Open-access História, política e cultura

DEPOIMENTO

História, política e cultura*

Luiz Felipe de Alencastro

Formação

Comecei a me interessar pela História no Ensino Médio, no Colégio Catarinense, dos jesuítas, de Florianópolis, sob a influência do padre João Baptista Rohr, um dos pioneiros do estudo das comunidades pré-colom bianas e dos sambaquís no Brasil. Depois, em Brasília, fui aluno na UnB, por curto período, de Fritz Teixeira Salles, historiador de Minas Gerais, de quem guardo grata memória. Ingressei na UnB no início de março de 1964, vésperas do golpe.

Graças à ajuda de Hermes Lima, entre outros, que era ministro do STF, depois de ter sido primeiro-ministro do governo Goulart, e tinha grande prestígio na embaixada francesa, ganhei uma bolsa de estudos do governo francês para fazer graduação em Ciências Políticas. Cheguei em Paris em 1966, e fui acolhido por Raul Ryff, secretário de imprensa do governo Goulart. Como outros militantes e políticos de sua geração, Ryff estava atravessando seu segundo exílio, pois já tinha se refugiado no Uruguai nos anos 1930. Só chegavam notícias ruins do Brasil. Antes de eu viajar, Hermes Lima havia me dado um conselho: "Você deve se preparar para permanecer muito tempo fora porque a ditadura veio para ficar...".

Isso me levou a pensar que para entender o que estava acontecendo no Brasil era preciso estudar História, além de Ciências Políticas.

Minha bolsa me proporcionava estudar nas universidades onde havia cursos de Ciências Políticas. Preferi ir para Aix-en-Provence porque soube que lá se encontrava o melhor Departamento de História da França (com Georges Duby, Michel Vovelle, Maurice Agulhon, Paul Veyne...) e que lá a vida era mais fácil e agradável do que em Paris.

Graduação em Aix-en-Provence

O Institut d'Etudes Politiques de Aix, na frente da velha catedral Saint-Sauveur, tinha um ritmo severo, alunos engravatados e bastante gente de direita, desde os seguidores de Maurras até estudantes de famílias "pieds-noirs", ex-colonos da Argélia, furibundos contra De Gaulle, que os havia "traído" ao apoiar a independência argelina. Assisti aos debates das correntes de direita sobre os mais variados temas, desde a Revolução Francesa até a Guerra da Argélia e a Comunidade Europeia. Foi muito instrutivo. A Faculdade de Ciências Humanas, onde havia o curso de História, era bem mais liberal. No meu segundo ano de faculdade houve o grande estrondo de maio 1968, que vivi em Aix, Marseille e Paris com grande interesse e perplexidade

Doutorado em Paris e influências intelectuais e historiográficas

Em 1970, fui para Paris, onde segui cursos no mestrado em Antropologia e doutorado em História, na Universidade de Nanterre. Meu orientador foi Frédéric Mauro. Retomei contato com o Brasil por meio dos numerosos exilados, agora de minha geração, e do grupo de oposição à ditadura liderado por Miguel Arraes.

Roberto Schwarz e Celso Furtado, que conheci nessa época, me ajudaram muito a preparar o doutorado e a refletir sobre o que estava ocorrendo no Brasil. Por intermédio de Roberto, tomei conhecimento das discussões do grupo de O capital. Continuamos próximos e ele me ajuda até hoje nos textos que publico. Claude Meillassoux, especialista da escravidão pré-colonial africana, releu minha tese, participou da minha banca de doutorado. Junto com Celso Furtado (que mais tarde faria parte da minha banca de livre-docência, no Instituto de Economia da Unicamp), Meillassoux reforçou minha formação em Antropologia e História Econômica. Mas havia também o peso da Geografia. Georges Duby, de quem eu havia sido aluno em Aix e com quem mantive contato em Paris, quando ele se tornou professor do Collège de France, também me aconselhou bastante, insistindo para que eu sempre pensasse a História com a Geografia na cabeça.

Aprendi ainda muito lendo a obra dos historiadores britânicos, de Charles Boxer, de David Birmingham, grande especialista de Angola, dos especialistas de Angola e do escravismo brasileiro, a alemã Beatrix Heintze e os americanos Joseph Miller, Herbert Klein e Stuart Schwartz. Me servi também dos 22 volumes de documentos da Monumenta Missionaria Africana, editada pelo padre Antônio Brásio.

