Open-access Crimes e cárceres femininos: Perspectivas de visitantes

Female Crimes and Jail: The Visitors’ Perspectives

RESUMO

Buscando identificar a perspectiva de visitantes sobre os crimes atribuídos às mulheres privadas de liberdade e os locais de confinamento onde elas se encontram, apresentamos uma etnografia conduzida em duas prisões femininas. Entre o conjunto plural de interlocutores, há uma tendência de justificar a detenção das mulheres com sua vinculação a um parceiro bandido. Nenhum relato trata de crime cometido para sustento familiar, o que destoa de literatura recente sobre encarceramento feminino. A partir das narrativas, notamos que mulheres presas por crimes semelhantes são colocadas em prisões com meios de controle e punição muito distintos.

Palavras-chave: prisão; mulheres; visita; crime; punição

ABSTRACT

Female Crimes and Jail: The Visitors’ Perspectives  is an attempt to understand the prison visitors’ perspectives on the crimes attributed to imprisoned women and on the places of female confinement. In this ethnography conducted in two female prisons, we note that many of the interlocutors tend to justify the imprisonment of women by linking them to a “thug” partner. There were no mentions to crimes committed for family sustenance, which is out of step with recent literature on female imprisonment. From the narratives, we note that women arrested for similar crimes are placed in prisons with very different means of control and punishment.

Keywords: jail; women; inmate visitation; crime; punishment

Introdução

O encarceramento de mulheres é um fenômeno estatístico, político e social notável no mundo contemporâneo, desdobrando-se em cada vez mais números e normativas no Brasil. A publicação de relatórios específicos sobre a população prisional feminina, realizados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) a partir do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), mostra que o Estado tem se preocupado em disseminar dados acerca do aprisionamento feminino no país.

O Infopen (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2018) dá destaque ao vertiginoso aumento de detenções femininas ao reportar que entre 2000 e 2016 o número de mulheres presas no Brasil aumentou em 656%. No mesmo período, o crescimento da população prisional masculina foi de 293%. Ainda, o Estado informa que o tráfico de drogas é o delito que mais aprisiona mulheres: 62% delas foram condenadas ou respondem presas a processos penais relacionados a esse crime (Idem). Os números crescentes de detenções femininas são, portanto, resultado do endurecimento de leis e ações de combate ao tráfico de drogas no país.

A quantidade de vagas no sistema prisional não acompanhou o crescimento dessa fatia da população prisional. Apenas 7% dos estabelecimentos penais no Brasil são destinados exclusivamente às mulheres. A maior parte (17%) das prisões destinadas a elas são mistas, ou seja, abrigam homens e mulheres, separados apenas por módulos, galerias ou celas (Idem). Esses dados indicam que as instituições penais geralmente são construídas para custodiar pessoas do sexo masculino, raramente o sendo para pessoas do sexo feminino.

Com o aumento da população prisional feminina, cresce, consequentemente, o número de pessoas que circularam por esses espaços adaptados e/ou inadequados. Ou seja, não apenas mulheres presas, mas também visitantes do cárcere são expostos às más condições estruturais das instituições de confinamento penal. Soma-se a essas inadequações estruturais a falta de insumos no cárcere, como roupas e materiais de higiene. Tal provisão material, que é de responsabilidade do Estado, é repassada às famílias das pessoas presas, que assumem a tarefa de abastecer as prisões em dias de visita (BARCINSKI et al., 2014).

Essas pessoas que frequentam as prisões, fundamentais para a manutenção do sistema prisional, estão no centro de nossas análises neste manuscrito. Por meio de uma etnografia conduzida em cenários ainda pouco explorados, buscamos investigar a criminalidade e as prisões femininas, a partir das perspectivas de um conjunto diverso de visitantes.

Etnografias em prisões: entre cenários inusitados e atores plurais

Fleischer e Ferreira (2014) apontam quatro aspectos das etnografias em serviços de saúde que consideramos relevantes para desenvolver etnografias em instituições: o cenário, o ator, a identidade e a linguagem. Para elas, os estabelecimentos que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS) podem ser classificados em cenários consolidados ou inusitados de pesquisa. Ou seja, há locais que frequentemente são escolhidos para a realização do trabalho de campo etnográfico, como hospitais, enquanto outros raramente ocupam esse lugar, como os comitês de ética em pesquisa (CEPs). Além disso, as autoras reconhecem uma diversidade de atores nessas etnografias, sendo mais comum que profissionais das equipes participem dos estudos, em comparação com usuários dos serviços de saúde. No que diz respeito à identidade em campo, as autoras notam que pesquisadoras(es) são comumente vistas(os) como membras(os) da equipe de saúde, geralmente estagiárias(os). Finalmente, elas destacam a variedade de termos para se referir aos usuários, de “paciente” a “expert por experiência”, indicando o maior ou menor grau de disponibilidade para a incorporação dessas pessoas como parceiras no processo de produção de conhecimento antropológico.

No que diz respeito às etnografias nas prisões, observamos distintas estratégias adotadas para a realização das pesquisas. Assumir a identidade de visitante em um centro de detenção possibilitou a etnografia de Biondi (2009) sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC). Há ainda quem entre no campo etnográfico como agente da Pastoral Carcerária (GODOI, 2017), como participante de organizações não governamentais (PADOVANI, HASSELBERG e BOE, 2019) ou ainda como usuárias dos mesmos serviços de locomoção e/ou hospedagem utilizados pelas visitantes do cárcere (FERRAZ DE LIMA, 2013; LAGO, 2017, 2019).

Não é preciso dizer o quanto a linguagem é um assunto recorrente em estudos sobre instituições prisionais, já que muitos deles são seguidos de glossários (DINIZ, 2015; BASSANI, 2016), dada a peculiaridade do vocabulário acionado atrás das grades. O presente estudo não será diferente: apresentaremos trechos discursivos de visitantes em que constam termos e gírias próprios das pessoas que estão em prisões ou transitam nelas.

No manuscrito em tela, estamos interessados em abordar duas das quatro categorias apontadas por Fleischer e Ferreira (2014) como relevantes em estudos etnográficos, a saber: o cenário e os atores envolvidos. Nas etnografias no sistema penitenciário, o principal cenário em que são conduzidas pesquisas é o estabelecimento penal masculino (RHODES, 2001), o feminino tendo sido contemplado por menos estudos (CUNHA, 2014). Embora o fenômeno do encarceramento em massa tenha suscitado investigações científicas internacionais (GARLAND, 2001) e nacionais (BORGES, 2018), nem sempre o crescimento exponencial do número de mulheres aprisionadas por comparação ao de homens despertou tantas pesquisas, menos ainda nas próprias unidades prisionais em que elas se encontram sob custódia. Nem mesmo em um dossiê sobre prisão e punição (MALLART e CUNHA, 2019) as instituições penais de mulheres ganham destaque, uma vez que os espaços de confinamento destinados a elas são abordados em apenas um de seus sete artigos. As investigações em cárceres femininos parecem ganhar maior relevo somente quando acionadas análises de gênero (CÚNICO e LERMEN, 2020), como no caso de outro dossiê (PADOVANI, HASSELBERG e BOE, 2019), que privilegia as etnografias conduzidas em prisões femininas.

Já em relação aos atores, Cunha (2014) destaca que as perspectivas mais vocalizadas nas etnografias em prisões são as das pessoas privadas de liberdade, bem como as dos agentes de segurança e outros integrantes das equipes. Desse modo, as investigações sobre visitantes do cárcere ainda são incipientes. Na maioria das vezes, visitantes tornam-se sinônimos de familiares na literatura científica - e mesmo na governamental - sobre o tema, ainda que as pessoas privadas de liberdade também recebam visitas de agentes religiosos e profissionais da área jurídica, por exemplo (LERMEN, 2019). Ademais, as etnografias em estabelecimentos penais podem sublinhar as perspectivas dos trabalhadores sobre visitantes (TORRES, 2012), dificilmente produzindo o movimento inverso.

