conseguinte, não constituía mais de uma comarca que compreendia diversas justiças (julgados)”.

O cenário de precariedade institucional dos grandes sertões brasileiros do período colonial (BOXER, 2011BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português. Lisboa: Edições 70, 2011 [1969]. [1969], p. 278; HESPANHA, 2006HESPANHA, António Manuel. “Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro”. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, Firenze, vol. 35, pp. 59-81, 2006., 2012HESPANHA, António Manuel. “Modalidades e limites do imperialismo jurídico na colonização portuguesa”. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, Firenze, vol. 41, pp. 101-135, 2012.; MELLO E SOUZA, 2006MELLO E SOUZA, Laura de. O sol e a sombra: Política e administração na América Portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.) continuaria parcialmente presente no Império e na Primeira República. A distância da sede da capitania, Vila Boa, futura Cidade de Goiás, deixava o restante da território interiorano sob a jurisdição dos “juízes ordinários que, escolhidos dentre os próprios colonos, e participando dos seus vícios, eram muitas vezes os primeiros a violar as leis” (SAINT-HILAIRE, 1937SAINT-HILAIRE, Augusto de. Viagem às nascentes do rio S. Francisco e pela provincia de Goyas. São Paulo: Editora Nacional, 1937 [1823]. t. 1. [1823], p. 302). Quando as transgressões às leis não partiam dos próprios juízes ordinários, eles eram as vítimas. Luís Palacín (1972PALACÍN, Luís. Goiás (1722-1822). Goiânia: Oriente, 1972., p. 119), por exemplo, em acesso às Cartas de governo de 1756, disponíveis no Serviço de documentação do estado de Goiás, se deparou com as aventuras de um ouvidor em correição ao norte. Em uma delas, o funcionário da metrópole tomou conhecimento de assaltos à cadeia para liberar presos em Pilar e dos assassinatos dos juízes ordinários de Arraias e Natividade. Esses episódios não devem ser lidos como esporádicos ou como patologias e desvios. Eles caracterizam, antes, a essência de uma institucionalidade estatal atrofiada naquele ermo sertão brasileiro.

Em 1861, a distribuição da justiça se espalhava melhor pela província de Goiás, mas a execução de suas ordens falhava em muitas comarcas por ausência de destacamento policial suficiente para as garantir. Discorrendo sobre Boa Vista, extremo norte de Goiás, atual Tocantins, o presidente da província de Goiás, Antonio Manoel de Araujo e Mello (GOIÁS, 1861GOIÁS. Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Antonio Manoel de Araujo e Mello passou a administração da província ao seu sucessor o Exm., Sr. José Martins Pereira de Alencastre no dia 22 de abril de 1861. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Constitucional, 1861., p. 4), atestava o desamparo da justiça: “O juiz de direito, se […] tivesse à sua disposição um destacamento respeitável, poderia talvez pôr termo aos abusos que ali são tão frequentes; sem força, porém, que o sustente, […], não tem conseguido tanto quanto se deveria esperar”. Essa incapacidade de as capitais das províncias levarem sua ação administrativa à periferia chamou a atenção, na época, de Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai (SOUSA, 1862SOUSA, Paulino José Soares de. Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1862., p. 184). Em seu Ensaio sobre o direito administrativo, falava de um Estado com cabeças enormes, mas quase sem braços e pernas, sugerindo que, fora da capital do Império e das províncias, o poder estatal não era eficaz: “Ação administrativa [é] fortificada somente no centro […]. Nos diferentes pontos de extensas províncias, mal pode fazer chegar ali a sua ação eficaz. São elas corpos cuja circulação não chega às suas extremidades” (SOUSA, 1862, p. 205).

Na vila de São José do Duro, um pouco ao sul de Boa Vista, O tronco mostra que a presença estatal não se fazia tão mais eficaz, mesmo durante a Primeira República, cem anos após a visita de Saint-Hilaire. Por esse motivo, com um sentimento misto de impotência, ironia e desolação, o personagem governista Vicente Lemes chamava Pedro Melo de “Vice-rei do Norte [de Goiás]”, pois, quem mandava no norte do estado era ele (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 108). A perspectiva do romance se confirma em documentos da época da batalha, como a mensagem dirigida por João Alves de Castro ao Congresso Legislativo de Goiás. O juiz Celso Calmon, chefe da expedição enviada à vila para apurar os crimes dos Wolneys - os Melos na narrativa -, ordenou a prisão preventiva de membros do clã. No cumprimento da diligência, o patriarca Joaquim Ayres Cavalcante Wolney, Pedro Melo no romance, acabou assassinado pela polícia. Mesmo dispondo de cinquenta soldados da força policial de Goiás, que estavam estacionados no Duro, o juiz Calmon saiu às pressas da vila em 1º de janeiro de 1919 com receio da represália de Abílio. Fez bem, pois os soldados não resistiram ao cerco do exército de jagunços. Na mensagem enviada ao Congresso naquele ano, João Alves de Castro só pôde confessar o fracasso do governo nas regiões afastadas: “A força militar continua a ser insuficiente para atender as necessidades do serviço e é este o motivo por que não consegui instalar uma companhia no norte do estado, providência que se torna urgente” (GOIÁS, 1919, p. 86).

A batalha de São José do Duro: A “jagunçada era muito acostumada com luta”

No romance, a briga dos Melos com os órgãos locais instituídos pela situação caiadista se iniciou com o processo de inventário de Clemente Chapadense, gente dos Melos que foi traído e assassinado por eles. Bens estavam sendo ocultados pela viúva, Rita Chapadense, ou melhor, por seu advogado, Artur Melo. O clã pretendia que a viúva pagasse menos imposto causa mortis ou queria abocanhar parte de suas terras e bois. Talvez um pouco dos dois. O juiz Valério Ferreira, a requerimento do coletor estadual Vicente Lemes, intimou Rita a emendar o rol de bens. Artur Melo, então, precisou resolver as coisas à sua maneira. No ar pairava a sensação de que algo grave ocorreria. Vicente “sabia que os Melos estavam reunindo gente e desconfiava que pretendessem atacar o cartório” (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 55). Essa prática de queimar o cartório, aliás, era bem comum entre os potentados da região: “- Em São Marcelo meteram fogo no cartório e mataram a família inteira do escrivão, que estava dentro. Foi o velho, a mulher e parece que cinco filhos. Uma desgraça!” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 28).

Mas Artur, em vez do fogo das tochas, se valeu das armas de fogo: cercou de jagunços a casa, que abrigava a vara de órfãos e sucessões e a coletoria estadual, e não saiu até ter a resolução que desejava. Com repetições Mauser e Comblain voltadas contra as suas cabeças, Vicente validou os bens apresentados e o juiz sentenciou em conformidade com a coletoria: “- Aqui, é preciso que vocês entendam de uma vez por todas, aqui quem manda sou eu, meu pai e meus amigos. Esse pessoal do Foro anda mangando, mas minha paciência chegou ao fim”, disse Artur (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 56). O juiz e o coletor não foram assassinados porque Vicente, apesar de oposição, era sobrinho de Aninha, esposa do coronel Pedro, e era casado com Lina, sobrinha do velho. Artur ainda aproveitou a ocasião para “levar alguns processos de eleitor que esse juizinho andou indeferindo” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 62).

