RESUMO
Como ferramenta de prova e ferramenta de governo, a Estatística desempenhou papéis fundamentais no desenvolvimento da ciência, nos modos de ação do Estado, e em vários ramos da economia. O desenvolvimento das tecnologias digitais no século XXI conduziu a uma produção crescente de dados e ao surgimento de um novo campo algorítmico de conhecimento e ação. Por meio de pesquisa empírica fundamentada em contribuições teóricas da sociologia da quantificação e dos Estudos de Ciência e Tecnologia, este artigo analisa algumas transformações nas estatísticas públicas produzidas pelos Institutos Nacionais de Estatística. Isso se baseia em uma investigação da recente promoção de Big Data e Inteligência Artificial para estatísticas oficiais no contexto das Nações Unidas.
PALAVRAS-CHAVE:
Estatísticas públicas; Estatísticas oficiais; Big Data; Inteligência artificial; Plataforma Global das Nações Unidas
ABSTRACT
As a tool of proof and a tool of government, statistics played fundamental roles in the development of science, in the modes of action of the State, and in various branches of the economy. The development of digital technologies in the 21st century led to an increasing production of data and the emergence of a new algorithmic field of knowledge and action. Through empirical research grounded by theoretical contributions from the sociology of quantification and Science and Technology Studies, this paper analyzes some changes in public statistics produced by the National Statistical Offices. This is based on an investigation of the recent promotion of Big Data and Artificial Intelligence for official statistics in the context of the United Nations.
KEYWORDS:
Public Statistics; Official Statistics; Big Data; Artificial Intelligence; United Nations Global Platform
Introdução
A estatística pode ser entendida tanto como uma forma de validação do conhecimento quanto como um instrumento de ação política (Desrosières, 1998DESROSIÈRES, A. The Politics of Large Numbers: a history of statistical reasoning. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1998.). Como ferramenta de prova, desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da ciência. Como ferramenta de governo, evoluiu em estreita relação com as formas de pensar e agir na sociedade e na economia (ibidem).
Ao longo do século XX, sistemas estatísticos nacionais, coordenados por Institutos Nacionais de Estatística (INE) públicos, mobilizaram vultosos investimentos econômicos e cognitivos para a consolidação de espaços nacionais de convenções de equivalência que assegurassem qualidade, legitimidade e confiabilidade na produção e utilização de medidas comuns nos mais diversos aspectos: demográficos, econômicos, sociais, ambientais e políticos (ibidem).
Entre as décadas de 1930 e 1970, as estatísticas públicas foram instrumentos críticos para operacionalizar a gestão “desenvolvimentista” das economias capitalistas ocidentais pelos Estados Nacionais sob a macroeconomia keynesiana. Com base nisso, ocorreu o fortalecimento dos INE e a confluência da matemática estatística, cálculo probabilístico e estatística administrativa para desenhar formas de quantificação social - censos regulares, pesquisas por amostragem estratificada e contabilidade nacional - ferramentas indispensáveis para a ação política no contexto do capitalismo administrado. Esse modelo entrou em crise entre as décadas de 1970 e 1980 (ibidem).
De 1980 a 1990, a teoria econômica neoliberal encontrou um terreno político fértil para sua expansão global. Um novo regime de acumulação “flexível” (Harvey, 2008HARVEY, D. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Ed. Loyola, 2008.), acompanhado de intensa financeirização da economia e apoiado nas ideias de desregulamentação e livre mercado, deu origem a novas formas de gerir a economia e a sociedade inspiradas na microeconomia e na teoria das expectativas racionais. No contexto neoliberal, o esforço de submeter ainda mais as relações sociais e econômicas aos ditames do mercado exigiu uma ampla quantificação do mundo social. Os centros de quantificação se multiplicaram e englobaram atores privados e agências internacionais (Desrosières, 2008_______. Pour une sociologie historique de la quantificação: L’argument statistique I. Paris: Presses de l’Ecole des mines, 2008.).
No século XXI, o desenvolvimento das tecnologias digitais gerou uma crescente produção de dados em todas as áreas do mundo social. Os métodos da ciência de dados e aprendizado de máquina emergiram da ciência estatística e da ciência da computação, desenvolvendo novos modelos probabilísticos multidimensionais associados a algoritmos de treinamento para classificar e reconhecer padrões em grandes volumes de dados para análises e previsões em inúmeras aplicações. A extração e produção de dados gerados por meio de interações sociais digitalizadas e sensores embutidos em máquinas tornaram-se essenciais para treinar e aperfeiçoar os modelos estatísticos e algoritmos no cerne das Inteligências Artificiais (Pasquinelli; Vladan, 2020PASQUINELLI, M.; VLADAN, J. The Nooscope Manifested: Artificial Intelligence as Instrument of Knowledge Extrativism. KIM and Share Lab, 2020. Disponível em: <https://nooscope.ai/>. Acesso em: 13 out. 2021.
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).
