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Governança criminal na América Latina em perspectiva comparada: Apresentação à edição especial

Nas periferias urbanas ao redor do mundo, uma realidade surpreendente se esconde à luz do dia, bem conhecida, mas em grande parte fora do alcance do público: organizações criminosas locais governam, tanto ou mais do que o Estado. No mínimo, elas “[impõem] regras e restrições ao comportamento” dos civis, conforme a ampla definição de governança criminal oferecida em Lessing (2021LESSING, Benjamin. “Conceptualizing Criminal Governance”. Perspectives on Politics, vol. 19, n. 3, pp. 854-73, 2021.), e muitas vezes fazem muito mais que isso. O Estado, embora frequentemente distante e negligente, nunca está totalmente ausente. Os residentes continuam votando, trabalhando em áreas formais da cidade, mandando seus filhos para a escola sempre que possível e recebendo os benefícios públicos oferecidos. Acima de tudo, a polícia geralmente pode entrar à vontade, embora nem sempre sem lutar. Contudo, raramente fica; poucos Estados contestam a governança criminal de forma sustentada, mesmo em meio a “guerras ao crime” militarizadas. Em vez disso, surge um modus vivendi tenso, mas estável. Tipicamente, se você perguntar às pessoas “quem é que manda aqui?”, a resposta é clara: a gangue, a mara, a milícia, a facção, o coletivo ou o cartel. Os moradores sabem disso, assim como a polícia, os políticos e, cada vez mais, os pesquisadores.

A governança criminal é intrigante precisamente por causa dessa justaposição com a governança estatal. Embora seja tentador (e às vezes apropriado) agrupar conceitualmente grupos criminosos com rebeldes e insurgentes como “atores armados não estatais”, isso ignora diferenças importantes. Por um lado, grupos criminosos praticamente nunca estabelecem controle territorial absoluto e, muitas vezes, nem chegam perto disso. A polícia entra o todo nas áreas em que as gangues operam - na verdade, a redução de sua exposição à polícia é uma razão importante pela qual os grupos criminosos governam em primeiro lugar. Grupos rebeldes e insurgentes, em contraste, costumam estabelecer áreas de controle territorial exclusivo, e é nessas “zonas liberadas” que surge mais frequentemente a governança rebelde sobre civis (ARJONA, KASFIR e MAMPILLY, 2015ARJONA, Ana; KASFIR, Nelson; MAMPILLY, Zachariah (orgs). Rebel Governance in Civil War. New York: Cambridge University Press, 2015.). Além disso, grupos rebeldes governam como parte de um projeto explícito de “construção competitiva do Estado (competitive state-building)” (KALYVAS, 2006KALYVAS, Stathis N. The Logic of Violence in Civil War. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.) que visa, em última análise, separar-se do Estado ou derrubá-lo.

Os grupos criminosos não têm tais objetivos, e a governança criminal não constitui uma ameaça existencial ou mesmo uma alternativa contundente à governança estatal. Em vez disso, é por natureza enraizada (embedded) em uma esfera maior de governança do Estado. Às vezes, está fisicamente enraizada: muitas organizações criminosas governantes, incluindo as poderosas facções do Brasil, começaram como gangues penitenciárias (prison gangs) e continuam governando grandes massas carcerárias. Elas obtêm uma autonomia significativa dos guardas, embora permaneçam contidas, cercadas e sujeitas à força coercitiva do Estado. A governança criminal também pode ser enraizada em um sentido metafórico: organizações criminosas governam mercados ilícitos, como o varejo de drogas, que só existem como tais porque os Estados promulgaram e aplicaram a proibição. De fato, não pode haver nada “criminoso” sem um Estado para criminalizá-lo (ver, por exemplo, FELTRAN, 2012FELTRAN, Gabriel de Santis. “Governo que produz crime, crime que produz governo: O dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992-2011)”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 6, n. 2, pp. 232-55, 2012.; KOIVU, 2018KOIVU, Kendra L. “Illicit Partners and Political Development: How Organized Crime Made the State”. Studies in Comparative International Development, vol. 53, n. 1, 47-66, 2018.).