Imediatamente após o assalto, o juiz enviou uma carta ao coronel Eugênio Jardim, em Goiás. Contava sobre a morte de Clemente, a ocultação de bens no inventário e o ataque às instituições locais: “Relatando tudo, pedia a carta garantia para o exercício das funções públicas e para a vida das autoridades estaduais” (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 63). Mas o detalhe é o seguinte: a correspondência seguiria por um portador a cavalo até Barreiras, Bahia, de onde se mandaria a mensagem por telégrafo. Pela estrutura viária de hoje, utilizando as rodovias TO-040, BA-460 e BR-020, são 240 quilômetros de distância (GOOGLE MAPS, 2024aGOOGLE MAPS. Dianópolis (TO) a Barreiras (BA). 2024a. Disponível em: https://www.google.com/maps/dir/Dian%C3%B3polis,+TO/Barreiras,+BA/@-11.8788012,-46.4714236,9z/data=!3m1!4b1!4m14!4m13!1m5!1m1!1s0x9336ffe0a0958cc1:0x28cfbac637a2c18d!2m2!1d-46.8202068!2d-11.6244361!1m5!1m1!1s0x75f8aae10d4ae69:0x97810f362c2db8c5!2m2!1d-44.9953475!2d-12.1477483!3e0. Acesso em: 14 fev. 2024.
https://www.google.com/maps/dir/Dian%C3%...
). Na época, o trajeto era vencido com bastante dificuldade. Os transportes eram precários: feitos em sua maioria por veredas abertas em meio das matas. Um cavaleiro gastava dez dias para ir e voltar de Barreiras (ÉLIS, 1974b [1956], p. 81). Contando o tempo que o mensageiro estacionaria esperando deliberação do governo para retornar a São José do Duro com a notícia, se passaria muito tempo. Valério Ferreira e Vicente Lemes, então, abandonaram as suas funções e fugiram para as suas fazendas. Retornariam quando obtivessem ajuda: “Para voltar ao exercício da função, [Valério em carta a Goiás] exigia segurança, soldado bem armado e disposto a matar quem tentasse obrigar uma autoridade a fazer o que não era permitido” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 64). Junto com eles foram amigos e correligionários, como Cláudio Ribeiro, do cartório, Júlio de Aquino, Moisés Melo, Argemiro Félix, dona Benedita, sogra de Vicente e cunhada de Pedro Melo, que foi espoliada pelo coronel quando seu marido morreu, e tantos outros. Depois de todo esse esforço, enfim, os Caiados mandariam de Goiás uma comissão para apurar e punir os crimes.

É verdade que essa não seria a primeira comissão que o governo goiano enviaria a São José do Duro. A primeira ocorreu quando Pedro Melo assassinou, por uma rixa boba, o sobrinho Vigilato. O delegado de polícia fugiu para não se comprometer com o patriarca: “Valério foi à procura do delegado de polícia para fazer o auto de corpo de delito, mas, receoso, o homem já estava longe” (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 18). A iconografia jurídica da justiça vendada, tão simbólica para o legalismo moderno (HAYAERT, 2018HAYAERT, Valérie. “The Paradoxes of Lady Justice’s Blindfold”. In: MARTYN, Georges et al. (ed.). The Art of Law: Artistic Representations and Iconography of Law and Justice in Context, from the Middle Ages to the First World War. Cham: Springer, 2018.; PROSPERI, 2007PROSPERI, Adriano. “Giustizia bendata”. In: LACCHÈ, Luigi et al. (a cura di). Penale giustizia potere: Metodi, ricerche, storiografie: per ricordare Mario Sbriccoli. Macerata: Edizioni Università Macerata, 2007.; SBRICCOLI, 2009SBRICCOLI, Mario. La benda della giustizia: Iconografia, diritto e leggi penali dal Medioevo all’età moderna. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, Firenze, vol. 88, n. 1, pp. 155-207, 2009.), tinha um significado bem distinto e específico no sertão de Goiás: o de efetivamente fechar os olhos para os fatos. Abandonar os postos públicos para não presenciar crimes parece que era algo comum, a exemplo do que é narrado neste outro caso de O tronco: “- Seu alferes, a cidade não tem juiz, não tem promotor, não tem delegado, num tem nem vigário, seu alferes. Com a tarimba que tinha, Severo sabia que quando uma cidade ficava assim à matroca era porque os graúdos pretendiam matar alguém” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 125). Diante da morte de Vigilato, o juiz Valério não pôde instaurar processo criminal por ausência do delegado para fazer o inquérito.15 15 Pelo artigo 41, §5º e artigo 42, §2º do código de processo criminal goiano de 1901, competia ao delegado de polícia “proceder a inquérito policial e a toda as diligências para o descobrimento dos fatos criminosos e suas circunstâncias, recapitulando e transmitindo em prazo breve todos os esclarecimentos ao promotor público, por intermédio da autoridade formadora de culpa”. Enviou, então, uma representação ao governo de Goiás, pedindo providências (ÉLIS, 1974b [1956], p. 20). Foi quando veio a primeira comissão a Duro, sendo liderada pelo juiz de direito Hermínio Lobato. Mas, logo na sua chegada, sucedeu-se uma ameaça velada:

Logo no banquete de recepção que o Coronel Pedro Melo lhe ofereceu [ao juiz], […] no discurso de saudação, Artur disse que o juiz se considerasse perfeitamente garantido, pois os Melos dispunham de cem homens armados e municiados para sustentar qualquer ato que emanasse da comissão. Diante de tal afirmativa, o dr. Hermínio ficou inquieto: com ele tinham vindo trinta praças, esses sim para garantir seus atos. Logo, os homens de Artur Melo eram uma ameaça à justiça (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 21).

O juiz de direito designado pelo governo do estado para apurar o assassinato de Vigilato nada pôde fazer. Os Melos eram a lei e a justiça de São José do Duro:

A testemunha seguinte era Resto-de-Onça, capanga de Pedro Melo, um dos que participaram diretamente da morte de Vigilato e que deveria estar apontado como réu. Ao assentar-se no tamborete, em frente do juiz, alguma coisa tombou ruidosamente no chão. Dr. Hermínio vagarosamente moveu o vasto corpanzil, tirou os óculos que só permitiam ver próximo e arregalou os olhos. No chão estava a imensa garrucha de Resto-de-Onça, que, sem pressa, repuxando a cara com suas caretas habituais de tarado, pegou a arma, soprou os ouvidos e meteu no largo correão que servia de cinta. Dr. Hermínio compreendeu a impossibilidade de apurar ali qualquer coisa. Os Melos eram os donos de tudo. […] Nisso saiu a sentença de impronúncia do coronel Pedro Melo […]. Tais fatos serviram para ensinar a Valério Ferreira o que era a justiça e a lei (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 22).

A falta de policiamento na vila, a distância em relação à Cidade de Goiás e os improfícuos meios de transporte e comunicação contavam a favor do patriarca local. Bernardo Élis, aliás, foi muito perspicaz ao mobilizar esses elementos como fatores que favoreciam o mando dos Melos. Pesquisa documental produzida por Francisco Itami Campos (2003CAMPOS, Francisco Itami. O coronelismo em Goiás. Goiânia: Vieira, 2003 [1983]. [1983], p. 31) verificou que a força pública estadual de todo estado de Goiás contava, em 1917, com apenas 419 membros. Para efeito de comparação, em São Paulo havia 8.618. A situação dos transportes atestada em 1917 pelo presidente do estado de Goiás Joaquim Rufino Ramos Jubé era calamitosa: “As comunicações do nosso estado, quer de seus municípios com os outros, quer com os estados limítrofes, são ainda muito difíceis, não possuindo o estado estradas de rodagem e carroçáveis, e sendo o transporte ainda feito em carros de boi e em costas de animais” (GOIÁS, 1917GOIÁS. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo do estado de Goyas na 1ª sessão da 8ª legislatura em 13 de maio de 1917. Goyas: Casa Progredior, 1917., p. 18).16 16 Luís Palacín e Maria Augusta Sant’Anna Moraes (2008 [1975], p. 137) atestam que a situação não mudaria muito dez anos depois: “Uma geografia publicada em Goiás em 1927 resumia o problema das vias de comunicação: ‘Quase nada possui este estado. Em geral, os transportes são feitos por carros de boi em estradas de rodagem, geralmente mal construídas e piores conservadas. Estradas carroçáveis são muito poucas, mesmo assim, este ano não poderão ser trafegadas, devido às chuvas que assolam o estado. Atravessando quatro municípios goianos, vê-se a Estrada de Ferro de Goiás, que muito tem desenvolvido as zonas que atravessa. É irrisório, mas poderia ser pior. Nos grandes caudais, a navegação é feita, na sua maioria, em barcos antiquados. Existem poucas barcas a vapor, e estas são particulares’”. Dessa conjuntura dos meios de transporte, registraram-se histórias bem inusitadas e anedóticas. Luís Palacín (1990PALACÍN, Luís. Coronelismo no extremo norte de Goiás. São Paulo: Loyola, 1990., p. 15) conta que, em 1909, o padre João Lima foi eleito deputado estadual de Goiás. Morando em Boa Vista, norte do estado, e devendo viajar para a capital Cidade de Goiás, “decidiu que o caminho mais curto era o mais longo: de bote pelo [rio] Tocantins até Belém, depois, embarcado até o Rio e, do Rio, pela estrada de ferro até Uberlândia, e daí a lombo de burro a Goiás”. É bom termos em mente que Goiás ainda estava na época em que as distâncias eram calculadas em dias ou meses de viagem.

