RESUMO
Partindo do pressuposto de Alfredo Bosi (1996), sobre a potencialidade do caráter resistente de uma narrativa, a proposta do presente artigo é analisar a religiosidade popular do candomblé emTenda dos milagres, o romance (1969) de Jorge Amado e o filme etnológico (1977) de Nelson Pereira dos Santos. No romance e no filme, o candomblé surge como lugar de identidade, de resistência e de luta por justiça do povo negro e mestiço.
PALAVRAS-CHAVE:
Tenda dos milagres; Candomblé; Racismo religioso; Resistência; Justiça
ABSTRACT
Based on the premise of Alfredo Bosi (1996) about the potential of a narrative’s resistant character, the proposal of this article is to analyze the popular religiosity of candomblé in Tent of Miracles, the novel (1969) by Jorge Amado and the ethnological film (1977) by Nelson Pereira dos Santos. In the novel and in the film, candomblé appears as a place of identity, resistance, and struggle for justice for black and mixed-race people.
KEYWORDS:
Tent of Miracles; Candomblé; Religious racism; Resistance; Justice
Xangô é o orixá da justiça e da força, da verdade e da decisão sábia. Seu símbolo é o machado de duas faces, que tanto protege seus filhos das injustiças, como os pune quando as cometem. Xangô é onipresente em Tenda dos milagres. Em 1959, Jorge Amado recebeu o título de Obá Arolu de Xangô no Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá.1 1 Obá de Xangô é um título honorífico do candomblé, criado por mãe Aninha (Eugenia Ana dos Santos, 1869-1938), ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá (Casa sob o comando e o sustento do cajado de Afonjá), em 1936. Trata-se de doze reis ou ministros, os Obás, concedidos aos amigos e protetores, responsáveis pelo destino civil do terreiro. A trilha sonora de abertura do filme é Babá Alapalá, música de 1977 de Gilberto Gil, uma homenagem à sua ancestralidade afrodescendente e cujo refrão serve de título para o presente artigo. Em 1972, Gil visitou, pela primeira vez, um terreiro, o Tuntum Olukotun,2 2 O Terreiro de Tuntum Olukotun, localizado na Ilha de Itaparica (BA), é o mais antigo terreiro de Egun (culto aos ancestrais masculinos) no Brasil, fundado em 1850 por Marcos Teodoro Pimentel. onde Mestre Didi, ao jogar búzios, revelou que ele é filho de Xangô.3 3 Em depoimento memorialista, Gilberto Gil (2021) declarou sua experiência com o candomblé, disponível em seu perfil no Instagram. Pedro Archanjo, o protagonista da narrativa, é Ojuobá,4 4 De acordo com Prandi (2009), no candomblé, Ojuobá é um título usualmente dado a um homem influente, que representa uma espécie de informante da mãe de santo sobre o que acontece na cidade, um embaixador e defensor do terreiro, junto às autoridades. os olhos de Xangô, que são evocados para o orixá atuar em defesa da justiça e da harmonia.
Archanjo surge em Tenda dos milagres como figura síntese, de Jorge Amado, de Nelson Pereira dos Santos e do povo de santo (como se autodenominam os candomblecistas), que luta contra o racismo religioso, numa postura de resistência e em busca de justiça. Para Lima (2019LIMA, E. F. Racismo no plural: um ensaio sobre o conceito de racismos. In: LIMA, E. F. et e tal. Ensaios sobre racismos. São José do Rio Preto: Balão Editorial, 2019. Disponível em: <https://ocarete.org.br/acervo/ensaios-sobre-racismos/>. Acesso em: 20 nov. 2022.
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), o racismo religioso decorre de algo mais profundo do que uma simples divergência de fé, se baseia no desprezo pela sensibilidade de mundo, na atribuição de características culturais negativas e na inferiorização e demonização da cultura do “outro”, tornando-o alvo de discriminação e de violência.
Segundo dados do censo de 2010, apenas 0,3% da população brasileira se declarou como praticante de alguma religiosidade de matriz africana, porém, é o grupo que mais sofre discriminação e violência (verbal e física), comparado com outros grupos religiosos do país. No primeiro semestre de 2022, foram registradas 545 denúncias de intolerância religiosa pelo Disque 100, uma média de três ao dia, um aumento de 17%, em comparação ao mesmo período do ano anterior, a maior parte das vítimas eram praticantes de crenças de matriz africana (Pauluze, 2022PAULUZE, T. Brasil registra três queixas de intolerância religiosa por dia em 2022; total já chega a 545 no país. g1, São Paulo, 22 jul. 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/07/22/brasil-registra-tres-queixas-de-intolerancia-religiosa-por-dia-em-2022-total-ja-chega-a-545-no-pais.ghtml>. Acesso em: 20 nov. 2022.
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). De acordo com a pesquisa “Respeite meu terreiro” (coordenada pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras, que ouviu representantes de 255 terreiros em todo o país), quase metade dos entrevistados relatou até cinco ataques, entre 2020 e 2021. No mesmo período, 78% dos entrevistados revelaram que foram agredidos na rua, no comércio, na escola, em repartições públicas e, até mesmo, nas delegacias onde foram registrar queixas. Segundo as vítimas, basta que a pessoa seja identificada como adepta de alguma religiosidade afro-brasileira, para sofrer o preconceito (Quase metade..., 2022). Com a intenção de reprimir o racismo religioso, no início de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo e protege a liberdade religiosa. Espera-se que a nova lei ajude a punir com mais rigor quem comete o crime religioso e ajude a proteger as vítimas.
As ações de desrespeito, agressões físicas e verbais, ataques aos espaços de culto e demonização das divindades cultuadas no candomblé, bem como de seus praticantes são exemplos de racismo religioso que persistem, revelando a atualidade do posicionamento questionador, resistente e justiceiro de Pedro Archanjo e das questões levantadas por Tenda dos milagres.
Nesse sentido, em suas reflexões sobre literatura, Alfredo Bosi (1996BOSI, A. Narrativa e resistência. Itinerários, Revista de Literatura, n.10, p.11-27, 1996. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2577>. Acesso em: 20 nov. 2022.