O termo “governança” pode parecer problemático à sua maneira, uma vez que grupos criminosos geralmente não estabelecem o monopólio do uso da força. Ao contrário, áreas de governança criminal costumam conformar “duopólios de violência” (SKAPERDAS e SYROPOULOS, 1997SKAPERDAS, Stergios; SYROPOULOS, Constantinos. “Gangs as Primitive States”. In: FIORENTINI, Gianluca; PELTZMAN, Sam (orgs). The Economics of Organised Crime. New York: Cambridge University Press, 1997, pp. 61-78.), obrigando os sujeitos dessa governança a navegarem entre as autoridades estatais e criminais que, juntas, mas em oposição, ordenam a vida cotidiana. Assim, a “governança criminal” foge de definições weberianas porque se remete a situações nada weberianas. Ademais, essas situações não são excepcionais e transitórias, como uma leitura talvez simplista de Weber poderia indicar, mas sim comuns e persistentes. Uma análise recente da dados do Latinobarómetro 2020 mostra que, em toda a América Latina, 13% do total de entrevistados relataram governança por um grupo criminoso ou armado em seu bairro (URIBE et al., 2022URIBE, Andres; LESSING, Benjamin; BLOCK, Douglass; SCHOULA, Noah; STECHER, Elayne. “How Many People Live under Criminal Governance in Latin America?”. Working Paper, 2022.), correspondendo a mais de 70 milhões de cidadãos.

Esse número surpreendente esconde uma enorme variação. Como é a governança criminal na prática, até que ponto ela se estende em quais dimensões da vida cotidiana e como ela interage com a autoridade do Estado, tudo isso varia imensamente entre países, cidades e comunidades. Algumas organizações impõem uma única regra: não chame a polícia; outras podem regular a entrada e saída de moradores, o comércio lícito, a vestimenta ou mesmo práticas religiosas (como documentam Miranda, Muniz, Almeida e Cafezeiro em seu artigo nesta edição especial). Muitos grupos proíbem e punem crimes sexuais e contra o patrimônio; alguns oferecem serviços de resolução de disputas e até mesmo bem-estar e infraestrutura limitados. Uma diferença absolutamente crucial entre os grupos é que alguns cobram taxas de segurança e impostos das empresas e dos moradores locais, enquanto outros não o fazem, vivendo principalmente dos lucros das drogas e exigindo apenas a cumplicidade dos moradores durante as operações policiais.

Os grupos criminosos também variam significativamente na maneira como governam, no quanto governam e em quão bem governam. Embora, em última análise, dependam da coerção (ou seja, das armas e da vontade de usá-las), para estabelecer a autoridade dominante, alguns dependem mais do “poder brando” (soft power) e da legitimidade percebida, enquanto outros empregam com frequência violência punitiva e aterrorizante. Em algumas formas de governança criminal o poder é amplamente personalista, advindo de donos, capos, e “patrões” carismáticos cujas decisões não podem ser facilmente questionadas. Em outras, advém mais de normas, ideais e procederes compartilhados e universais, contra os quais as ações dos indivíduos podem ser julgadas. Finalmente, alguns grupos criminosos são surpreendentemente eficientes e eficazes em sua governança, sendo capazes de produzir mudanças de nível macro nas taxas de criminalidade e em outros indicadores, enquanto outros, de uma maneira que lembra os Estados fracos, mantêm as feições externas da autoridade governamental sem fornecer muita governança efetiva para aqueles sob seu domínio.

Investigar empiricamente essa variação e colocá-la em uma perspectiva comparada mais estruturada foi a motivação central desta edição especial de Dilemas. Poucos são os pesquisadores de bairros informais ou periféricos na América Latina que não têm observado diretamente alguma forma de governança criminal. Mas poucas também são as comparações sistemáticas feitas entre essas diversas realidades.

