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Má oclusão Classe II de Angle tratada sem extrações e com controle de crescimento

Resumos

A má oclusão Classe II de Angle é definida pela relação anteroposterior dos molares, que pode estar acompanhada por um degrau aumentado entre as bases ósseas. Estão incluídos nesse padrão os portadores de protrusão maxilar e/ou deficiência mandibular. O tratamento ortodôntico precoce permite intervenção na direção de crescimento, tanto nas bases ósseas quanto na região dentoalveolar, o que favorece a correção do posicionamento dentário na fase corretiva. O presente relato descreve o tratamento de um caso de má oclusão Classe II, divisão 1, de Angle, que foi apresentado à Diretoria do Board Brasileiro de Ortodontia e Ortopedia Facial (BBO) como parte dos requisitos para a obtenção do título de Diplomado pelo BBO. O caso foi avaliado como representante da Categoria 1, ou seja, má oclusão Classe II de Angle tratada sem extrações dentárias e com controle de crescimento.

Má oclusão Classe II de Angle; Ortodontia Interceptativa; Ortodontia Corretiva


Angle's Class II malocclusion is defined according to the anteroposterior molar relationship with or without a discrepancy between basal bones. Maxillary protrusion and mandibular retrusion are included in this class. When orthodontic treatment starts at an early age, it is possible to affect growth of both basal bones and the dentoalveolar region, which helps to correct tooth positioning in the corrective phase. This report describes the treatment of a case of Angle Class II, division 1 malocclusion that was presented to the Committee of the Brazilian Board of Orthodontics and Facial Orthopedics (BBO) as partial fulfillment of the requirements to obtain the BBO Diploma. The case was representative of category 1, that is, Angle Class II malocclusion treated without extractions and with growth control.

Angle Class II malocclusion; Interceptive orthodontics; Corrective orthodontics


CASO CLÍNICO BBO

Má oclusão Classe II de Angle tratada sem extrações e com controle de crescimento11 Relato de caso clínico, categoria 1, aprovado pelo Board Brasileiro de Ortodontia e Ortopedia Facial (BBO).

Maria Tereza Scardua

Mestre em Disfunção Temporomandibular pela Unifesp. Especialista em Ortodontia pela USP-Bauru. Diplomada pelo Board Brasileiro de Ortodontia e Ortopedia Facial BBO

Endereço para correspondênciaEndereço para correspondência Maria Tereza Scardua Rua Chapot Presvot, 100/801 Praia do Canto CEP: 29.055-410 – Vitória / ES E-mail: maria@terezascardua.com.br

RESUMO

A má oclusão Classe II de Angle é definida pela relação anteroposterior dos molares, que pode estar acompanhada por um degrau aumentado entre as bases ósseas. Estão incluídos nesse padrão os portadores de protrusão maxilar e/ou deficiência mandibular. O tratamento ortodôntico precoce permite intervenção na direção de crescimento, tanto nas bases ósseas quanto na região dentoalveolar, o que favorece a correção do posicionamento dentário na fase corretiva. O presente relato descreve o tratamento de um caso de má oclusão Classe II, divisão 1, de Angle, que foi apresentado à Diretoria do Board Brasileiro de Ortodontia e Ortopedia Facial (BBO) como parte dos requisitos para a obtenção do título de Diplomado pelo BBO. O caso foi avaliado como representante da Categoria 1, ou seja, má oclusão Classe II de Angle tratada sem extrações dentárias e com controle de crescimento.

Palavras-chave: Má oclusão Classe II de Angle. Ortodontia Interceptativa. Ortodontia Corretiva.

HISTÓRIA E ETIOLOGIA

A paciente, leucoderma, do sexo feminino, apresentou-se para tratamento ortodôntico aos 11 anos de idade. Possuía bom estado geral de saúde e não relatou histórico de doenças importantes ou traumatismos. Não apresentava hábitos de sucção ou postural, e possuía deglutição e fonação normais.

Estava em fase de dentadura mista, sendo portadora de incisivo lateral conoide (Fig. 1, 2). Sua queixa principal eram os diastemas e a morfologia dos incisivos superiores. Nenhum tratamento ortodôntico havia sido realizado até então.



DIAGNÓSTICO

A avaliação morfológica da face mostrava boa expressão do terço médio, altura do terço inferior um pouco diminuída e face simétrica. Possuía, também, perfil muito convexo, com a mandíbula retruída e protrusão da maxila. O ângulo nasolabial fechado e a linha de implantação do nariz oblíqua refletiam o envolvimento maxilar na má oclusão. Por outro lado, o lábio inferior evertido, o sulco mentolabial marcado, a linha queixo-pescoço curta e associada a um ângulo aberto com o pescoço evidenciavam, também, o comprometimento mandibular (Fig. 1).