Quero falar de novo sobre Celso Furtado porque não se conhece bem no Brasil o papel fundamental que ele teve para muitos estudantes e intelectuais brasileiros, latino-americanos e europeus entre 1965 e 1983, quando ensinou regularmente em Paris. Furtado tinha um pequeno escritório na Faculdade de Economia no prédio da Sorbonne, na praça do Panthéon, que estava sempre aberto para os estudantes. Ele havia sido o primeiro ministro do Planejamento no Brasil e decidira dedicar-se ao ensino, recusando propostas de consultoria que o teriam enriquecido. Tive a oportunidade de conviver com ele até meados dos anos 1980 e devo muito à sua atenção e aos seus conselhos. Furtado é certamente o economista mais influente do Brasil e de boa parte da América Latina contemporânea. Quando ele faleceu, em 2004, o então presidente do Chile, Ricardo Lagos, escreveu um artigo publicado na Folha de S.Paulo, homenageando-o como "grande brasileiro, grande latino-americano e grande pensador do século 20".

Em Paris, Frédéric Mauro, junto com Pierre Chaunu e Vitorino Magalhães Godinho, a cujos cursos eu também assistia, eram discípulos de Braudel e adeptos de uma "história total", de uma história escrita em colaboração com as Ciências Humanas e Sociais, mas também com as matérias ensinadas nos liceus franceses sob o título de "Ciências da vida e da terra", incluindo as biociências e a geologia. Para mim foi fundamental entender que Rio de Janeiro, Bahia e Recife estavam mais perto - quando se consideram as rotas marítimas -, e mais ligados a Luanda e a Benguela do que a Belém e a São Luís. Os livros de Chaunu e de Mauro estudam os espaços marítimos, os enclaves europeus e as comunidades nativas de outros continentes sem se limitar aos territórios nacionais. Manilla, Acapulco, Vera Cruz e Sevilla faziam parte do mesmo circuito e Chaunu estudava as Filipinas na sua realidade da época, como uma dependência do vice-reino da Nova Espanha, do México. O livro de Mauro fala muito do Brasil, mas intitula-se Le Portugal et l'Atlantique (1960) e suas primeiras 100 páginas têm como subtítulo "L'Océan et ses contraintes", para mostrar como as rotas de navegação e os circuitos de comércio condicionam os espaços coloniais. Da mesma forma que Braudel, cuja obra O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II marcou a historiografia do século XX, Mauro privilegiava o espaço marítimo, o agregado formado pelas trocas e os conflitos entre as comunidades da Europa, da América e da África.

Braudel e as mudanças da Escola dos Annales

Dos anos 1960 até meados de 1980, a História e Braudel tinham um papel central nas Ciências Sociais na França. Depois, a institucionalização da União Europeia e a queda do Muro de Berlim geraram muito mais interesse pela história do continente europeu, tirando um pouco o foco dos grandes estudos sobre o ultramar e as comunidades não europeias. Houve também uma virada em que se deu mais destaque à micro-história e à história das mentalidades, um certo enfoque de história cultural, que levou a nova direção da revista Annales a tirar a palavra "Economia" de seu subtítulo, afastando-se assim da disciplina associada à História por Marc Bloch, Braudel, Duby, Le Roy Ladurie e tantos outros. Certamente houve excessos da história quantitativa e da história econômica que era preciso reequilibrar com um aporte de história cultural à qual Braudel não era tão sensível quanto Lucien Febvre ou Duby (que era também um historiador da arte). Contudo, creio que o declínio da formação econômica, mas também geográfica das novas gerações de historiadores levou a que muitos livros de história tenham se preocupado mais com a narrativa do que com a análise das fontes e dos debates historiográficos.

Quanto à alegada oposição entre micro-história e macro-história, penso que há um mal-entendido. Quem leu Braudel, Duby, Chaunu e Mauro sabe que eles articulam muito bem a macro-história à micro-história, como faz também hoje em dia Serge Gruzinski, um dos mais brilhantes discípulos de Braudel e Chaunu.