O desenvolvimento da Indústria de Inteligência Artificial (IA) parece apontar para uma reconfiguração das técnicas e práticas sociais, econômicas e políticas envolvidas na produção, consumo e distribuição de informações. A hipótese levantada neste trabalho é a de que o campo de produção de estatísticas públicas, tradicionalmente circunscrito a um espaço nacional e impulsionado por instituições de Estado (Desrosières, 2014_______. Prouver et gouverner: Une analyse polítique des statistiques publiques. Paris: La Découverte, 2014.), em particular os INE, pode vir a ser profundamente afetado em face da emergência de um novo campo algorítmico. Mais do que uma nova fronteira técnica, os métodos e tecnologias algorítmicas se relacionam com questões econômicas e políticas relevantes diante do poder assimétrico exercido por grandes corporações privadas sobre suas bases materiais e cognitivas (Rikap, 2021RIKAP, C. Capitalism, Power and Inovation: Intelectual Monopoly Capitalism Uncovered. New York: Routledge, 2021.) e pelo valor estratégico que os dados assumem na atual fase do capitalismo.
Um mercado de dados para estatísticas oficiais? Abordando o problema
Neste artigo, a hipótese da transformação do campo estatístico público em face do surgimento de um novo campo algorítmico é testada por meio da investigação da Plataforma Global das Nações Unidas (UNGP), voltada para a produção de estatísticas oficiais usando Big Data e IA. A plataforma foi desenvolvida sob os auspícios da Comissão Estatística das Nações Unidas (StatCom), o mais alto órgão de decisão para a coordenação de atividades estatísticas internacionais.
A análise mobiliza o conceito de “translação” de Bruno Latour (2011LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p.170) - a “interpretação dada pelos construtores de fatos aos seus interesses e às pessoas que arregimentam” - para investigar como o debate em torno da mensuração dos indicadores dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU apoiaram o discurso da “revolução dos dados”. A pesquisa segue, então, o percurso de translações promovidas por agentes interessados em promover um mercado de dados para estatísticas oficiais.
A adoção de princípios de mercado e o incentivo à realização de Parcerias Público-Privadas (PPP) para produção de estatísticas oficiais com uso de Big Data e IA são criticamente analisados do ponto de vista dos riscos de subsunção dos sistemas estatísticos nacionais a um mercado controlado por grandes corporações globais que atualmente constituem Monopólios Intelectuais Baseados em Dados (Rikap, 2021RIKAP, C. Capitalism, Power and Inovation: Intelectual Monopoly Capitalism Uncovered. New York: Routledge, 2021.).
Este trabalho enfatiza as diferenças semânticas e políticas entre a terminologia “estatísticas oficiais” e “estatísticas públicas”. Se o termo “oficial”, usado atualmente, reforça o caráter autoritativo das estatísticas, o termo “público”, por sua vez, refere-se a um importante papel histórico das estatísticas nas democracias como uma “ferramenta à disposição dos fracos para combater os poderosos” (Desrosières, 2014_______. Prouver et gouverner: Une analyse polítique des statistiques publiques. Paris: La Découverte, 2014.).
A análise também ressoa o conceito de “colonialismo de dados” (Couldry; Mejias, 2019COULDRY, N.; MEJIAS UA The Costs of Connection. Standford: Standford Univ. Press, 2019.) para investigar “assimetrias de poder inerentes às formas contemporâneas de mercantilização de dados” (Thatcher et al., 2016THATCHER, J.; O’SULLIVAN, D.; MAHMOUDI, D. Data colonialism through accumulation by dispossession: New metaphors for daily data. Environment and Planning D: Society and Space, v. 34, n.6, p. 990-1006, 2016., p.992) e as condições de possibilidade para o surgimento de políticas de dados neocoloniais no campo das estatísticas oficiais (Isin; Ruppert, 2020).
Referenciada na sociologia da quantificação de Alain Desrosières (1998DESROSIÈRES, A. The Politics of Large Numbers: a history of statistical reasoning. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1998.), a análise finalmente mobiliza a noção de espaço de convenções de equivalência constituídas por meio de investimentos econômicos e cognitivos que condicionam a estabilidade e a permanência de formas de quantificação social. Com isso, pretende-se apreender a dimensão e o significado de possíveis reconfigurações no campo da produção de estatísticas públicas em face da emergência de um novo espaço algorítmico de equivalências.
A primeira seção discute a afinidade da agenda de desenvolvimento global pós-2015 com visões neoliberais para entender o contexto em que Big Data e IA para estatísticas oficiais foram introduzidos na ONU. A segunda seção investiga como o discurso da revolução dos dados, articulado nesse contexto, instrumentalizou os ODS. Os desdobramentos e resultados das translações que deram origem à UNGP são analisados na terceira e quarta seções.
A abordagem neoliberal na Agenda de Desenvolvimento Global pós-2015
Em 2015, a ONU publicou a Agenda 2030, propondo 17 ODS para substituir os 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Para a “erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões” (ONU, 2015, p.2), os ODS se desdobram em 169 metas e algumas centenas de indicadores.
