resumo
O conjunto da extensa obra de Florestan Fernandes contém muito mais do que se tem nela valorizado. Uma circunstância histórica crítica e redutiva empobreceu o campo da investigação sociológica e a sensibilidade das ciências sociais em relação ao Brasil transformado e pós-nacional-desenvolvimentista. Novos e inesperados sujeitos assumiram o protagonismo do processo histórico e desafiaram o conhecimento sociológico consolidado. A obra de Florestan Fernandes é, justamente, uma obra densa de desafios à investigação, à interpretação e à revisão crítica do conhecimento que perdura sem relação consistente com a nova e complicada realidade do país.
palavras-chave: Alienação; Anomia; Sociologia do conhecimento; Subcapitalismo
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Florestan Fernandes’ extensive oeuvre contains much more than what has so far been valued. A critical and reductive historical circumstance has impoverished the field of sociological research and the sensitivity of the social sciences in relation to transformed and post-national-developmentalist Brazil. New and unexpected agents took the lead in the historical process and challenged consolidated sociological knowledge. Florestan Fernandes’ work is, to be sure, dense and poses challenges to research, interpretation and critical review of knowledge that endures with no consistent relation to Brazil’s new and complicated reality.
keywords: Alienation; Anomie; Sociology of knowledge; Subcapitalism
Na oportunidade do centenário de nascimento de Florestan Fernandes, é extenso o elenco de temas de grande atualidade que podem ser abordados em sua sociologia. Sua obra, desde os primeiros trabalhos, é densa de sugestões e indagações pertinentes sobre a realidade social, mesmo a que se configurou após o seu falecimento. É o que define um cientista de envergadura clássica.
Sua diferençada biografia intelectual de sociólogo comprometido com a superação dos graves problemas dessa sociedade já é, em si mesma, uma fonte de indagações teóricas e de desafios. A enorme diversidade de assuntos de que tratou, de problemas interpretativos que formulou e de soluções teóricas que lhes deu pede e possibilita um retorno às suas lições sociológicas. Quase sempre resultantes da tensa relação entre o cientista e a realidade social que se propõe à sua análise ao longo de sua vida de pesquisador. Florestan Fernandes foi um cientista que morreu antes do tempo, antes que pudesse desenvolver todas as questões científicas que formulara ao longo de sua vida intelectual.
É verdade que, desde seu falecimento, vários autores se dedicaram às primeiras análises póstumas de sua obra. Ainda há muitíssimo que fazer. Florestan Fernandes é um autor que nunca será analisado completamente, nem definitivamente. Ele foi o sociólogo de um tempo de mudanças mais ou menos rápidas e radicais, que além do mais nunca foram na direção de seus prognósticos, como aconteceu em relação à maioria de nós, se não a todos.
Esse já, em si mesmo, um enorme desafio, o de nele reconhecer o autor de um documento interpretativo de uma época. Sobretudo, do que é próprio da realidade social, que é desmentir o hipoteticamente possível que a sociologia, como a dele, identifica. O conhecimento sociológico é da modalidade que o real captura para se reconstituir e reconformar: “o conhecimento obtido é considerado como parte integrante do processo social, em virtude da posição do sujeito na sociedade” (Fernandes, 1960a, p.419).
A obra de Florestan Fernandes é também expressão de uma tomada de consciência do ambíguo lugar da sociologia na sociedade contemporânea como modalidade de conhecimento científico que mostra e altera, ao mesmo tempo, as condições de realização social do que a ciência revela.
A luta que define a sociedade atual não é a luta de classes, no sentido estrito. Menos ainda num país como este, de uma sociedade de classes ainda inconstituída. Numa referência que faz ao projeto de estudo sobre “Economia e sociedade no Brasil”, desenvolvido nos anos de 1960 em sua Cadeira, a de Sociologia I, na Faculdade de Filosofia, ele diz que o projeto era “para uma análise mais ampla da revolução burguesa no Brasil e das linhas de formação e expansão da sociedade de classes” (Fernandes, 1978, p.97).
O que é genericamente definido como luta de classes num país como o Brasil tem peculiaridades que a distanciam do esquematismo pobre que envolve o tratamento do assunto nessa perspectiva restrita.
Aqui, classe social tem sido equivocamente expressão da usurpação da “identidade de classe” de operários e camponeses por quem não o é. Como, mais recentemente, na usurpação da identidade “racial” do pardo e do negro, categorias genéricas que negam e anulam a eficácia das categorias de origem desses dois “grupos de cor”. Aqui, com pouca ou nenhuma autenticidade, copia-se o desdobramento da histórica questão racial nos Estados Unidos. Lá ela se propõe de modo significativamente diverso de como se manifesta aqui. Lá, a cor é de origem, aqui é de marca (Nogueira, 1955).
Aqui, as ideologias categoriais, como a de classe, têm sido ideologias de despistamento e de desfiguração da realidade social das vítimas das iniquidades do subcapitalismo. Como é próprio das ideologias.
Entre nós, a luta de classes ganha corpo e força nas lutas pelos direitos dos desvalidos, dos que foram privados do acesso às possibilidades que o capitalismo cria e o subcapitalismo nega, não propriamente como classes sociais. Ela é, antes de tudo, a luta pelo conhecimento que desvenda o real e revela as condições adversas à realização do historicamente possível. É a luta pela superação das carências e iniquidades que esse subcapitalismo gera e dissemina. Um dos momentos épicos dessa luta, na biografia de Florestan Fernandes, foi o da sua participação na Campanha em Defesa da Escola Pública. A abertura da porta do conhecimento aos dele excluídos.
A concepção de militância que, para Florestan, tinha um sentido propriamente sociológico, é a militância do cientista no seu próprio campo de conhecimento. Na disseminação do conhecimento sociológico como fator de desenvolvimento da “consciência científica da sociedade”, a consciência objetiva das carências sociais. Não só pão, mas o trabalho, a liberdade, a esperança, a alegria, isto é, a poesia, para lembrar uma formulação de Marx sobre o caráter histórico do processo social.