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) sinaliza para a potencialidade de uma narrativa ser resistente. Apesar de a resistência ser um conceito originariamente ético que, a rigor, não deveria ser apropriado pela estética, para Bosi (1996, p.13), “no fazer-se concreto e multiplamente determinado da existência pessoal, fios subterrâneos poderosos amarram as pulsões e os signos, os desejos e as imagens, os projetos políticos e as teorias, as ações e os conceitos”, tornando a resistência em tema ou processo da narrativa literária. Enquanto tema, os narradores dispõem de um amplo espaço de liberdade para inventar situações e personagens. As narrativas são construídas por memórias, eventos que, de fato, ocorreram, mas também por um amplo leque de eventos possíveis e imagináveis. O narrador pode, assim, criar representações do bem e do mal ou ambivalentes, levando ao primeiro plano do texto “uma fenomenologia de resistência do eu aos valores ou antivalores do seu meio”, resultando numa “subjetivação intensa do fenômeno ético da resistência” (ibidem, p.15). Já enquanto processo constitutivo da própria escrita, a resistência se apresenta como uma tensão interna ao foco narrativo, iluminando a união entre o sujeito e seu contexto existencial e teórico. Num processo dialético, o sujeito não apenas reproduz mecanicamente as interações sociais que integra, mas, conseguindo distanciamento, vê-se numa teia que o prende às instituições. A resistência, afirma Bosi (1996, p.22), como forma imanente da escrita, “decorre de um a priori ético, um sentimento do bem e do mal, uma intuição do verdadeiro e do falso, que já se pôs em tensão com o estilo e a mentalidade dominantes”.
A cultura popular como lugar de resistência
Jorge Amado é reconhecido como um intérprete da cultura popular brasileira, pelo fato de seus romances abordarem temas latentes do Brasil do século XX e seus personagens terem amplo alcance e grande inserção popular. Estudiosos, como Duarte (1996DUARTE, E. A. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record, 1996.), dividem seu projeto literário em duas fases. O romance limite é Gabriela, cravo e canela, publicado em 1958. Não há, contudo, ruptura entre as fases, existe continuidade dialética de antigos temas, revisitados por uma nova visão do autor, conservando seu posicionamento crítico e político, que sempre o acompanhou, não apenas como escritor. Exemplo dessa continuidade é, exatamente, Tenda dos milagres, que Amado confessou ser o seu preferido (Raillard, 1991RAILLARD, A. Conversando com Jorge Amado. São Paulo: Record, 1991., p.216). Lançado em 1969, apesar de integrar a segunda fase, trata-se de uma síntese de obras anteriores, revelando a continuidade da preocupação de Amado com alguns temas, como as questões raciais e religiosas, a valorização da herança africana, da cultura popular e da mestiçagem. Porém, esses temas são problematizados com maior intensidade. Por isso, Amado é apontado como o autor responsável pela inclusão, na literatura, da cultura negra e das questões raciais, de forma integrada à conjuntura histórica e social. Tal perspectiva é fruto de sua convivência com o povo de santo e com os terreiros, que para ele, foram uma verdadeira escola. Com essa experiência, Amado desenvolveu interesse e empatia pelas causas da população negra e mestiça, o que incluía a defesa pela liberdade de culto.
Desde mocinho, rapazola cursando a vida popular baiana, inclusive nas casas-de-santo, nos terreiros de candomblé, com Édison Carneiro, Arthur Ramos, Aydano do Couto Ferraz, foi me dado testemunhar a violência desmedida com que os poderes do Estado e da Igreja tentaram aniquilar os valores culturais provenientes da África [...], logo me alistei soldado na luta travada pelo povo dos candomblés contra a discriminação religiosa, a perseguição aos orixás [...].Tais misérias e a grandeza do povo da Bahia são matérias-primas de meus romances, que os leia quem quiser saber como as coisas se passaram. (Amado, 1992_______. Navegação de cabotagem. Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro: Record, 1992., p.71-2)
Inegavelmente, a valorização da mestiçagem nas reflexões de Amado foi impactada pela publicação de Casa-grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre. Contudo, diferentemente do que sugerem alguns pesquisadores,5 5 Caso de Sueleny Ribeiro Carvalho (2013, p.95) que, ao analisar Tenda dos milagres, defendeu a ideia de que Amado, ao apresentar características marcantes da mulher e do homem negro, reforça “estereótipos negativos atribuídos ao sujeito negro”. o escritor baiano não se aproximou das ideias românticas, defendidas por Freyre, sobre a democracia racial. Como ele mesmo afirmou, “ligam-me, a Gilberto Freyre, estima e admiração, não fui vassalo de sua corte, mas tive plena consciência da significação de Casa-grande e senzala” (Amado, 1992, p.45). Analisando os relatórios dos Congressos Afro-Brasileiros, Rossi (2009ROSSI, L. G. F. As cores da revolução: a literatura de Jorge Amado nos anos 30. São Paulo: Annablume; Fapesp; Unicamp, 2009.) acentua que Amado estava muito mais próximo das ideias defendidas por seus conterrâneos, com os quais convivia, Édison Carneiro e Arthur Ramos. Carneiro, Ramos e Amado estavam mais alinhados ao marxismo e à militância comunista, possuindo um olhar crítico e de denúncia sobre a relação de classes, distanciando-se das ideias harmonizadoras de Freyre. Essa proximidade fez que Amado assumisse um compromisso com a verdade, vinculando seu projeto literário às práticas sociológicas e antropológicas, trazendo para a linha de frente de seus romances o povo sofrido e marginalizado, em especial o povo de santo, os costumes e a identidade baiana, em seus modos de falar, de viver e de resistir. Assim fazendo, transformou-se num ícone do combate ao racismo, sobretudo religioso.