Nos estudos etnográficos sobre visitantes do cárcere, também há maior investimento em prisões masculinas (COMFORT, 2008; SPAGNA, 2008; DUARTE, 2013; BASSANI, 2016; FERRAZ DE LIMA, 2013; GODOI, 2017; LAGO, 2017, 2019). Tal concentração não parece ocorrer por acaso, uma vez que as pesquisas no sistema prisional costumam indicar que há um número pequeno - ou até mesmo inexistente - de visitantes em prisões de mulheres (SPAGNA, 2008; BASSANI, 2011; DUARTE, 2013). Em nossas buscas, encontramos apenas duas etnografias com pessoas que realizam visitas em cárcere feminino (PEREIRA, 2016; PADOVANI, 2017). Independentemente do público que a instituição prisional confina, essas pesquisas informam que são as mulheres aquelas que se tornam visitantes. Ou seja, na literatura acessada, a visita ao cárcere é descrita como uma atividade feminina, realizada primordialmente por mães e companheiras das pessoas encarceradas.

As perspectivas de visitantes de prisões nas quais mulheres se encontram reclusas podem ser consideradas, assim, uma lacuna na produção científica nacional quando revisamos os estudos em estabelecimentos penais, de maneira que, entre as etnografias em prisões, foram poucas as que pluralizaram as vozes dessas pessoas em um cenário tão inusitado de pesquisa, para retomar as categorias apontadas por Fleischer e Ferreira (2014).

No presente estudo, investigamos a criminalidade e os espaços de confinamento de mulheres a partir do ponto de vista de um grupo plural de visitantes. Procuramos compreender os modos como tais interlocutores constroem as histórias sobre os delitos femininos e como justificam o encarceramento das mulheres que visitam. Buscamos ainda identificar as perspectivas de visitantes sobre a vida no interior do cárcere feminino e sobre os locais de confinamento onde as mulheres se encontram. A partir de narrativas obtidas com 23 interlocutores, mostramos como mulheres presas por crimes semelhantes são colocadas em espaços prisionais com meios de controle e punição muito distintos.

Nas filas e nos comércios: interações com distintos visitantes de prisões femininas

Este estudo é parte da tese de doutorado da primeira autora deste artigo (LERMEN, 2019). Trata-se de uma pesquisa realizada em dias de visita em duas prisões exclusivamente femininas, em um dos estados da Região Sul do Brasil. Para preservar o anonimato de quem participou do estudo, usaremos nomes fictícios, como também vamos nos referir às instituições prisionais como “o presídio da capital” e a “penitenciária do interior”. Ainda, a pesquisa passou pela apreciação e autorização do órgão estatal de administração penitenciária e pelo CEP da instituição de ensino da qual a primeira autora era aluna.

Em 2017 e 2018, a pesquisadora frequentou as filas de espera e os comércios nos arredores das duas instituições prisionais femininas mencionadas. Lá, ela observou e conversou com mais de uma centena de visitantes. Tal qual mostra a literatura anteriormente citada, mulheres eram numericamente superiores em dias de visita nas cadeias femininas, mas esse conjunto feminino se configurou como um grupo majoritário, não exclusivo. Longe disso, na realidade, visto que quase metade das pessoas que participaram deste estudo são homens. Neste recorte da tese, apresentamos as narrativas de 23 visitantes que também são familiares: mães (7), companheiros (6), pais (2), companheiras (2), filhas (2), filho (1), irmã (1), irmão (1) e nora (1) das mulheres presas. Dividimos os relatos em dois tópicos: crimes e cárceres. Reforçamos que não tivemos contato direto com as mulheres encarceradas. As vivências delas foram contadas pelas pessoas com quem a pesquisadora conversou nos dias da visita.

Crimes na ótica de quem visita: engendrando vítimas, heroínas, protagonistas e cúmplices

Neste tópico, abordamos as histórias sobre os delitos cometidos ou atribuídos às mulheres, contadas por quem as visita. Não se trata da exposição de todos os relatos coletados. São apenas alguns casos selecionados que exemplificam tanto as narrativas mais frequentes como aquelas que mais destoaram em campo.

A maior parte dos relatos trata de mulheres que “puxam cadeia”1 por tráfico de drogas, o que não surpreende, considerando informações fornecidas na introdução deste texto. As justificativas para inserção e atuação das mulheres na venda ilegal de entorpecentes variam entre as pessoas acessadas nas filas de espera. As histórias mais comuns versam sobre mulheres que foram presas em função do envolvimento conjugal com um homem traficante. É o caso de Tadeu, que visita sua irmã Fátima e informa que ela, o ex-companheiro e outras 17 pessoas foram presos por associação ao tráfico de drogas. Tadeu diz que a irmã sabia da ligação do então marido com o tráfico, mas ela nunca teve participação nesse tipo de atividade. Situação semelhante ocorreu com Diana que, de acordo com seu pai, Júlio, foi presa devido ao relacionamento amoroso com um homem que traficava. “Eu sabia que ele era bandido, eu sabia o que ele fazia e ela também. Eu dizia pra ela largar ele, mas nada. Aí, invadiram a casa dela e prenderam os dois”, conta Júlio. Já Gardênia, segundo sua mãe, Betânia, namorava um “drogado” que usava quase todo dinheiro obtido com a venda de entorpecentes para manter o vício em crack. Ambos foram presos, embora Betânia afirme que a filha nunca tenha traficado.

Esse tipo de parceria conjugal, comumente chamado “amor bandido”, é igualmente citado na literatura como uma das razões pelas quais mulheres se inserem ou são inseridas nas atividades criminais. Seja por amor (ZALUAR, 1993; PIMENTEL, 2008), por submissão ou coação (PIMENTEL, 2008; BARCINSKI, 2009) ou pela busca de status e de poder (BARCINSKI, 2009), mulheres cometem crimes junto com ou em função de seus cônjuges. Tais características, porém, não costumam ser observadas nas trajetórias de homens infratores.

Alguns relatos tratam de mulheres que não passavam por dificuldades financeiras e recorreram ao tráfico. Dara revela que sua filha Carmela “tirava dois, três, até cinco mil [reais] por noite. Eu dizia que aquilo era errado, dizia pra ela parar, mas que se ela não quisesse parar, que pelo menos guardasse um pouco do dinheiro”. Sebastião, por sua vez, conta que foi surpreendido quando sua parceira, Rosane, foi presa em flagrante em casa, por porte de drogas. Mesmo morando sob o mesmo teto que Rosane, ele tinha outra ideia de onde a companheira obtinha renda: “Achava que ela tava vendendo Avon”. Segundo esses interlocutores, nem Rosane, nem Carmela infringiram a lei como uma medida desesperada para obter sustento. São mulheres que optaram por vender drogas para conseguir “dinheiro fácil”, como resume Dara. Tais motivações para o engajamento feminino no tráfico indicam a agência e a autonomia de mulheres em um mercado outrora exclusivo de homens (BARCINSKI, 2009).

Contudo, ao acionarmos os estudos mais recentes conduzidos diretamente com mulheres presas, a principal motivação feminina para inserção no tráfico é justamente a necessidade de obter renda, seja como uma complementação financeira diante de um mercado de trabalho precário que pouco as remunera seja como fonte única no orçamento familiar (RAMOS, 2012; CHERNICHARO, 2014; HELPES, 2014; BOITEUX, FERNANDES e PANCIERI, 2017). A necessidade de recorrer ao tráfico também é justificada pela ausência dos pais no cuidado e sustento dos filhos, o que leva mulheres a serem as principais, se não as únicas, provedoras da prole (CHERNICHARO, 2014; HELPES, 2014; CORTINA, 2015).