Mas é verdade que o mal-entendido persiste. Para o número dos Annales consagrado ao Brasil, publicado em 2006, eu havia entregue um artigo, inspirado na "velha escola" braudeliana da longa duração, que englobava 300 anos, com um gráfico cobrindo o tráfico negreiro para o Brasil e para as Américas durante esse período. O título inicial do artigo era "Le Brésil de 1550 à 1850: un essai de macro-histoire". Na hora de editar o texto, um membro da redação da revista me chamou para conversar e, cheio de dedos, me disse que o título poderia ser tomado como um ataque à micro-história e que talvez não fosse oportuno, e coisa e tal. Propus outro título que dizia a mesma coisa sem causar melindres: "Le versant brésilien de l'Atlantique Sud : 1550-1850". Aproveitei para salientar no título uma ideia que venho repetindo há anos: nesses três séculos a história do Brasil se desenrola dentro e fora do atual território nacional, que é parte de um quadro mais amplo: a história do Atlântico Sul.

A história do Atlântico Sul

Vejam bem, não estou dizendo que é preciso estudar a história da África porque o continente é importante. Digo mais: digo que a história de certas regiões africanas é parte integrante da história brasileira. Ou seja, é preciso estudar a história de Angola, a do Congo e a do atual Benim (ex-Daomé) e também a de Buenos Aires como se estuda a história das capitanias da América portuguesa, ao mesmo tempo e na mesma intensidade, senão não dá para entender a história do Brasil em toda a sua complexidade. Dou um exemplo: Salvador de Sá conseguiu mobilizar recursos e força naval para sair do Rio de Janeiro e atacar os holandeses em Luanda e Benguela, expulsando-os de Angola em 1648, porque estava também interessado em restabelecer o contrabando negreiro para Buenos Aires. A oligarquia fluminense à qual ele pertencia e seus aliados regionais queriam escravos angolanos para vendê-los em Buenos Aires em troca da prata espanhola vinda de Potosí. E não somente para tocar os engenhos de açúcar do Rio de Janeiro que, na época, tinham pouca demanda e produziam um açúcar de qualidade inferior ao do Nordeste.

É fundamental, para além das fronteiras, saber o que está dentro e o que está fora de um sistema econômico e social. Para o Rio de Janeiro, estavam "dentro" Luanda e Buenos Aires, enquanto São Paulo e o interior para lá da Mantiqueira estavam "fora". Para São Paulo, o Sul e a província jesuítica do Paraguai estavam dentro, e o Rio de Janeiro estava fora. Os dois circuitos estavam desvinculados. Desse modo, no mesmo mês que Salvador de Sá e seus expedicionários embarcavam para atacar Luanda, Raposo Tavares e seus 1.200 bandeirantes e índios enveredavam pelo Noroeste da América Portuguesa na expedição, depois conhecida como "bandeira dos limites". A expedição para Angola tem gente do Rio, da Bahia, de Pernambuco, mas não há nela nenhum registro da presença de paulistas. Do lado do Rio de Janeiro e de Salvador de Sá, há um circuito atlântico negreiro dirigido aos mercados ultramarinos. Do lado de São Paulo e de Raposo Tavares, um circuito continental, terrestre, baseado no escravismo indígena e no comércio interno. Ou seja, restringir a história colonial e nacional (até 1850) à história territorial do Brasil não faz sentido.

Dou outro exemplo de um problema cujas consequências ainda pesam nos dias de hoje. No século XIX, o Centro-Sul ganhou vantagem sobre o Nordeste, não só por causa da cultura do café. Na verdade, o fator decisivo foi a capacidade dos negreiros do Rio e seus sócios de Angola trazerem para a Guanabara muito mais escravos - muito mais energia humana - do que os negreiros da Bahia e de Pernambuco conseguiram transportar para o Nordeste. Simplificando, dá para dizer que a explicação da desigualdade entre o Nordeste e o Centro-Sul se encontra no volume de escravos entrados em cada região, ou seja, no grau de pilhagem que uns e outros exerciam sobre a África.