Apesar de ser escritor desde muito jovem, publicou seu primeiro romance, No país do carnaval (1931), com apenas 19 anos, Amado teve uma forte proximidade com o cinema. Ainda nos anos 1930, paralelamente ao seu trabalho de escritor, participou ativamente de produções cinematográficas, como roteirista e revisor de textos, ou ainda, escrevendo críticas de filmes (Amado, 1992, p.490). O cinema era uma das vias encontradas pelos artistas e intelectuais da literatura para conseguirem se sustentar, frente aos tempos sombrios impostos pela ditadura do Estado Novo. Ao todo, mais de dez romances de Amado foram adaptados para o cinema, alguns deles mais de uma vez, como Capitães da areia (1937) e Dona Flor e seus dois maridos (1966), além de ele mesmo ter sido tema de alguns filmes, a exemplo de Jorjamado no cinema (1977), de Glauber Rocha. Assim, não é surpreendente o envolvimento de Amado com Tenda dos milagres, participando ativamente da escrita do roteiro. Ainda em 1977, ano de lançamento do filme, Amado revelou a experiência de trabalhar com Pereira dos Santos:
[...] nada do que está no livro, do que está no filme é inventado. São coisas que se passaram e que foram recriadas por mim e depois por Nelson. Eu recriei no livro, dentro das minhas limitações, e Nelson recriou no filme, com seu imenso talento e sua grande qualidade de cineasta. [...] eu nunca me meto em adaptação de livro meu, para nenhuma forma de comunicação [...], mas, com Nelson não, com ele eu discutia muito, conversei muito, palpitei muito. [...] O filme Tenda dos Milagres é uma obra de Nelson Pereira dos Santos, pensado, criado e concebido por ele. Mas, não deixa de ser meu. Afinal, no sangue de Nelson, que corre ali dentro, há um pouco de meu sangue. (apud Rodrigues de Sousa, 2017, p.122)
Antes mesmo de iniciar as adaptações dos romances de Amado (Tenda dos milagres, em 1977, e Jubiabá, em 1986), Pereira dos Santos, ávido leitor de seus romances, já se revelou envolvido pela atmosfera do autor baiano, com quem partilhava afinidades políticas e literárias. Em entrevista a Salem (1996SALEM, H. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 1996., p.47), o próprio cineasta revelou a influência de Amado em sua formação:
Para a minha geração paulista, naquela vidinha medíocre de classe média - da escola, do bairro, a chuva, a imitação da Europa - ler Jorge Amado significava descobrir o Brasil. De repente, era o nosso avesso. O grande libertário. No Estado Novo, era proibido pela polícia e pela família. Ele mostrava as lutas de classe e também tinha uma grande proposta de educação sexual, o sexo livre.
Em seu projeto político e cultural, Pereira dos Santos escolheu dar visibilidade ao povo, ao simples, ao cotidiano, ao comum, muitas vezes esquecido pelas políticas públicas e meios culturais. Pelas lentes do cineasta, o povo pobre, negro, mestiço, oprimido, favelado e marginalizado deixa de ser figurante e torna-se protagonista da cena e de sua própria história. Seu cinema é concebido por imagens não estereotipadas do Brasil, reforçando elementos nacionais com uma linguagem própria.
Para Salem (1996SALEM, H. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 1996.), o cinema de Pereira dos Santos é fortemente marcado pelo neorrealismo italiano, pelo cinema russo de Eisenstein e pela Nouvelle Vague francesa. A partir dessas três correntes, o cineasta construiu um perfil estético autoral e multicor, de valorização da expressão popular, da realidade local e das ideias de esquerda. As ruas e o povo ganharam destaque, pois, para Pereira dos Santos, uma estética fílmica, genuinamente nacional, deveria contemplar as verdadeiras cores e vozes brasileiras. Assim, o cineasta tornou-se o pai do cinema político e um dos precursores da inserção do negro nas telas. Tornou-se, também, um intérprete e intelectual do povo brasileiro, vanguardista e propulsor de movimentos culturais e estéticos, inclusive do Cinema Novo, que ganharia mais corpo a partir dos anos 1960.
Rio, 40 graus (1956), primeiro filme de Pereira dos Santos, marca o início do cinema popular e moderno brasileiro, tendo o cineasta como seu principal porta voz. As similaridades entre esse primeiro filme e Capitães da areia são explícitas. Ambos tratam da marginalização da infância e da ideia de grupo, uma alternativa de sobrevivência de crianças invisíveis para o Estado e para a classe dominante. As duas produções destacam o povo negro, sua cultura e adversidades, revelando o engajamento político de resistência de seus autores. Para Pereira dos Santos, “a presença de Jorge Amado em Rio, 40 Graus é evidente. Os meus heróis são os meninos, com seu lado ‘capitães da areia’” (Salem, 1996SALEM, H. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 1996., p.376).
Em O amuleto de Ogum (1975), as referências ao universo de Amado tornaram-se mais claras, tanto pela escolha do tema, o candomblé, como por, novamente, representar um grupo marginalizado, os praticantes de religiões afro-brasileiras. Para Sadlier (2012SADLIER, D. J. Nelson Pereira dos Santos. Campinas: Papirus, 2012.), a forma como Pereira dos Santos retratou a religiosidade afrodescendente em O amuleto de Ogum é resultado do forte impacto provocado pelo romance Tenda dos milagres. Em seus primeiros filmes, apesar de o cineasta buscar uma representação realista das favelas, locais onde os cultos afrodescendentes são mais praticados, não há referência à religiosidade. Diferentemente ocorre em O amuleto de Ogum, produzido alguns anos após o lançamento do romance de Amado, onde o candomblé torna-se elemento-chave. A leitura de Tenda dos milagres levou Pereira dos Santos a perceber o significado da religião para as pessoas mais pobres, como lugar de identidade e de resistência.
Já para Malafaia (2005MALAFAIA, W. V. Em tempos de São Jorge: Cinema Novo, política cultural cinematográfica e Estado autoritário. ArtCultura. Revista do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, v.7, n.10, p.84-93, jan.-jun. 2005.), O amuleto de Ogum foi um divisor de águas, tanto na estética como na temática dos cinema-novistas. Até então, a concepção de povo era envolta em aspectos paternalistas, “era desejado e imaginado à luz das teorias que fundamentavam os processos de tomada de consciência” (Malafaia, 2005, p.87). Pereira dos Santos passou a refutar essa posição e problematizar, não só o conceito de povo e popular, como também a forma como os cineastas estabeleciam relações com esse conceito, ao torná-lo objeto de suas produções. Para o cineasta, a posição crítica só deveria apresentar-se na escolha do tema do filme. Uma vez definido o tema, era a linguagem da emoção que deveria prevalecer, no sentido de não julgar, não criticar os valores e expressões populares, ao contrário, deixá-las falar por elas mesmas. Essa nova postura foi definida pelo cineasta como antropológica e entrou em choque com as propostas iniciais do Cinema Novo, em que o importante era ensinar e conscientizar e não conhecer e vivenciar. Em 1973, juntamente com outros cinema-novistas, como Glauber Rocha, Carlos Diegues e Walter Lima Junior, Pereira dos Santos assinou o manifesto Luz & Ação, onde as posições estéticas, temáticas e políticas do grupo foram redefinidas, na busca do popular como lugar de força, sobrevivência e resistência.