Simultaneamente, na atual conjuntura do encarceramento feminino, a vinculação com homens criminosos parece ter menor relevância para o engajamento de mulheres no tráfico. Algumas, inclusive, optam por não se envolver com homens que desempenham essa mesma atividade, de modo a não confundir trabalho com vida pessoal (HELPES, 2014).

Ao comparar os achados da literatura mais recente com os dados do presente estudo, observamos divergências, visto que visitantes tendem a atribuir aos homens a responsabilidade pelo encarceramento das mulheres. Esse é o caso de Fátima, Diana e Gardênia, percebidas por seus visitantes como inocentes, presas injustamente apenas pelo fato de terem uma relação conjugal com um homem criminoso. Tal presunção de inocência ocorre pois elas não atuavam diretamente nos crimes, embora tivessem conhecimento da conduta delitiva de seus parceiros e usufruíssem da renda obtida por meio ilegal. Ainda, interlocutores utilizam termos como “bandido” e “drogado” como modo de se referir aos homens, mas não esboçam qualquer condenação moral das mulheres a quem visitam. Assim, elas são posicionadas como vítimas passivas e subordinadas aos homens com quem estabeleceram relacionamentos conjugais.

A partir desse ponto de vista, a participação feminina no tráfico de drogas,

em vez de motivada por uma escolha pessoal, é descrita como o resultado da influência de homens envolvidos na atividade. Como “mulheres de bandido”, elas não tiveram outra opção senão servirem de cúmplices nos crimes cometidos por seus parceiros. Se por um lado o caráter involuntário desta participação é amplamente descrito na literatura é interessante notar o uso retórico (...) desta posição. Como vítimas de uma situação para além do seu controle, estas mulheres não devem ser responsabilizadas pelo caminho que seguiram no passado (BARCINSKI, 2009, p. 584).

É importante salientar que a história de Gardênia foi marcada por um relacionamento abusivo antes de ela ser presa. Betânia conta como foi uma das agressões que sua filha sofreu de seu genro: “Ele bateu tanto nela enquanto ela tava grávida, que ela entrou em trabalho de parto com sete meses”. Esse tipo de relacionamento diferencia a trajetória de Gardênia daquelas de Fátima e Diana, mencionadas anteriormente, e a iguala a outras narrativas dos interlocutores. A pesquisadora ouviu diversas histórias acerca de agressões vividas por mulheres antes de começarem a puxar cadeia. São relatos que ressaltam as relações desiguais de poder que conduziram mulheres à submissão aos seus parceiros, inclusive as tornando mais passíveis de sofrerem variadas formas de violência. James, filho de Mary, afirma que sua mãe só conseguiu cessar o ciclo de violência e controle do parceiro com o homicídio. Ele conta como sua progenitora foi presa pelo assassinato do ex-marido, padrasto do visitante.

- Ele batia muito na mãe, começou a ameaçar ela de morte. Só que ela não contava isso pra gente [os filhos]. A única vez que ela falou foi da vez que ele pegou a mãe, levou ela pra estrada e deixou ela lá, num matagal. Eu que fui buscar ela e disse que a próxima vez que eu visse aquele desgraçado, eu ia matar! E eu ia mesmo! Quatro dias depois, ela matou ele e se entregou pra polícia. (James)

Para Pais (1998), os homicídios perpetrados por mulheres contra seus parceiros são, em sua maioria, “homicídios maus-tratos” (p. 198), ou seja, são praticados contra homens que, por anos, agrediram suas companheiras. Trata-se de uma violência de gênero, mas, diferentemente dos casos em que homens que cometem feminicídio, em que a morte das mulheres ocorre pelo “fato de serem mulheres” (RUSSELL, 2012, p. 2), mulheres que recorrem ao assassinato do cônjuge matam para não morrer. De acordo com James, o fim da trajetória de violações sofridas por Mary somente ocorreu após ele ameaçar matar o padrasto. “Só mãe mesmo: ela fez isso [assassinar o cônjuge] pra tu não ser preso”, resume Geralda, visitante que também escutou o relato.

Outra narrativa de agressão cometida por mulher é justificada como ato de proteção a uma criança. De acordo com Anita, sua sogra, Valquíria, tinha uma vizinha dependente química. Para sustentar o vício, a vizinha oferecia a filha de seis anos aos traficantes. Valquíria não entendia as razões pelas quais havia um constante movimento de homens na casa ao lado da sua. Após tomar conhecimento da situação,

- Ela [Valquíria] decidiu ir atrás do cara, invadiu a casa da vizinha e viu que a criança e o cara tavam pelados. Ela deu uma sacolada na cabeça do cara. Ele não morreu, mas quando a polícia chegou, ela tava com uma faca na mão. Ela dizia que nunca deixou que isso [estupro] acontecesse com as filhas dela e que não ia deixar que acontecesse com a guriazinha. (Anita)

Faz sete anos que Valquíria está presa por tentativa de homicídio, embora, segundo Anita, a sogra tenha impedido que a menina fosse mais uma vez violentada. Tanto na história de Mary quanto na de Valquíria, o homicídio - ou a tentativa de homicídio - figura como meio encontrado pelas mulheres para defender ou resguardar terceiros de homens abusadores.

Ora vítimas, ora heroínas, mulheres ainda são enquadradas como cúmplices de outros crimes além do tráfico de drogas praticados por seus companheiros, como o homicídio. De acordo com Marli, sua filha Gal viveu por 16 anos um relacionamento conjugal com um homem abusivo, que a agredia e a controlava. Ela conta que seu genro tinha envolvimento com facções: “Um dia, ele matou um ‘contra’2. A polícia investigou e prendeu ele e a minha filha pelo assassinato do cara. Ela não tinha nada a ver!”. Esse caso reúne características de quase todos os outros descritos anteriormente neste tópico, em que uma mulher, vítima de constantes agressões do marido, é presa em função da relação com um homem criminoso.

Em contrapartida, alguns relatos destoam. São homicídios de outra ordem, popularmente conhecidos como crimes passionais, mais bem definidos como homicídios conjugais (BORGES, 2011). Na fila de espera, é Tadeu quem conta o causo do visitante Assis e da parceira encarcerada dele, chamada Nazaré. “A esposa [de Assis] tinha um amante, mas o amante arranjou outra. Aí, ela [Nazaré] matou o cara. Agora, o marido vem ver ela na cadeia. É amor de verdade!”. Não sabemos se amor é o real motivo de Assis manter o relacionamento com Nazaré: ele nunca permitiu aproximação da pesquisadora para qualquer tipo de conversa. De todo modo, ele sempre foi encontrado em campo, é um visitante de fé.

Ainda, diferentemente das histórias anteriores, o caso de Nazaré conduz a outra compreensão acerca das mulheres homicidas. Em um apanhado histórico, Ratton e Galvão (2016) descrevem as mudanças na forma como a criminalidade feminina foi entendida ao longo do tempo, destacando que no século XIX o determinismo biológico era o mote de criminólogos para explicar a delinquência de mulheres.