Numa referência essencial a esse respeito, Florestan ensina: “não é fundamental o engajamento, a condição de ‘intelectual responsável’ e ‘atuante’. Se o investigador consegue ser objetivo nos termos em que o exige a observação, a descrição e a explicação científicas, as suas análises e interpretações podem converter-se em algo muito mais radical ou revolucionário que as implicações das ideologias divergentes” (Fernandes, 1968, p.14).
Desde o nascimento, as diferentes correntes da sociologia tentaram entender o que eram e como eram as sociedades de sua referência e quais suas tendências em face dos desafios que não lhes permitiu ser o que podiam e careciam ser. No Brasil não foi diferente.
Apesar de não gozar da mesma fama de que gozou Gilberto Freyre, injustamente, porque mais cientista do que Freyre, que era um ensaísta sensível, Florestan é o maior sociólogo brasileiro, porque o mais completo, com a visão mais abrangente e teoricamente mais profunda. Ele é o mais cientista de nossos cientistas sociais justamente porque foi o que mais se dedicou ao desvendamento da sociologia no marco das revelações inovadoras e desafiadoras de uma sociedade singular como a nossa, impregnada de determinações peculiares e únicas em face das sociedades que serviram de referência ao nascimento do pensamento sociológico.
Florestan gostava de pensar a cidade de São Paulo como um laboratório da sociologia. Esse foi um dos seus legados, o de pensar o Brasil como um laboratório da pesquisa sociológica, na correta compreensão que a teoria só nasce da pesquisa empírica. Nesse sentido, a sociologia de hoje, no Brasil, está muito longe de sua sociologia. Tornou-se repetitiva e ensaística. Já não tem descobertas e revelações a fazer. Não é à toa que o real seja hoje apenas fonte de desapontamentos políticos e de nenhuma surpresa social.
Nesse sentido, a importância de sua obra está sobretudo no legado de uma rica e extensa coleção de indagações teóricas, mesmo que várias delas possam e devam ser revistas à luz da atualidade que com ela se desencontra. Porque a sociologia, sabemos todos, é uma ciência que lida com um objeto cambiante. Mais cambiante ainda quando a sociedade sofre a intervenção de cunho transformador do próprio sociólogo. É característico das sociedades contemporâneas a captura e a instrumentalização da sociologia pelos poderes que nela se expressam.
Quanto mais interpretações sociológicas de determinada sociedade, mais enigmas delas resultam. É um nunca chegar ao finalmente do desvendamento do que uma sociedade é e das enormes dificuldades que ela enfrenta quando à luz da sociologia pretende superar-se e reencontrar-se.
É uma característica da sociedade a alienação e é uma característica, também, que ela de novo se aliene quanto supera a alienação, que faz da sua dinâmica um autoengano continuamente renovado. Henri Lefebvre retomou esse tema central na obra de Marx e ampliou significativamente sua compreensão sociológica.
Uma das dificuldades do relacionamento da sociologia com as outras ciências tem sido justamente essa. Quando a realidade social é explicada nas suas tensões e contradições, necessário se faz que a investigação e a explicação recomecem, porque a explicação, ao se disseminar, é transformadora. Não necessariamente na direção de que o voluntarismo frequente da ideologia profissional do sociólogo supõe ou pretende.
É característico da sociedade contemporânea que ela se aproprie mais ou menos rapidamente do conhecimento que sobre ela a ciência produz. E se aproprie para se defender das descobertas que sobre ela essa mesma ciência faz. O homem comum produz seu próprio conhecimento autodefensivo, o conhecimento de senso comum, cuja lógica banaliza o conhecimento científico, racionaliza suas interpretações para não se assumir como agente de irracionalidades e disfuncionalidades, como portador de falsa consciência.
É nesse sentido que revemos o legado de Florestan Fernandes à luz de uma sociedade que ele não conheceu, que é a nossa de hoje, mas que ao mesmo tempo conheceu bem ao analisar e desvendar de diferentes modos que, no que era, teria dificuldades para ser diversa do que acabou sendo.
Um dos temas que o interessaram em certa época, a época em que fui seu aluno de graduação, foi o das resistências à mudança. Ele e seus assistentes se interessaram muito pelas dificuldades da sociedade brasileira para fazer as mudanças sociais necessárias à superação do atraso e ao desbloqueio do seu desenvolvimento econômico e social.
Florestan tinha ressalvas ao uso sociológico da concepção de alienação social. Quando, na verdade, era disso que se tratava e se trata. As mudanças esperadas eram as que desbloqueariam aqui o capitalismo subdesenvolvido, colonizado e adjetivo, para desbloquear nele os fatores sociais do seu atraso, a alienação de suas vítimas.
Mas, a alienação não é propriamente um defeito ou insuficiência nem é propriamente uma anomalia. Ela é constitutiva da realidade social tanto das sociedades desenvolvidas quanto das sociedades subdesenvolvidas como a nossa, ainda que de modos e formas diferentes lá e cá. Sem alienação, a dinâmica do capitalismo é impossível e com ela o desenvolvimento social fica largamente distanciado do desenvolvimento econômico. O que resulta numa economia mais adiantada do que a sociedade. Essa caracterizada por necessidades sociais não resolvidas em número maior do que as que podem ser resolvidas e não o são.
Nesse sentido, alienação não é ignorância. É desconhecimento socialmente necessário à reprodução das relações sociais.
A sociologia de Florestan Fernandes é marcada por duas ideias fundamentais do pensamento sociológico de Hans Freyer (1944, p.110 e 342), sociólogo alemão: “A sociologia é a autoconsciência científica da sociedade” (Fernandes, 1963, p.95 e 309), o que justamente quer dizer que a sociologia é ciência que possibilita ao homem contemporâneo enfrentar criticamente a alienação que o tolhe. Dá-lhe uma consciência social que expressa um modo objetivo e científico de conhecer-se socialmente, conhecendo também o que é engano na sua consciência social e quais são os mecanismos de produção social do engano e de sua superação.