Santiago Júnior (2014) afirma que os filmes O amuleto de Ogum e Tenda dos milagres representam o surgimento do “olhar etnológico” no cinema. Nos anos 1940 e 1950, o cinema, a exemplo de Caiçara (Adolfo Celi e Tom Payne, 1950) da Vera Cruz, mostrava as religiosidades de matriz africana associadas à feitiçaria. O objetivo era assustar o espectador, construindo uma moralidade pela negativização da religiosidade negra e mestiça. No início dos anos 1960, alguns filmes do Cinema Novo, dentre eles Barravento (1961) de Glauber Rocha e O pagador de promessas (1962) de Anselmo Duarte, muito marcados pelo ideal de nacional-popular, buscaram apresentar elementos da religião negra em papeis de prestígio e dignidade. A cultura popular surgia como sinal de identidade da população e o cineasta se preocupava em mostrar o lugar e os hábitos do povo. Contudo, os rituais africanos eram compreendidos como a “chave da alienação”, caracterizando um povo explorado, que precisava ser libertado. A religiosidade bloqueava seu potencial revolucionário.
O grande deslocamento etnológico, no cinema ficcional, ocorreu em 1971, com o filme Como era gostoso meu francês, de Pereira dos Santos. O cineasta revelou uma preocupação em apreender hábitos, crenças, mitos e estranhezas, numa radical tentativa de dar voz ao “outro”. Com O amuleto de Ogum surgiu, definitivamente, um “olhar etnológico” sobre as “religiões populares”, quando Pereira dos Santos propôs o “filme popular” para mostrar e valorizar os saberes do povo e uma visão popular da realidade. Tendo por objetivos mostrar e compreender a cultura do povo, a partir de um olhar antropológico, Pereira dos Santos transformou-se num cineasta-etnólogo. Nesse sentido, O amuleto de Ogum é considerado o primeiro filme a propor uma interpretação nacionalista da brasilidade, via religiosidade popular. Com Tenda dos milagres, Pereira dos Santos deu um passo a mais, focando em retratos que revelam a alteridade e diversidade do povo. A religiosidade surge como uma forma de resistência às explorações cotidianas, evidenciando como cada sujeito realiza suas próprias formas de luta, a partir do poder que dispõe, ou seja, o espiritual. Nesses três filmes, Pereira dos Santos surgiu como um verdadeiro etnólogo, usando da antropologia na mediação com os diversos grupos culturais.
Não é de duvidar que esse ponto de inflexão na visão de Pereira dos Santos sobre a religiosidade popular e a emergência de seu “olhar etnológico” sejam um desdobramento de suas leituras de Jorge Amado. Com O amuleto de Ogum e Tenda dos milagres, Pereira dos Santos aproximou-se, definitivamente, do universo de Amado, tornando-se, no cinema, num de seus maiores intérpretes.
Tenda dos milagres: o romance e o filme
O enredo de Tenda dos milagres se passa em dois tempos. Um deles, na passagem do século XIX para o XX, onde é narrada a história de vida de Pedro Archanjo; o outro, em 1968, ano do centenário de seu nascimento. No “passado”, o leitor-espectador conhece o “verdadeiro” Archanjo: bedel da Faculdade de Medicina, defensor da cultura popular afrodescendente e da mestiçagem (tendo escrito três livros sobre o assunto, que acabou lhe rendendo a demissão de seu cargo), ativista contra o racismo e o preconceito, praticante do candomblé, homem de muitos amores e pai de muitos filhos. No “presente”, entre os interesses das campanhas publicitárias e da indústria do consumo, o oportunismo dos donos de jornais e a censura da ditadura militar, ocorre a despolitização e a construção de um outro Archanjo, mais de acordo com os anseios da elite, apesar da recusa do historiador José Calasans e da etnóloga Edelweiss Vieira, ambos inspirados em pessoas reais, que foram sintetizados, no filme, num único personagem, Edelweiss Calasans (Anecy Rocha). Nesse processo, percebe-se a construção da memória e a alteração da história vivida, na tentativa de apagar a luta pela justiça do povo oprimido. No movimento entre passado e presente são destacados os dilemas vivenciados pela população mestiça: miséria, violência e racismo. Problemas oriundos de uma escravidão longeva e de um processo abolicionista que não incorporou os afrodescendentes e sua cultura na sociedade brasileira.
O sociólogo, jornalista e poeta Fausto Pena (Hugo Carvana) é o elo intermediário entre “passado” e “presente”. Contratado pelo professor da Universidade de Columbia e prêmio Nobel de Ciência, James D. Levenson, no romance, ou J. D. Levingstone (Larry Wilson), no filme, Pena realiza uma pesquisa histórica sobre a vida de Archanjo, o resultado é o livro e o filme. Fausto Pena torna-se, assim, num duplo alter ego: ele é o autor da biografia e diretor da cinebiografia de Archanjo, tornando-se um escritor-cineasta, síntese de Amado e Pereira dos Santos. Por meio de Fausto Pena, o romancista e o cineasta revelam empatia e solidariedade pela luta do povo explorado e oprimido, denunciando as mazelas sociais das quais é vítima.
Tenda dos Milagres é o 12º filme de Pereira dos Santos e a primeira adaptação de uma obra de Amado. Jards Macalé, que já havia participado de O amuleto de Ogum, como o Cego Firmino, representa Pedro Archanjo jovem, e o ator baiano Juarez Paraíso, Archanjo mais velho. Aliás, a presença de atores baianos é maciça, como Sônia Dias (Ana Mercedes), Anecy Rocha (Edelweiss Calasans), Jehová de Carvalho (Major Damião) e Nilda Spencer (condessa Zabela). Além de vários “personagens reais”, que interpretam a si mesmos, como o capoeirista Mestre Pastinha, o montador e editor de cinema Severino Dadá, o historiador Cid Teixeira e os professores Ildásio Tavares e Thales de Azevedo.