Outro ponto importante nessa perspectiva do Atlântico Sul é a mudança na periodização. Na historiografia brasileira e estrangeira dedicada ao Brasil, a transferência da Corte e a abertura dos portos em 1808, assim como a Independência em 1822 têm um estatuto canônico, interpretado como a ruptura definitiva do sistema colonial. Ora, a partir de 1808, o Brasil incorporou o tráfico de escravos de Moçambique e engoliu também zonas de trato da África ocidental, abandonadas em 1808 pelos ingleses e os americanos, depois que Londres e Washington eliminaram seu comércio negreiro. Dessa forma, a transferência da corte para o Rio de Janeiro ofereceu duas condições importantes para a sobrevivência do sistema escravista. Um governo português - e depois brasileiro - obstinado, renitente, na continuidade do comércio de escravos, e um aparato burocrático e diplomático competente, apto a neutralizar as ofensivas políticas e navais inglesas, protelando o tráfico de africanos até 1850. Essa aposta histórica, geopolítica, estimulou o crescimento da agricultura escravista mas, no longo prazo, gerou uma brutal regressão social e também econômica. É como se agora, o governo brasileiro, para facilitar o mercado de trabalho para os patrões e o crescimento econômico, reduzisse os anos de escolaridade obrigatória e legalizasse o trabalho infantil! O celebracionismo luso-brasileiro do bicentenário da vinda da Corte, em 2008, a TV Globo e a historiografia dominante difundem a ideia da ocidentalização do Brasil pela dinastia dos Bragança que reinava nas duas margens do Atlântico. Mas houve também outra novidade em 1808, a ampliação da cadeia de trocas que conectou a barbárie ao progresso econômico: quanto mais cresceu a economia brasileira, mais gente foi arrancada da África e escravizada no Brasil.

Penso que a ruptura da matriz espacial colonial ocorre em 1850, com o final do tráfico negreiro. No plano internacional, há o debate político na Inglaterra a respeito do livre-cambismo e das ações diplomáticas e navais inglesas contra o tráfico brasileiro. Da mesma forma, aparecem com mais nitidez os condicionantes da política colonial na África portuguesa.

No plano nacional, o foco sobre o final do tráfico implica uma mudança de eixo que introduz outra periodização histórica à montante e à jusante de 1850. À montante, essa interpretação altera a análise sobre a abertura dos portos e a Independência; à jusante, ela relativiza a legislação emancipatória que desemboca em 1888. Muitos historiadores situam a crise do escravismo em 1871, na aprovação da Lei do Ventre Livre. Penso que em 1850, a Lei de terras e os debates sobre a imigração no Parlamento já tinham selado o destino do escravismo: a classe dominante preferiu abandonar gradativamente o escravismo para garantir a perenidade do latifúndio. Nos anos 1880, Nabuco, Rebouças e outros abolicionistas que tentaram levantar a questão da reforma agrária perderam a parada. Os latifundiários já haviam se arreglado com os republicanos.

Debates políticos em Paris

Paris tem a vantagem de possuir o mais denso e bonito campus universitário do mundo: a própria cidade, seus centros de pesquisa, seus museus, suas bibliotecas, seus cinemas e sua vida intelectual. Aconteciam coisas importantes no resto do mundo que repercutiam muito em Paris. Perry Anderson escreveu um notável ensaio sobre esse assunto. Menciono apenas dois eventos que me impressionaram bastante: a edição parisiense do Arquipélago do Gulag (em 1974, em francês) e a Revolução dos Cravos em Portugal. O livro de Soljenítsin virou o jogo, derrubando de um só golpe o estalinismo, o leninismo e toda a legitimidade soviética. O debate em torno do livro, que é também um grande texto de história contemporânea, fendeu o muro de Berlim desde aquela época. O outro fato muito importante foi o 25 de abril, a Revolução dos Cravos. Em junho de 1974 fui para Lisboa e fiquei lá até setembro, assistindo, dia após dia, ao desmoronamento do império português. A chegada em Portugal dos colonos de Angola, de Moçambique, da Guiné Bissau, de Cabo Verde e de São Tomé, os "retornados", que viram o céu cair nas suas cabeças e não entendiam os acontecimentos na África e em Portugal. Eu ficava às vezes na casa de amigos na Praia Grande, entre Lisboa e Sintra. Um colégio da praia, fechado nas férias de verão, abrigou provisoriamente famílias de "retornados". Havia um velhinho, nascido em Luanda, descendente de uma velha família luso-angolana (não era o caso da grande maioria dos "retornados", os quais estavam em Angola, e na África lusófona há muito pouco tempo) que ficava na praia à tarde, todo vestido de preto, com um chapeuzinho escuro, olhando o mar com um olhar vazio. Simpatizei com ele e conversamos bastante. Estupefato com a aceleração da história, ele me contava coisas de um mundo que se acabava. De repente, a geração dele teve que pagar a conta dos estragos que os portugueses, os outros europeus e os brasileiros haviam feito em Angola durante quatro séculos. Arnaldo Momigliano, o grande historiador italiano, disse que há dois tipos de historiadores: os que não se surpreendem com nada e os que se surpreendem com tudo. Faço parte da segunda categoria: sou um historiador que se impressiona e se surpreende com o passado e o presente. Minha frustração é não conseguir transmitir todo o efeito dessas surpresas quando escrevo.