Analistas têm apontado aspectos críticos nas premissas e no conteúdo dos ODS, que comprometem os próprios objetivos que a agenda pretende alcançar: há retrocessos no escopo em relação a agendas anteriores (Koehler, 2017KOEHLER, G. The 2030 Agenda and eradicating poverty: New horizons for global social policy. Global Social Policy, v.17, n.2, p.210-16, 2017.), predominância de uma episteme de mercado nos fundamentos da agenda (Weber, 2017WEBER, H. Politics of ‘Leaving No One Behind’: Contesting the 2030 Sustainable Development Goals Agenda. Globalizations, v.14, n.3, p.399-414, 2017.), a influência assimétrica de grandes corporações privadas (Scheyvens et al., 2016) e o aprofundamento de uma ortodoxia do desenvolvimento (Gabay; Ilcan, 2017GABAY, C.; ILCAN, S. The Affective Politics of the Sustainable Development Goals: Partnership, Capacity-Building, and Big Data. Globalizations, v.14, n.3, p.468-85, 2017.).
Em uma análise retrospectiva das agendas de desenvolvimento anteriores da ONU (1960-2000), Khoeler (2017) enfatiza que muitos pontos importantes foram perdidos em sua tradução para os ODM e posteriormente para os ODS. Esses pontos incluem o trabalho decente deixado de lado nas agendas. As recomendações para aumentar os gastos sociais e a proteção contra cortes no orçamento público foram retiradas. Não há reconhecimento da necessidade de regulamentação das corporações transnacionais, e a questão da assimetria das relações de poder não é abordada.
Para Weber (2017WEBER, H. Politics of ‘Leaving No One Behind’: Contesting the 2030 Sustainable Development Goals Agenda. Globalizations, v.14, n.3, p.399-414, 2017., p.408), a agenda pós-2015 consolida uma lógica formulada desde os anos 1980 que assume o mercado como princípio organizador do desenvolvimento. Essa abordagem está implícita no conteúdo dos ODS. A ausência de compromissos para assegurar garantias universais permite que as necessidades vitais sejam tratadas como mercadorias, priorizando os interesses comerciais sobre os direitos coletivos. O compromisso de “não deixar ninguém para trás” é, portanto, apresentado como “um discurso estrategicamente utilizado para justificar a implementação de um projeto político altamente problemático como marco para o desenvolvimento global” (ibidem, p.399).
Shceyvens et al. (2016) destacam que uma das mudanças mais significativas introduzidas pelos ODS foi ter dado destaque ao papel do setor privado na definição da agenda global de desenvolvimento. Isso se deveu em parte à crise financeira global de 2007/2008 e à subsequente restrição dos orçamentos públicos para o desenvolvimento. O setor empresarial assumiu um papel de destaque na agenda 2030 nesse contexto. Isso resultou em uma visão de desenvolvimento na qual o papel dos governos seria criar ambientes propícios para o desempenho do setor privado.
Uma característica discursiva comum das agendas globais é a de que o processo de desenvolvimento deve atuar para animar as capacidades dos países em desenvolvimento tornando-os sujeitos ativos de acordo com uma determinada visão de mundo, que Gabay e Ilcan (2017GABAY, C.; ILCAN, S. The Affective Politics of the Sustainable Development Goals: Partnership, Capacity-Building, and Big Data. Globalizations, v.14, n.3, p.468-85, 2017.) denominaram “ortodoxia do desenvolvimento”. Os autores destacam três temas relevantes para a compreensão da ortodoxia dos ODS: parcerias, capacitação e Big Data.
Na agenda pós-2015, o discurso das parcerias atua para ocultar e reproduzir relações de poder desiguais, sancionando uma forma particular de ação baseada na racionalidade liberal. Iniciativas de capacitação “muitas vezes funcionam para governar grupos e populações, tornando-os atores autorregulados e responsáveis por meio de sua participação nas promessas de relações baseadas no mercado” (Gabay; Ilcan 2017GABAY, C.; ILCAN, S. The Affective Politics of the Sustainable Development Goals: Partnership, Capacity-Building, and Big Data. Globalizations, v.14, n.3, p.468-85, 2017., p.479). O Big Data, por sua vez, complementa a promessa de “não deixar ninguém para trás”, introduzindo a ideia de que “ninguém deve ser invisível”. Nesses termos, a parceria e a capacitação para o uso de Big Data para os ODS preenchem uma lacuna no conhecimento de possíveis objetos de desenvolvimento nos países pobres, enquanto o apelo à inovação e ao empoderamento dos cidadãos para tomar melhores decisões por meio dos dados “destinam-se a induzir o movimento em direção a certos tipos de subjetividade pró mercado” (ibidem, p.482).
Parcerias, capacitação e Big Data são elementos centrais da “Revolução de Dados para o Desenvolvimento Sustentável”, discurso produzido no âmbito dos debates em torno dos ODS. A próxima seção investiga como a revolução dos dados passou a configurar uma agenda dentro da Comissão Estatística das Nações Unidas (StatCom) para intensificar o uso de Big Data e IA para a produção de estatísticas oficiais por meio de Parcerias Público-Privadas (PPP).
O discurso da revolução de dados
A primeira menção ao termo revolução de dados dentro da ONU foi articulada em 2013 pelo High-Level Panel of Eminent Persons (HLP), um grupo constituído para oferecer recomendações ao secretário-geral da ONU sobre a agenda de desenvolvimento pós-2015. Seu relatório enfatiza: “Também pedimos uma revolução de dados para o desenvolvimento sustentável, com uma nova iniciativa internacional para melhorar a qualidade das estatísticas e informações disponíveis para pessoas e governos” (UN-HLP 2013, p.21).