Pereira dos Santos soube conservar a essência do romance de Amado, ao mesmo tempo em que construiu uma narrativa própria, o que fez que o filme fosse muito bem recebido pela crítica:
Tenda tem a força de um verdadeiro manifesto do Cinema Novo. Um manifesto político, cultural, histórico, estético, racial, democrático e com os verdadeiros sentidos da brasilidade, poucas vezes tão generosa e grandiosamente em música, filme, peça, livro ou poema. Finalmente, Jorge Amado teve um filme digno de seu talento de escritor. (In Rodrigues de Sousa, 2017, p.119-20)
Tenda dos milagres é ambientado no Pelourinho, bairro da cidade de Salvador, localizado no Centro Histórico. Suas vielas e ladeiras abrigam um dos conjuntos arquitetônicos coloniais, do barroco brasileiro, mais preservado. O bairro foi fundado em meados do século XV pelo primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, por sua localização estratégica, facilitando a defesa da cidade. De acordo com Collins (2008COLLINS, J. F. A razão barroca do patrimônio baiano: contos de tesouro e histórias de ossadas no Centro Histórico de Salvador. Revista de Antropologia, v.51, n.1, p.21-65, 2008. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27300>. Acesso em: 20 nov. 2022.
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), até a transferência da capital do Brasil para o Rio de Janeiro, em 1763, o bairro era eminentemente residencial, onde moravam as classes mais abastadas da cidade, além de ser o centro administrativo e de abrigar as principais atividades econômicas. Em fins do século XIX, com a transferência das elites para os bairros do Campo Grande e Vitória, o bairro entrou em decadência. Os sobrados foram simplesmente abandonados ou deixados nas mãos de agregados ou empregados domésticos. No início do século XX, o bairro já era considerado um dos mais boêmios e onde vivia a população mais pobre. Nos anos 1930, diante da suposta decadência moral dos moradores e da violência das ruas, a Delegacia de Jogos e Costumes passou a exercer um papel importante em seu controle social.
A partir dos anos 1970, o Pelourinho sofreu um forte processo de degradação, com a modernização da cidade que transferiu para outras regiões as atividades econômicas e o centro administrativo. O Pelourinho passou a ser uma região pouco valorizada, tornando-se palco da cultura popular negra e mestiça da cidade, dando origem a grupos culturais e comunitários que se transformaram, nos anos 1980 e 1990, em atores políticos importantes para a redemocratização do país. Paralelamente, entre os anos 1960 e 1980, momento de escrita e filmagem de Tenda dos milagres, o Pelourinho foi alvo de vários planos de recuperação e exploração turística, por parte dos governos de Antônio Carlos Magalhães e seus aliados.
É esse Pelourinho, “vasta universidade popular” (Amado, [1969]2022, p.14), que surge com toda sua força e resistência em Tenda dos milagres. Amplo território livre habitado pela cultura mestiça do povo, onde deuses africanos, santos católicos, ialorixás, babalorixás, padres e curandeiros convivem. O “coração, o centro vital de toda aquela parte da cidade, onde se processa, potente e intensa, a vida popular” (Amado, 1969, p.101) é a Tenda dos milagres de Archanjo e Lídio Corró, o riscador de milagres mais procurado do Pelourinho. Transformada em tipografia, será na Tenda que os polêmicos livros de Archanjo serão impressos. Lugar frequentado pela ialorixá magé Bassã, pelo mestre de capoeira Budião, pelo ogã de sala Manuel Praxedes, pelo rábula Damião de Souza (defensor dos mestiços acusados injustamente por crimes que não cometeram), pela bela Rosa de Oxalá, pelo jovem Tadeu Canhoto (um dos “afilhados” de Archanjo, forma como são reconhecidos seus inúmeros filhos), pela ousada condessa Zabela e tantos outros, negros e pardos, que ali encontraram um espaço de acolhimento, de solidariedade, de convivialidade, de festa e de alegria. Não por acaso, o livro, o filme e a oficina de Archanjo e Lídio têm o mesmo nome, Tenda dos milagres. Nos três casos, lugar de enfrentamento ao ódio, ao racismo e à repressão; lugar de resistência e superação dos obstáculos.
Próximo à Tenda dos milagres, na tentativa de dominar e banir a cultura popular mestiça, se ergueu um templo de racismo e de eugenia, onde se ensinam “suspeitas teorias” (Amado, 1969, p.14), a Faculdade de Medicina, tendo como principal expoente, o professor Nilo Argolo. De fato, a Faculdade de Medicina da Bahia, onde Nina Rodrigues, médico legista eugenista e fundador da antropologia criminal brasileira, foi professor de 1889 até 1906, ano de sua morte, era uma das grandes formadoras de cientistas e intelectuais, que defendiam as ideias canônicas de desprezo ao conhecimento popular e à sabedoria das tradições.
Os embates entre o bedel Pedro Archanjo e o professor Nilo Argolo são destaques no enredo. Eles representam duas grandes tendências que se confrontaram nas primeiras décadas do século XX. De um lado, a cultura popular e a valorização da mestiçagem, tendo como mola propulsora a obra de Manuel Querino, O colono preto como fator da civilização brasileira, de 1918; de outro, a cultura institucionalizada, o saber formal e as ideias eugênicas, que dominavam a intelectualidade e que se refletem nas obras de Nina Rodrigues.
Entusiasta da antropologia criminal, Nina Rodrigues defendia que as raças tinham graus de evolução e inteligência distintos, reforçando o discurso da classe dominante sobre a inferioridade da raça negra e de suas expressões culturais. De acordo com Schwarcz (1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.), as Faculdades de Direito e as Escolas de Medicina, ao lado dos museus etnográficos e dos institutos históricos e geográficos, se autoatribuíram a tarefa de criar um saber-poder que superasse a herança africana, apontada como fonte dos problemas da nação, iniciando uma ideologia de branqueamento e políticas de eugenia. Os discursos médicos e jurídicos se entrelaçavam com a necessidade de reprimir as manifestações religiosas e culturais do povo negro e mestiço.
Diante de tal realidade, Amado cria, a partir de pessoas reais, um personagem defensor da cultura popular, síntese de mestiçagem e povo de santo: “Pedro Archanjo é a soma de muita gente misturada: o escritor Manuel Quirino, o babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, Obá Aré Miguel Sant’Anna, o poeta Artur de Sales, o compositor Dorival Caymmi e o alufá Licutã6 6 Alufá é um termo que designa o líder religioso dos negros muçulmanos. Pacífico Licutã foi um dos líderes da Revolta dos Malês, que aconteceu na Bahia em 1835, o maior levante de escravos da história do Brasil, mobilizando mais de 600 pessoas. - e eu próprio, é claro” (Amado, 1992, p.139).
Archanjo insiste e não desiste, é um resistente, como bem disse Bosi (1996BOSI, A. Narrativa e resistência. Itinerários, Revista de Literatura, n.10, p.11-27, 1996. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2577>. Acesso em: 20 nov. 2022.