Rinaldi (2004) igualmente observa o quanto essa base biologizante foi acionada no sistema judicial do Brasil entre 1890 e 1940. A partir desse recorte temporal, a autora analisa documentalmente as acusações de crimes atribuídos às mulheres contra seus cônjuges, amásios ou rivais. Nessa análise documental, ela conclui que havia uma aliança entre as ciências médicas e jurídicas, que fomentaram a ideia de que o crime estava vinculado a mulheres reféns de suposto mau funcionamento de seus aparelhos reprodutivos, movidas por excessos e desregulagens hormonais e endócrinas. Tal entendimento muitas vezes conduzia as mulheres à absolvição, sobretudo quando o delito envolvia afetos e conjugalidade. Nesses casos, elas eram juridicamente percebidas como seres “passionais” e, assim, inocentadas (Ibid., p. 142). Rinaldi pontua, porém, que essa “patologização do feminino” (Ibid., p. 25) não era fator exclusivo para veredicto de mulheres que respondiam a processo de homicídio. Para a Justiça, “o fato de a mulher ser representada como adequada a uma conduta socialmente prescrita ao gênero feminino levava à sua absolvição” (Ibid., p. 188). Portanto, somavam-se à compreensão biologizante da delinquência feminina as questões de gênero.

De acordo com Ratton e Galvão (2016), somente a partir da década de 1990 começa a se construir, de modo mais expressivo, outra compreensão acerca da agência e da volição das mulheres em condutas delitivas, sobretudo entre aquelas que haviam cometido assassinato. Assim, no campo jurídico, ainda é relativamente recente o entendimento de que mulheres homicidas não são somente vítimas ou doentes.

A narrativa acerca do ato praticado por Nazaré não expõe as vulnerabilidades vivenciadas por ela, o que não quer dizer que não houvesse tais situações em sua vida. O que destacamos aqui é que mulheres, assim como os homens, podem cometer homicídios a partir da racionalidade, do desejo e da agência. Ou, como melhor descrevem os autores:

A intencionalidade (expressa através do cálculo racional) pode somar-se à emergência de raiva e ódio, sem excluir a relação de tais fatores volitivos com os processos mais gerais de manifestação do patriarcado e com as características particulares das interações e das circunstâncias dentro das quais a mulher que mata está situada. (RATTON e GALVÃO, 2016, p. 34)

Em suma, as mulheres presas figuram como vítimas, heroínas, cúmplices, protagonistas ou mesmo vilãs nas narrativas de visitantes das prisões femininas. Na maioria dos casos contados, a vinculação conjugal foi o fator determinante nas trajetórias daquelas que “puxam cadeia”. As relações amorosas com “bandidos” culminaram na prisão de parte das mulheres por tráfico de drogas. Já outras estavam emaranhadas em relacionamentos abusivos que só cessaram com a tentativa ou a consumação do mariticídio. Todos esses aspectos indicam que a criminalidade feminina envolve as dimensões afetiva e relacional (PIMENTEL, 2008). Por outro lado, a agência de Carmela e Rosane no tráfico de drogas e a volição no homicídio praticado por Nazaré delineiam outras possibilidades de atuação criminal feminina.

Cárceres femininos: distâncias de duas prisões tão próximas

A partir das falas obtidas do lado de fora das prisões, buscamos apresentar como é a vida de quem “puxa cadeia” na companhia semanal de visitantes. Tratamos dos relatos sobre o cotidiano de mulheres no cárcere e sobre as distinções que visitantes estabelecem entre as duas instituições prisionais. A partir dessas narrativas, buscamos mostrar como duas prisões geograficamente próximas, separadas por apenas 32km, operam de maneiras tão diferentes.

Iniciamos pela penitenciária do interior, inaugurada no início de 2010 com o objetivo de diminuir a superlotação do presídio da capital. Trata-se de uma instituição de segurança máxima, logo, a arquitetura foi pensada para garantir maior vigilância e controle de quem está presa. Segundo algumas visitantes que já estiveram confinadas na prisão, na maior parte do tempo as mulheres têm a companhia de até seis pessoas, número máximo permitido em cada cela. Outras interações são possíveis durante as refeições, mas apenas entre as mulheres confinadas na mesma galeria. Ademais, a infraestrutura foi projetada para que não exista contato físico entre as mulheres presas e as guardas, uma vez que as grades são erguidas por cima, através de uma passarela superior localizada no teto das celas.

O interior da penitenciária é povoado por mulheres vestidas de branco e laranja. “Eu odiava aquele uniforme grande e horroroso”, revela Joelma, visitante de Bia, companheira que conheceu durante o período em que esteve presa no local. Ela ainda informa que as mulheres presas têm acesso ao pátio por, no máximo, duas horas diárias.

Cunha (1994) discute as diferentes funções do uso do uniforme em unidades prisionais femininas. A razão mais óbvia para a adoção de trajes padronizados é a facilidade de identificar mulheres que fogem da prisão. Mas, para além disso, a autora pontua que a escolha dos cortes e tamanhos das vestimentas, muito mais largas que os corpos que elas escondem, indica moralidade praticada nas casas penais. A partir desse padrão, a instituição prisional entende que “a recondução das desviantes à normalidade passa também pela conformidade à imagem considerada apropriada para o seu gênero e cujos ingredientes são o recato, o pudor e a sobriedade” (Ibid., p. 51).

Como resistência a esse tipo de padronização, mulheres recorrem a outras possibilidades de se diferenciar das demais, em uma tentativa de ter algum tipo de identidade visual que afaste ou minimize a despersonalização do uniforme. No caso das mulheres confinadas na penitenciária do interior, o recurso citado é o adornamento das unhas das mãos e pés. Joelma conta que mensalmente há o “dia da beleza”, no pátio da cadeia, onde as internas ofertam serviços estéticos às demais, sendo essa também uma forma de obter renda no cárcere. Ainda de acordo com Joelma, o trabalho prisional é escasso, apenas as poucas mulheres que conseguem acessá-lo podem “fugir das celas” por um período mais prolongado.

O funcionamento da penitenciária do interior difere bastante do que é operado no presídio da capital. Essa segunda prisão funciona em um prédio inaugurado na década de 1930, projetado não para servir como cárcere, e sim como convento, assim como outras prisões femininas brasileiras (ANGOTTI e SALLA, 2018). Ao longo do tempo, o espaço foi sendo alterado para receber mulheres infratoras, incluindo galerias e celas. Por décadas, o presídio da capital foi administrado por freiras. Somente nos anos 1980 a direção do estabelecimento deixou de ser da congregação religiosa e passou a ser uma tarefa estatal.

Nos arredores do presídio da capital, visitantes deram mais detalhes sobre o funcionamento interno dessa cadeia. As mulheres presas no local não usam uniformes; seus trajes são fornecidos por suas famílias ou oriundos de doações. Devido à arquitetura adaptada, as internas circulam muito mais pela prisão em comparação com as detidas na penitenciária do interior. E, na capital, elas têm contato direto com a equipe de segurança.

Em ambas as cadeias, as mulheres têm acesso a visitas íntimas, com parceiros ou parceiras. Tal garantia segue a recomendação da resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) de que seja assegurado o direito à visita íntima a homens e mulheres, independentemente da orientação sexual (BRASIL, 2011). Os casos das duas instituições prisionais são exceção, visto que a efetivação desse direito nem sempre é respeitado em outros estabelecimentos penais do país, mesmo após as recomendações legais (PADOVANI, 2011; NICOLAU et al., 2012).

Embora tal direito esteja previsto nas normas das prisões, visitantes se queixam dos trâmites burocráticos prisionais, que se iniciam com a solicitação de uma autorização institucional. Sebastião, que visita a parceira presa, diz que o primeiro passo é pedir o aval de uma assistente social que trabalha na prisão feminina. Se for permitida, a visita íntima ocorrerá quinzenalmente. Gregório, que também tem parceira encarcerada, afirma ainda que há uma a regra na unidade prisional segundo a qual o casal pode perder a vaga se, por três vezes seguidas, não utilizar o espaço no dia e horário a ela destinados.