As recomendações do HLP foram seguidas em 2014 pelo Independent Expert Advisory Group on a Data Revolution for Sustainable Development (IEAG), grupo constituído pela ONU para identificar medidas destinadas a fechar lacunas de dados e fortalecer as capacidades estatísticas nacionais para monitorar os ODS (UN- IEAG, 2014).
O relatório do IEAG “A world that counts” é um manifesto que consolida o termo revolução dos dados e apresenta diretrizes para sua implementação. O diagnóstico aponta para as limitações das estatísticas dos governos nacionais em fornecer dados para os indicadores de desenvolvimento. Os problemas incluem defasagem de tempo, desagregação insuficiente, invisibilidade de certos grupos populacionais, viés de gênero e riscos de interferência política.
Os especialistas observam que “muitos países ainda têm dados ruins, os dados chegam tarde demais e muitos problemas ainda não são cobertos adequadamente pelos dados existentes” (UN-IEAG, 2014, p.11). O relatório conclui que o alcance dos ODS só será possível “abraçando a revolução dos dados” e recomenda que a ONU exerça a liderança para um “consenso global de dados para o desenvolvimento”, o que deve envolver a criação de novas linhas de financiamento e uma “rede das redes de inovação em dados” incluindo o setor privado.
De fato, a mensuração dos ODS trouxe novas pressões para o trabalho dos INE em todo o mundo, pois constituiu novas demandas de informação sem orçamento extra. Isso é especialmente verdadeiro para muitos países em desenvolvimento, onde “o fornecimento de informações estatísticas básicas continua sendo um verdadeiro desafio” (MacFelly, 2019, p.126). O uso de Big Data para preencher lacunas das estatísticas oficiais nos países em desenvolvimento para cumprir os ODS, no entanto, ainda é objeto de debate:
Alguns (Ismail, 2016; Korte, 2014; Long e Brindley, 2013) argumentaram que, devido aos custos decrescentes associados à tecnologia, o big data pode oferecer aos países em desenvolvimento a oportunidade de avançar e compilar estatísticas de próxima geração [...] Outros (MacFeely and Barnat, 2017; Mutuku and Serra, 2016; Runde, 2017; UN Conference for Trade and Development, 2016), entretanto, alertaram que, para isso, será necessário melhorar o acesso a computadores e à Internet, um desenvolvimento significativo na alfabetização numérica e estatística e na infraestrutura básica de dados. Também há preocupações de que, como a legislação estatística e a proteção de dados são geralmente fracas em muitas partes do mundo em desenvolvimento, focar em big data antes de abordar essas questões fundamentais pode fazer mais mal do que bem a longo prazo. (MacFelly, 2019, p.126, tradução nossa)
O relatório do IEAG, apoiando o uso benéfico de Big Data para estatísticas oficiais, será então usado para subsidiar uma nova arquitetura institucional dentro da Divisão de Estatística das Nações Unidas (UNSD).1 1 A UNSD funciona como um mecanismo central do Secretariado da ONU para suprir as necessidades estatísticas e coordenar as atividades do sistema estatístico mundial. A Divisão é supervisionada pela UN-StatCom. Servirá de base para legitimar o discurso de que, diante dos desafios apresentados pelos ODS, é preciso modernizar os INE para o uso de Big Data. Tal modernização aponta para a criação de novos arranjos institucionais por meio de PPP e adesão a um ecossistema global de dados mediado por espaços supranacionais com governança compartilhada entre atores públicos e privados.
Pelo menos dois desdobramentos importantes dentro da ONU referem-se explicitamente às recomendações do IEAG: i) a criação da Global Partnership for Sustainable Development Date (GPSDD) e ii) a constituição do Global Working Group on Big Data for Official Statistics (GWG) na UNSD. Os quais são examinados nas próximas seções.
Incidência de corporações privadas no ambiente estatístico global
Hospedada pela fundação privada norte-americana United Nations Foundation,2 2 A UN Foundation é uma organização privada sem fins lucrativos norte-americana fundada pelo empresário Ted Turner (canal CNN e Time Warner), que é o atual presidente de seu conselho de administração. Os parceiros incluem: Rockefeller Foundation, Ford Foundation, Amazon, Google, Coca Cola, Nestlé, Unilever, Pfizer, etc. Para uma lista completa: <https://unfoundation.org/who-we-are/our-partners/more-of -our-partners/>. Acesso em: 18 nov. 2021. a GPSDD se apresenta como uma rede dedicada a disseminar a revolução de dados como uma “força para o bem” (GPSDD 2020a, p.2). Seus parceiros corporativos3 3 Para a lista completa de parceiros do GPSDD: <https://docs.google.com/spreadsheets/ d/1OizuPo28fBbFbjswKyFF2aD7YUeklGVBSrD2eEULNSM/edit#gid=0>. Acesso em: 18 nov. 2021. incluem Facebook, Google, Microsoft, IBM e outros. Doadores da iniciativa incluem a Fundação Bill & Melinda Gates e a Google.
A GPSDD está atualmente dedicada a alcançar três objetivos principais: i) expandir novas tecnologias e fontes de dados, ii) mobilizar um movimento global para promover o uso responsável de dados e iii) incorporar padrões de interoperabilidade de dados em estruturas globais de dados e estatísticas (GPSDD, 2020b, p.2).