Para se ter ideia da contribuição desses fatores para o mandonismo dos Melos na vila do Duro, há um evento exemplar na trama de O tronco. A vila de São José do Duro fazia fronteira com a Bahia. Por isso, a coletoria de Vicente era estratégica para recolher impostos de produtos produzidos no estado de Goiás, tendo em vista que o artigo 9º da Constituição brasileira de 1891BRASIL. “Constituição Federal de 1891”. In: MINAS GERAIS (org.). Constituição Federal, Constituição do estado de Minas, Regimento interno da Câmara dos Deputados do Estado de Minas Geraes e Regimento comum. Ouro Preto, MG: Silva Cabral, 1891. pp. 1-61. determinava a competência dos estados para criar impostos sobre exportação de mercadorias de sua própria produção. Certa vez, então, o boiadeiro João Rocha, gente dos Melos, se indispôs com Vicente devido ao pagamento de imposto de exportação. Rocha levava 1,2 mil cabeças de boi para a Bahia, mas queria pagar a menor, apenas sobre quinhentos bois. Vicente bateu os pés e o boiadeiro dos Melos virou uma fera, contrabandeando todos os bois. De nada adiantariam os procedimentos jurídicos que Vicente tentaria usar para executar o auto de contrabando. Não havia força pública estacionada no Duro e a que viria de Goiás demoraria demais.

- Pois eu não pago é nada, seu coletor. Eu me chamo João Rocha, assisto na Fazenda Pedreira, distrito de Santa Rita do Rio Preto. Faça comigo o que entender! - Passou a perna na mula ali na porta, tiniu as esporas, deu dois tiros no batente da coletoria e sumiu no mundo. Vicente lavrou o auto de contrabando, testemunhou-o, enviou a Goiás. Levaria dois meses para chegar lá, dois para ser informado, mais dois para retornar ao Duro. Aí Vicente ia requerer força para garantir a execução. Os soldados viriam de Goiás a pé, gastando cerca de três meses na marcha. “Uma besteira o diabo daquele auto”, pensava Vicente (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 27).

Mas como seria o destino da segunda comissão enviada à vila de São José do Duro, a que vinha para apurar os crimes relacionados à morte e à fraude no inventário de Clemente Chapadense e ao assalto à vara de órfãos e sucessões? Conseguiria melhor êxito contra os todo-poderosos Artur e Pedro Melo? Bom, só para chegar à vila já seria difícil. Embora o romance não faça alusão à distância, sabe-se que o menor percurso entre São José do Duro e a Cidade de Goiás, utilizando as rodovias de que dispomos atualmente, é de 780 quilômetros (GOOGLE MAPS, 2024bGOOGLE MAPS. Dianópolis (TO) a Goiás (GO). 2024b. Disponível em: https://www.google.com/maps/dir/Dian%C3%B3polis,+Tocantins,+77300-000/Goi%C3%A1s,+GO/@-13.1179286,-48.9999329,7z/data=!4m14!4m13!1m5!1m1!1s0x933654019f30b1ad:0x80b324e94a739d28!2m2!1d-46.8201549!2d-11.6260113!1m5!1m1!1s0x9367790ac413c979:0xbeb1308cbb66ab22!2m2!1d-50.1403832!2d-15.93397!3e0. Acesso em: 14 fev. 2024.
https://www.google.com/maps/dir/Dian%C3%...
). Em linha reta, são aproximadamente 600 quilômetros de distância entre as cidades. Evidentemente, a rota abstrata de uma reta é inviável de ser percorrida em solo diante dos obstáculos naturais inerentes a qualquer terreno. No caminho feito pela expedição, Guilherme Coelho (2008COELHO, Guilherme Ferreira. Expedição histórica nos sertões de Goyas: São José do Duro. Goiânia: ICBC, 2008 [1937]. [1937], p. 51), escrivão de polícia de existência real que fez parte da comissão, atestou que, pelos seus cálculos, foi necessário atravessar a incrível marca de 906 quilômetros.

Na ficção de Bernardo Élis, apenas o juiz Augusto César Carvalho de Arruda, que chefiava a comissão, e os oficiais da polícia estadual vinham montados em animais (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 70). Os soldados rompiam as centenas de quilômetros com o calcanhar que Deus lhes deu. O narrador nos informa que a viagem, que mais parecia uma peregrinação, gastou em torno de sessenta dias (ÉLIS, 1974b [1956], p. 75), informação que Bernardo Élis provavelmente colheu de Guilherme Coelho (2008COELHO, Guilherme Ferreira. Expedição histórica nos sertões de Goyas: São José do Duro. Goiânia: ICBC, 2008 [1937]. [1937], pp. 52, 84), segundo o qual a jornada da expedição começou em 30 de julho e terminou em 4 de outubro de 1918. Seria bom que a comissão viesse com força policial suficiente para derrotar Pedro Melo. Caso contrário, não haveria como solicitar reforços a Goiás, pois, naquela época do ano, “um cavaleiro para ir de Duro a Goiás e voltar, não gastaria menos de quatro meses, prazo que seria dilatado pelas chuvas que estavam entrando” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 81).

Pedro Melo deixou a casa na vila para se acoitar na Grota, uma de suas fazendas. Ali reuniu o seu clã. Estavam presentes os seus profissionais das armas, homens cuja única função era defender o patriarca e atacar em seu nome. Os principais eram Mulato, Aleixo, Resto-de-Onça, Damião e Tito. A sua gente, ou seja, os vaqueiros, boiadeiros, tropeiros e outros homens que trabalhavam para Pedro de Melo em diversas funções nas fazendas, como Belisário e Casemiro, foram convocados a deixar suas atividades para pegar em armas em defesa do chefe (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 50). Pedro Melo ainda contratou cangaceiros, a exemplo do bando de Miguel Umbuzeiro (ÉLIS, 1974b [1956], p. 72),17 17 Peço licença para referenciar um artigo de minha autoria, “Literatura ou antropologia criminal?”, publicado em 2019 na Mana. Nele analiso, utilizando como principais fontes os romances Pedra Bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego, a estreita relação que proprietários de terras mantinham com cangaceiros. e ainda tinha o apoio de outros proprietários aliados do clã, fossem da família ou amigos, que vieram para a Grota com seus jagunços e capangas. Os mais importantes eram Abílio Batata, Tozão, Roberto Dourado e Joaquim Alves Leandro, “o homem mais rico da região. Muito poderoso. Sua fazenda em Natividade imitava um palácio, com cortinas de veludo, vasilhame de prata e ouro” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 181).