Isso se deve em parte à dificuldade fundamental de observar e “medir” a governança criminal. Os governos têm incentivos para minimizar ou negar sua extensão e, uma vez que ela é criminalizada e reprimida por policiais muitas vezes assassinos, não é algo que os moradores estejam sempre dispostos a falar, mesmo quando perguntados. O que sabemos sobre governança criminal se deve em grande parte a observações etnográficas. Às vezes essas observações são inadvertidas ou inesperadas e podem aparecer como fatores contextuais em estudos sobre crime, violência ou aspectos não criminosos da vida local em comunidades informais ou periféricas. Mesmo quando pesquisadores vão a campo com o objetivo explícito de estudar a governança criminal, é comum estudarem uma única comunidade, ou no máximo algumas comunidades na mesma cidade ou região. O resultado é muitas vezes uma observação rica e matizada que pode até capturar mudanças na governança local ao longo do tempo, mas nos diz pouco sobre o quão comum ou excepcional é o caso em questão.

A fim de preencher essa lacuna, a chamada de artigos para esta edição especial encorajou explicitamente o trabalho colaborativo, comparativo e empírico. Todos os 11 artigos selecionados foram produzidos por equipes de dois ou mais autores que compararam a governança criminal em dois ou mais contextos, geralmente com base em dados empíricos já coletados em projetos de pesquisa diversos que começaram muito antes da pandemia de Covid-19. Embora a análise comparativa primária ocorra dentro de cada artigo, também realizamos dois workshops com todos os autores contribuintes para compartilhar e discutir os resultados iniciais, a fim de facilitar comparações significativas entre os artigos e com a literatura sobre governança criminal em geral1 1 Os organizadores ofereceram aos participantes um marco conceitual (LESSING, 2021) como uma ferramenta potencialmente útil, mas não havia expectativa de que os autores o empregassem em seus artigos. De fato, alguns não o fizeram, enquanto outros o adaptaram aos seus próprios propósitos. Isso está de acordo com a intenção original do enquadramento. .

É particularmente apropriado que esta edição especial sobre governança criminal seja publicada no Rio de Janeiro, pois muitas pesquisas fundamentais sobre governança criminal foram feitas lá. Nas décadas de 1980 e 1990, o tráfico de drogas do Rio se expandiu e passou a ser organizado por organizações prisionais conhecidas como facções. Acadêmicos com uma variedade de perspectivas, tanto brasileiros (ex.: MACHADO DA SILVA, 1994MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Violência e sociabilidade: Tendências da atual conjuntura urbana no Brasil”. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos (orgs). Globalização, Fragmentação e Reforma Urbana: O futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, pp. 147-168.; MISSE, 1999MISSE, Michel. “O ‘movimento’: Mercados ilícitos e violência”. In: Malandros, marginais e vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999, pp. 288-335.; SOARES, 1996SOARES, Luiz Eduardo (org). Violência e política No Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Iser, 1996.; ZALUAR, 1985ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 1985.) como internacionais (ver, por exemplo, GAY, 1993GAY, Robert. Popular Organization and Democracy in Rio De Janeiro: A Tale of Two Favelas. Philadelphia: Temple University Press, 1993.; LEEDS, 1996LEEDS, Elizabeth. “Cocaine and Parallel Polities in the Brazilian Urban Periphery: Constraints on Local-Level Democratization”. Latin American Research Review, vol. 31, n. 3, pp. 47-83, 1996.), e muitas vezes sem intenção inicial de estudar a governança criminal, se encontraram confrontados pelas mudanças transformadoras que as facções estavam protagonizando nas favelas cariocas.