Na radiografia lateral da face, a análise morfológica e as medidas cefalométricas confirmavam o padrão esquelético de Classe II (ANB= 7º, SNA= 89º e SNB= 82º). Os planos horizontais e as características morfológicas definiram a paciente como sendo braquifacial. Os incisivos superiores verticalizados (1-NA= 20º) e os inferiores inclinados para vestibular (1-NB= 32º e IMPA= 105,5º) apresentavam o processo de compensação à deficiência esquelética (Fig. 4, Tab. 1).



A paciente apresentava os molares em relação de Classe II, sobremordida exagerada da ordem de 100% e sobressaliência de 6mm. Possuía diastemas nas arcadas superior e inferior, desvio de 1mm da linha média superior para a direita, elemento 26 cruzado e 12 conoide (Fig. 2).

Na análise da radiografia panorâmica (Fig. 3), não foi possível visualizar a presença dos terceiros molares.

OBJETIVOS DO TRATAMENTO

Os objetivos do tratamento incluíram reduzir a discrepância esquelética anteroposterior, com redirecionamento do crescimento mandibular, restrição do crescimento maxilar no sentido anterior, distalização dos molares superiores e incremento do crescimento vertical dentoalveolar, com consequente melhora da sobremordida. O aparelho extrabucal colaboraria, também, no descruzamento do elemento 26.

Essas alterações esqueléticas seriam refletidas na diminuição da convexidade do perfil facial, no aumento da altura facial inferior e na diminuição da profundidade do sulco mentolabial.

No aspecto dentoalveolar, o objetivo era obter relação de chave de oclusão entre os molares, correção da sobremordida e da sobressaliência, e contatos interproximais justos. Máxima intercuspidação habitual (MIH) com contatos simultâneos bilaterais, mínima diferença entre relação cêntrica (RC) e MIH, obtenção de guias efetivas e uma oclusão mutuamente protegida também faziam parte dos objetivos do tratamento.

PLANO DE TRATAMENTO

O tratamento seria iniciado com a instalação de um aparelho ortopédico funcional (Bionator) e um aparelho extrabucal de Kloehn. Após a correção da discrepância esquelética, seguir-se-ia a instalação do aparelho ortodôntico fixo superior e inferior, e arcos 0,014" a 0,020" de aço inoxidável, para alinhamento e nivelamento. Em seguida, arcos retangulares de aço inoxidável 0,019" x 0,025" seriam utilizados para fechamento de espaços residuais. Para a finalização, seriam utilizados arcos retangulares superior e inferior, também de aço inoxidável 0,019" x 0,025", individualizados de acordo com a necessidade.

A contenção planejada consistiria de uma placa superior com grampo do tipo wraparound e, na arcada inferior, barra fixa entre o 33 e o 43, confeccionada com fio 0,032" de aço inoxidável.

Após a remoção da aparelhagem fixa, a paciente seria encaminhada para a reanatomização nos elementos 12 e 22.

Progresso do tratamento

Conforme planejado, foi instalado o aparelho ortopédico funcional (Bionator). Desgastes seletivos no acrílico foram realizados na região de pré-molares inferiores para reduzir a curva de Spee e, na região dos molares superiores, para distalização, sob efeito do aparelho extrabucal. Após alguns meses de uso, o acrílico oclusal foi eliminado, para proporcionar incremento de crescimento dentoalveolar posterior, favorecendo a correção da sobremordida. O tempo de tratamento, nessa fase, foi de 14 meses. Entretanto, por 18 meses, o Bionator foi mantido até que os pré-molares esgotassem seu potencial eruptivo, com incrementos verticais do processo alveolar, e estivessem perfeitamente encaixados em chave de oclusão. Após completa erupção dos segundos molares, iniciou-se a fase corretiva.

Foram colados braquetes metálicos, slot 0,022" x 0,028", com torques e angulações segundo a prescrição de Andrews. De maneira sequencial, foram instalados arcos redondos de níquel-titânio e de aço inoxidável para alinhamento e nivelamento (0,014" a 0,020"). Posteriormente, foram instalados arcos de aço inoxidável 0,019" x 0,025" superior e inferior. Na arcada superior, os espaços residuais foram reduzidos e administrados para a correção da linha média.