A força policial estadual enviada para garantir as deliberações do juiz, quando chegou a Arraias, tinha meia centena de soldados, contando os que saíram de Goiás e os que se juntaram pelo caminho (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 75). Esse quantitativo mostra que o enredo procurou ser fiel à realidade. Relatório enviado pelo presidente por João Alves de Castro ao Congresso Legislativo do Estado de Goiás em 1919 atesta que “seguiram quarenta praças do batalhão de polícia para o norte, que deverão aguardar ordens em Arraias e com o juiz seguiram mais dez desta capital” (GOIÁS, 1919GOIÁS. Mensagem enviada ao Congresso Legislativo do estado de Goyas na 3ª sessão da 8ª legislatura em 13 de maio de 1919. Goyas: Correio Official, 1919., p. 57). No enredo de O tronco, ao contrário dos Melos, os governistas não contaram com apoio de muitos coronéis locais. O único que veio em auxílio foi Leão de Aquino, com trinta capangas (ÉLIS, 1974b [1956], p. 175). Não encontrei registros que atestem a correspondência desse personagem a algum coronel local correligionário dos Caiados. Mas é bem provável que aliados do tipo tenham engrossado o séquito governista. No romance, portanto, o governo dispunha de oitenta homens, além dos próprios cidadãos da vila que estivessem ao seu lado, que não parecem ser muitos, tanto pela indisposição em desagradar os Melos, ou mesmo porque, segundo levantamento de Nasr Fayad Chaul (1998CHAUL, Nasr Fayad. “Apresentação”. In: CHAUL, Nasr Fayad (org.). Coronelismo em Goiás. Goiânia: Kelps, 1998., p. 13), a vila não contava com mais de trinta casas na época. É um cálculo razoável supormos que, no máximo, o governo estadual tinha cem homens em armas.

Artur e Pedro Melo falavam ter entre cem e trezentos jagunços. Mas ainda havia o pessoal de Abílio Batata e dos outros aliados. Bernardo Élis, em vez apresentar a quantidade exata de jagunços que o clã dos Melos dispunha, deu voz a vários personagens, que, de acordo com as suas emoções e interesses, poderiam exagerar, subestimar ou mesmo inventar o número. Um afirmava que: “- Lá na Grota eu vi o coronel Artur Melo, Abílio Batata, Miguel Umbuzeiro… Tem mais de trezentos homens, tudo de Winchester nova e bala que é um despropósito” (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 177). Outros “diziam que eram uns quinhentos, mas não estariam com exageros?” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 215). Os personagens também comparavam os exércitos: por um lado, “o Duro não dispunha nem de um terço dos homens de Abílio Batata” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 161) e a “jagunçada era muito acostumada com luta e diziam que tinha muita gente, era três dobro dos soldados, tudo com Winchester nova, com bala boa” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 199). Do outro lado, “os soldados estão numa medorréia danada, as Comblains são velhas e imprestáveis, […] a munição não presta” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 191). Mas, no final das contas, todos sabiam que o contingente dos Melos era muito maior, inclusive o próprio juiz Carvalho, que, após instruir o processo, hesitava em pedir a prisão preventiva de Pedro Melo, com receio de a polícia não conseguir cumprir a ordem e ele desapontar o governo: “Na verdade, as provas estavam nos autos, os indiciados ali pertinho, no sítio da Grota, mas o diabo é que a Grota era uma fortaleza cheia de homens armados e municiados. Se tentasse atacar a Grota, a polícia seria derrotada, sua missão fracassaria, seria a perda da confiança de Totó Caiado, seria a perda do lugar de desembargador” (ÉLIS, 1974b [1956], p. 90).

Sem forças, o juiz Carvalho fez um acordo com Artur Melo, algo totalmente extralegal, não previsto no código de processo penal goiano,18 18 Os códigos de processo penal eram, na Primeira República, de competência estadual. Ver análise comparativa dos códigos estaduais feita por João Régis Nodari (2023). e que, na verdade, repetia a forma negociada das origens do direito penal e processual penal moderno, ainda débil para impor a jurisdição (ALESSI, 2011ALESSI, Giorgia. “O direito penal moderno entre retribuição e reconciliação”. In: DAL RI JÚNIOR, Arno; SONTAG, Ricardo (org.). História do direito penal entre medievo e modernidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.; ZORZI, 2011ZORZI, Andrea. “Negociação penal, legitimação jurídica e poderes urbanos na Itália comunal”. In: DAL RI JÚNIOR, Arno; SONTAG, Ricardo (org.). História do direito penal entre medievo e modernidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.). O juiz acordou que não iria pronunciar Artur, Pedro e o seu pessoal pelos crimes, com exceção dos irmãos de Clemente Chapadense, Olímpio e Calixto, que já estavam foragidos (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 109). Em troca, os Melos dispersariam os jagunços e compareceriam em juízo para dar termo ao processo. Na verdade, o juiz mentia. Armava uma emboscada. Prenderia o velho e o filho assim que pisassem no Duro e os mandaria imediatamente para Goiás. Mas Artur também não era ingênuo. Fingia que desmobilizava a tropa, mas apenas a recuava para a região do Açude. Mas, nessa operação, os Melos ficaram, por um momento, desguarnecidos. Carvalho orientou o promotor a pedir a prisão preventiva dos réus. A Grota amanheceu cercada pela polícia, que, contra a ordem do juiz, matou o patriarca desarmado. Artur conseguiu fugir. O juiz Carvalho sentenciou, pronunciando Artur Melo, João Rocha, Hugo Melo e os irmãos Chapadenses. Deu por encerrado o seu trabalho no Duro. Agora seria com a polícia executar a ordem. Foi-se embora para cidade de Goiás, deixando a vila sob a ira da vingança de Artur. A polícia tentou evitar o ataque de Artur ao Duro: sequestrou nove membros importantes do seu clã, ameaçando matá-los em caso de invasão. Mas isso não foi suficiente para evitar a ofensiva. A força policial caiu na madrugada do segundo dia da luta. Os nove, que estavam presos no tronco, foram assassinados pela polícia antes de ela fugir da vila.

Considerações finais: “Sabe onde fica o Duro? No fim do mundo. Para essa gente não há lei, não há nada”

“Esse personagem da vida local, [o coronel], o que me parece sobretudo foi um homem mais fraco do que forte, precisando, por isso, de apoio do governo do Estado para fortalecer sua posição, para afirmar sua hegemonia no conflito de âmbito municipal e, depois, na trajetória subsequente, para o âmbito estadual e, eventualmente, para o âmbito federal” (LEAL, 1980LEAL, Victor Nunes. “O coronelismo e o coronelismo de cada um”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 23, n. 1, pp. 11-14, 1980., p. 13). Com essas palavras, Victor Nunes Leal reafirmava, em 1980LEAL, Victor Nunes. “O coronelismo e o coronelismo de cada um”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 23, n. 1, pp. 11-14, 1980., o conceito de coronelismo que formulara mais de trinta anos antes. Sua principal característica seria a política de compromissos estabelecida entre o poder estatal e o poder privado dos coronéis governistas. Mas, diante do que foi investigado em O tronco, com o devido cruzamento de fontes, conclui-se que essa chave interpretativa não explica o comportamento acachapante do coronel Artur Melo, ou de sua inspiração histórica, Abílio Wolney.

Considerando a informação de Itami Campos, segundo a qual Goiás dispunha de efetivo policial de 419 homens na época do conflito, pode-se calcular que em torno de 12% desse total estavam mobilizados na campanha de São José do Duro, número relativo muito expressivo considerando que a polícia estadual também precisava guarnecer a capital e um território interiorano extenso. Entre os extremos norte e sul do território de Goiás, contavam-se, em linha reta, em torno de 1,6 mil quilômetros de extensão (Mapa 1), visto que o atual estado de Tocantins, na época, lhe pertencia. O governo goiano fez o que as suas forças militares permitiam, mas, nessas condições, não conseguiu frear o ímpeto do mandão. Assim, diferente da leitura de Victor Nunes Leal, não há como dizer que os Melos precisavam do governo para afiançarem a sua hegemonia local. Pelo contrário, mesmo contra a máquina pública, que estava à disposição do governo estadual, o clã dos Melos impôs o seu predomínio na vila de São José do Duro.