A crescente militarização da guerra do tráfico do Rio nas últimas quatro décadas contribuiu para formas particularmente intensas de governança criminal: as facções construíram poderosos arsenais para uso contra rivais e policiais, que também serviram como um aparato coercitivo de governança sobre os civis. Além disso, a governança tornou-se parte fundamental das estratégias das facções, conquistando a lealdade e o auxílio dos moradores durante as incursões policiais (ver, por exemplo, ARIAS, 2006ARIAS, Enrique Desmond. Drugs and Democracy in Rio de Janeiro: Trafficking, Social Networks, and Public Security. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2006.; BARBOSA, 2005BARBOSA, Antônio Rafael. Prender e dar fuga: biopolítica, sistema penitenciário e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.; DOWDNEY, 2003DOWDNEY, Luke. Children of the Drug Trade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.; GRILLO, 2013GRILLO, Carolina C. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Ciências Humanas [Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.). Particularmente nas comunidades dominadas pelo Comando Vermelho (CV), a disposição das facções para usar a força armada contra a polícia produziu uma forma relativamente forte de presença territorial armada, em que as forças estatais ainda podem entrar, mas geralmente só o fazem como parte de um grande operação militar. Esse cenário se aproxima - embora ainda fique aquém - do controle territorial completo típico do governo rebelde, visto em muitas guerras civis e insurgências.

Se, por um lado, essa intensidade tornou a governança criminal no Rio mais observável e, portanto, mais fácil de estudar, por outro, promoveu uma visão da governança criminal como um desafio direto ao Estado. Frases como “poder paralelo” e “domínio territorial” se tornaram usuais entre jornalistas e autoridades e são muito debatidas por estudiosos. Enquanto isso, com a ascensão do Primeiro Comando da Capital (PCC) nas décadas de 1990 e 2000, a governança criminal em São Paulo tomou uma forma muito diferente: uma presença territorial muito mais leve (ver, por exemplo, BIONDI, 2018BIONDI, Karina. Proibido roubar na quebrada: Território, hierarquia e lei no PCC. São Paulo: Terceiro Nome, 2018.; FELTRAN, 2012FELTRAN, Gabriel de Santis. “Governo que produz crime, crime que produz governo: O dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992-2011)”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 6, n. 2, pp. 232-55, 2012.) e um sistema disciplinar envolvendo códigos de conduta escritos, julgamentos por júri e “fichas criminais criminais” individuais para cada membro e afiliado (LESSING e DENYER WILLIS, 2019LESSING, Benjamin; DENYER WILLIS, Graham. “Legitimacy in Criminal Governance: Managing a Drug Empire from behind Bars”. American Political Science Review, vol. 113, n. 2, pp. 584-606, 2019.). O caso do PCC iluminou a relação paradoxal entre criminalidade e governança estatal: simultaneamente antagônica e simbiótica (ADORNO e DIAS, 2016ADORNO, Sérgio; DIAS, Camila Nunes. “Cronologia dos ‘Ataques de 2006’ e a nova configuração de poder nas prisões na última década”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 10, n. 2, pp. 118-32, 2016.; DENYER WILLIS, 2009).

Enquanto isso, uma variedade de forças aumentou a extensão e a intensidade da governança criminal em toda a América Latina. A disseminação do “modelo-facção” inaugurado pelo CV e pelo PCC por praticamente todos os cantos do Brasil (e alguns países vizinhos) deixou as periferias urbanas divididas entre um punhado de organizações criminosas, e a maioria delas vê alguma forma de governança sobre os civis como parte de sua missão. A guerra dos cartéis no México produziu casos fascinantes de governança criminal predominantemente rural, com grande variação entre os cartéis. A longa história de guerra civil e conflito de cartéis na Colômbia deixou para trás um rico ecossistema de grupos criminosos, alguns com tradições multigeracionais de governança sobre os civis. A crise em curso na Venezuela levou um Estado enfraquecido a tolerar abertamente e, em alguns casos, fazer parceria com grupos criminosos capazes de manter a ordem em vastas populações marginalizadas. As gangues mara baseadas em prisões da América Central mostraram sua força de governança nas ruas por meio de uma série de tréguas para reduzir a violência, que as colocaram no centro da política nacional2 2 Uma lacuna importante nesta edição especial é a falta de artigos sobre a cobertura da América Central; um caminho claro para pesquisas futuras é integrar os achados aqui apresentados com pesquisas sobre as maras. . E, de volta ao Rio de Janeiro, a ascensão de milícias ligadas à polícia, posicionando-se como um mal menor em relação às facções do tráfico, sugere uma economia política alternativa de governança criminal baseada principalmente na extorsão e na penetração profunda do aparato de segurança do Estado.