De 2015 a 2019, a GPSDD dedicou-se à estruturação de sua rede global e à implementação de projetos-piloto em colaboração com governos de países em desenvolvimento (GPSDD, 2020c). Os planos para 2020 a 2023 incluem: i) aumentar o número de governos que usam Big Data de fontes privadas por meio da intermediação de pelo menos dez PPP; ii) desenvolver exemplos de compartilhamento de dados público-privados, iii) institucionalizar princípios para a interoperabilidade de dados no sistema estatístico oficial, iv) desenvolver aconselhamento técnico sobre interoperabilidade para pelo menos 20 INE (GPSDD, 2020a).
Com o Banco Mundial, a GPSDD lançou a iniciativa “Data for Now”, baseada no pressuposto de que “para alcançar os ODS, e não deixar ninguém para trás, todos no mundo devem estar representados em dados atualizados e oportunos” (GPSDD, 2019, p.1). A iniciativa visa avançar no uso de dados gerados pelos cidadãos (citizen-data) por meio de PPP com uma estratégia explicitamente orientada para os INE:
A iniciativa envolverá o trabalho em estreita colaboração com os Institutos Nacionais de Estatística e todas as agências governamentais relevantes, para que o uso de novas fontes de dados, como dados gerados pelos cidadãos, complementará as estatísticas oficiais [...] O objetivo será integrar novos métodos e fontes nos sistemas estatísticos nacionais existentes, e explicitamente não criar uma infraestrutura paralela de dados no nível do país. Embora os sistemas governamentais estejam no centro desta iniciativa, o objetivo será melhorar as oportunidades de colaboração e compartilhamento de informações [...] e catalisar novas parcerias de dados entre entidades públicas, privadas e acadêmicas. (GPSDD, 2019, p.3, tradução nossa)
A translação realizada pela GPSDD parece usar os ODS para promover um ambiente propício para negócios dentro dos sistemas estatísticos nacionais do sul global. Essa estratégia ocorre, entre outros, por meio de influência política de alto nível na StatCom, que detém poder decisório sobre o sistema estatístico global.
Uma das instâncias de incidência da GPSDD é o High-level Group for Partnership, Coordination and Capacity-Building for statistics for the 2030 Agenda (HLG-PCCB). A StatCom designou ao grupo, entre outras tarefas, o desenvolvimento de um plano de ação global (UN-StatCom 2016). O HLG-PCCB é composto por representantes de INE e parceiros externos; entre eles estão a GPSDD e o Grupo Paris 21.
Criado em 1999 como uma rede para o aperfeiçoamento das estatísticas no âmbito dos ODM, o Grupo Paris 21, sediado na OCDE, também atua na promoção do uso de Big Data para estatísticas oficiais em países em desenvolvimento. Por meio do projeto Informing Data Revolution, financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates, o grupo promoveu PPPs e um novo sistema de financiamento para o setor estatístico, intitulado Data Compacts (OCDE-Paris21, 2015).
Um documento estratégico da OCDE/Paris 21 analisa as lições aprendidas e os passos futuros para PPP em estatísticas (Robin et al., 2016ROBIN, N.; KLEIN, T.; JÜTTING, J. Public-Private Partnerships for Statistics: Lessons Learned, Future Steps. OECD Working Paper 27 - Paris 21, 2016.). Um conjunto de projetos envolvendo Big Data para estatísticas oficiais é analisado de acordo com quatro tipos ideais: (i) produção interna de estatísticas pelo provedor privado de dados; (ii) transferência de dados privados para INE; (iii) transferência de dados privados para intermediários (third-parties); (iv) terceirização das funções dos INE. O documento incentiva o modelo de uso de intermediários, enfatizando que “o setor privado está disposto a cooperar com intermediários” (Robin et al., 2016, p.25). Também sugere que os escritórios supranacionais poderiam operar como potenciais intermediários para PPP:
[...] os escritórios regionais de estatística podem possuir a infraestrutura mais apropriada para lidar com os desafios técnicos da transferência de grandes conjuntos de dados [...] Eles também poderiam atuar como intermediários confiáveis e ajudar a economizar em custos de coordenação a) entre detentores de dados privados e b) entre INE. Isso, no entanto, implicaria uma harmonização dos quadros jurídicos nacionais, o que provavelmente só ocorrerá a longo prazo. (Robin et al, 2016ROBIN, N.; KLEIN, T.; JÜTTING, J. Public-Private Partnerships for Statistics: Lessons Learned, Future Steps. OECD Working Paper 27 - Paris 21, 2016., p.23, tradução nossa)
O Plano de Ação Global da Cidade do Cabo, resultado do trabalho do HLG-PCCB, foi adotado pela StatCom em 2017. O plano acomoda os principais objetivos estratégicos do GPSDD e Paris 21, destacando os seguintes pontos: (i) Identificar e remover barreiras ao uso de novas fontes de dados; (ii) Desenvolver os arranjos institucionais necessários para a cooperação público-privada, incluindo o uso de dados de fontes não oficiais; (iii) Criar oportunidades para atores não estatais participarem do financiamento de atividades estatísticas por meio de mecanismos inovadores de financiamento (UN-StatCom, 2017).