Presenciar cenas do fim do império português foi uma das experiências mais fortes de minha vida. A propósito, costumo dizer que os historiadores brasileiros não tiraram as consequências do 25 de abril, do movimento de independência das colônias portuguesas na África.

Isso porque os historiadores devem se sentir interpelados pelo fiasco de 400 anos de presença portuguesa, da evangelização católica na África, principalmente em Angola - a diocese do Congo e Angola foi criada em 1596, depois do bispado da Bahia (1550), mas bem antes da criação das dioceses do Rio de Janeiro (1676), de Pernambuco (1676) e do Maranhão (1677) -, pela ausência de uma camada significativa de mulatos em Angola - em 1970 eles representavam 2% da população -, pela reafricanização da África lusófona, que nivelou o colonialismo português à craveira estreita do colonialismo belga, francês ou inglês. Tudo isso mostra que a colonização nas Américas é diferente do que se passou na África e na Ásia, mostra a singularidade do Brasil no império português. A partir daí, é pura ideologia continuar falando de luso-tropicalismo e do papel central do mulato e da mestiçagem como uma especificidade da colonização portuguesa, algo que o próprio Gilberto Freyre já havia deixado de lado num texto pouco debatido no Brasil ("Interação euro-tropical: aspectos de alguns dos seus vários processos, inclusive o luso-tropical", Journal of Inter-American Studies, v.8, n.1, 1966). Na realidade, a reinterpretação do Brasil a partir do falhanço da colonização portuguesa na África não foi esboçada por Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque, nem pela maioria de seus discípulos.

A Atlantic History e a história do Atlântico Sul

A historiografia inglesa e americana que definiu nas últimas décadas o campo da Atlantic History passa batida pelos trabalhos da historiografia francesa, de Chaunu, Mauro e Godechot (que estudou de forma integrada as Revoluções Atlânticas do século XVIII) e, sobretudo, ignora ou desconsidera o Brasil, Angola, e que o Atlântico Sul tem uma história bem diferente do Atlântico Norte. Um livro importante como o Black Atlantic, de Paul Gilroy, fala do Atlântico como um todo, mas na verdade só se refere ao Atlântico Norte e ao Caribe.

Estou, no entanto, otimista com a produção historiográfica no Brasil. Bastante gente trabalha com história indígena, história da África e história social. A lei federal de 2003, tornando obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira no Ensino Médio, foi um grande passo para entender o país e formar os futuros cidadãos brasileiros. Para ficar só num exemplo, um livro como O Alufá Rufino, publicado no ano passado e escrito por três grandes historiadores, João José Reis (da Bahia), Flávio dos Santos Gomes (do Rio) e Marcus Carvalho (de Recife), e que narra a itinerância do muçulmano Rufino, ou Abancaré, do reino Yorubá da Nigéria (onde nasceu), a Salvador, Porto Alegre, Luanda, Serra Leoa e Recife, entre 1822 e 1853, combina macro e micro-história e vincula a história brasileira à sul-atlântica, renovando a história brasileira e africana. Há também uma nova geração de historiadores e cientistas políticos que elabora estudos de grande qualidade sobre a ditadura e as consequências atuais do período 1964-1985.

Mas a universidade é uma instituição que reage lentamente. Levou-se um tempão para abrir as cadeiras de História da África, quando já estava claro, desde o começo dos anos 1960, que a África lusófona iria se tornar independente. A documentação portuguesa sobre a África é de primeira qualidade, vai de 1455 até a atualidade e, até uma data recente, interessou muito pouco os historiadores e os cientistas sociais brasileiros. Agora, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Mas, pelo que sei, nem na USP existe um professor de História que leia e fale mandarim, que faça pesquisa nos arquivos chineses e que possa ensinar com a devida profundidade a história moderna e contemporânea desse país. Outro exemplo: o Brasil possui o maior rebanho de gado do mundo, mas não existe nenhum livro que estude a história do gado, desde a introdução dos bovinos (que vieram de Cabo Verde e não de Portugal) e sua expansão pelo território brasileiro, do século XVI aos dias de hoje.