Por todas essas razões, é chegado o momento de ampliar o estudo da governança criminal, procurá-la onde ainda não foi detectada e refinar nossos esquemas conceituais para que acomodem um conjunto crescente de casos empíricos. Nossa chamada de artigos pediu comparações entre contextos, mas deixou intencionalmente em aberto a questão de quais “contextos” deveriam ser comparados; o resultado é uma variedade refrescante de abordagens, que dividimos em três grandes categorias. Na primeira seção desta edição especial, os autores comparam a governança criminal em diferentes países; na segunda, comparam diferentes cidades; e na terceira, comparam comunidades em uma única cidade e, em um caso, em um único “complexo” de favelas. Aqui, divirjo desse esquema organizacional para discutir alguns dos temas e achados mais amplos que emergem desta edição como um todo.

Primeiro, muitos dos artigos tratam de transformações ou contrastes na forma como o crime é organizado e das implicações disso para a violência e a ordem urbana. Em particular, a chegada de grupos criminosos baseados em prisões, como as facções do Brasil, pode transformar a realidade da vida nas periferias urbanas, subsumindo estruturas fragmentadas de gangues de rua em alianças de facções maiores em toda a cidade. Em sua contribuição, Luana Motta, Rafael Rocha, Ada Rízia e Adson Amorim ilustram o impacto dessas transformações comparando duas cidades brasileiras: Maceió, que passou por esse processo, e Belo Horizonte, que não o fez. Se ambas permanecem sujeitas à guerra e paz de gangues, Maceió está sujeita a oscilações mais coordenadas de violência em nível de cidade, já que qualquer comunidade é suscetível de ser unificada sob o controle de uma ou outra facção. Em Belo Horizonte, por outro lado, as guerras de gangues são mais dispersas e imprevisíveis e podem impactar mais intensamente a vida intracomunitária.

Ítalo Barbosa Lima Siqueira, Francisco Elionardo de Melo Nascimento e Suiany Silva de Moraes exploram transformações semelhantes das dinâmicas de violência em micro e macro escala nas periferias de Fortaleza e Manaus e os efeitos paradoxais e as consequências políticas da governança criminal. À medida que essas cidades foram “faccionalizadas”, seus moradores passaram a vivenciar tanto a “pacificação” de suas comunidades, acabando com as lutas endêmicas entre gangues de rua, como a violência extrema de facções em uma escala nunca vista.

Gabriel Feltran, Cecília Lero, Marcelli Cipriani, Janaina Maldonado, Fernando de Jesus Rodrigues, Luiz Eduardo Lopes Silva e Nido Farias desenvolvem essa ideia em uma hipótese estruturada sobre as causas determinantes da variação macro da taxa de homicídios em quatro cidades brasileiras. Em um dos principais argumentos apresentados nesta edição especial, eles reúnem dados quantitativos e ricos relatos etnográficos para mostrar como as dinâmicas entre facções se tornaram o principal motor das oscilações em larga escala da violência urbana no Brasil hoje. Sergio Adorno e Arturo Alvarado constroem um argumento semelhante, em sua comparação matizada da Cidade do México e São Paulo. Essas duas megacidades, entre as maiores do mundo, apresentam diferenças gritantes na dinâmica criminosa, devido, sugerem os autores, à multiplicidade de atores criminosos na primeira e à hegemonia do PCC na segunda. Finalmente, a fascinante análise de Juan Martens, Roque Arnaldo Orrego, Ever Villalba, Ricardo Veloso, Luís González e Francisco Delgado sobre a penetração de facções brasileiras nas zonas fronteiriças do Paraguai ilustra a reestruturação da governança criminal em tempo real. Eles também oferecem uma visão inestimável sobre os efeitos em nível micro dessas mudanças nas estruturas criminosas nas relações crime-Estado em um contexto de corrupção profunda.