O lobby realizado por GPSDD e Paris 21 dentro da StatCom parece ter contribuído para pavimentar o caminho institucional para viabilizar um ambiente de negócios no sistema estatístico global. Ao mesmo tempo, o Global Working Group trabalhou na concepção e desenvolvimento de uma base material para um mercado de dados para estatísticas oficiais, a UNGP, discutida na próxima seção.
A UNGP
A StatCom estabeleceu o Global Working Group on Big Data for Official Statistics (GWG) em 2015 com as seguintes tarefas: (i) fornecer uma visão estratégica e coordenação de um programa global de Big Data para estatísticas oficiais; (ii) promover o uso prático de fontes de Big Data; (iii) promover a comunicação e a defesa do uso de Big Data em aplicações políticas; (iv) aumentar a confiança do público no uso de Big Data para estatísticas oficiais (UN-StatCom, 2015).
Em 2016, o GWG propôs a criação de uma plataforma global de dados para apoiar a comunidade estatística internacional, compartilhando conhecimento, dados e métodos de todos os países do mundo. Quatro anos após a primeira proposta, a UNGP é apresentada da seguinte forma:
A Plataforma Global da ONU é uma infraestrutura política, técnica e de negócios que apoia um ecossistema internacional de estatísticos, cientistas de dados e outros parceiros para trabalharem juntos na resolução de problemas e publicação aberta de seus resultados. Ela oferece um ambiente confiável para análise de dados colaborativa com base em quatro pilares: parceiros confiáveis, dados confiáveis, métodos confiáveis (algoritmos) e aprendizado confiável. Usando princípios de rede e de mercado, a plataforma facilita a troca, desenvolvimento e compartilhamento de dados, métodos, ferramentas e expertise com o objetivo de acelerar a inovação de dados. A plataforma também será usada para coordenar atividades de capacitação relacionadas ao desenvolvimento de habilidades em ciência de dados e ao uso de big data e técnicas de aprendizado de máquina. O marketplace é atualmente o “front-end” da plataforma. (UN-StatCom, 2020a, p.10, tradução nossa)
Desenvolvida e mantida pelo Office of National Statistics (ONS) do Reino Unido entre 2018 e 2020, a versão beta da UNGP tinha os seguintes serviços:
Atualmente contém vários serviços alfa, como acesso a serviços em nuvem, incluindo Alibaba Cloud, Amazon Web Services, Google Cloud Platform e Azure da Microsoft. Ele oferece uma variedade de serviços para colaboração de código, publicação de métodos, observação da Terra e análise de dados de localização. Os usuários da plataforma podem pesquisar, construir, implantar e consumir algoritmos e métodos estatísticos e ainda desenvolver métodos nas principais linguagens de programação utilizadas pela comunidade estatística, como R, Python, Java e Scala. A plataforma também pode hospedar modelos de aprendizado de máquina e publicar endpoints de interface de programação de aplicativos para eles. (UN-StatCom, 2019a, p.6, tradução nossa)
O modelo de negócios da plataforma afirma “contribuir para uma melhor compreensão da economia e da sociedade global, para a entrega dos ODS e modernização do sistema estatístico, além de apoiar lucros sustentáveis para parceiros comerciais” (UN-StatCom 2019b, 6). O modelo de negócios do UNGP apresenta de forma muito objetiva as pretensões de mercado da iniciativa:
A colaboração na plataforma dará às empresas multinacionais oportunidades de testar seus produtos e serviços em uma comunidade global e obter acesso a governos em potencial e outros clientes. A redução dos custos de inovação por meio da colaboração levará a um aumento na taxa e na qualidade do desenvolvimento de produtos. A comoditização de produtos na plataforma ganhará com a qualidade e confiança da plataforma e com o acesso a parceiros da plataforma neste mercado global. O status de parceiro confiável terá valor de reputação para organizações comerciais que se traduzirá em mensagens positivas para a promoção da empresa e seus produtos. (UN-StatCom, 2019b, p.34, tradução nossa)
De acordo com o GWG, a academia, a pesquisa, a sociedade civil e os parceiros do setor privado “podem se tornar parceiros confiáveis na rede da Plataforma Global por meio da indicação de parceiros principais” (UN-StatCom, 2019a, p. 9). Os parceiros do setor privado da UNGP incluem: Positium, Flowminder, Telenor Group, Nielsen, Maritime Research, Galois, Cybernetica e Microsoft Research. (UN-StatCom, 2019a, p.9).
O GWG optou por criar uma organização privada com sede no Reino Unido para gerenciar a plataforma: “A partir do segundo trimestre de 2020, esses serviços estão programados para serem fornecidos por uma organização não governamental sem fins lucrativos chamada Global Platform Institute e por quatro hubs regionais relacionados a governos” (UN-StatCom, 2019a, p.7). Hospedados em INEs, os quatro hubs regionais na Ásia (China), Oriente Médio (EAU), África (Ruanda) e América Latina (Brasil) têm como objetivo desenvolver capacidades em países em desenvolvimento, expandir parcerias e disseminar os serviços da Plataforma (UN-StatCom, 2019a). O Instituto, no entanto, foi dissolvido4 4 Consulte: <https://find-and-update.company-information.service.gov.uk/company/12161673/filing-history>. Acesso em: 18 nov. 2021. e em julho de 2020 a Plataforma passou a ser integralmente gerida pela GPSDD (UN-StatCom, 2020c). O GPSDD também se tornou responsável pelo gerenciamento de contratos de dados e provedores de serviços da UNGP (UN-StatCom, 2020b).