A cátedra

A cátedra da História do Brasil da Universidade de Paris - Sorbonne foi criada pelo governo francês em 1988, é a única na França - e uma das poucas na Europa e nos Estados Unidos - cuja área combina o ensino da história colonial e contemporânea do Brasil em cursos de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Ao contrário de outras instituições similares, a cátedra não depende de verbas públicas ou privadas brasileiras e tem o mesmo estatuto que as demais cátedras francesas, sendo financiada pelo governo francês e preenchida por concurso público. A primeira titular foi a professora Kátia de Queirós Mattoso, recentemente falecida, que prestou concurso em 1988 e ministrou cursos até 1998. Tive a honra de sucedê-la como professor visitante em 1999 e, depois, na sequência do concurso de 2000, como professor titular. Kátia tinha prestígio acadêmico e teve um papel fundamental na afirmação da cátedra na Sorbonne e no mundo universitário francês.

Quando assumi o cargo, seguindo os conselhos de Frédéric Mauro, de Celso Furtado e também com o acordo dos outros colegas da Sorbonne, decidi abrir as pesquisas para o Atlântico Sul, a África lusófona, e mais particularmente, para Angola. Penso que o Atlântico Sul tem um passado, um presente e um futuro. Por isso, deixei de lado o quadro mais extenso da América Latina, ao qual o ensino de história do Brasil estava ligado, para orientar pesquisas sobre o Brasil, e o Atlântico Sul em geral, incluindo aí também o Uruguai, a Argentina e o Paraguai. É muito interessante trabalhar, no mesmo seminário, com mestrandos e doutorandos que pesquisam sobre a África e o Brasil. Creio que isso dá um perfil original a essa cátedra. Devo dizer também que os estudantes e pesquisadores que trabalham sobre a África e a história contemporânea em geral tiram muito proveito dos documentários e dos debates transmitidos pelos canais de TV franceses e sobretudo por ARTE, o canal aberto franco-alemão. Quando vou ao Brasil e vejo o nível das emissões de TV, me dou conta de que o livre acesso a canais como ARTE faz uma bruta diferença nos debates que ocorrem na França.

Minhas pesquisas

Estou trabalhando num livro que, na sequência de O trato dos viventes, vai cobrir o período 1700-1850/1860, isto é, começando no ciclo do ouro e terminando com o final do tráfico e a criação do Ministério da Agricultura, que na verdade é o ministério do trabalho rural, encarregado de estabelecer o circuito atlântico de proletários europeus e asiáticos que substitui o trato de africanos.

Depois tenho outro livro meio elaborado que vai de 1860 até os anos 1940, quando é criado o Ministério do Trabalho que, na verdade, é o ministério que estabelece, com o salário mínimo, a transferência da mão de obra rural para o nascente setor urbano e industrial brasileiro. Em resumo, tenho trabalhado desde sempre nos desdobramentos históricos, políticos e sociais da questão do trabalho na formação do Brasil contemporâneo.

Obras do autor:

Luiz Felipe de Alencastro é historiador e cientista político. Formou-se em História e Ciências Políticas na Universidade de Aix-en-Provence e doutorou-se em História na Universidade de Paris X - Nanterre. Ensinou nas universidades de Rouen e Paris-Vincennes (1975-1986). Em seguida, foi professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (1986-2000). Desde 2000, é professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris-Sorbonne. Organizador do volume 2, Império - A corte e a mo-dernidade nacional, da coleção História da vida privada no Brasil (dirigida por Fernando Novais e publicada pela Companhia das Letras); é autor do livro O trato dos viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul - Séculos XVI e XVII (Companhia das Letras). @ - ldealencastro@gmail.com

Referências bibliográficas

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  • _______. Introdução. In: FURTADO, C. Formação econômica do Brasil São Paulo: Cia. das Letras, 2009. p.23-40.
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  • _______. O pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira. Novos Estudos - Cebrap, n.87, p.5-11, 2010.
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  • *
    O depoimento aqui transcrito foi elaborado a partir de uma entrevista concedida a
    estudos avançados pelo professor Luiz Felipe de Alencastro. Conservou-se a divisão em tópicos proposta pelo depoente. (Nota do Editor)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011
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