Mapa 1
Distância de 1,6 mil quilômetros, em linha reta, entre os extremos norte e sul de Goiás

Acredito que os limites do conceito de coronelismo de Victor Nunes Leal já estavam delineados em 1948. Após indicar que o entendimento completo do coronelismo dependeria de estudos das particularidades locais e das variações no tempo, Coronelismo, enxada e voto generalizou a todo o Brasil as conclusões que obteve a partir da análise da documentação que Leal dizia ser a mais acessível para si (LEAL, 2012LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1948]. [1948], p. 43), provinda, ao que parece, do litoral do Sudeste e do Nordeste. O conceito de Leal também não abarca a atuação de muitos outros célebres coronéis do nosso grande sertão, sobre os quais não pude me deter neste artigo. Horácio de Matos, da Chapada Diamantina, por exemplo, arrasou o inimigo Militão Rodrigues Coelho, que, além de jagunços, tinha apoio de 150 soldados de Salvador (CARONE, 1972CARONE, Edgard. A República Velha (instituições e classes sociais). São Paulo: Difel, 1972., p. 261; CHAGAS, 1961CHAGAS, Américo. O chefe Horácio de Matos. São Paulo: Artes Gráficas Bisordi, 1961.; MORAES, 1991MORAES, Walfrido. Jagunços e heróis. Salvador: Egba, 1991 [1963]. [1963]). Franklin Lins de Albuquerque, de Pilão Arcado, sustentou por anos luta contra a família de José Correia de Lacerda, situacionista que, em um de seus assaltos, em 1918, conseguiu suporte de tropas do governo estadual, mas, ainda assim, perdeu a guerra privada (LINS, 1983LINS, Wilson. O médio São Francisco: Uma sociedade de pastores guerreiros. São Paulo: Editora Nacional, 1983 [1952]. [1952], p. 59). No conflito cearense conhecido como Sedição de Juazeiro, o padre Cícero, em aliança com o deputado federal Floro Bartolomeu e o clã dos coronéis Aciólis, marchou de Juazeiro do Norte a Fortaleza para depor o governador Franco Rabelo (LIRA NETO, 2009LIRA NETO [João de Lira Cavalcante Neto]. Padre Cícero: Poder, fé e guerra no sertão. Companhia das Letras, 2009., p. 350 ss.; SOBREIRA, 1968SOBREIRA, Padre Azarias. O patriarca de Juazeiro. Fortaleza: Nihil Obstat, 1968., p. 213 ss.).

Alegando defender o município de Princesa contra agressões de natureza política promovidas pelo governo paraibano de João Pessoa, o coronel José Pereira, que era deputado estadual, juntou aliados e jagunços em armas e se fortificou na cidade, promovendo a famosa Revolta de Princesa. A força paraibana, que contava com 870 homens (RODRIGUES, 1981RODRIGUES, Inês Caminha Lopes. A Revolta de Princesa: Poder privado × poder instituído. São Paulo: Brasiliense, 1981., p. 29), apesar de proporcionalmente muito maior do que a goiana, não foi capaz de retomar a cidade. O romancista José Américo de Almeida, que ocupava o cargo de secretário de segurança pública da Paraíba, registrou as dificuldades que enfrentou para armar a força policial estadual: “Eu esperava, impacientemente, a munição prometida, e nada de chegar. Faltava também armamento. Vinha aproveitando rifles velhos e o arsenal da campanha de Floro Bartolomeu, enterrado no Ceará” (ALMEIDA, 2005ALMEIDA, José Américo de. O ano do nego (memórias). Paraíba: Fundação Casa de José Américo, 2005 [1968]. [1968], p. 91). No documentário O homem da areia (1982O HOMEM da areia. Direção: Vladimir Carvalho. [S. l.: s. n.], 1982. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TlPgb3VRAaw. Acesso em: 14 fev. 2024.
https://www.youtube.com/watch?v=TlPgb3VR...
, min. 26), de Vladimir Carvalho, o filho de José Pereira confessou a existência de bandos armados mantidos por seu pai, embora a justificativa de proteção da cidade contra a criminalidade seja frágil: “Meu pai foi um homem que teve sempre um contingente armado. Não a seu serviço, mas a serviço da Paraíba, do combate ao cangaceirismo. E por que, você há de perguntar? Porque a polícia era deficiente, como deficiente ela ainda é hoje”. Por meses a fio, a situação perdurou e o desfecho ocorreu por obra do acaso. Devido a assuntos pessoais nada relacionados à Revolta de Princesa, João Pessoa foi assassinado. O governo federal interveio no estado. Como o presidente da República, Washington Luís, era aliado de José Pereira, os revoltosos depuseram as armas para o exército entrar na cidade.

Seria possível qualificar esses coronéis, chefes de verdadeiros exércitos de jagunços, como relativamente fracos perante o poder estatal? Creio que não. Portanto, é preciso estabelecer uma tipologia do coronelismo, distinguindo o “coronelismo de cada lugar”. Ao menos dois tipos precisam estar nítidos. O primeiro para regiões do Brasil República que, em razão de serem centrais em termos político-administrativos ou terem relevância econômica, ou ainda por estarem perto de cidades com essas características, contavam com aparato estatal mais presente e fortalecido. O outro tipo de coronelismo abrangeria o grande sertão dos interiores mais longínquos, de institucionalidade rarefeita e impotente. Terras do sem fim representaria o primeiro; O tronco, o segundo. Nos dois tipos de coronelismo, a oligarquia governista gozava daquilo que Bernardo Élis chamou de “delícias do situacionismo”, com a concessão de regalias aos correligionários: não pagava impostos, seus crimes não eram investigados, seus parentes e amigos eram empossados nos cargos públicos etc. A principal distinção entre eles, no entanto, estava na incapacidade de a situação estadual dos sertões mais distantes de perseguir os inimigos mais poderosos com o auxílio da máquina pública, pela razão de ela ser ainda muito atrofiada. No segundo tipo de coronelismo, para o qual reabilitar conclusões da “tese privatista” parece inevitável, o potentado local enfrentava com êxito juízes, coletores de impostos, promotores, delegados e até os batalhões de polícia. Como o Vice-rei do Norte dizia, os Caiados mandavam em Goiás; no Duro, o poder era dele. “Por cima, sabe onde fica o Duro? No fim do mundo. […] Para essa gente não há lei, não há nada” (ÉLIS, 1974bÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956]. [1956], p. 73).

Agradecimentos

Agradeço aos valiosíssimos auxílios, comentários e críticas de Ricardo Sontag, Anna Clara Lehmann Martins, Carlos Manuel Petit Calvo, Felipe Cotrim, Ivan de Andrade Vellasco, Karine Salgado, Luís Fernando Lopes Pereira, Mariana de Moraes Silveira, Samuel Rodrigues Barbosa e Vitor Sartori. Agradeço também às contribuições dos avaliadores e editores da Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Este trabalho foi desenvolvido a partir de minha pesquisa de doutorado, O Estado e a casa patriarcal, defendida em 2023MANSUR, João Paulo. O Estado e a casa patriarcal: Caminhos do legalismo nos sertões brasileiros da Primeira República. 2023. 311 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023. e financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Referências