Um segundo tema central que aparece nos artigos é a ideia de que diferentes tipos de grupos criminosos governam de maneiras distintas. Observando a grande variedade de grupos criminosos que governam em contextos muito diferentes e certas semelhanças entre eles, podemos discernir dois ou talvez três tipos ideais. Um deles obtém a maior parte de sua renda no varejo de medicamentos na zona periférica que controla; não tributa os residentes e muitas vezes fornece ativamente bens públicos, como parte de uma estratégia geral de fidelização dos residentes. Sua relação com o Estado é mediada principalmente por meio de interações violentas, porém corruptas, com a polícia, embora possa tentar vender o acesso a eleitores nas regiões que controla. Um segundo tipo ideal se apresenta como protetor da comunidade, muitas vezes de grupos de narcotráfico. Esse tipo vive principalmente de impostos, receitas “tributárias” extraídas de empresas e moradores locais por meio de vários mecanismos, muitas vezes incluindo extorsão direta. Também pode ganhar algo com as drogas, mas geralmente não reconhecerá isso abertamente. Criticamente, é provável que esse grupo tenha melhores conexões com a classe política e, muitas vezes, enfrenta menos repressão policial.

Empiricamente, a distinção entre esses dois tipos de organização criminosa talvez seja mais clara no estudo comparativo de Eduardo Ribeiro, Luis Eduardo Soares e Miriam Krenzinger sobre o Rio de Janeiro, onde milícias ligadas à polícia surgiram especificamente para combater facções de tráfico de drogas baseadas em prisões e se provaram muito mais hábeis em penetrar no sistema político.

Os colectivos de Caracas, discutidos em dois artigos, também desfrutam claramente de um acesso mais significativo a atores políticos, com consequências importantes para suas estratégias. Em sua contribuição, Roberto Briceño-León, César Barreira e Jania Perla Diógenes de Aquino comparam Fortaleza, no estado nordestino do Ceará, com Caracas, na Venezuela. Em uma descoberta que repercute em toda a edição especial, os autores argumentam que as facções de Fortaleza - entre as mais fortes do Brasil fora do Rio e de São Paulo - são motivadas principalmente por ganhos econômicos ilícitos, enquanto os colectivos de Caracas - que há muito desfrutam de laços informais com atores estatais - buscam principalmente ganhos políticos. O fruto desses ganhos inclui formalização e legitimação limitadas pelo Estado e até mesmo acesso a recursos estatais, potencialmente permitindo a renúncia à tributação. Na verdade, isso pode até constituir uma forma totalmente diferente de governança. Em sua comparação subnacional dos colectivos de Caracas com suas megabandas recém-formadas (mais próximas do tipo ideal do narcotráfico), Verónica Zubillaga, Rebecca Hanson e Francisco Sánchez distinguem a governança criminosa praticada pelas megabandas de uma forma de governança mais colaborativa que os colectivos estabeleceram por meio de seus laços com os governos de Chávez e Maduro.

Isso sugere um potencial terceiro tipo ideal, (parcialmente) capaz de formalizar suas atividades e, em certos aspectos, fundir-se ou integrar-se ao Estado (BARNES, 2017BARNES, Nicholas. “Criminal Politics: An Integrated Approach to the Study of Organized Crime, Politics, and Violence”. Perspectives on Politics, vol. 15, n. 4, 967-87, 2017.). As profundas conexões entre as forças de segurança do Estado, a política de repressão e a ascensão das milícias no Rio e das autodefesas em Michoacán são exploradas por Antonio Fuentes Díaz e José Cláudio Souza Alves em sua contribuição. Enquanto isso, embora não seja o objetivo principal de seu artigo, Juan Martens, Roque Arnaldo Orrego, Ever Villalba, Ricardo Veloso, Luís González e Francisco Delgado fornecem um retrato intrigante da governança criminal sob a ditadura do Paraguai - amplamente controlada por oficiais do exército - e sua fragmentação desde a transição para a democracia. Tomados em conjunto, esses artigos sugerem (pelo menos para mim) uma hipótese provocativa: a governança criminal do tipo milícia pode ficar completa e evoluir para formas de integração, formalização e colaboração com o Estado sob regimes autoritários. De qualquer forma, a relação da governança criminal com o tipo de regime é um caminho promissor para pesquisas futuras.