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, p.14), um defensor da liberdade e da igualdade, um combatente contra o autoritarismo e o despotismo.
Pedro Archanjo e o povo de santo: resistência e luta pela justiça
Pedro Archanjo, o protagonista, filho de Antônio Archanjo, morto na Guerra do Paraguai antes de o filho nascer, e de Noca de Logum Edé, orixá da guerra e da água, aprendeu a ler sozinho e frequentou o Liceu de Artes e Ofício. De forma autodidata, dedicou-se ao estudo de antropologia, etnologia e sociologia. Ainda jovem, foi consagrado a um alto posto na casa de Xangô, foi o preferido ante outros candidatos mais velhos e de maior respeito e sapiência. Ele se tornou Ojuobá, recebendo diretamente do orixá Xangô a missão de tudo ver, tudo saber e tudo escrever. Escrever a história de resistência do povo mestiço que habita o Pelourinho. Magé Bassã (interpretada por Maria Pequena no filme) é sua ialorixá protetora e a quem Archanjo recorre em momentos de dúvida. Contudo, não representa uma ialorixá real, ela é uma personagem criada por Amado e Pereira dos Santos. Essa falta de vínculo com uma pessoa real a transforma numa personagem representante de todas a mães e pais de santo dos inúmeros terreiros da Bahia, que resistentemente lutam por justiça e direitos sociais. Aliás, mães e pais de santo são presença constante e marcante em Tenda. Mãe Mirinha do Portão, fundadora do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia, aparece no início do filme. Ela é a mãe de santo do terreiro visitado por Ana Mercedes, Fausto Pena e Levingstone. Altamira Maria Conceição Souza (1924-1989) desenvolveu papel importante em benefício da comunidade do Portão, onde está localizado seu terreiro, conseguindo inúmeras melhorias na infraestrutura do bairro. Por ser amiga de Jorge Amado, participou de alguns filmes inspirados em suas obras, além de Tenda dos milagres, também atuou em Pastores da noite (Marcel Camus, 1975). Outra mãe de santo presente no filme é Runhó do Bogum. Maria Valentina dos Anjos Costa (1877-1975) era líder do Terreiro do Bogum, um dos redutos dos negros jejes, última descendente direta dos africanos procedentes da República do Daomé. Ao ser entrevistada por Pedro Archanjo, ela ressalta uma tradição cara aos jejes: a importância das águas dos rios e o culto à serpente sagrada Dan. Um terceiro representante do candomblé se fez presente, Luís Alves de Assis, mais conhecido como Luís Muriçoca (1920-2002), pai de santo do Terreiro Ilé Axê Ibá Ogun. No filme, ele é o valente pai de santo Procópio de Oxóssi, que após ter sido preso e espancado pelo delegado Pedrito Gordo (Washington Fernandes) voltou a dançar e a tocar atabaques para homenagear seu orixá protetor. Procópio de Oxóssi é uma homenagem ao pai de santo Procópio Xavier de Souza (1880-1958), mais conhecido como Procópio de Ogunjá ou d’Ogum. Durante o Estado Novo (1937-1945), foi preso e espancado, enfrentando bravamente a repressão policial.
De acordo com Araújo (2013, p.134), diferentemente de Antonio Balduí- no, protagonista de Jubiabá (Amado, 1935), primeiro herói negro da literatura brasileira, que era socialista e sindicalista, Pedro Archanjo é um “herói negro autônomo, dedicado exclusivamente à luta contra o racismo e portador de todo um conhecimento religioso, histórico, sociológico e antropológico obtido dentro do candomblé, pelo mecanismo próprio da iniciação”.
Ao escrever e publicar seus quatros livros (A vida popular na Bahia, de 1907, Influências africanas nos costumes da Bahia, de 1918, Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, de 1928 e A culinária baiana - origens e preceitos, de 1920), o objetivo de Archanjo é registrar e valorizar a cultura popular afro-baiana e brasileira. Seu compromisso não é apenas ético, é, sobretudo, político, pois reconhece na cultura, na religião e no saber do povo mestiço uma forma de combate, resistência e denúncia do racismo religioso.
Racismo que acompanhou a formação do Estado brasileiro, fundado numa ideologia do branqueamento e de políticas eugenistas e repressor de manifestações religiosas do povo negro e mestiço. Desde a chegada dos primeiros escravizados africanos no Brasil, em meados do século XVI, a cultura negra foi silenciada, perseguida e depreciada, considerada símbolo de selvageria e atraso, ante os modelos civilizatórios europeus. O Estado e suas instituições contribuí- ram para a desigualdade racial e a criminalização de religiosidades de matriz africana.
A primeira Constituição republicana, de 1891, assegurou a liberdade de culto; contudo, o Estado criou vários instrumentos reguladores para inibir as expressões religiosas africanas, o que acabou legitimando as invasões policiais violentas nos terreiros de candomblé. Isso ocorria, porque o Código Penal de 1890, em seu artigo 157, estabelecia que era crime contra a saúde pública, “praticar o espiritismo, usar talismãs e cartomancias”. O candomblé não era visto como religião, mas como prática fetichista e falsa medicina, uma vez que mães e pais de santo, além de serem sacerdotes, também exerciam a função de médico em suas comunidades, administrando remédios à base de ervas.
De acordo com Santos (2009SANTOS, E. F. O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009.), no início do século XX, ao “discurso de feitiçaria” (propalado pela Igreja católica, desde o século XVI, que condenava as práticas religiosas de matriz africana, considerando-as como formas de superstição e marcadas pela presença do diabo) juntou-se um novo “discurso do fetiche”, destacando uma suposta irracionalidade dos praticantes. A ideia era expurgar, de Salvador, as heranças africanas, como o candomblé, o samba de roda e a capoeira, em nome do progresso e da civilização.
Os anos 1920 e 1930 foram os de maior repressão ao povo de santo. De acordo com Braga (1995BRAGA, J. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA,1995.), foram várias as vítimas da violência policial, que invadia os terreiros e os lares, espancava as pessoas, profanava e maculava os objetos sagrados. Muitos praticantes do candomblé foram obrigados a responder a inquéritos policiais injustos. Contudo, essa violenta repressão não tinha por base apenas a religiosidade, mas raízes mais profundas, associadas ao combate de uma cidadania diferenciada. Os terreiros de candomblé também eram, e ainda são, espaços de sociabilidade e afeto, onde as pessoas buscam conforto emocional e psíquico, que não encontram em outros lugares, proporcionando uma dinâmica de vida e de experiência que entrelaça vários níveis de existência, o humano, o ancestral e o divino. São espaços em que a sustentabilidade da vida está em primeiro lugar. Para a elite, que buscava um “branqueamento” da sociedade, o povo negro e mestiço que frequentava os terreiros tornou-se um “problema” social. Para resolver o “problema”, uniram-se a imprensa, a polícia e a Igreja católica, numa verdadeira cruzada, numa guerra santa contra o candomblé e suas práticas, tidas como bárbaras, num movimento de desafricanizar e catolicizar a capital baiana.