É o que dá sentido à premissa de sua sociologia de que: “Só vê algo sociologicamente quem quer algo socialmente”. O que pressupõe na pesquisa sociológica uma inevitável volição social presente nas hipóteses do pesquisador e nas indagações teóricas que faz, traduzidas em indagações empíricas investigativas. São elas dirigidas ao homem comum para nele conhecer o que para ele é a precedência do querer social em relação aos seus desvios decorrentes de diferentes fatores. Ou, a sociologia não é ciência do sociólogo, mas do sociólogo enquanto personificação do querer social.
Florestan esmerou-se nos cuidados técnicos e científicos de suas pesquisas para identificar esse querer como um querer objetivo que expressasse as carências propriamente sociais das populações. E não o seu querer pessoal, o do viés de sua situação social. No fundo, a sociologia não é a ciência “do acho” nem do “eu sou”, mas do “eu vejo”.
Nas inquietações e tensões que desafiam o sociólogo à pesquisa há sempre demanda social ou pela mudança ou pela conservação daquilo que se traduz na consciência coletiva como ameaça de ruptura. Sua busca é a dos fatores ocultos da consciência social, os que mutilam essa consciência propondo-a como falsa consciência e, por isso, desconhecimento. O conhecimento que aliena, por meio do qual o homem se estranha em relação àquilo que é e não sabe que é. Nem mesmo como agente de mudança e transformação social.
O tema da alienação, sob a forma de trabalho alienado, um tema central nos “Manuscritos de 1844”, de Marx, reaparece como formulação sociológica no tomo primeiro de O capital para explicar o processo contraditório de produção e de reprodução de relações sociais na sociedade capitalista (Marx, 1962, p.55-70). A exploração do trabalho, enquanto usurpação não remunerada de uma parte da riqueza que o trabalhador cria, é uma variante decisiva dessa alienação. Na relação juridicamente igualitária, ele “sabe” que seu salário é o preço de seu trabalho, mas não sabe que é menos do que a riqueza que criou porque ela só se revelará quando realizada na circulação da mercadoria produzida. O que acontecerá nas mãos de quem comprou a força de trabalho e não na de quem a vendeu. O real e a realização do valor são criados por meio das relações sociais e da consciência que dessas relações tem quem delas participa. Esse mecanismo se repete em outras situações sociais, tolhedoras da consciência social. A sociologia é, nesse sentido, uma carência social, mais do que um instrumento para revelar as relações sociais.
O centenário de Florestan Fernandes é a oportunidade de retornar, em nova perspectiva, aos muitos e criativos desafios de sua obra, à sua sociologia de desvendamentos e não sociologia de mera narrativa, que tem sido comum no ensaismo social brasileiro. Ele não foi um autor convencional, de biografia previsível, que se esgotasse, quando muito, em meia dúzia de livros.
Antes mesmo que esses desafios pudessem ser enfrentados, analisados e neles descobertos novos desafios, a circunstância histórica de rupturas e descontinuidades em que Florestan viveu transformou-lhe a biografia num elenco de histórias pessoais descontínuas da múltipla pessoa que as circunstâncias dele fizeram. As do pesquisador atento à diversidade de evidências do que era a sociedade de sua época e do que as sociedades são. O que lhe deu uma sensibilidade sociológica que só tem os que passaram por experiência análoga.
A sociologia de Florestan Fernandes é, antes de tudo, sociologia de um pesquisador atento à rica diversidade de fontes sobre a realidade social e preocupado com a qualidade das fontes. O que se entende. Para ele, a sociologia é uma ciência empírico-indutiva. Não é uma modalidade de conhecimento reduzida a intuições criativas e menos ainda a resenhões dos clássicos. Não é uma lição de casa.
Os fundamentos empíricos da explicação sociológica são, justamente, o tema de sua maior obra teórica. Fonte, para ele, era a fonte depurável, avaliada criticamente quanto à qualidade da informação nela contida. Seus dois referenciais livros sobre os tupinambás - Organização social dos tupinambá e A função social da guerra na sociedade tupinambá - repousam numa cuidadosa revisão crítica da obra dos cronistas e viajantes, primeiros e decisivos informantes a respeito dos costumes e do modo de vida dessa população indígena (Fernandes, 1958, p.79-18).1
Ele ressalta a importância da modalidade do rico conhecimento desses informantes do passado, que prestaram atenção, comparativamente com a sociedade dos conquistadores, às diferenças que a revelavam como sociedade peculiar, aquilo que é propriamente sociológico e antropológico. Já aí ele esclarece o campo da sociologia em que situa seu procedimento: “Na crítica das fontes, a sociologia do conhecimento, em virtude de considerar as conexões existentes entre as técnicas de consciência da realidade histórica e a estrutura social, sempre tem alguma coisa construtiva a sugerir” (ibidem, p.80).
Ele fará isso, também, em relação às crianças de diferentes bairros da cidade de São Paulo, cujos grupos sociais e cuja cultura estudou quando ainda era aluno do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. A “trocinha” do bairro do Bom Retiro foi a referência central de um dos estudos que publicou (Fernandes, 1961, p.153-258).
Assim como os cronistas e viajantes, a criança como observadora original da realidade não só reproduz o conhecimento social dos adultos de referência, especialmente os da família. Também produz o conhecimento das experiências do que é próprio da situação social do grupo infantil a que pertence. Que é o conhecimento social, da cultura e da convivência, nos quais o pesquisador se baseia para a compreensão propriamente sociológica dos grupos sociais e da sociedade.
Florestan criou situações de interação com as crianças, um procedimento que vai caracterizar o método de investigação de várias de suas pesquisas. Num certo sentido se ressocializou para conhecer o conhecimento social mediador dos relacionamentos das crianças que estudou.