Esse conjunto de entraves e burocracias é criticado por quem realiza a visita íntima, sobretudo aqueles que já estiveram presos, como Sebastião. Ele nota como as prisões femininas são muito mais rígidas em relação à realização de visitas íntimas se comparadas às cadeias masculinas. Nessas últimas, ele informa, não há um fluxo da instituição: são os próprios homens presos que organizam como e onde são realizadas as “íntimas”.

A regulação dos direitos sexuais e reprodutivos é realidade de muitas mulheres encarceradas no Brasil. Diuana et al. (2016) apontam as desigualdades de gênero no acesso às visitas íntimas e descrevem outros impedimentos administrativos, como “a limitação da frequência e duração dos encontros (íntimos), a necessidade de comprovação de vínculo conjugal anterior à prisão, a exigência de exames médicos para o casal” (p. 2045). Em contrapartida, nas unidades prisionais masculinas há facilidades, benefícios e interesses dos administradores nas práticas heterossexuais entre as mulheres visitantes e os homens presos (BASSANI, 2016). Segundo Duarte (2014), tais relações sexuais em prisões masculinas são entendidas como uma “concessão legal fornecida pelo Estado, que pode ser retirada se o detento cometer uma infração disciplinar” (p. 636). Em outras palavras, as visitas íntimas são o meio de se obter ordem dentro do cárcere de homens (GUIMARÃES, 2015). Somadas às drogas, elas “acalmam os ânimos” e fazem “funcionar a prisão” (GUIMARÃES et al., 2006, p. 52).

Já em prisões femininas, além dos entraves administrativos já mencionados, há também as condenações morais dos diretores das unidades prisionais, que deslegitimam as relações conjugais estabelecidas pelas mulheres presas, assim como o desejo de serem mães (DIUANA et al., 2016). Conjectura-se que todas essas diferenças entre os cárceres femininos e masculinos ocorrem por dois motivos: o entendimento machista de que mulheres não têm as mesmas necessidades sexuais que homens e o interesse estatal em que a população prisional feminina não conceba filhos no cárcere.

Embora nas duas prisões estudadas as visitas íntimas sejam autorizadas, há uma diferença entre elas, referente às condições estruturais em que os encontros sexuais acontecem. Apenas quem visita na capital tem queixas a esse respeito. Como toda a infraestrutura do presídio, o local das visitas íntimas foi improvisado em uma cela desativada, com uma cama de concreto e colchão. Teodoro, que também “tira a íntima” com a esposa encarcerada, diz que leva roupas de cama e produtos de limpeza para higienizar o lugar antes de usá-lo. Esse arranjo observado no presídio da capital parece ser realidade na maior parte do sistema prisional brasileiro (SPAGNA, 2008; DIUANA et al., 2016).

Outra questão importante na vida de quem “puxa cadeia” é o comércio. Na capital ou no interior, a cantina é o ponto central nas negociações dentro das prisões femininas. Bernardo, que visita sua filha presa, esclarece como é o esquema de compra: “A presa pede o que quer nesta semana e recebe na outra”. Ele ainda informa que itens como amaciante, que não são autorizados nas “sacolas”3, são vendidos no comércio interno. “Só pode comprar lá dentro e o valor é inflacionado”, revela Bernardo. Assim, a instituição carcerária incentiva, mesmo de modo velado, que mulheres presas consumam produtos vendidos dentro da prisão, fazendo girar a engrenagem desse lucrativo negócio prisional.

As cantinas não são as únicas vias de acesso às mercadorias. Redes informais de comércio ocorrem de modo corriqueiro no interior da prisão. O cigarro, autorizado nas sacolas, é um dos itens mais requisitados, tanto por fumantes de longa data, como por mulheres que iniciaram o consumo de tabaco no cárcere. As não fumantes também vendem, por altas quantias, os cigarros levados em dias de visita. Algumas parcerias entre mulheres presas e suas famílias geram uma boa renda dentro do cárcere. Além dos cigarros, Flora, juntamente com sua mãe, que está presa, comercializam outros produtos. “Nós vamos começar a vender legging ali pras gurias [presas]”, conta. O meio de entrada das calças será por meio de caixas enviadas pelo correio ao presídio.

Visitantes são ainda responsáveis por outras redes de trocas dentro das prisões estudadas. Na penitenciária do interior, Tadeu leva comida para as “quatro colegas de cela” de sua irmã Fátima, pois elas não têm visita e ele se sente na obrigação de “manter a política da boa vizinhança”, fornecendo alimento a todas. No presídio da capital, Milena fala dos laços de solidariedade estabelecido nas galerias. Na primeira vez que foi à prisão, levou um pote pequeno de comida. Quando descobriu que Keyla, sua filha, era a única que recebia visita, passou a transportar mais mantimentos para auxiliar as demais mulheres presas. Agora, Keyla está em uma cela onde todas são visitadas. Ali, um sistema de trocas e de apoio é constante. Tudo o que recebem é dividido entre todas.

É possível observar uma aproximação dos dois casos. Tadeu carrega consigo mais alimentos que o necessário, na esperança de que sua irmã seja mais bem tratada pelas mulheres com quem está presa. Já a filha de Milena encontra-se em um local onde os itens das sacolas são compartilhados. Em ambos os casos, não são doações desinteressadas, embora as retribuições esperadas sejam distintas entre si.

Para Mauss (2013), a tríade de obrigações “dar, receber e retribuir” orienta os sistemas de trocas de dádivas que criam e/ou fortalecem os vínculos sociais. Aquele que doa espera retribuição do receptor. E esse, ao retribuir, cumpre a norma, garantindo o intercâmbio de dádivas entre os indivíduos, um dos pilares que mantêm as sociedades unidas. Partindo das ideias de Mauss, Paz (2007, p. 162) observa que o princípio de reciprocidade opera entre as mulheres presas, pois, segundo as suas interlocutoras, doar algo na prisão sem receber algo em troca é conduta de “otárias”, mulheres que não têm o “respeito” das demais. Nesse sentido, a atitude de Tadeu e sua irmã detida pode ser entendida como ingenuidade e tolice por parte daquelas que recebem os alimentos. Tadeu, porém, acredita que, mediante fornecimento de comida, sua parenta fica alojada um espaço prisional mais seguro. Há, portanto, uma aposta na reciprocidade, mesmo que essa não seja obtida por vias materiais.

Em outro estudo, Santos (2016) conduz análises sobre o fenômeno de trocas de dádivas em um presídio feminino a partir das concepções de Godbout e Caillé (1992 apudCAILLÉ, 1998, p. 25) acerca da “sociabilidade primária” e da “sociabilidade secundária”: na primeira modalidade, há maior valorização das relações estabelecidas entre as pessoas, ao passo que na segunda a funcionalidade delas tem maior importância. Nas narrativas da cadeia feminina descritas por Santos (2016), observa-se a sociabilidade primária na conduta de mulheres que doam seus itens para criar vínculos afetivos, entendendo que essas relações amorosas ou de amizade lhes garantem dádivas. Esses elos são especialmente relevantes para os grupos de mulheres que não recebem visitas. São, ainda, laços que não ficam restritos aos muros da prisão, como descreve o autor:

Troca-se tudo na prisão, como nomeou Mauss, são prestações totais, as visitas de uma passam a visitar a outra, o familiar de uma passa a mandar a feira da outra, a amiga que sai toma conta do filho da que ainda está presa (SANTOS, 2016, p. 38).

Contudo, para além da criação de laços de afeto, o autor destaca que a constituição de grupos de interação e troca conferem às mulheres que detêm bens maior poder e status no coletivo feminino. A valoração está diretamente vinculada à posse de itens pessoais passíveis de intercâmbio interno.

A partir desta observação é possível supor que todo o pavilhão é perpassado por trocas materiais e simbólicas, onde a condição de existência referida no relato das internas diz respeito à capacidade de participação social nesse “mercado de bens” (Ibid., p. 36).