Finalmente, algumas contribuições apontam semelhanças interessantes entre tipos de organizações aparentemente diferentes. Daniel Bonilla-Calle, Emerson do Nascimento e Marcela Vergara Arias contrastam facções brasileiras em Maceió com gangues e organizações mafiosas em Medellín e com remanescentes criminosos de grupos paramilitares desmobilizados da guerra civil colombiana. Os autores aproveitam a pandemia do Covid-19 para explorar como a governança criminal responde a uma crise que, em teoria, exigia que as autoridades governamentais - estatais e não estatais - interviessem na vida cotidiana. No entanto, descobriram que nenhuma dessas diferentes organizações criminosas estava particularmente envolvida em medidas de bloqueio, o que talvez não seja surpreendente, dado o quão impopulares tais medidas são entre os governados.

Em um achado contrastante - e profundamente preocupante -, Ana Paula Miranda, Jacqueline de Oliveira Muniz, Rosiane Rodrigues de Almeida e Fausto Cafezeiro documentam e analisam uma tendência à intolerância religiosa e à repressão violenta por parte de grupos criminosos. No Rio, eles mostram, tanto facções como milícias têm visado cada vez mais a prática religiosa afro-brasileira, que os líderes evangélicos muitas vezes denunciam como demoníaca ou maldita. Ambos os tipos de grupos criminosos, argumentam os autores, podem achar útil o evangelismo violento porque ele permite a fusão da autoridade religiosa com sua própria autoridade política armada. Essa pode ser uma estratégia atraente para estabelecer e manter o domínio, por mais historicamente retrógrado e perturbador possamos achar.

Com tantos artigos cobrindo contextos tão diversos, uma apresentação pode apenas arranhar a superfície; muitos achados e insights adicionais estão contidos nas contribuições. A variedade de perspectivas teóricas e metodológicas evidencia a importância particular do trabalho interdisciplinar sobre governança criminal. Acima de tudo, os detalhes empíricos de uma ampla gama de contextos latino-americanos fornecem, esperamos, um quadro mais completo da governança criminal nos dias de hoje e de como ela afeta a vida dos governados. Foi um privilégio especial poder reunir tantos acadêmicos talentosos e engajados de toda a região. Agradeço à Dilemas, ao Necvu/IFCS/UFRJ, à Fundação Getulio Vargas (FGV), à Universidade de Chicago, ao comitê organizador e de seleção desta edição especial e, claro, aos autores colaboradores, pela oportunidade de fazê-lo.

Benjamin Lessing, coorganizador da edição especial.

Referências

  • ADORNO, Sérgio; DIAS, Camila Nunes. “Cronologia dos ‘Ataques de 2006’ e a nova configuração de poder nas prisões na última década”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 10, n. 2, pp. 118-32, 2016.
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  • URIBE, Andres; LESSING, Benjamin; BLOCK, Douglass; SCHOULA, Noah; STECHER, Elayne. “How Many People Live under Criminal Governance in Latin America?”. Working Paper, 2022.
  • ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 1985.
  • 1
    Os organizadores ofereceram aos participantes um marco conceitual (LESSING, 2021) como uma ferramenta potencialmente útil, mas não havia expectativa de que os autores o empregassem em seus artigos. De fato, alguns não o fizeram, enquanto outros o adaptaram aos seus próprios propósitos. Isso está de acordo com a intenção original do enquadramento.
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    Uma lacuna importante nesta edição especial é a falta de artigos sobre a cobertura da América Central; um caminho claro para pesquisas futuras é integrar os achados aqui apresentados com pesquisas sobre as maras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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