Em consequência, teve como observar que numa certa medida as crianças, numa proporção alta descendentes de imigrantes, se socializavam a partir do padrão dos relacionamentos nos grupos de rua. Ao mesmo tempo, eram agentes de ressocialização dos pais, uma inversão no padrão corrente do processo formativo que é dominado pela figura do adulto (ibidem, p.186 e 188). Faziam, assim, a ponte entre as peculiaridades da sociedade de adoção e as limitações da sociabilidade trazida da sociedade de origem dos pais.
Não é difícil ver-se a influência que na formação científica de Florestan teve Roger Bastide. A valorização da pesquisa empírica, mas também a concepção de que a sociologia é uma sociologia do conhecimento e não simplesmente uma sociologia de fatos e de processos sociais (Fernandes, 1960a, p.416).
A famosa pesquisa sobre o negro, para a qual Bastide o convidou, não foi uma pesquisa de perguntas e respostas. Foi pesquisa baseada na criação de situações sociais de investigação, mediante a conversação que ressocializa o pesquisador para compreender o entendimento que determinado grupo de pessoas tem de sua realidade social. O modo como a explica.
Essa modalidade de pesquisa qualitativa de vários modos antecipa o que o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda (1980, p.1-32) chamou de pesquisação em sua tese de doutorado na Universidade da Flórida, a pesquisa participante em que a própria população estudada, solicita ao sociólogo que a provoque para autoinvestigar-se e autoexplicar-se socialmente.
O interesse que Florestan desenvolveu pela sociologia do conhecimento de Karl Mannheim não foi, pois, um interesse de mera curiosidade por uma sociologia diferente da sociologia estrutural-funcionalista que Florestan cultivara em seus primeiros trabalhos. Mas um acréscimo a essa sociologia. Nos Fundamentos empíricos da explicação sociológica (Fernandes, 1959, p.45-188), ele reconhece, com rigor, o que é peculiar e próprio de cada um dos métodos de explicação da sociologia: o método funcionalista de Émile Durkheim, o método compreensivo de Max Weber e o método dialético de Karl Marx (Fernandes, 1978, p.15). No meu modo de ver, para ele, corretamente, nunca se propôs a segmentação do conhecimento sociológico pela diversidade de orientação dessas três correntes científicas originais.
A melhor e mais autorizada história e análise das questões teóricas relacionadas com a leitura e incorporação da sociologia de Marx à sociologia da “escola sociológica de S. Paulo” é a de Fernando Henrique Cardoso (2003, p.9-26) nos prefácios que escreveu para a edição e as reedições de Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Ele esclarece: “Florestan Fernandes, atormentado pela obsessão de desenvolver uma sociologia que não fosse constatação positiva da ordem predominante, abrira uma possibilidade de justificação da dialética como um dos três métodos fundamentais: o funcionalista, o weberiano e o dialético” (ibidem, p.16).
Ou seja, as três sociologias, especialmente a de Marx, são respostas ao modo como a sociedade se propõe ao conhecimento científico, como conhecimento crítico e revisor de interpretações conformistas.
Longe das tentações ideológicas, que se tornaram comuns entre nós a partir dos anos 1970, a realidade social carece da interpretação sociológica que desvende a organização funcional de suas relações, quanto carece do reconhecimento das significações objetivamente possíveis que movem seus agentes, quanto da identificação das contradições responsáveis pela dinâmica social e pelas superações históricas que delas decorrem.
Mais ainda. Os rumos tomados pela sociedade contemporânea sugerem a excepcional importância da sociologia de Durkheim em relação à sociologia de Marx. Não pela centralidade da premissa da ordem. Mas pela centralidade da concepção de anomia e sua contrapartida nos fatos patológicos. A sociedade pós-capitalista (e também pós-comunista) é a sociedade da anomia, da nulificação das normas reguladoras da ordem e da sua combinação harmônica com os requisitos de funcionalidade das relações sociais.
O pós-capitalismo é o que o capitalismo abriu para a desordem, a desordem do Estado como instrumento de poder e de dominação. As esquerdas extraviaram-se no equívoco antimarxiano de construir um socialismo da ordem e do poder, o socialismo da opressão e não o socialismo da liberdade e da democracia, da participação e da corresponsabilidade.
O socialismo oficial tornou-se o socialismo da desconfiança em relação ao povo trabalhador. Chegou-se ao absurdo dos partidos comunistas tratarem o operariado como inimigo do socialismo, como suspeito, em relação ao “politicamente correto” de um socialismo meramente ideológico e antimarxiano que perdeu o sentido da mediação sociológica e investigativa. Não percebeu a importância da descoberta das transformações sociais cotidianas e pequenas. Residuais, como as definiu Henri Lefebvre (1965, p.152ss; 1972, p.228), que ganham corpo e sentido na práxis transformadora, da coalizão social e política dos resíduos. Isto é, do que parece irrelevante na vida social, do que não foi capturado pelos poderios disseminados. nas mediações tanto das sociedades capitalistas quanto das socialistas. Os poderios de minimização e anulação do protagonismo do homem comum
Não se pode desconhecer que Durkheim criou uma sociologia fundada no reconhecimento da eunomia, mas fundada, também, nos desafios da anomia à criatividade social, anomia que decorre do desenvolvimento social cada vez mais anômalo. O que retarda a consciência social em face dos fatores e relações objetivos que lhe dão sentido. O que aparece em Marx como contradição traduz-se em subjetividade em Durkheim, como anomia que expressa falsa consciência e alienação, como forma social de desconhecimento das contradições.
Em A integração do negro na sociedade de classes, o capítulo mais dramático e sociologicamente mais significativo tem por título, justamente, “Pauperização e anomia social” (Fernandes, 1964, p.81-220). Não é da contradição de cujas tensões e desencontros decorre o drama social do negro. Anomia é a concepção sociológica que expõe cruamente sua condição de vítima, porque privado das referências sociais necessárias para que se torne membro da sociedade. Fator dos ajustes sociais alternativos a que recorre para sobreviver de modo anômalo nessa modalidade de carência.