Portanto, a partir desse ponto de vista, as mulheres presas que examinamos neste estudo são privilegiadas, pois por meio das visitas - fenômeno pouco frequente em cadeias femininas - elas adquirem insumos passíveis de trocas, sejam elas materiais, como no caso de Keyla, filha de Milena, ou simbólicas, como no caso de Fátima, irmã de Tadeu. Assim, quem possui bens tem maior repertório de interação, mais poder e mais autonomia dentro do cárcere.

Visitantes viabilizam ainda o exercício de algumas atividades laborais. Milena é fundamental para que a filha Keyla possa exercer sua profissão dentro do presídio da capital. A moça trabalhava como esteticista antes de ser presa. “Eu trouxe um monte de coisas para manicure, pedicure e cabelo, para ela trabalhar aí dentro com isso”, contou Milena. Tal ocupação, além de fornecer algum dinheiro, rende remição de pena à Keyla. Diferentemente do que informou Joelma sobre os cuidados estéticos feitos no pátio da penitenciária do interior, Milena diz que dentro da prisão da capital há um espaço destinado para o salão de beleza.

Para serviços de cabeleireira, manicure e pedicure, é necessária qualificação. Já as habilidades no preparo de alimentos não parecem ser pré-requisitos para que alguém seja “ligada”4 na cozinha da capital. Muitos são os relatos como o de Flora sobre a má qualidade da comida ofertada na prisão: “Acha que pra alguém trabalhar na cozinha tem que saber cozinhar? Aquela comida é uma vergonha pra humanidade das mulheres!”.

Não ficam claros, portanto, os critérios utilizados para selecionar as cozinheiras do cárcere. Vanda e Luzia foram duas escolhidas para tal tarefa. Elas são esposas, respectivamente, de Edvaldo e Gregório e estavam alojadas na galeria do “seguro”5 do presídio da capital, pois foram condenadas por crimes contra crianças. Até meados de 2017, elas não podiam trabalhar com remição de pena, pois eram ameaçadas pelas demais mulheres quando saiam da galeria. Já no início de 2018, ambas executavam atividades na cozinha, um dos locais mais disputados entre as mulheres presas.

Segundo Gregório, Luzia está conseguindo a remição de pena pelo serviço prestado na cozinha, mas não teve o mesmo sucesso com as atividades escolares que realizou na prisão. Essa é uma reclamação recorrente na fila. Dias de estudo ou trabalho formais nem sempre são revertidos em remição de pena.

Mesmo aquelas que obtêm a remição não têm garantia de que ela será mantida. Frances é uma das visitantes que se queixa disso: “Minha mulher trabalhou 11 anos na cadeia, mas depois que fugiu perdeu tudo. Agora ela decidiu que não vai mais trabalhar na cadeia”. Frances conheceu a parceira, Tessália, durante o período em que esteve confinada, e conta que durante todos esses anos a companheira esteve detida em diferentes prisões. A própria pesquisadora acompanhou parte dessa saga. Quando não via Frances na fila de espera de umas das prisões, sabia que iria encontrá-la na outra.

A partir de múltiplos relatos obtidos em campo, entendemos que a mudança para a prisão do interior é o maior receio de quem “puxa cadeia” na capital. Os motivos que levam mulheres a serem “empacotadas”6 variam. Na perspectiva de quem visita, mulheres presas que infringem regras institucionais podem levar essa punição. Foi o que aconteceu com Dinorá, esposa de Teodoro, pega com um celular na galeria. Ele informou que ela recebeu um procedimento administrativo disciplinar (PAD) e, como castigo, foi enviada à penitenciária do interior7.

Já a mudança para a capital é tão almejada que faz algumas mulheres cometerem atos extremos. Lourdes queria sair do interior. Como modo desesperado de conseguir ser empacotada, ela se “embretou”, ou seja, pediu para ser colocada no isolamento, lugar onde as mulheres costumam cumprir castigos. A intenção, de acordo com Kátia, mãe de Lourdes, era pressionar a equipe segurança: “Ela preencheu os papéis pra ser transferida e se embretou pra fazer eles tirarem ela de lá mais rápido. Mesmo assim, ela ficou mais de mês no brete”8.

Heidi, irmã da visitante Helga, também estava detida no isolamento da penitenciária do interior, mas foi transferida para a capital. Para Helga, o motivo da mudança de prisão, porém, foi outro: “Ela está aqui agora por motivos de ressocialização. Minha irmã ficou dois anos presa no castigo, no isolamento, e faz quase dois anos que ela tá aí [na capital]”. Segundo ela, o afastamento do convívio com o restante das mulheres era necessário, pois Heidi sofria constantes ameaças devido ao infanticídio que cometeu. A transferência por ressocialização mencionada diz respeito à possibilidade de realizar atividades diferenciadas no presídio da capital. Na penitenciária do interior, não haveria vagas disponíveis para trabalho, apenas para estudo escolar. Na capital, Heidi, que já tinha ensino superior completo, consegue remição fazendo artesanato, lendo livros e fazendo resenhas deles9.

Nos discursos obtidos em campo, a principal razão para a transferência do interior para a capital é a saúde das mulheres presas. De acordo com Janis, sua mãe, Elis, sofreu um ataque cardíaco e, como a rede municipal de saúde no interior não oferece assistência de alta complexidade, foi enviada para a metrópole.

Por vezes, as pessoas só conseguem acessar os serviços de saúde após serem presas. Valéria conta como foi o percurso de Jurema, sua mãe, presa, que já sofria com doenças, mas só conseguiu atendimento depois de ir para o presídio da capital: “Minha mãe foi levada da cadeia para o hospital e fez até uma biópsia no fígado. Agora até tá recebendo medicação”. Casos como esse revelam a violência estrutural do Estado. São trajetórias marcadas pela invisibilidade e pela não efetivação de seus direitos sociais mais básicos.

É através do acesso facilitado a direitos e serviços que a população carcerária subverte o processo invisibilizador promovido pela prisão. Ironicamente, o mesmo Estado que historicamente exclui é aquele que, ao possibilitar este acesso, permite que esta população se torne visível, ainda que circunscrita ao ambiente prisional (BARCINSKI e CÚNICO, 2014, p. 68).

Ao mesmo tempo que o aprisionamento pode viabilizar o acesso à saúde, pode também ser a razão pela qual as pessoas adoecem. Como já descrito, algumas mulheres iniciaram o consumo de tabaco na cadeia como modo de “controlar os nervos”. Rita é um exemplo: nunca havia fumado até ser presa. “Agora, são 14 carteiras [de cigarro] por semana que eu tenho que trazer”, contabiliza Geralda, mãe de Rita.

O grande consumo de medicações controladas reportado nas filas de espera também dá indícios do quanto a experiência de prisão traz prejuízos à saúde mental. Fátima é uma das mulheres que faz uso desse tipo de fármaco. Segundo Tadeu, seu irmão, ela não tinha problemas físicos ou emocionais antes do encarceramento. Na cadeia, a mulher perdeu 34kg, começou a tomar medicação para depressão e ansiedade e iniciou tratamento para hipertensão. Os psicofármacos são comprados por Tadeu, que recebe a receita do médico da cadeia.

Aliás, o atendimento às demandas emocionais das mulheres presas parece ser o carro-chefe das intervenções da equipe médica do presídio da capital. Pelo menos é isso que Chicão, visitante, informa. Ele diz que na prisão há profissionais da medicina, “mas só pra saúde mental”. “Teve uma mulher que passou mal aí dentro, não tinha ninguém pra prestar os primeiros socorros e ela acabou morrendo”, afirma. Essa foi a única denúncia que a pesquisadora escutou a respeito da ausência de atenção à saúde das mulheres presas que culminou no falecimento de uma delas. Chicão não deixa claro quando o episódio ocorreu, não entra em detalhes. Para Edvaldo, outro visitante, tal situação pode ter acontecido durante o final de semana, na folga da equipe de saúde prisional.