  • AIRES NETO, Abílio Wolney. No tribunal da história. Anápolis, GO: Biblioteca Virtual AW, 2002.
  • AIRES NETO, Abílio Wolney. O diário de Abílio Wolney. Goiânia: Kelps, 2006.
  • ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2011.
  • ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de. “Um sertanejo e o sertão”. In: ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de (org.). Um sertanejo e o sertão: Moxotó brabo: Três ribeiras; reminiscências e episódios do quotidiano no interior de Pernambuco. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989 [1957].
  • ALESSI, Giorgia. “O direito penal moderno entre retribuição e reconciliação”. In: DAL RI JÚNIOR, Arno; SONTAG, Ricardo (org.). História do direito penal entre medievo e modernidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
  • ALMEIDA, José Américo de. O ano do nego (memórias). Paraíba: Fundação Casa de José Américo, 2005 [1968].
  • AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Rio de Janeiro: Record, 2006 [1943].
  • BARREIRA, César. “Velhas e novas práticas do mandonismo local: Um diálogo com Maria Isaura Pereira de Queiroz”. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, vol. 30, n. 1-2, pp. 37-43, 1999.
  • BOTELHO, André; CARVALHO, Lucas Correia. “A sociedade em movimento: Dimensões da mudança na sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz”. Sociedade e Estado, Brasília, DF, vol. 26, pp. 209-238, 2011.
  • BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português. Lisboa: Edições 70, 2011 [1969].
  • BRAGA, Pauliane de Carvalho. Entre sertões: Comunismo e campesinato na obra de Bernardo Élis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.
  • BRASIL. “Constituição Federal de 1891”. In: MINAS GERAIS (org.). Constituição Federal, Constituição do estado de Minas, Regimento interno da Câmara dos Deputados do Estado de Minas Geraes e Regimento comum. Ouro Preto, MG: Silva Cabral, 1891. pp. 1-61.
  • BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2019.
  • CAMPOS, Francisco Itami. O coronelismo em Goiás. Goiânia: Vieira, 2003 [1983].
  • CARONE, Edgard. “Coronelismo: Definição histórica e bibliografia”. Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, vol. 11, n. 3, pp. 85-92, 1971.
  • CARONE, Edgard. A República Velha (evolução política). São Paulo: Difel, 1983 [1971].
  • CARONE, Edgard. A República Velha (instituições e classes sociais). São Paulo: Difel, 1972.
  • CARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: Uma discussão conceitual”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 40, n. 2, pp. 229-250, 1997.
  • CHAGAS, Américo. O chefe Horácio de Matos. São Paulo: Artes Gráficas Bisordi, 1961.
  • CHARTIER, Roger. À beira da falésia: A história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
  • CHAUL, Nasr Fayad. “Apresentação”. In: CHAUL, Nasr Fayad (org.). Coronelismo em Goiás. Goiânia: Kelps, 1998.
  • COELHO, Guilherme Ferreira. Expedição histórica nos sertões de Goyas: São José do Duro. Goiânia: ICBC, 2008 [1937].
  • COSTA, Aramis Ribeiro. “Um romance de coronéis e jagunços”. In: LINS, Wilson (org.). Os cabras do coronel. Salvador: Highway Sans, 2014 [1964].
  • DUARTE, Nestor. A ordem privada e a organização política nacional. São Paulo: Editora Nacional, 1966 [1939].
  • ÉLIS, Bernardo. “A vida são as sobras”. Remate de Males, Campinas, SP, vol. 17, n. 1, pp. 15-116, 1997.
  • ÉLIS, Bernardo. “Literatura e participação: entrevista. [julho 1982]”. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (org.). Bernardo Élis. São Paulo: Abril Educação, 1983.
  • ÉLIS, Bernardo. “O autor e sua obra” [1965]. In: ÉLIS, Bernardo (org.). O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974a [1956].
  • ÉLIS, Bernardo. O tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974b [1956].
  • FERREIRA, Gracy Tadeu da Silva. “O coronelismo em Goiás (1889-1930): As construções feitas do fenômeno pela história e literatura”. In: CHAUL, Nasr Fayad (org.). Coronelismo em Goiás. Goiânia: Kelps, 1998.
  • GALVÃO, Francisco. Terra de ninguém: Romance social do Amazonas. Manaus: Valer, 2002 [1934].
  • GOIÁS. Codigo de processo criminal do estado de Goyas. Cidade de Goyaz: [s. n.], 1901. Disponível em: https://legisla.casacivil.go.gov.br/api/v1/arquivos/7026 Acesso em: 14 fev. 2024.
    » https://legisla.casacivil.go.gov.br/api/v1/arquivos/7026
  • GOIÁS. Constituição do estado da Goyaz. Cidade de Goyaz: [s. n.], 1891. Disponível em: https://www.casacivil.go.gov.br/images/imagens_migradas/upload/arquivos/2011-08/constituicao-1891.pdf Acesso em: 14 fev. 2024.
    » https://www.casacivil.go.gov.br/images/imagens_migradas/upload/arquivos/2011-08/constituicao-1891.pdf
  • GOIÁS. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo do estado de Goyas na 1ª sessão da 8ª legislatura em 13 de maio de 1917. Goyas: Casa Progredior, 1917.
  • GOIÁS. Mensagem enviada ao Congresso Legislativo do estado de Goyas na 3ª sessão da 8ª legislatura em 13 de maio de 1919. Goyas: Correio Official, 1919.
  • GOIÁS. Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Antonio Manoel de Araujo e Mello passou a administração da província ao seu sucessor o Exm., Sr. José Martins Pereira de Alencastre no dia 22 de abril de 1861. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Constitucional, 1861.
  • GOOGLE MAPS. Dianópolis (TO) a Barreiras (BA). 2024a. Disponível em: https://www.google.com/maps/dir/Dian%C3%B3polis,+TO/Barreiras,+BA/@-11.8788012,-46.4714236,9z/data=!3m1!4b1!4m14!4m13!1m5!1m1!1s0x9336ffe0a0958cc1:0x28cfbac637a2c18d!2m2!1d-46.8202068!2d-11.6244361!1m5!1m1!1s0x75f8aae10d4ae69:0x97810f362c2db8c5!2m2!1d-44.9953475!2d-12.1477483!3e0 Acesso em: 14 fev. 2024.
    » https://www.google.com/maps/dir/Dian%C3%B3polis,+TO/Barreiras,+BA/@-11.8788012,-46.4714236,9z/data=!3m1!4b1!4m14!4m13!1m5!1m1!1s0x9336ffe0a0958cc1:0x28cfbac637a2c18d!2m2!1d-46.8202068!2d-11.6244361!1m5!1m1!1s0x75f8aae10d4ae69:0x97810f362c2db8c5!2m2!1d-44.9953475!2d-12.1477483!3e0
  • GOOGLE MAPS. Dianópolis (TO) a Goiás (GO). 2024b. Disponível em: https://www.google.com/maps/dir/Dian%C3%B3polis,+Tocantins,+77300-000/Goi%C3%A1s,+GO/@-13.1179286,-48.9999329,7z/data=!4m14!4m13!1m5!1m1!1s0x933654019f30b1ad:0x80b324e94a739d28!2m2!1d-46.8201549!2d-11.6260113!1m5!1m1!1s0x9367790ac413c979:0xbeb1308cbb66ab22!2m2!1d-50.1403832!2d-15.93397!3e0 Acesso em: 14 fev. 2024.
    » https://www.google.com/maps/dir/Dian%C3%B3polis,+Tocantins,+77300-000/Goi%C3%A1s,+GO/@-13.1179286,-48.9999329,7z/data=!4m14!4m13!1m5!1m1!1s0x933654019f30b1ad:0x80b324e94a739d28!2m2!1d-46.8201549!2d-11.6260113!1m5!1m1!1s0x9367790ac413c979:0xbeb1308cbb66ab22!2m2!1d-50.1403832!2d-15.93397!3e0