A noção de contradição é puramente metodológica, é um princípio explicativo. O sociológico é a compreensão que dela decore. O que quer dizer que é preciso investigar e reconhecer as formas sociais assumidas pelas privações e exclusões que dessas contradições resultam para desenvolver a explicação sociológica correspondente.
A modernidade é anômica e irracional nos efeitos residuais de uma racionalidade restritiva e excludente. Ela não expressa os pressupostos racionais do capitalismo da sociologia weberiana. Aquele capitalismo clássico de sua referência tornou-se e torna-se cada vez mais exceção e anomalia. Muito mais, ainda, nas sociedades periféricas do capitalismo hegemônico, como a brasileira.
No grupo de Florestan, seu principal assistente, Fernando Henrique Cardoso (1964, p.187), conclui sua tese de livre-docência sobre Empresário industrial e desenvolvimento econômico, em 1963, com esta dúvida interpretativa: “Subcapitalismo ou socialismo?” Em 1975, em seu livro sobre A revolução burguesa no Brasil, Florestan Fernandes (1975, p.23) nos diz que “existem três destinos históricos diferentes contidos nas palavras ‘subcapitalismo’, ‘capitalismo avançado’ e ‘socialismo’”.
Dúvidas que nos sugerem dificuldades para interpretar um capitalismo que aqui não se expressa como tal. E um esboço de socialismo que não se revela munido do instrumental teórico necessário à compreensão sociológica e antropológica do que é a sociedade brasileira, de suas peculiaridades sociais e do que é nela o historicamente possível. Isto é, como superação das contradições de um subcapitalismo incompleto e inconcluso. As insuficiências e precariedades do capitalismo como determinações de um socialismo mais de discurso do que de práxis.
Nesse momento, capitalismo ou socialismo são o secundário, para Florestan Fernandes, em relação à sociedade brasileira e em face desses impasses. Em conferências nos Estados Unidos, dirigiu-se a estudantes, professores e demais intelectuais e lhes disse que
[...] podiam fazer avaliações críticas e tomar posições que consultassem às suas identificações com os ideais democráticos. Em meu entender - disse ele - , é preciso criar dentro dos Estados Unidos, uma convicção mais firme a respeito do valor da democracia e da oposição consciente a uma conduta farisaica, que leva o campeão dos valores democráticos de lá a ser o inverso disso na defesa de interesses econômicos, políticos ou diplomáticos que afetam outros países. (Fernandes, 1968, p.8-9)
E acrescenta: “Esse comportamento, no entanto, tem de resultar de uma compreensão madura dos outros países e dos fatores que os impedem de realizar pelas vias acessíveis (através do capitalismo ou do socialismo) os valores de um estilo democrático de vida” (ibidem, p.9).
É esse cenário de dúvidas, incertezas e indagações que está por trás de A revolução burguesa no Brasil, um livro que começa num momento da biografia intelectual e política do autor que já é outro quando o livro foi concluído. Para compreender esse momento, eu agregaria duas outras obras: Sociedade de classes e subdesenvolvimento (ibidem) e as três conferências que fez na Universidade de Toronto, durante o exílio no Canadá (Fernandes, 1969-1970). Pode-se estender às três obras o esclarecimento preliminar que ele dá no início de Sociedade de classes e subdesenvolvimento, quando diz que são ensaios “que foram escritos sob grande tensão intelectual e moral”.
A sociologia de Émile Durkheim tem na Europa sua referência central na concepção do que é normal em face do que lhe é patológico. Em países como o Brasil, a referência durkheimiana de anomia é a que propõe as indagações sociológicas mais reveladoras, tanto no que se refere à explicação da realidade quanto no que se refere ao que é aqui a criatividade social, a inventividade adaptativa que entre nós define o que é a normalidade do anômalo (Durkheim, 1960a, p.45ss; 1960b, 343ss.).
No que se refere à sociologia de Max Weber, não se podem desconhecer as variantes dos tipos de ação social que discrepam da ação racional com relação a fins, que é propriamente teórica, a do sentido pactado nas ações reciprocamente referidas entre sujeitos da mesma situação. As ações típicas e próprias da vida cotidiana, as da tradição e as orientadas por valores. Ou seja, os tipos residuais de ação que predominam nos estudos sociológicos e antropológicos na América Latina. Os estudos de comunidade, no Brasil, revelam uma sociedade peculiar, diversa da do modelo pressuposto nas formulações teóricas dos clássicos.
Como não se pode desconhecer a sociologia fenomenológica nas entrelinhas da dialética de Marx, não raro nas notas de rodapé. A começar da nota, em O capital, sobre a ética protestante na acumulação do capital, um tema supostamente weberiano, de que Weber só trataria bem depois de Marx.
Ao mesmo tempo, a teoria da estrutura e do conflito de classes, em Marx, torna-se de difícil aplicação no Brasil, dependendo de ajustamentos e esforços para verificar o que dela pode se aplicar aqui. Em vários de seus trabalhos, Florestan Fernandes defrontou-se com essa dificuldade, não por questão de escolha, mas por desencontro entre a teoria e a realidade (Fernandes, 1960a, p.65-92). Em particular, nessa significativa identificação do problema e da dificuldade: “O regime de classes vincula-se, portanto, a um aumento crescente das desigualdade econômicas, sociais e políticas, preservando distâncias e barreiras sociais antigas, nas relações entre estratos sociais diferentes, ou engendrando continuamente outras novas” (Fernandes, 1960b, p.82).
A aplicação literal das interpretações teóricas de Marx a um país como o Brasil acaba resultando numa idealização da realidade que a observação científica não confirma. As análises acabam sendo ineficazes, seguidamente negadas pela realidade e pelo próprio clamor das vítimas. Nosso atraso histórico de sociedade de capitalismo tardio e inconcluso o que propõe ao sociólogo é o deciframento de nossas superficialidades.