Porém, o caso relatado por Chicão não é o único registro de morte dentro da prisão escutado em campo. Os demais ocorreram por causas violentas, operados de modo muito semelhante. Quem conta esses episódios é Anita, egressa do sistema prisional, visitante da sogra, a quem conheceu dentro da prisão. Anita, que ficou presa por meio ano, passando três meses em cada uma das prisões estudadas, é uma das raras pessoas que diz preferir a penitenciária do interior: “O melhor de lá é que quem tem rixa de facção fica separada. Aqui [na capital], teve uma machorra10 que se encarnou em mim. Ela dá em cima de todas as novinhas”. Como Anita não tinha interesse em qualquer tipo de relacionamento com essa mulher, temia sofrer alguma retaliação, pois a “machorra já tinha matado três gurias que não quiseram ficar com ela”.

Os homicídios, segundo Anita, ocorreram sempre do mesmo modo: “A machorra mistura o pó das lâmpadas, com o amarelinho e o chapa-preta [medicações psiquiátricas]”. Essa mistura é colocada na comida das mulheres ou é oferecida a elas como cocaína. “Eu fiquei com muito medo. Aconteceu na cela do lado da minha. Eu ouvi os gritos, a mulher se debatendo e babando”. Após a morte da primeira, Anita decidiu que não se alimentaria mais da comida da cadeia: temia ser envenenada. “Eu pedi pra falar com a [assistente] social e disse que só ia comer o que a mãe trouxesse”.

A história de Anita aponta para um significado vital da visita: a sacola pode representar a sobrevivência de uma mulher que sofre esse tipo de ameaça no cárcere. A pessoa que visita e o que ela leva tornam-se indispensáveis para mulheres como essa interlocutora.

Após seis meses de detenção, Anita, que havia sido presa com o então companheiro, foi absolvida da acusação de tráfico de drogas e deixou a prisão carregando um “cuiudinho”11 no ventre. O romance com Djalma, seu atual parceiro e pai do filho que está a caminho, começou dentro do cárcere, em um dia de visita: “Eu tava presa e dividia a cela com a mãe dele. Acabamos ficamos amigas. Aí um dia eu vi ele no pátio da cadeia; ele visitava ela aqui. Começamos a namorar e agora tô grávida”. Esse é um raro evento em prisão feminina. São incomuns relatos de mulheres que conceberam um filho durante o confinamento, pois além de serem poucos os homens que visitam as parceiras presas, há instituições que impõem o uso de contraceptivo injetável (DIUANA et al., 2016).

Anita narra ainda o modo como deixou a prisão, às 23h, sem qualquer notificação prévia: “Peguei um ônibus, mas eu tinha tomado um monte de remédio pra dormir na cadeia. Quando eu entrei no ônibus, eu capotei. O motorista me acordou e eu já tinha perdido a parada”. Ele a ajudou, emprestando o celular para que pudesse solicitar a um familiar uma carona.

Escolhemos propositalmente o caso de Anita para encerrar este tópico. O fato de ela ser egressa a torna uma interlocutora privilegiada. Seu discurso, produzido a partir da sua própria experiência de confinamento, conduz a diferentes percepções e entendimentos sobre o que é “puxar cadeia”. Mostra, sobretudo, a importância vital que visitantes têm para determinadas pessoas privadas de liberdade.

Embora sua história tenha uma importante particularidade que a diferencia da maior parte da população prisional feminina, visto que engravidou durante o período de privação de liberdade, o restante da narrativa reúne uma série de violações, discutidas ao longo do presente estudo, que marcam as trajetórias de mulheres que puxam cadeia. A história dela, na realidade, parece um compêndio sobre o encarceramento feminino no Brasil: jovem mulher negra e pobre, detida junto com o cônjuge por tráfico de drogas, que responde presa ao processo. No cárcere, vivencia diferentes ameaças e recorre aos “amarelinhos” para suportar o confinamento. Por fim, sob efeitos de psicofármacos que ela mesma administrava, é posta em liberdade sem qualquer aviso prévio, no meio da noite, depois de ter vivido desnecessários seis meses na cadeia.

Reflexões finais

Neste estudo, buscamos identificar as perspectivas de visitantes sobre os crimes cometidos pelas mulheres privadas de liberdade e seu cotidiano carcerário em duas prisões femininas muito distintas entre si. Acerca da criminalidade, embora alguns discursos tenham enfatizado o protagonismo e a volição das mulheres em condutas criminais, a maioria das narrativas reforça a passividade ou a subordinação feminina aos parceiros, associando as esferas afetivas aos delitos pelos quais mulheres são aprisionadas. Ademais, uma parcela considerável dos relatos ressalta as vulnerabilidades das mulheres, especialmente quando descrevem múltiplas violações sofridas por elas pelos cônjuges. São mulheres que tentaram ou consumaram crimes contra a vida para resguardar suas próprias vidas ou a de terceiros.

Histórias sobre o “amor bandido” foram especialmente acionadas quando se tratava de mulheres presas por tráfico de drogas. Nesses relatos, a responsabilidade das mulheres é diluída em narrativas que as eximem de qualquer culpa, uma vez que o encarceramento feminino é justificado pela vinculação a um parceiro “bandido”. Contudo, pesquisas realizadas diretamente com as mulheres presas indicam que não é a presença, mas sim a ausência do companheiro que move muitas delas em direção ao tráfico de drogas. Trata-se de um meio desesperado de conseguir um dinheiro para sustentar a si e sua prole, pela qual ficaram como únicas responsáveis (RAMOS, 2012; CHERNICHARO, 2014; HELPES, 2014; CORTINA, 2015; BOITEUX, FERNANDES e PANCIERI, 2017).

Por esses estudos, podemos pensar que a seletividade penal da guerra às drogas, política estatal de controle da população negra e pobre, tem atingido uma quantidade grande de mulheres chefes de famílias e/ou mães solo, que são conduzidas às prisões por não serem capazes de prover o sustento familiar. Tal perspectiva, porém, não encontra eco entre os relatos de nossos interlocutores, pois nenhuma das narrativas coletadas justifica os crimes femininos como meio de sustento da família.

Devido ao desenho traçado neste estudo, não tivemos acesso às trajetórias do grupo majoritário das prisões femininas, composto por quem não recebe visitas. A literatura geralmente aponta que essas mulheres foram abandonadas nas prisões por suas famílias. Contudo, entendemos ser importante refletir sobre os motivos dessas ausências. Podemos imaginar que essas mulheres sem visitas eram as principais provedoras de seus lares antes de serem encarceradas. Uma vez aprisionadas, seus parentes não contariam mais com os valores que elas obtinham, causando dificuldades financeiras, o que poderia explicar o não comparecimento dessas pessoas em dias de visita.

Criamos essa hipótese a partir de relatos frequentemente coletados que apontam para os enormes gastos advindos do encarceramento das mulheres. Visitar é uma atividade cara. Assim, é possível supor que, dentro do grupo socialmente marginalizado no qual está inserida a maioria dos familiares de pessoas presas, são indivíduos com melhores condições econômicas e/ou uma rede de apoio mais fortalecida os que conseguem realizar visitas na cadeia.

Acerca do segundo tópico abordado neste manuscrito, observamos que os relatos coletados - sobretudo quando obtidos com egressas do sistema prisional, como Anita -, permitiram explorar comparativamente o interior das duas prisões estudadas, que se mostraram muito diferentes entre si. A partir das narrativas coletadas, notamos o quanto o aprisionamento e as visitas ao cárcere são experiências pessoais constantemente atravessadas pela arquitetura e pelas normas de cada instituição.

