Open-access A imagem física do mundo: de Parmênides a Einstein

ARTIGOS

A imagem física do mundo: de Parmênides a Einstein

José Leite Lopes

RESUMO

O autor discute a evolução da imagem física do mundo desde os filósofos gregos a Einstein e às idéias contemporâneas das teorias unificadas dos campos de calibre. A concepção atômica da matéria evolue da idéia de substância primordial de Tales aos leptons e quarks e aos quanta dos campos tais como gluons, bosons, vetoriais fracos e fortes. A teoria quantica é a única capaz de explicar a identidade e a estabilidade da matéria, o mundo tal como o vemos.

ABSTRACT

The author discusses the evolution of the physical description of the world form the greek philosophers to Einstein and the contemporany ideas on the unified gauge field theories. The atomic conception of matter evolves from the Thales idea of a primordial substance to leptons and quarks and the field quanta sech as gluons, weak vector basons and photons. The quantum theory is the only that can explain the identity and stability of matter, the world as we see it.

Falar de Einstein, escrever sobre Einstein é certamente um desafio fascinante porém perigoso: quantos artigos, quantos livros não lhe foram dedicados, a ele e a sua obra, desde os anos 50, últimos anos de vida? Quantos discursos não foram feitos, quantos congressos não foram realizados há exatamente quatro anos, por ocasião do centenário de seu nascimento?

Se, do mesmo modo que Galileu e Newton, ele é considerado pelos físicos como uma das maiores figuras da história dessa ciência, é porque suas contribuições científicas formam a base da física contemporânea: seus trabalhos sobre a teoria da relatividade restrita provocaram uma reformulação revolucionária da física tradicional, das noções fundamentais de espaço e tempo, de matéria e energia; seus trabalhos sobre a teoria da gravitação — talvez os mais belos da física teórica até os dias de hoje — ocasionaram a unificação da dinâmica gravitacional com a geometria do espaço físico. E seus escritos sobre a natureza da luz, sobre a teoria quântica dos processos de emissão e de absorção dos fótons pelos átomos, contribuíram para a eclosão da mecânica quântica — teoria que atualmente é a teoria universal dos objetos e dos fenômenos microscópicos, escala dos átomos, dos núcleos e das partículas fundamentais da matéria.

E sobretudo, ao longo de sua vida, à medida que se desenvolviam suas idéias sobre a física, era levado a refletir sobre os princípios e as motivações da pesquisa científica, sobre os métodos da física teórica, sobre sua concepção do mundo, sobre o problema do conhecimento.

Não falarei sobre suas atividades igualmente importantes de ordem política, econômica e social, não só em favor do povo judeu, como também em prol da justiça para com os povos árabe e palestino; mencionarei apenas seus esforços em favor da paz e contra a guerra, suas reflexões e suas inúmeras intervenções pelas grandes causas da humanidade.

O problema do conhecimento

Se desejamos compreender bem a contribuição de Einstein para a descrição — e compreensão — de um vasto conjunto de fenômenos físicos, talvez devêssemos nos fazer a seguinte pergunta: qual é a imagem física atual do mundo, qual foi sua evolução através da história? Essa pergunta é tão antiga quanto o próprio homem; é o cerne dos grandes sistemas de filosofia e de religião. E, em virtude de minha ignorância dos estudos dos maiores filósofos e historiadores da ciência, só seria capaz de apresentar-lhes um apanhado qualitativo e sumário da evolução de alguns aspectos fundamentais da concepção física do mundo.

O problema de mostrar como adquirimos o conhecimento e como se realiza nosso conhecimento das coisas distintas de nós mesmos é o núcleo da filosofia. Acredito que ele não encontrou e provavelmente jamais encontrará uma solução definitiva.

Para George Berkeley, filósofo inglês do século XVIII, os corpos materiais existem apenas em nossa percepção; negando a existência da matéria, ele revelou, de certo modo, o aspecto crucial desse problema. Ao postulado da existência independente das coisas que correspondem às nossas sensações, preferiu admitir a existência de Deus que está olhando sempre as coisas; dessa forma, ainda que um objeto deixe de existir para mim quando não o percebo, ainda que ele recomece a existir assim que o percebo novamente, a vigilância contínua de Deus que perceberia eternamente os objetos eliminaria essa intermitência da existência dos corpos, reestabeleceria sua continuidade (ver Quadros I e II).