É evidente que se trata de um capitalismo cujas determinações sociais são as de temporalidades desencontradas entre um presente inacabado e inacabável e um passado persistente. cujas determinações capitalistas são inegáveis.
Temporalidades e realidade, no entanto, com as quais ainda nos defrontamos na “produção capitalista de relações não capitalistas de produção”, traço característico do capitalismo brasileiro (Martins, 2010 passim).
Desde as duas escravidões que tivemos, bem diferentes entre si, a escravidão indígena do índio administrado e a escravidão africana do negro mercadoria, passando pelas formas não salariais de trabalho livre. Desde o regime de peo- nagem, o da escravidão por dívida, nos seringais da Amazônia, entre os fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX, até finalmente os dias de hoje com a extensa utilização de trabalho cativo na abertura de novas fazendas na região Amazônica a partir dos anos 1970, o que se desdobrou em episódios de sujeição na indústria de confecção em São Paulo nos dias atuais (Martins, 2014).
O próprio desenvolvimento da sociologia foi definindo a complementaridade dessas três correntes teóricas, com as cautelas e ressalvas que Florestan já aponta em sua obra. De certo modo, independentemente do tema suscitado por determinado método, no detalhamento dos requisitos da explicação científica que de ele decore, pode caber a aplicação complementar dos outros dois métodos (Fernandes, 1978, p.15). À luz da concepção de que a sociologia é, antes de tudo, uma sociologia do conhecimento da consciência social e crítica.
Num ensaio de polêmica com Luís da Costa Pinto, de 1947, sobre “O problema do método na investigação sociológica”, esclarece Florestan Fernandes (1960a, p.412): “O emprego da técnica da análise ideológica do conhecimento favoreceria uma compreensão mais positiva da contribuição das diversas tendências da ‘Sociologia acadêmica’ sem em nada prejudicar a obra de Marx e Engels, na história das ciências sociais”. Nesse sentido, ele foi o pioneiro da sociologia em reconhecer e desenvolver essa convergência no plano crítico e a propor orientações complementares para os métodos de explicação e de ajustamento deles com os métodos de investigação.
As reflexões de Florestan sobre a relação entre métodos de investigação e métodos de explicação ajudam a compreender o modo como ele se defrontou, na prática, com a questão da singularidade irredutível, no plano puramente metodológico, dos métodos sociológicos de explicação.2 O modo como através da sociologia do conhecimento descortinou os nexos possíveis entre eles na perspectiva crítica, isto é, a do conhecimento situado e sociologicamente explicado (Fernandes, 1960a, p.415). Como esclarece: “Uma análise crítica bem orientada revela, sem grandes dificuldades, o caráter complementar das diferentes teorias” (ibidem, p.421).
Nessa perspectiva, em vários momentos da obra de Florestan Fernandes está presente a relevância da ressocialização do pesquisador pela população pesquisada como recurso de investigação sociológica, o domínio do método pelo qual o homem comum conhece e explica o mundo e a vida, explica-se e explica o outro.
Florestan assinala a influência de Roger Bastide, ao menos em parte, nessa sua concepção dos métodos (ibidem, p.416).
Pode-se ver essa influência de Bastide, durante longo tempo, no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da USP. Numa sociedade como a nossa, a formação do estudante como profissional da área só é eficaz se ressocializá-lo nas técnicas sociais de interação investigativa (Martins, 2012). Se puder pensar com as categorias do outro, e pude, então, compreender o pensamento do outro. Não se trata de fingir, coisa que muitos fazem, mas de ser e de poder compreender desde fora e desde dentro a realidade que investiga.
Num curso que era originalmente dedicado à formação de professores para o ensino normal, o de preparação de docentes para a escola primária, é compreensível que Florestan entendesse que a função da sociologia no Ensino Médio era a de ressocializar os estudantes para fazerem a ponte entre a sociedade culta, representada pela Universidade, e as populações situadas no atraso social e cultural do Brasil tradicional e arcaico (Fernandes, 1958, p.232-246). E nesse sentido dotá-los de uma consciência crítica da realidade social do atraso e das injustiças que dele decorrem.
A sociologia enquanto consciência científica da sociedade depende de processos sociológicos, de socialização, para disseminar as referências dessa modalidade de conhecimento. O que é bem diverso do praticado pela cultura panfletária da militância como propaganda e mesmo como coação do agente políico.
Sua sempre renovada inquietação com o destino da sociedade brasileira fez de Florestan Fernandes um intelectual de diversificados desempenhos em favor do bem comum. Em sua obra, com uma ou outra exceção, há um brasileiro de referência, o desvalido, o explorado, o minimizado, o brasileiro que fez o que o país é, mas que foi usurpado do direito de receber de volta não só os bens econômicos que ajudou a criar, mas também os frutos mediados da riqueza que criou, sob a forma de educação pública e gratuita, da escola elementar à universidade. E de ter o reconhecimento de sua cultura popular e folclórica como modalidade legítima de afirmação identitária e de expressão própria.
Ele teve uma compreensão dialética do processo histórico e da relação entre a exploração do trabalho e a retribuição a que o trabalhador tem direito, não só como retribuição material, mas como retorno dos frutos do seu labor como conhecimento, ressocialização, emancipação e libertação.
É provável que, na Universidade, muitos não compreendam essa premissa dialética de sua obra. Dificuldade que há em quem a atribui ao seu suposto ecle- tismo, quando é, na verdade, alta erudição teórica, única entre nós. Atribuir-lhe ecletismo tem sido um modo de minimizar-lhe o amplo domínio sobre a complexa diversidade da teoria sociológica. O que é uma pena porque seria um modo de sairmos da cegueira interpretativa do marxismo vulgar que nos arrasta para a miséria das análises imediatistas. Aquelas fundadas na concepção do salário como objetivo central das lutas dos trabalhadores. Sem considerar que o salário é para quem trabalha uma categoria social e não simplesmente uma categoria econômica, o que melhor se compreende na perspectiva da economia moral, tema desenvolvido por Edward P. Thompson (1950, p.76-136).