Ao longo do presente estudo, procuramos mostrar como é a vida de quem “puxa cadeia” acompanhada, ou seja, de quem recebe visitantes. As visitas alteram a rotina prisional não apenas por sua presença, mas também em função dos itens que levam para o interior do cárcere. O transporte de insumos pode ser a via de acesso à saúde, pela compra de medicações não disponíveis nas prisões, ou pode viabilizar que as mulheres presas consigam trabalho e renda. Os materiais obtidos internamente com suas famílias permitem ainda trocas no comércio institucionalizado da cantina - que vende, inclusive, itens proibidos na sacola - ou no comércio informal daquilo que entrou via visitantes. Esses recursos não apenas garantem melhores condições dentro da prisão como também podem salvar vidas, como foi o caso de Anita, que se alimentava exclusivamente do que era levado por sua visitante.

Ainda, os insumos conduzidos para o interior do cárcere permitem trocas simbólicas. As sacolas fornecidas por quem visita podem posicionar hierarquicamente as mulheres dentro da prisão feminina, pois quem possui bens - sejam eles advindos dos disputados trabalhos prisionais ou adquiridos por intermédio da visita - tem maior poder no interior do cárcere.

Pelos relatos ouvidos em campo, há mulheres que adoecem durante o período de confinamento. Algumas começam a fumar, outras tomam os “amarelinhos” com regularidade. A hipermedicação de psicofármacos, aliás, parece ser realidade nas unidades prisionais femininas do Brasil, um modo de lidar com as dores da prisão. Mas, para além das questões relativas ao sofrimento mental, reforçamos que é justamente no cárcere que muitas mulheres conseguem acessar serviços de saúde que lhes foram negados quando estavam em liberdade. As questões de saúde também movimentam as mulheres da penitenciária do interior para a da capital, onde há acesso a serviços de média e alta complexidade da rede municipal de saúde. Essa mudança de prisão parece bastante desejada pelas mulheres presas e por quem as visita. Já o trajeto no sentido contrário é temido.

A partir do conjunto de narrativas colhidas, é possível inferir que há um deslocamento espacial desvalorizado no exterior da prisão, a saber, a transferência da cadeia da capital para o interior. O depoimento de Joelma, egressa que ficou presa por anos na penitenciária do interior, dá pistas das razões pelas quais as pessoas têm preferência pelo confinamento na metrópole.

Já a percepção sobre os deslocamentos internos nas prisões varia. Alguns trânsitos são claramente valorizados, como o da cela para a cozinha. Já outros deixam margem para a dúvida, como é o caso do isolamento; inicialmente projetado para castigar aquelas com comportamentos desaprovados pela equipe de segurança, o local também funciona como um meio radical de conseguir ser “empacotada”, como aconteceu com Lourdes, ou como abrigo para resguardar mulheres que sofrem intimidações na prisão, como Heidi.

Os motivos que levam mulheres a serem transferidas variam. Para quem visita, trata-se de uma punição. Já para quem trabalha na prisão, é um meio de organização institucional. Nesse sentido, chama atenção que todas as histórias sobre mulheres presas por crimes violentos tenham sido coletadas na capital, embora seja a penitenciária do interior aquela a que teoricamente se destinariam as presas consideradas mais perigosas.

Na descrição apresentada, informamos que as duas unidades prisionais analisadas surgiram em períodos distintos, com propósitos bastante divergentes de institucionalização feminina. Anos antes da instituição do atual Código Penal Brasileiro, o espaço de confinamento da capital já era administrado por congregações religiosas. À época, a criminalidade de mulheres estava vinculada a desvios morais, corrigidos por intermédio da religião e do trabalho. Já a penitenciária do interior, inaugurada oito décadas depois, tem arquitetura e funcionamento de uma prisão de segurança máxima, para confinar mulheres de suposta alta periculosidade.

Notamos que embora os ideais de punição feminina tenham mudado ao longo do tempo, os modelos vigentes à época da inauguração das prisões ainda pautam o modo como cada instituição prisional estudada se estrutura e funciona na atualidade. Mesmo que hoje em dia o presídio da capital seja administrado por um órgão estadual, ainda opera o ideal ressocializador do trabalho, assim como o reforço institucional para que mulheres tenham comportamentos dóceis. Entre as apenadas, só permanecem no local aquelas formalmente vinculadas às atividades laborais. Ademais, apenas as mulheres com “bom comportamento” são mantidas na instituição; qualquer desvio de conduta é punido com a transferência para a penitenciária do interior. Esta, por sua vez, inaugurada na atual era de ascendência da população prisional feminina, se constitui como um espaço de punição redobrada, de castigo para quem não segue o script da “boa presa”.

Por fim, notamos que o encarceramento feminino, cujo aumento vem sendo muito mais intenso que o masculino neste século, não se desdobra em estudos mais frequentes sobre prisões nas quais mulheres se encontram reclusas. Desse modo, as peculiaridades do cotidiano carcerário desses estabelecimentos penais cada vez mais superlotados não ganha relevo nas análises. O pouco investimento acadêmico em prisões femininas na última década contrasta com o fato de que a primeira pesquisa sociológica no sistema prisional nacional, conduzida entre 1976 e 1978, foi justamente em instituição de confinamento de mulheres (LEMGRUBER, 1999). Tal estudo teve sua primeira publicação em 1983, um ano antes do estudo pioneiro sobre cárcere masculino (RAMALHO, 1984).

As lacunas da produção científica sobre cárcere ficam ainda mais nítidas quando pontuamos os poucos estudos sobre visitantes em cárcere de mulheres. Se o citado dossiê sobre gênero e prisões (PADOVANI, HASSELBERG e BOE, 2019) é composto por uma imensa maioria de artigos em unidades femininas, inclusive comparando-as com as masculinas, quando aborda as pessoas que visitam, e não as privadas de liberdade, destaca exclusivamente as prisões masculinas. Esses e outros desafios presentes na literatura científica sobre o tema mostram a relevância de continuarmos expandindo nossos cenários e atores nas etnografias em instituições.

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  • 1
    A categoria nativa “puxar cadeia” é frequentemente usada nas filas de espera das prisões estudadas e diz respeito à experiência de aprisionamento. Para aquelas que estão presas, “puxar cadeia” refere-se ao tempo de privação de liberdade dentro do cárcere.
  • 2
    Um inimigo. Indivíduo vinculado a outra facção.
  • 3
    Conjunto de materiais que visitantes levam às mulheres presas em dias de visita.
  • 4
    Trabalhar na prisão com remição de pena.
  • 5
    Local na prisão onde ficam as mulheres que cometeram crimes rechaçados pela maioria da população prisional feminina, como delitos sexuais ou homicídios de crianças.
  • 6
    Transferidas para outra instituição prisional.
  • 7
    A agente penitenciária Agnes apresenta outras razões para as transferências. Ela explica que em 2017 a prisão da capital foi rebatizada, passando de penitenciária a presídio. Tal mudança na nomenclatura seria o argumento utilizado pela instituição prisional para abrigar apenas as mulheres não sentenciadas. Permaneceram na capital somente as apenadas que trabalham no cárcere. Assim, de acordo com Agnes, as demais mulheres condenadas são encaminhas à penitenciária do interior.
  • 8
    Local de isolamento, geralmente de castigo, dentro da prisão.
  • 9
    Recomendação nº 44, de 26 de novembro de 2013, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (2013), de remição de pena pela leitura.
  • 10
    Mulher masculinizada ou homem transgênero que se relaciona sexualmente com mulheres.
  • 11
    Filho concebido no cárcere, na visita íntima.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2020
  • Aceito
    19 Out 2020
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