A perseguição mais cruel ocorreu na gestão do primeiro delegado auxiliar Pedro de Azevedo Gordilho (1885-1955), entre 1920 e 1926. Conhecido como Pedrito Gordo, ficou famoso pela truculência e perseguição ao candomblé e à capoeira. Em Tenda dos milagres, a violência contínua e crescente do delegado, discípulo das ideias eugenistas de Nilo Argolo, não poupava ninguém, todos os costumes de origem africana sofriam perseguição. As baianas vendedoras de acarajé eram proibidas de trabalhar; bater atabaques, cantar e dançar samba de roda era considerado crime; capoeiristas, mães e pais de santo eram presos, espancados, torturados e, muitas vezes, assassinados.
Para salvar o povo de santo, antes de morrer, numa derradeira atitude de resistência e justiça, Magé Bassã orientou Pedro Archanjo a evocar Ogum, o orixá da guerra e do fogo, reconhecido por sua coragem e força. Quando Zé Alma Grande, que acompanhava o delegado Pedrito numa diligência, avançou contra o pai de santo “encontrou pela frente Pedro Archanjo [...]. A voz se abriu imperativa no anátema terrível, na objurgatória fatal! Ogum capê dã meji, dã pelu onibã! Ogum chamou as duas cobras e elas se ergueram para os soldados! Ergueram-se os braços do orixá, as mãos de tenazes eram duas cobras: Zé Alma Grande, Ogum em fúria, partiu para Pedrito” (Amado, 1969, p.283-84).
Existe uma narrativa sagrada no candomblé, recuperada por Amado e Pereira dos Santos, associada à memória ancestral e aos fundamentos de uma identidade individual e coletiva. De acordo com Lima (2020LIMA, R. P. Transitoriedades no Atlântico yorubano: Bàbálóriÿà Claudionor Antonio de Oliveira e o peculiar rito de Ògún dançar com a serpente. Recife, 2020. 202p. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco. Disponível em: <https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/38598>. Acesso em: 20 nov. 2022.
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), capê é o verbo que desencadeia um processo mágico de convocar e evocar, Ogum chama pelas cobras e elas atendem ao seu chamado. Capê dã é configurado como o fazer impossível. As cobras atendem Ogum e realizam o impossível: combater os perseguidores, expulsando-os do terreiro e protegendo o solo sagrado e o povo de santo. No cinema etnológico de Pereira dos Santos, assim como nos terreiros, os orixás não estão fora dos corpos, estão encarnados pela incorporação. Como categoria cultural, os orixás transcendem a identidade e a individualidade e são revelados pelas expressões corporais. Os orixás incorporados transformam-se na expressão máxima de resistência do povo de santo.
Após a derrota de Pedrito Gordo, as batalhas foram reconfiguradas. Em 1969, ano de lançamento do romance Tenda dos milagres, foi decretada a Lei Estadual n.22.763-A, impondo a necessidade de registro dos terreiros de candomblé na Secretaria de Segurança Pública, obrigando-os a pedir autorização na Delegacia de Jogos e Costumes para realizarem suas atividades. Todas as despesas, até a obtenção do alvará, eram custeadas pelo próprio terreiro. Entre os documentos exigidos estava um atestado de sanidade mental do responsável pelo culto. O atestado era expedido após a realização de exame psiquiátrico, efetuado por um profissional escolhido pelo órgão governamental. Há, nesse ponto, um deslocamento de repressão ao candomblé, de prática criminalizada, para um controle científico dos hospitais psiquiátricos. Entre todas as expressões religiosas presentes na Bahia, apenas o povo de santo era obrigado a cumprir essa regra. Apenas em 1976, por força de Decreto, a licença deixou de existir e o candomblé foi reconhecido como religião. Contudo, o racismo religioso não findou, apenas adaptou-se às novas regras.
Nos anos 1970, década em que Pereira dos Santos adaptou Tenda dos milagres para o cinema, a perseguição e a violência tornaram-se mais brandas, porém, novas lutas se delineavam. Nesse período, as religiões de matriz africana foram folclorizadas e exploradas como mercadoria pelo Estado e pelo turismo baianos, tornando-se “curiosidade” no entretenimento de uma elite branca. Em 1972, foi criada, pelo então governador Antônio Carlos Magalhães, a Bahiatursa, com a função principal de publicizar a herança folclórica africana na Bahia, com destaque para os cultos dos candomblés. A partir dessa medida, destaca Teles dos Santos (2005), as agências de turismo e os hotéis eram informados em quais terreiros ocorriam cerimônias que poderiam ser visitadas pelos turistas. O candomblé foi apresentado como algo exótico e atraente, ocorrendo o seu desvirtuamento como religião.
A perspicácia de Pereira dos Santos não deixou escapar essa “folclorização do candomblé”. Na recepção de chegada ao professor Levingstone, veem-se mulheres negras e mestiças, vestidas de baianas de acarajé (a tradicional roupa branca, os colares de contas nas cores de seu orixá protetor e lenços coloridos cobrindo os cabelos), servindo quitutes (provavelmente acarajés e bolinhos de estudante, típicos da culinária baiana), numa posição de servidão e despertando o curioso interesse dos convidados, sobretudo do professor. Em outra cena, Levingstone é levado por Ana Mercedes e Fausto Pena para conhecer um ritual de candomblé. Eles se sentam em cadeiras, como se estivessem numa plateia, apenas assistindo a cerimônia, como meros espectadores, o que não impede Ana Mercedes de “receber” o santo.