A crise do Partido dos Trabalhadores, ao qual Florestan dedicou o melhor de sua inteligência, decorre em grande parte da incompreensão do partido do que são as carências radicais e transformadoras de uma sociedade como a brasileira. Representativo, sobretudo, dos setores afluentes da classe operária da região do ABC, em São Paulo, assumiu o protagonismo de uma categoria social que não tem propriamente necessidades radicais. Subestimou os trabalhadores rurais que as têm, cooptando-os apenas como massa de manobra eleitoral. Tanto no governo Lula quanto no governo Dilma Rousseff, o agronegócio tornou-se um aliado preferencial do Partido mesmo sendo ele o adversário mais emblemático dos trabalhadores da roça. Uma compreensão política de direita de uma questão social de esquerda.
Esse é um dos temas centrais da sociologia marxiana de Henri Lefebvre (1965, p.20), que fez o retorno ao essencial de Marx, ao método dialético, e descobriu em Marx o cientista desconhecido e de obra inacabada. E da antropologia de Agnes Heller (1978, p.107-35), discípula e assistente de Georg Lukács, que tentou um caminho próprio de resistência interpretativa à doutrina do Partido Comunista. Também foi expulsa e emigrou para a Austrália e, depois, para os Estados Unidos.
A crise do marxismo chegou até aqui. Foi, na verdade, crise do bolchevismo e não propriamente da sociologia de Karl Marx. Em boa parte em decorrência das fragilidades interpretativas de uma doutrina que era, na verdade, negação e recusa da sociologia enquanto ciência do reconhecimento da pluralidade e da diversidade da sociedade contemporânea. O marxismo passou a ser a antissociologia, o conhecimento social reduzido ao ideológico e ao politicamente “correto”.
Daí decorreram interpretações sociais pobres da realidade de diferentes países, sobretudo porque bloqueadas ao reconhecimento da relevância e até do decisivo protagonismo das categorias sociais cuja prática e cuja realidade modificava a teoria das classes sociais e do que é a própria luta de classes, enquanto luta dos trabalhadores e dos desvalidos para ter acesso aos mesmos bens, direitos, condições e até estilos de vida retrógrada e estamentalmente reservados aos que tem poder e dinheiro.
Cada vez mais foi ficando evidente o acerto da análise de Lukács (1960, p.71-4) quanto à eficácia historicamente circunscrita da concepção de classe social, quando a circunstância da práxis revela o conteúdo de classe dos acontecimentos e, portanto, a tendência histórica provável das tensões e conflitos.
A figuração das classes sociais e seu protagonismo, que podem ser sociologicamente reconhecidos, é temporária. A classe social é um processo, momento de um movimento historicamente determinado. A práxis revolucionária e transformadora, ao gerar uma nova estruturação das relações sociais, esgota sua função histórica temporária na transformação consumada.
Cria, também, as bases de um novo “modelo” de reprodução dos relacionamentos, a da ordem instável da sociedade de superação daquela cujas carências radicais foram por ela resolvidas. Até que novas carências desse gênero, as que não podem ser superadas sem transformações decisivas, desafiem o caráter reprodutivo das relações sociais e demonstrem o esgotamento da práxis de repetição ou a da mudança teatralizada.
O bolchevismo acobertou a realidade histórica da própria Rússia revolucionária, que se defrontava com diferentes possibilidades históricas a partir do modo de vida e da visão de mundo de suas diferentes categorias sociais. Centrado numa concepção proletária da história, não levou em conta que a Rússia ainda era um país camponês e agrícola e não um país industrial, um país saído há pouco tempo do regime de servidão.
Esse problema havia sido colocado para Karl Marx em carta da militante menchevique Vera Zasulich. Ela lhe perguntou se, não sendo a Rússia um país industrial, sua teoria, resultante das descobertas feitas a partir da pesquisa e estudo da sociedade da grande indústria, se aplicava também àquele país. Marx escreveu três esboços de resposta. Relutou. Apontou a limitação de que sua teo- ria se aplicava à Europa Ocidental. Talvez se aplicasse também a casos como o da Rússia. Acabou não enviando a resposta.
A verdade é que o próprio Marx (1961) não reconhecia competência historicamente transformadora nos camponeses, “que só param de pé como as batatas dentro de um saco”. Ou seja, podiam ser tratados como classe, mas classe socialmente inócua. Na Rússia, os camponeses estavam identificados politicamente, como “populistas”, os narodnik.
Lenin chegou a fazer um estudo sobre eles, dos primeiros estudos sociais que realizou, “Quem são os amigos do povo”. Conhece-se uma versão incompleta, de que se perdeu uma das três partes. A Revolução Russa, porém, trancou as obras dos populistas na Biblioteca Lenin e lhe vetou o acesso à pesquisa e ao estudo. Só depois da Segunda Guerra Mundial o historiador italiano Franco Venturi teve permissão para acessá-la e ali examinar e estudar toda sua rica coleção de textos e de documentos, de que resultaram os três volumes de seu livro Il populismo russo (Venturi, 1977). Uma reveladora história de ocultamento de uma experiência social e política que poderia ter alterado os rumos da Revolução Russa.
A Rússia não era uma sociedade industrial que comportasse a aplicação literal da teoria da sociedade de classes. Teoria, aliás, incompleta, porque Marx morreu antes de concluir o que os organizadores da “versão final” de O capital definiram como Tomo III da obra, quando três classes fundamentais estão identificadas na sociedade capitalista: a burguesia, o proletariado e os proprietários de terra; o capital, o salário e a renda territorial. O processo do capital é o processo econômico mediado por essas três referências de classe. Que se propõem de modos diferentes em diferentes sociedades.