  • GROSSI, Paolo. A History of European Law. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.
  • HAYAERT, Valérie. “The Paradoxes of Lady Justice’s Blindfold”. In: MARTYN, Georges et al. (ed.). The Art of Law: Artistic Representations and Iconography of Law and Justice in Context, from the Middle Ages to the First World War. Cham: Springer, 2018.
  • HESPANHA, António Manuel. “Modalidades e limites do imperialismo jurídico na colonização portuguesa”. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, Firenze, vol. 41, pp. 101-135, 2012.
  • HESPANHA, António Manuel. “Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro”. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, Firenze, vol. 35, pp. 59-81, 2006.
  • IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Tocantins, Dianópolis, histórico. Brasília, DF: IBGE, 2024. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/to/dianopolis/historico Acesso em: 14 fev. 2024.
    » https://cidades.ibge.gov.br/brasil/to/dianopolis/historico
  • JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. O coronelismo: Uma política de compromissos. São Paulo: Brasiliense, 1981.
  • LEAL, Victor Nunes. “O coronelismo e o coronelismo de cada um”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 23, n. 1, pp. 11-14, 1980.
  • LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1948].
  • LINS, Wilson. O médio São Francisco: Uma sociedade de pastores guerreiros. São Paulo: Editora Nacional, 1983 [1952].
  • LINS, Wilson. Os cabras do coronel. Salvador: Highway Sans, 2014 [1964].
  • LIRA NETO [João de Lira Cavalcante Neto]. Padre Cícero: Poder, fé e guerra no sertão. Companhia das Letras, 2009.
  • LUKÁCS, Georg. “Narrar ou descrever”. In: LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965 [1936].
  • MANSUR, João Paulo. “‘Terras adubadas com sangue’: O coronelismo de Terras do sem fim”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 36, n. 105, pp. 1-19, 2021.
  • MANSUR, João Paulo. “Literatura ou antropologia criminal?: O cangaço em Pedra Bonita e Cangaceiros”. Mana, Rio de Janeiro, vol. 25, n. 2, pp. 427-455, 2019.
  • MANSUR, João Paulo. O Estado e a casa patriarcal: Caminhos do legalismo nos sertões brasileiros da Primeira República. 2023. 311 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023.
  • MELLO E SOUZA, Laura de. O sol e a sombra: Política e administração na América Portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • MORAES, Maria Augusta Sant’Anna. História de uma oligarquia: Os Bulhões. Goiânia: Oriente, 1974.
  • MORAES, Walfrido. Jagunços e heróis. Salvador: Egba, 1991 [1963].
  • NODARI, Régis João. Uma “clamorosa e perigosa ‘desintegração’ do direito nacional”?: Ordem, liberdades e a questão da diversidade legislativa no processo penal brasileiro (1889-1930). Belo Horizonte: Dialética, 2023.
  • O HOMEM da areia. Direção: Vladimir Carvalho. [S. l.: s. n.], 1982. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TlPgb3VRAaw Acesso em: 14 fev. 2024.
    » https://www.youtube.com/watch?v=TlPgb3VRAaw
  • PALACÍN, Luís. Coronelismo no extremo norte de Goiás. São Paulo: Loyola, 1990.
  • PALACÍN, Luís. Goiás (1722-1822). Goiânia: Oriente, 1972.
  • PALACÍN, Luís; MORAES, Maria Augusta Sant’Anna. História de Goiás (1722-1972). Goiânia: Vieira, 2008 [1975].
  • PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias (1889-1934). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
  • PINTO, Liliane Faria Corrêa. “Coronelismo: Uma análise historiográfica”. Locus, Juiz de Fora, vol. 23, n. 2, pp. 361- 382, 2017.
  • PIVA, Carolina Brandão; UNES, Wolney. “Ficção e realidade”. In: COELHO, Guilherme Ferreira (org.). Expedição histórica nos sertões de Goyas: São José do Duro. Goiânia: ICBC, 2008 [1937].
  • PÓVOA, Osvaldo Rodrigues. Quinta-feira sangrenta. Goiânia: Líder, 1980 [1979].
  • PROSPERI, Adriano. “Giustizia bendata”. In: LACCHÈ, Luigi et al. (a cura di). Penale giustizia potere: Metodi, ricerche, storiografie: per ricordare Mario Sbriccoli. Macerata: Edizioni Università Macerata, 2007.
  • QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. “O coronelismo numa interpretação sociológica”. In: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de (org.). O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.
  • REGO, José Lins do. Cangaceiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011a [1953].
  • REGO, José Lins do. Pedra Bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011b [1938].
  • RIBEIRO, Miriam Bianca Amaral. “Memória, família e poder: História de uma permanência política: os Caiado em Goiás”. In: CHAUL, Nasr Fayad (org.). Coronelismo em Goiás. Goiânia: Kelps, 1998.
  • RODRIGUES, Inês Caminha Lopes. A Revolta de Princesa: Poder privado × poder instituído. São Paulo: Brasiliense, 1981.
  • SAINT-HILAIRE, Augusto de. Viagem às nascentes do rio S. Francisco e pela provincia de Goyas. São Paulo: Editora Nacional, 1937 [1823]. t. 1.
  • SAUTCHUK, Jaime. O causo eu conto: Sobre Bernardo Élis e o Brasil central. São Paulo: Geração, 2018.
  • SBRICCOLI, Mario. La benda della giustizia: Iconografia, diritto e leggi penali dal Medioevo all’età moderna. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, Firenze, vol. 88, n. 1, pp. 155-207, 2009.
  • SILVA, Elen Glauciene. Chacina do Duro: Do evento à representação dos acontecimentos. 2017. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.
  • SOBREIRA, Padre Azarias. O patriarca de Juazeiro. Fortaleza: Nihil Obstat, 1968.
  • SOUSA, Paulino José Soares de. Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1862.
  • TELAROLLI, Rodolpho. Eleições e fraudes eleitorais na República Velha. São Paulo: Brasiliense, 1982.
  • VILLAS BÔAS, Gláucia. “A tradição renovada na obra de Maria Isaura Pereira de Queiroz”. In: SCHWARCZ, Lilia; BOTELHO, André (org.). Um enigma chamado Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro; SOARES, Lívia Freitas Pinto Silva. “Votos, partidos e eleições na Primeira República: A dinâmica política a partir das charges de O Malho”. Revista de História, São Paulo, vol. 177, pp. 1-31, 2019.
  • WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995.
  • WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília, DF: Editora UnB, 2004.
  • WHITE, Hayden. “As ficções da representação factual”. In: WHITE, Hayden (org.). Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 2001.
  • ZORZI, Andrea. “Negociação penal, legitimação jurídica e poderes urbanos na Itália comunal”. In: DAL RI JÚNIOR, Arno; SONTAG, Ricardo (org.). História do direito penal entre medievo e modernidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.