Após a fase de finalização e obtenção dos objetivos planejados, o aparelho ortodôntico fixo foi removido para a instalação dos aparelhos de contenção. Foi utilizada uma placa removível, com grampo do tipo wraparound, para a arcada superior. Na inferior, foi instalada uma barra intercaninos fixa, confeccionada com fio de aço inoxidável 0,032", colada nos dentes 33 e 43. Recomendou-se a utilização da placa de contenção superior durante 24 horas por dia, por 6 meses, e uso noturno após esse período, totalizando 12 meses de uso. A barra intercaninos inferior foi recomendada para uso por tempo indeterminado.

Resultados obtidos

Ao final do tratamento, foram solicitados novos exames à paciente. Após avaliação desses, verificou-se que a terapia ortopédica foi capaz de influenciar a maxila e a mandíbula. Os objetivos pretendidos para o tratamento foram atingidos. A paciente cooperou no uso dos aparelhos ortopédicos e houve restrição do crescimento maxilar, com uso da ancoragem extrabucal, e incremento do crescimento mandibular, refletidos na redução do ângulo ANB em 4,5º. O ângulo SNB foi elevado em 2,5º, em consequência do aumento do comprimento mandibular, enquanto o incremento no sentido vertical se refletiu na diminuição dos planos mandibulares, representando um aumento nas alturas faciais anterior e posterior (Fig. 5, 6, 8 e Tab. 1).




A sobreposição dos traçados cefalométricos mostra claramente que houve mais crescimento vertical do que anteroposterior da mandíbula (Fig. 9). É provável que o Bionator, utilizado por um período longo e com grande colaboração, tenha favorecido a maior expressão do padrão de crescimento condilar da paciente, ou seja, para a frente e para cima, resultando em aposição óssea na borda inferior da mandíbula e migração mesial dos dentes, em relação ao corpo mandibular.


A diminuição do plano mandibular ocorreu em função da rotação da mandíbula no sentido anti-horário, bem como pelo padrão da direção de crescimento condilar. A sobreposição dos traçados inicial e final mostra crescimento bastante significativo em função do grande intervalo de tempo entre os registros inicial e final.

No aspecto dentário, os incisivos superiores recolocaram-se 7º para vestibular, em função da angulação dos caninos proporcionada pela prescrição de Andrews (11º). Os incisivos inferiores mantiveram sua inclinação vestibular, comum aos pacientes com deficiência mandibular. Finalizou-se o tratamento com relação de chave de oclusão bem estabelecida nos molares, pré-molares e caninos.

Quanto ao aspecto facial, observou-se diminuição da convexidade do perfil e aumento do terço inferior da face, que proporcionou um resultado positivo no sulco mentolabial.

A avaliação clínica mostrou periodonto saudável, com ausência de patologias oclusais, e uma oclusão com contatos simultâneos bilaterais, em MIH, com mínima diferença entre RC e MIH, e obtenção de guias adequadas.

No exame radiográfico panorâmico, não foram observadas reabsorções radiculares ou comprometimentos periodontais. Foi solicitada a exodontia dos terceiros molares superiores (Fig. 7).

A avaliação dos resultados dois anos após o término do tratamento mostra a estabilidade dos resultados obtidos (Fig. 10 a 14). Apesar das recomendações frequentes, a paciente ainda não havia realizado a exodontia dos terceiros molares superiores (Fig. 12).











CONSIDERAÇÕES FINAIS

As más oclusões de Classe II de Angle são definidas pela relação sagital dos molares, embora nem sempre haja comprometimento das bases ósseas. Quando envolvidas, podem apresentar alterações no posicionamento sagital da maxila e/ou mandíbula. Pode-se, também, encontrar alterações sagitais nas bases ósseas, independentemente da relação que as arcadas dentárias apresentem. Isso ocorre em consequência de uma compensação dentária ao problema esquelético1.

As intervenções ortopédicas, tanto na maxila quanto na mandíbula, são possíveis. Na maxila, a ancoragem extrabucal confirma suas possibilidades descritas em estudo com implantes3. Na mandíbula, entretanto, a influência do tratamento ortopédico sob seu crescimento é discreta, com respostas clínicas muito mais dentárias do que esqueléticas. Nesse sentido, a literatura mostra grande variação. Os pacientes com bom padrão facial contaminam positivamente a amostra, gerando resultados otimistas. Um estudo realizado por Tulloch et al.4, em 1997, trouxe importante contribuição para esses esclarecimentos. Dois grupos foram tratados com aparelhos ortopédicos, e um terceiro mantido como controle. Tanto os grupos tratados quanto o controle exibiram, em extensão, similar variação na quantidade de crescimento. Isso permite concluir que o indivíduo com pior incremento no grupo controle, mesmo se recebesse tratamento, provavelmente não atingiria a média de seu grupo e cresceria menos do que a média dos não tratados.