No Brasil quem se interessou pela importância sociológica da teoria das necessidades, para explicar os fatores das transformações sociais, foi Antonio Candido (2019, p.29), em Os parceiros do Rio Bonito. Ele a retoma na Ideologia alemã, de Marx e Engels, explicar as mudanças na sociedade caipira. Lefebvre e Heller, em trabalhos diferentes, voltam à teoria das necessidades em Marx para explicar os fatores de transformação social não como volição, mas como carências sociais radicais que só podem ser saciadas com transformações sociais profundas.3
Numa interpretação própria, Florestan lidou com algumas dessas carências. Porque o reducionismo materialista do marxismo vulgar limitou ao econômico, à produção material, ao salário a concepção de necessidades sociais. Florestan tratou-as em perspectiva diversa quando dedicou boa parte de sua obra à educação. Nesse sentido, a educação como necessidade social fundamental, a necessidade de conhecer e saber para saciar a carência de desvendamento da realidade como condição da integração social.
Em seu livro, de certo modo enigmático, sobre A revolução burguesa no Brasil, há o que hoje, à luz dos acontecimentos históricos e políticos que vieram depois, pode-se definir como um impasse teórico. A primeira parte, de 1966, sobre “As origens da revolução burguesa”, é marcada pelo intuito evidente de fazer uma revisão crítica do pensamento social brasileiro com base no que, a partir dos anos 1930, se definiu como o país moderno. Uma análise das transformações da sociedade brasileira nas suas singularidades. A segunda parte, sobre “A ordem social competitiva”, é apenas um fragmento de análise mais completa, não concluída. E a terceira parte, sobre “Revolução burguesa e capitalismo dependente”, expressa a atualização do ponto de vista do autor em decorrência da cassação que sofreu e do seu exílio no Canadá.
A primeira parte é a do Florestan que medita no marco do possível da revolução burguesa que ainda estava posta no cenário social e político.
Não obstante ser um fragmento, a segunda parte é, no meu modo de ver, a mais significativa do livro. Em seus estudos, Florestan preferiu falar em “ordem social competitiva”, por se tratar de uma sociedade de classes em formação, baseada singularmente na captura da sociedade arcaica e senhorial, a da escravidão, e em sua instrumentalização como meio de desenvolvimento do capitalismo entre nós (Fernandes, 1975, p.163).
A terceira parte já expressa o reconhecimento da ruptura decorrente da sujeição neocolonialista do país pelo golpe militar induzido e apoiado pelos Estados Unidos.
Foi o momento da crise e da aniquilação do nacional-desenvolvimentismo, que fora o de um capitalismo voltado para dentro e dependente do mercado interno, de reformas sociais e econômicas que integrassem na economia os que até então estavam à margem dela.
O livro foi publicado em 1975, época em que começam a ganhar importância os movimentos sociais, o novo sindicalismo, o novo proletariado, especialmente na região do ABC. E, sobretudo, as pastorais sociais da Igreja Católica com a Pastoral da Terra, criada nesse mesmo ano, com a participação da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Paraná e em Rondônia. Novos protagonistas de demanda social e política surgem no cenário social e político brasileiro, como as nações indígenas e as populações definidas como camponesas.
O protagonismo desses novos sujeitos do processo histórico não estava no horizonte da sociologia do período de redação do livro. Ele não se explica na perspectiva de uma teoria das classes sociais e da luta de classes do materialismo histórico. Há, sim, grosso modo, conflito de classes. Mas classes sem tal identidade, porque muito mais expressão da consciência das novas carências sociais decorrentes reestruturação produtiva na indústria e da expansão do capitalismo no campo com a expropriação maciça de índios e camponeses. Nesse caso, consciência fundada na visão comunitária da vida social e em valores da tradição familista e do conservadorismo popular. O confronto era com a desagregação desse mundo dos pobres da terra.
As esquerdas tiveram dificuldade para perceber que, no campo, se tratava de uma insurreição anticapitalista conservadora, a dos inúmeros focos de tensão social, espalhados pelo país. A antropologia foi chamada a definir uma nova concepção de práxis de fundo étnico e a sociologia foi chamada a interpretar a nova realidade dos conflitos sociais, sobretudo no campo, no marco de situação social e política em que a classe operária não é mais nem a principal referência teórica nem a agente privilegiada da ação histórica. Só na teoria.
Um passado de injustiças sociais apresentava sua conta ao governo e à sociedade. É o período em que surge os Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, nascido no interior da Pastoral da Terra. O próprio PT só foi possível graças à extensa adesão das bases sociais da Igreja Católica que deu a ele dimensão nacional.
Começava uma nova realidade social, a sociedade brasileira já era completamente outra, diferente da que fora referência de Florestan Fernandes naquele livro. Mesmo que seu livro sobre a revolução burguesa fosse um consistente questionamento, sociologicamente crítico, do marxismo vulgar. Uma sociedade que estava muito mais para o diálogo interpretativo com o pensamento narodnik do que para o diálogo com o pensamento leninista. O que propunha um retorno ao método propriamente marxiano no lugar do materialismo ideológico adotado por setores da esquerda, para compreendê-la no que ela era de diferente e do que dela herdamos nessa fase do Brasil pós-brasileiro
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Notas
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1
Esse ensaio foi publicado em 1949, na Revista do Museu Paulista.
-
2
Essa questão já está proposta por Marx, como distinção entre “método de exposição” e “método de investigação”. Cf. Marx (1959, p.XXIII).
-
3
A teoria marxiana das necessidades radicais, como necessidades que movem o processo histórico poque expressam tanto que a alienação se tornou insuportável quanto que milhões de proletários descobrem que seu ser não corresponde à sua essência. Está proposta em A ideologia alemã (cf. Marx; Engels, 1979, p.50 e 63).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
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Recebido
28 Set 2020 -
Aceito
03 Out 2020