Notas

  • 1
    Sobre a pretensão de completude da codificação moderna, ver Paolo Grossi (2010GROSSI, Paolo. A History of European Law. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010., p. 85).
  • 2
    Penso em passagens como: “O centro da política continuava, malgrado todas as limitações estabelecidas por lei, o município, e, dentro do município, o coronel” (QUEIROZ, 1976, p. 117). “Assim, o chefe regional, o chefe municipal, continuava verdadeiro caudilhete, sem que o governo estadual se animasse a contradizê-lo” (QUEIROZ, 1976, p. 121). Mas toda tipologia é simplificadora, e, embora o poder privado seja importante na análise do coronelismo de Maria Isaura Pereira de Queiroz, sua obra não deixa de analisar a complexidade do fenômeno político e institucional da Primeira República. Para explorar melhor a profundidade de seu pensamento, recomendo estudos de César Barreira (1999)BARREIRA, César. “Velhas e novas práticas do mandonismo local: Um diálogo com Maria Isaura Pereira de Queiroz”. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, vol. 30, n. 1-2, pp. 37-43, 1999., Gláucia Villas Bôas (2009) e André Botelho e Lucas Correia Carvalho (2011)BOTELHO, André; CARVALHO, Lucas Correia. “A sociedade em movimento: Dimensões da mudança na sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz”. Sociedade e Estado, Brasília, DF, vol. 26, pp. 209-238, 2011..
  • 3
    “Desde a Colônia, os grandes proprietários de terras vêm dominando de fato e tornando-se os homens bons (ricos) que compõem as câmaras municipais. Os barões e coronéis representam simples continuidade do sistema anterior, havendo, no entanto, maior amplitude de representação legal” (CARONE, 1971CARONE, Edgard. A República Velha (evolução política). São Paulo: Difel, 1983 [1971].).
  • 4
    A rigor, José Murilo de Carvalho também criticava a concepção de coronelismo de Victor Nunes Leal ao notar que sua interpretação não teria analisado a concentração de poder nas capitais dos estados. Mas as críticas de Carvalho aos “privatistas” não deixam de ser incisivas.
  • 5
    Para analisar as continuidades e as rupturas no pensamento de alguns dos intérpretes citados, recomendo o trabalho de Liliane Faria Corrêa Pinto (2017)PINTO, Liliane Faria Corrêa. “Coronelismo: Uma análise historiográfica”. Locus, Juiz de Fora, vol. 23, n. 2, pp. 361- 382, 2017..
  • 6
    Para designar a região conhecida atualmente como “Nordeste”, ao menos até 1919, era mais habitual o uso do termo “Norte” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2011., p. 81).
  • 7
    Enquanto tipos puros, esses dois modelos do coronelismo não existiram em absoluto. São esquemas interpretativos, chaves de leitura que colocam lentes de aumento em certos aspectos centrais dos objetos estudados para os revelar com nitidez.
  • 8
    Para informações biográficas de Bernardo Élis, ver Jaime Sautchuk (2018, p. 67) e Pauliane de Carvalho Braga (2019BRAGA, Pauliane de Carvalho. Entre sertões: Comunismo e campesinato na obra de Bernardo Élis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019., p. 29), além de textos autobiográficos e entrevistas (ÉLIS, 1974b [1956], 1983ÉLIS, Bernardo. “Literatura e participação: entrevista. [julho 1982]”. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (org.). Bernardo Élis. São Paulo: Abril Educação, 1983., 1997).
  • 9
    Ver nesse sentido Edgard Carone (1983 [1971]CARONE, Edgard. A República Velha (evolução política). São Paulo: Difel, 1983 [1971]., p. 194).
  • 10
    Embora o mais usual para a época fosse chamar o chefe de executivo dos estados como “governadores”, a Constituição de Goiás o denomina “presidente”.
  • 11
    Trata-se de um artifício realizado com respaldo jurídico no artigo 18 da Constituição Federal de 1891, que diz: “A Câmara dos Deputados e o Senado Federal trabalharão separadamente e, quando não se resolver o contrário, por maioria de votos, em sessões públicas. As deliberações serão tomadas por maioria de votos, achando-se presente, em cada uma, maioria absoluta de seus membros. Parágrafo único: A cada uma das Câmaras compete: verificar e reconhecer os poderes de seus membros” (BRASIL, 1891BRASIL. “Constituição Federal de 1891”. In: MINAS GERAIS (org.). Constituição Federal, Constituição do estado de Minas, Regimento interno da Câmara dos Deputados do Estado de Minas Geraes e Regimento comum. Ouro Preto, MG: Silva Cabral, 1891. pp. 1-61.). Consultar Rodolpho Telarolli (1982) para uma análise das fraudes eleitorais mais típicas na Primeira República. Ver também depoimento pessoal de Ulysses Lins de Albuquerque (1989 [1957]ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de. “Um sertanejo e o sertão”. In: ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de (org.). Um sertanejo e o sertão: Moxotó brabo: Três ribeiras; reminiscências e episódios do quotidiano no interior de Pernambuco. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989 [1957]., p. 19). Cláudia Maria Ribeiro Viscardi e Lívia Freitas Pinto Silva Soares (2019, pp. 22-26) fizeram pesquisa sobre representações das fraudes em charges de jornais da época.
  • 12
    É interessante ler O tronco em comparação com a obra Expedição histórica nos sertões de Goyas, em que Guilherme Ferreira Coelho (2008 [1937]), escrivão de polícia que participara da luta de São José do Duro, contou a sua experiência. Sobre a coleta de fontes para a escrita do romance, Élis (1997, p. 71) disse: “O romance O tronco, inicialmente seria uma pesquisa sociológica sobre a região fronteiriça da Bahia, tanto em seu aspecto geográfico como social ou econômico-financeiro. Para isso, colhi farto material, mas quando parti para entrevistas com pessoas moradoras ou ex-moradoras no lugar, pessoas que participaram diretamente das lutas, encontrei na narrativa delas uma caga emocional tão intensa, tão poderosa que meus intuitos científicos foram absorvidos pelo meu pendor de ficcionista. E fiz, do que era uma pesquisa científica, um romance”.
  • 13
    Para historiografia política de Goiás na Primeira República, ver Maria Augusta Sant’Anna Moraes (1974)MORAES, Maria Augusta Sant’Anna. História de uma oligarquia: Os Bulhões. Goiânia: Oriente, 1974., Francisco Itami Campos (2003 [1983], pp. 81-108) e Miriam Bianca Amaral Ribeiro (1988).
  • 14
    Gracy Tadeu da Silva Ferreira (1998FERREIRA, Gracy Tadeu da Silva. “O coronelismo em Goiás (1889-1930): As construções feitas do fenômeno pela história e literatura”. In: CHAUL, Nasr Fayad (org.). Coronelismo em Goiás. Goiânia: Kelps, 1998., p. 96) chegou a conclusões parecidas ao estudar o romance Quinta-feira sangrenta, de Osvaldo Póvoa (1980 [1979])PÓVOA, Osvaldo Rodrigues. Quinta-feira sangrenta. Goiânia: Líder, 1980 [1979]., que também retratou a batalha de São José do Duro, mas sob a ótica dos Wolneys.
  • 15
    Pelo artigo 41, §5º e artigo 42, §2º do código de processo criminal goiano de 1901GOIÁS. Codigo de processo criminal do estado de Goyas. Cidade de Goyaz: [s. n.], 1901. Disponível em: https://legisla.casacivil.go.gov.br/api/v1/arquivos/7026. Acesso em: 14 fev. 2024.
    https://legisla.casacivil.go.gov.br/api/...
    , competia ao delegado de polícia “proceder a inquérito policial e a toda as diligências para o descobrimento dos fatos criminosos e suas circunstâncias, recapitulando e transmitindo em prazo breve todos os esclarecimentos ao promotor público, por intermédio da autoridade formadora de culpa”.
  • 16
    Luís Palacín e Maria Augusta Sant’Anna Moraes (2008 [1975]PALACÍN, Luís; MORAES, Maria Augusta Sant’Anna. História de Goiás (1722-1972). Goiânia: Vieira, 2008 [1975]., p. 137) atestam que a situação não mudaria muito dez anos depois: “Uma geografia publicada em Goiás em 1927 resumia o problema das vias de comunicação: ‘Quase nada possui este estado. Em geral, os transportes são feitos por carros de boi em estradas de rodagem, geralmente mal construídas e piores conservadas. Estradas carroçáveis são muito poucas, mesmo assim, este ano não poderão ser trafegadas, devido às chuvas que assolam o estado. Atravessando quatro municípios goianos, vê-se a Estrada de Ferro de Goiás, que muito tem desenvolvido as zonas que atravessa. É irrisório, mas poderia ser pior. Nos grandes caudais, a navegação é feita, na sua maioria, em barcos antiquados. Existem poucas barcas a vapor, e estas são particulares’”.
  • 17
    Peço licença para referenciar um artigo de minha autoria, “Literatura ou antropologia criminal?”, publicado em 2019MANSUR, João Paulo. “Literatura ou antropologia criminal?: O cangaço em Pedra Bonita e Cangaceiros”. Mana, Rio de Janeiro, vol. 25, n. 2, pp. 427-455, 2019. na Mana. Nele analiso, utilizando como principais fontes os romances Pedra Bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego, a estreita relação que proprietários de terras mantinham com cangaceiros.
  • 18
    Os códigos de processo penal eram, na Primeira República, de competência estadual. Ver análise comparativa dos códigos estaduais feita por João Régis Nodari (2023)NODARI, Régis João. Uma “clamorosa e perigosa ‘desintegração’ do direito nacional”?: Ordem, liberdades e a questão da diversidade legislativa no processo penal brasileiro (1889-1930). Belo Horizonte: Dialética, 2023..

Editor responsável:

Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2023
  • Aceito
    15 Fev 2024
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, 1, Sala 109, Cep: 20051-070, Rio de Janeiro - RJ / Brasil , (+55) (21) 3559.1926 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: coordenacao.dilemas@gmail.com