Atualmente, o trabalho do GWG está organizado em equipes de trabalho (task teams) nos seguintes tópicos: (i) observação terrestre, (ii) dados de telefonia móvel, (iii) dados de scanner, (iv) dados de rastreamento de embarcações, (v) Big Data para os ODS, (vi) técnicas de preservação da privacidade e (vii) treinamento.
Em seu último relatório apresentado à StatCom, o GWG listou os seguintes projetos: (a) um projeto piloto no Senegal para construir um pipeline de dados usando dados de satélite para estimar colheitas; (b) a construção de um sistema de tecnologia da informação para a ferramenta de modelagem Inteligência Artificial em Serviços Ecossistêmicos; (c) sistema de identificação automática de dados de rastreamento de embarcações para medir a atividade de comércio internacional; (d) hospedagem do banco de dados nacional do Camboja na UNGP; (e) construção de um pipeline de dados usando algoritmos e dados de scanner para índices de preços; (f) banco de dados gráfico para um registro global de empresas multinacionais (UN-StatCom, 2020b).
É importante ressaltar que nenhum dos projetos apresentados pelo GWG aborda diretamente os ODS. De fato, o relatório apresentado pela equipe de trabalho responsável pelo tema é desanimador: “no momento não existe nenhuma aplicação concreta de Big Data que possa ser usada por países individuais no acompanhamento estatístico dos ODS. No entanto, existe uma série de iniciativas que podem ajudar a monitorar os indicadores dos ODS em nível global. A equipe de trabalho em Big Data para o SDG está tentando sintetizar essas atividades” (UN-StatCom, 2020d, p.1, tradução nossa).
A mudança de nome e status do GWG para Committee of Experts (UN-StatCom, 2020b), parece fazer parte de um novo movimento estratégico liderado pelo grupo Friends of the Chair on Economic Statistics (FOC), criado pela StatCom em 2019.
Em seu relatório à StatCom, o FOC recomendou a adoção de uma nova agenda de coinvestimento e codesenvolvimento da infraestrutura estatística global com protagonismo de organismos internacionais para aquisição e compartilhamento de dados de empresas multinacionais. De acordo com o FOC: “O quadro legal relativo às atividades estatísticas de países individuais geralmente impede o compartilhamento de informações [...]” (UN-StatCom, 2020e, p.11). As ações propostas pelo FOC parecem indicar uma nova etapa na agenda das estatísticas oficiais no que diz respeito às empresas multinacionais e plataformas digitais:
Na era da globalização de nossas sociedades, economias e ambientes naturais, os organismos internacionais devem facilitar a criação de um ambiente propício para parcerias globais em áreas onde uma abordagem centrada em escritórios nacionais de estatística não seria ideal. Os exemplos incluem a determinação do papel de empresas multinacionais e plataformas digitais internacionais; manutenção de registros comerciais globais de grupos empresariais; garantir o acesso aos dados e realizar a aquisição e troca com proprietários de dados privados globais. (UN-StatCom, 2020e, p.13-14, tradução nossa).
A mais nova equipe de trabalho do GWG abordará o tema da aquisição de dados do setor privado global. “Esta equipe abordará empresas globais para negociar o acesso às suas fontes de dados globais sob acordos globais e trabalhará em estreita colaboração com o caso de uso de coinvestimento na aquisição, troca e compartilhamento de dados recomendado pelo FOC” (UN-StatCom, 2020b, p. 10).
Na medida em que as prioridades do GWG apontam para outras direções, a translação iniciada pelos ODS parece ter sido concluída. No entanto, novos desafios se impõem no que diz respeito aos investimentos na Plataforma e sua implementação através dos quatro hubs no sul global. A seguir, o artigo conclui com uma análise desse cenário e apontamentos para a continuidade da investigação.
Considerações finais
As evidências apontam para um processo de transformação em que inovações na ciência estatística se combinam com métodos da ciência de dados em um cenário de reconfiguração da produção de estatísticas oficiais em nível global. Nesse contexto, pode haver riscos à soberania dos países em desenvolvimento sobre seus dados públicos, com o aumento da influência de empresas privadas em processos mediados por tecnologias algorítmicas em uma lógica de mercado.
Os investimentos para a constituição de um sistema estatístico global, composto por um conjunto de sistemas estatísticos nacionais, públicos e confiáveis, datam de 1947 e constituem um dos alicerces do sistema ONU. A investida de interesses privados nesse sistema ocorre em um contexto de afinidade entre a agenda de desenvolvimento pós-2015 e a ideologia neoliberal.
Como se viu, o discurso da revolução de dados para o desenvolvimento sustentável instrumentalizou os ODS em uma operação de translação para promover o uso de Big Data e IA para estatísticas oficiais. Medir os ODS representou uma enorme pressão sobre os INE, no âmbito da ONU isso foi acompanhado de ações pautadas em princípios de mercado que visam incentivar PPP e novos modelos de financiamento para a infraestrutura estatística global.