À imensa variedade de nossas sensações e percepções, associamos um mundo que existe fora de nós, e que é a causa de nossas percepções, uma existência que não é, todavia, segundo a física contemporânea, totalmente independente de nós. A essas percepções associamos, então, coisas e fenômenos — que são construções para exprimir nossas percepções, inclusive aquelas transmitidas por um aparelho de medida física — ; nestas construções e, em correspondência com os objetos, empregamos idéias inventadas pelo pensamento, noções primitivas e noções logicamente deduzidas, construções que se integram em uma teoria. E o conjunto das teorias, que se propõem a descrever as regularidades de certas classes de objetos e de fenômenos, contribuirá para a formação de uma imagem física do mundo.

Segundo Eugene Wigner, grande físico teórico contemporâneo, existem duas espécies de realidades ou de existências: a existência de minha consciência e a existência de todo o resto, ou seja, o mundo material e as sensações dos outros. A existência de um objeto, de um livro, por exemplo, é uma expressão apropriada para descrever as sensações que experimento e que determinam outras sensações. Trata-se, portanto, de uma realidade relativa, ao passo que, para Wigner, a realidade absoluta é a realidade de minha consciência. Essa concepção resulta, com efeito, da análise da noção de medida em mecânica quântica. Em uma medida física, há interação entre o aparelho e o objeto observado, e o estado do sistema aparelho + objeto permanece tal que apenas um estado do objeto pode estar associado com um dado estado do aparelho. Assim, a medida do estado do aparelho conduz à medida do objeto físico e essa apenas é concluída quando sua indicação entra em minha consciência.

"This last step", afirma Wigner, "is, at the present state of our knowledge, shrouded in mystery and no explanation has been given for it so far in terms of quantum mechanics, or in terms of any other theory." (Quadro III)


Assim, antes de George Berkeley, entre George Berkeley e Eugene Wigner, quantas extraodinárias reflexões e análises sobre a natureza de nosso conhecimento, sobre a estrutura daquilo que chamamos mundo físico!

Os físicos estão interessados nas regularidades que se revelam na observação das coisas e dos fenômenos. Suas teorias só conseguem descrever a enorme complexidade do mundo físico porque existem certas correlações entre fenômenos, regularidades, certas proporções que convencionamos chamar leis naturais. O trabalho e o esforço dos físicos consistem em descobrir essas leis e as condições iniciais que permitem encontrar as soluções e, através das próprias leis, estabelecer predições.

A pesquisa do conhecimento através da contemplação da variedade das coisas conduziu, já na Grécia clássica, à noção de necessidade, de proporção entre os elementos, à idéia da existência de elementos constitutivos da matéria.

A Escola de Mileto

Tales foi um dos primeiros a enunciar a idéia da existência de um elemento fundamental, de uma substância primordial. Segundo ele, todas as coisas seriam feitas de água. Como a água contém átomos de hidrogênio, essa concepção não está em contradição com as idéias modernas de astrofísica: da observação de material cósmico, deduz-se que os elementos predominantes no estágio inicial do Universo eram o hidrogênio e o hélio, em uma proporção de abundância de hidrogênio dez vezes superior à do hélio. Já Anaximandro, outro filósofo da escola de Mileto, afirmava que a substância primordial de todas as coisas não é a água, nem, efetivamente, nenhum outro corpo material conhecido. Para ele, o elemento fundamental de todas as coisas é infinito e eterno e está subjacente em todos os mundos. Essa substância se transforma em objetos materiais que nós percebemos. Segundo Anaximandro, no mundo material existe uma proporção definida de ar, de fogo, de água e de terra. A competição entre esses elementos concebidos como deuses, ou seja, a proporção de tais elementos, é regulamentada por uma fatalidade, por uma certa necessidade — necessidade de proporção entre esses elementos — que constituiria, segundo certos filósofos, a origem da noção da lei da natureza. Para Anaxímenes, terceiro pensador da Escola de Mileto, a substância primordial é o ar. A alma do homem é feita de ar, o fogo é o ar rarefeito; ao condensar, o ar se transforma em água que, por sua vez, se condensa em terra, em pedras.

Segundo essas especulações, por assim dizer, pioneiras da química, as forças de coesão seriam uma espécie de respiração: visto que nossa alma, feita de ar, nos mantém unidos e estáveis, também o ar e a respiração universal asseguram a coesão, a estabilidade do mundo — o ar seria substituído no século XIX pelo éter, que transmitiria as ações físicas.

As especulações dos filósofos de Mileto são, aliás, vistas por Bertrand Russel como verdadeiras hipóteses científicas, visto que nelas não encontramos nenhuma idéia de moral nem concepções antropomórficas.