Outro interessante trabalho que nos fez refletir sobre as respostas ortopédicas é a teoria da hipoteca do crescimento facial. Ela sugere que o crescimento facial obtido pela terapia seja um adiantamento do crescimento total disponível para o paciente. Após o tratamento, o paciente não só consegue manter o ritmo de crescimento instituído, mas também cresce menos do que seria esperado para ele5.

O fato de hoje conhecermos melhor os efeitos dos aparelhos ortopédicos, que são menos significativos para o crescimento do que imaginávamos, não diminui nosso interesse por seu uso, mas nos remete a um prognóstico mais realista, embasado em informações científicas de alta qualidade6. Talvez se possa, mais do que usar o crescimento do paciente para produzir resultado, usar um crescimento incrementado no espaço de tempo do tratamento para produzir a correção da má oclusão2.

Nesse caso, optou-se pelo tratamento da Classe II com aparelho extrabucal de Kloehn, associado ao Bionator, com a intenção de obter o movimento para distal dos molares superiores e restrição maxilar anterior, assim como o avanço mandibular e incrementos verticais dentoalveolares. O crescimento foi um aliado na correção da má oclusão. Portanto, a manutenção das compensações dentoalveolares existentes e as resultantes do tratamento eram esperadas e colaboraram para a correção da má oclusão. A inclinação acentuada e a protrusão dos incisivos inferiores já elevada tiveram, ainda, um pequeno aumento. Isso, contudo, não requer preocupação, pois a imagem radiográfica nos permite ver boa quantidade de osso nas superfícies vestibular e lingual da sínfise mandibular. Apesar de contrariarem a média, os incisivos estão morfológica e funcionalmente em equilíbrio com as estruturas faciais.

A sobreposição dos traçados inicial e final mostra um crescimento acentuado, em função do grande intervalo de tempo entre os registros inicial e final. É possível que o Bionator, em função do tempo de tratamento e da grande colaboração, tenha favorecido a maior expressão do padrão de crescimento condilar da paciente, além da migração mesial dos dentes em relação ao corpo mandibular, com protrusão dos incisivos. Essa característica de crescimento foi brilhantemente descrita em estudos longitudinais por Björk7.

Avaliando-se os exames de controle aos dois anos após o término do tratamento, pode-se observar que a oclusão se mantém estável e a aparência facial bastante agradável (Fig. 10 a 14).

Enviado em: dezembro de 2010

Revisado e aceito: março de 2011

  • 1. Capelozza Filho L. Individualização de braquetes na técnica de straight wire: revisão e sugestões de indicações para uso. Rev Clín Ortod Dental Press. 1999 jul-ago;4(4):87-106.
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  • 3. Melsen B. Effects of cervical anchorage during and after treatment: an implant study. Am J Orthod. 1978 May;73(5):526-40.
  • 4. Tulloch JF, Phillips C, Koch G, Proffit WR. The effect of early intervention on skeletal pattern in Class II malocclusion: a randomized clinical trial. Am J Orthod Dentofacial Orthop. 1997 Apr;111(4):391-400.
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  • 6. Scardua MT, Januzzi E, Grossmann E. Ortodontia baseada em evidência científica: incorporando ciência na prática clínica. Rev Dental Press Ortod Orthop Facial. 2009 maio-jun;14(3):107-13.
  • 7. Björk A. Variations in the growth pattern of the human mandible: longitudinal radiographic study by the implant method. J Dent Res. 1963 Jan-Feb;42(1)Pt 2:400-11.
  • 8. Björk A, Skieller V. Facial development and tooth eruption: an implant study at the age of puberty. Am J Orthod. 1972 Oct;62(4):339-83.
  • Endereço para correspondência
    Maria Tereza Scardua
    Rua Chapot Presvot, 100/801 Praia do Canto
    CEP: 29.055-410 – Vitória / ES
    E-mail:
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    Relato de caso clínico, categoria 1, aprovado pelo Board Brasileiro de Ortodontia e Ortopedia Facial (BBO).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      Dez 2010
    • Aceito
      Mar 2011
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