Para resistir, o povo de santo criou alternativas e estratégias de sobrevivência. Dentre elas, o sincretismo (associando seus orixás a santos católicos), a instalação de terreiros em lugares afastados da cidade, a separação entre as funções de sacerdote e médico (no intuito de proteger as lideranças do terreiro), a articulação com pessoas influentes nas esferas institucionais e culturais, a realização de congressos e seminários (como os Congressos Afro-Brasileiros), num amplo combate ao racismo. Nos anos 1980, passaram a ser discutidas políticas públicas inclusivas, exemplo da II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, realizada em Salvador. No evento foi discutida a necessidade do fim do sincretismo religioso e da afirmação do candomblé como religião. Ainda em 1983, ialorixás e babalorixás da Bahia assinaram duas cartas públicas, que tiveram grande repercussão midiática, defendendo as práticas religiosas do candomblé, visando retirá-las do lugar de demonização, criminalização e folclorização.
No fim: resistência, sempre presente!!
O carnaval, festa pública por excelência, detentora de um caráter não oficial e verdadeira expressão da cultura popular (Bakhtin, 1999BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: EDUnB, 1999.), foi o ambiente escolhido por Amado e Pereira dos Santos para a entrada de Pedro Archanjo jovem na narrativa. No carnaval de 1918, o Afoxé dos Filhos da Bahia fez um desfile único, com o pequeno bloco Zumbi dos Palmares, formado por Archanjo, Lídio Corró e Domingos Jorge Velho. Os três invadiram, alegre e desafiadoramente, o carnaval oficial, com suas pacatas marchinhas europeias, assistido pela elite baiana de suas sacadas. Os afoxés,7 7 De acordo com Carneiro ([1974]1982), a palavra afoxé tem origem iorubá e significa “o enunciado que faz acontecer”. explica Cadena (2014CADENA, V. N. História do carnaval da Bahia: 130 anos do carnaval de Salvador (1884-2014). Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2014.), blocos carnavalescos de origem africana, desfilaram pela primeira vez em 1895, ao som de batucadas e cânticos em nagô. Os blocos e os ritmos estão intimamente ligados aos praticantes de candomblé, por isso, a elite baiana e os meios de comunicação estimularam uma cruel campanha contra os afoxés, alegando que feriam a moral cristã e caberia ao Estado disciplinar os maus costumes. Tal atuação culminou numa portaria que proibia os grupos afrodescendentes de saírem às ruas, revelando que os órgãos controladores estavam mais a favor da cultura europeia elitizada, em detrimento da praticada pelo povo mestiço, grande maioria da população.
Para finalizar, Amado escolhe novamente o carnaval. Em 1969, a escola de samba Filhos do Tororó levou às ruas o enredo “Pedro Archanjo em quatro tempos”. As várias mulheres e os vários filhos de Archanjo foram representados; atabaques, cabaças e o povo de santo também estavam presentes. Finalizando o desfile e o romance:
Pedro Archanjo vem dançando, não é um só, é vário, numeroso, múltiplo, velho, quarentão, moço, rapazola, andarilho, dançador, boa prosa, bom no trago, rebelde, sedicioso, grevista, arruaceiro, tocador de violão e cavaquinho, namorado, terno amante, pai-d’égua, escritor, sábio, um feiticeiro. Todos pobres, pardos e paisanos. (Amado, 1969, p.347)
Já Pereira dos Santos escolheu outra importante expressão da cultura popular mestiça baiana para encerrar seu filme, as comemorações do 2 de julho. A data homenageia a vitória das forças coloniais na guerra da independência, formada pelo povo pobre e mestiço, que expulsou definitivamente os portugueses de Salvador, no dia 2 de julho de 1823. O cortejo acontece todos os anos, tendo seu início no Pavilhão Dois de Julho, ao lado da Paróquia da Lapinha, onde se encontra a imagem de um caboclo, símbolo da independência da Bahia. O cortejo é acompanhado por um grande desfile popular, juntamente com as imagens do caboclo e da cabocla, símbolos da força mestiça nativa. Aliás, além de forte presença mestiça nos combates, a resistência também contou com ampla participação de mulheres, como Maria Felipa, Maria Quitéria e Joana Angélica. No desfile, que percorre várias ruas históricas até seu destino, o largo do Campo Grande, não faltam atabaques, música e muita alegria. As cenas iniciam, exatamente, com a porta de entrada do Pavilhão Dois de Julho, seguem imagens do caboclo e da cabocla, do povo desfilando, vestido de branco, símbolo do candomblé. Não há regras ou normas para o desfile, apenas o povo, impetuosamente, tomando conta das ruas.
Escolhas diferentes, uma única mensagem: o combate ao ódio, ao racismo, às injustiças; a valorização da força a da resistência do povo mestiço e de santo da Bahia. Tenda dos milagres é uma narrativa que resiste. Kaô Kabecilê, Xangô!! Pedro Archanjo, presente!! Povo de santo, presente!!
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Notas
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1
Obá de Xangô é um título honorífico do candomblé, criado por mãe Aninha (Eugenia Ana dos Santos, 1869-1938), ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá (Casa sob o comando e o sustento do cajado de Afonjá), em 1936. Trata-se de doze reis ou ministros, os Obás, concedidos aos amigos e protetores, responsáveis pelo destino civil do terreiro.
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2
O Terreiro de Tuntum Olukotun, localizado na Ilha de Itaparica (BA), é o mais antigo terreiro de Egun (culto aos ancestrais masculinos) no Brasil, fundado em 1850 por Marcos Teodoro Pimentel.
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3
Em depoimento memorialista, Gilberto Gil (2021) declarou sua experiência com o candomblé, disponível em seu perfil no Instagram.
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4
De acordo com Prandi (2009), no candomblé, Ojuobá é um título usualmente dado a um homem influente, que representa uma espécie de informante da mãe de santo sobre o que acontece na cidade, um embaixador e defensor do terreiro, junto às autoridades.
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5
Caso de Sueleny Ribeiro Carvalho (2013, p.95) que, ao analisar Tenda dos milagres, defendeu a ideia de que Amado, ao apresentar características marcantes da mulher e do homem negro, reforça “estereótipos negativos atribuídos ao sujeito negro”.
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Alufá é um termo que designa o líder religioso dos negros muçulmanos. Pacífico Licutã foi um dos líderes da Revolta dos Malês, que aconteceu na Bahia em 1835, o maior levante de escravos da história do Brasil, mobilizando mais de 600 pessoas.
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7
De acordo com Carneiro ([1974]1982), a palavra afoxé tem origem iorubá e significa “o enunciado que faz acontecer”.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Jul 2023 -
Data do Fascículo
May-Aug 2023
Histórico
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Recebido
09 Fev 2023 -
Aceito
05 Maio 2023