Ainda está em debate se o desenvolvimento de novas tecnologias para produzir estatísticas oficiais de forma mais oportuna e eficiente deve envolver o uso de fontes de Big Data e métodos de aprendizado de máquina, associados às fontes e métodos tradicionais usados pelos INE, como os censos populacionais, pesquisas por amostragem e registros administrativos. Em qualquer caso, estes devem estar sujeitos à regulamentação dos sistemas estatísticos nacionais, às leis nacionais de proteção de dados e aos padrões de controle público, qualidade e transparência, de acordo com os princípios fundamentais das estatísticas oficiais historicamente adotados pela ONU.
O propósito de gerar lucros para parceiros comerciais por meio de dados coletados para estatísticas oficiais, entretanto, não encontra respaldo nos princípios fundamentais. Na verdade, viola o sexto princípio, que afirma que: “Os dados individuais coletados por agências estatísticas para compilação estatística, quer se refiram a pessoas físicas ou jurídicas, devem ser estritamente confidenciais e usados exclusivamente para fins estatísticos” (ONU, 2014, p.2).
Os dados mobilizados pelos INE e a confiança pública, credibilidade e legitimidade dessas instituições como atores confiáveis para o gerenciamento de dados parecem ser elementos-chave para corporações privadas interessadas em abrir novas frentes de mercado nos negócios de dados e IA. No entanto, formas concretas de gerar valor por meio de dados para estatísticas oficiais ainda parecem estar em construção. A UNGP é certamente um experimento de vanguarda.
A implementação dos hubs regionais da Plataforma e sua conexão com os principais serviços de nuvem de dados (Amazon-AWS, Google Cloud, Azure-Microsoft e Alibaba) tem o potencial de habilitar novas cadeias de valor e mercados por meio de dados mobilizados por INE do sul global. Isso pode envolver, entre outros, o desenvolvimento de novas tecnologias algorítmicas para a produção de estatísticas oficiais dependentes de serviços prestados por intermediários privados, a aquisição de dados de empresas privadas e o compartilhamento de dados para treinamento de modelos de aprendizado de IA de empresas privadas. As formas concretas de geração de valor por meio de um mercado de dados para estatísticas oficiais ainda estão em uma fase muito inicial e carecem de maiores investigações.
Um novo tópico em debate no campo das estatísticas oficiais envolve a qualificação dos INE em administradores de dados (data stewards), responsáveis por uma governança mais ampla de dados de propriedade pública e privada. Considerando a assimetria das relações de poder entre os países em desenvolvimento e os monopólios corporativos globais de dados, as condições para o exercício de uma governança autônoma pelos INE é algo a ser observado.
Os investimentos investigados neste caso parecem objetivamente direcionados à construção de um novo espaço algorítmico de equivalências, implicando uma reconfiguração do espaço tradicional de produção de estatísticas públicas, introduzindo novas formas de quantificação social e novas formas de arquiteturas institucionais pautadas pela lógica de mercado. Isso não é mero reflexo de avanços técnicos, mas resultado de ações políticas e econômicas objetivas interessadas na mercantilização dos dados.
Esse caso faz parte de uma lógica emergente na fase atual da organização social do capital (ismo) para a geração de valor por meio de dados. Alguns autores contemporâneos (Zuboff, 2019ZUBOFF, S. The Age of Surveillance Capitalism. New York: Public Affairs, 2019.; Couldry; Mejias, 2019COULDRY, N.; MEJIAS UA The Costs of Connection. Standford: Standford Univ. Press, 2019.; Dyer-Witheford et al., 2019) a identificam com várias nomenclaturas (capitalismo de vigilância, colonialismo de dados, capitalismo de IA). Do ponto de vista de uma agenda crítica de pesquisa, é necessário avançar no entendimento da relação entre o desenvolvimento de novos modos de governo e novas materialidades para a geração e extração de valor por meio de formas algorítmicas de quantificação social.
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- ZUBOFF, S. The Age of Surveillance Capitalism. New York: Public Affairs, 2019.
Notas
-
1
A UNSD funciona como um mecanismo central do Secretariado da ONU para suprir as necessidades estatísticas e coordenar as atividades do sistema estatístico mundial. A Divisão é supervisionada pela UN-StatCom.
-
2
A UN Foundation é uma organização privada sem fins lucrativos norte-americana fundada pelo empresário Ted Turner (canal CNN e Time Warner), que é o atual presidente de seu conselho de administração. Os parceiros incluem: Rockefeller Foundation, Ford Foundation, Amazon, Google, Coca Cola, Nestlé, Unilever, Pfizer, etc. Para uma lista completa: <https://unfoundation.org/who-we-are/our-partners/more-of -our-partners/>. Acesso em: 18 nov. 2021.
-
3
Para a lista completa de parceiros do GPSDD: <https://docs.google.com/spreadsheets/ d/1OizuPo28fBbFbjswKyFF2aD7YUeklGVBSrD2eEULNSM/edit#gid=0>. Acesso em: 18 nov. 2021.
-
4
Consulte: <https://find-and-update.company-information.service.gov.uk/company/12161673/filing-history>. Acesso em: 18 nov. 2021.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Ago 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
-
Recebido
10 Jun 2022 -
Aceito
11 Jun 2023