Ao lado desse espírito científico pioneiro, os filósofos gregos estavam impregnados de certo espírito de religiosidade: os que estavam influenciados pela religião de Baco ou Dioniso, os discípulos de Orfeu, buscavam o entusiasmo, que significa união com o deus; interessavam-se pela aquisição de conhecimentos místicos, não-acessíveis pela percepção dos sentidos. A partir dos cultos de Dioniso e Orfeu, o componente místico da filosofia grega foi importante especialmente em Pitágoras e, em seguida, ganhou, através de Platão, a filosofia da Idade Média.

Pitágoras

Atribui-se a Pitágoras a origem da palavra teoria: palavra que queria dizer estado de contemplação com afinidade e paixão. Segundo o grande scholar inglês F. M. Cornford, nesse estado o espectador se identifica com o Deus que sofre, " morre em sua morte e renasce em seu novo nascimento". Segundo Pitágoras, a contemplação com afinidade e paixão é uma atividade intelectual que dá origem ao conhecimento matemático. Devemos a ele a afirmação de que todas as coisas são números, afirmação essa que, depois de Galileu e Newton, incorporou-se à física e pode ser encontrada nos trabalhos de Maxwell e Lorentz, de Einstein, de Schrödinger e Dirac, assim como no trabalho dos físicos contemporâneos sobre as teorias dos campos de calibre — talvez as coisas provenham de um grande grupo de calibre, de suas representações, de sua espontânea quebra de simetria.

Eis um resumo de um apanhado geral da filosofia dos Pitagóricos feito por Alexander Polyhistor no século I a.C. e reproduzido por Diógenes de Laerta: "O primeiro princípio de todas as coisas é o Um. Do Um proveio um Dois indefinido, enquanto Matéria para o Um que é causa. Do Um e do indefinido Dois provieram os números; dos números, os pontos; dos pontos, as linhas; das linhas, as figuras planas; das figuras planas, as figuras sólidas; das figuras sólidas, os corpos sensíveis. Os elementos deste último são quatro: fogo, água, terra, ar; esses elementos mudam e se transformam e deles resulta um Cosmo, animado, inteligente, esférico, que compreende a terra que é, ela própria, esférica e habitada por todos os lados" (citação de Cornford).

O que dizemos hoje? Talvez isto: os primeiros elementos de todas as coisas são léptons e quarks; dos quarks provêm os hádrons, entre os quais os bárions; os bárions geram os núcleos; os léptons e os núcleos formam os átomos dos corpos sensíveis. Desses léptons, quarks, núcleos e átomos resulta um Cosmo que compreende a matéria inanimada e a matéria inteligente que, a partir da terra, contempla o Universo e se contempla a si mesma (Quadro IV).


Heráclite e Parmênides

Belas divagações filosóficas também nos foram legadas por Heráclito (século V a.C.). Ele considerava o fogo como substância primordial, visto que ele tem as propriedades da menos corporal e mais sutil matéria. Tal a chama do fogo, tudo nasce da morte de algo; diríamos hoje: fótons são emitidos (nascem) na aniquilação (morte) elétron-pósitron; pares partícula-antipartícula nascem da morte de um fóton. Assim, afirmava Heráclito, os seres mortais são imortais, os imortais são mortais, um vive a morte do outro e morre a vida de um outro.

No mundo existe unidade, mas essa unidade é o resultado da combinação de opostos: o Um é feito de todas as coisas e todas as coisas resultam do Um. A oposição dos contrários é fundamental, uma harmonização de tensões opostas, como o arco e a lira; talvez possamos, então, dizer que tanto a noção de conjugação de carga como a de aniquilação matéria-antimatéria, para produzir energia, remontam a Heráclito.

Com Parmênides de Eléa, um pitagórico dissidente, foi introduzida a noção do Um, de um ser substancial eterno e imutável. Ele rejeitou o postulado de Pitágoras segundo o qual do Um original provêm dois e, em seguida, vários. Eis algumas de suas premissas:

1) O que é, é, e não pode não ser; o que não é, não é, e não pode ser.

2) O que é, pode ser pensado ou conhecido, expresso ou realmente nomeado; o que não é, não o pode.

Esse princípio me faz voltar à Universidade de Princeton quando, em 1945, preparava minha tese de doutorado sob a orientação de Wolfgang Pauli. Naquele ano, no Fine-Hall, Departamento de Matemática e Física Teórica da Universidade, o matemático francês Jacques Hadamard realizava um seminário sobre a psicologia da invenção matemática. Durante a discussão, a seguinte pergunta foi feita por Einstein: quando o senhor cria, quando o senhor tem uma nova idéia, estaria ela associada necessariamente a uma palavra? Vemos que Einstein, como Parmênides, fazendo essa pergunta, estava preocupado com as relações entre o real, o pensamento e a linguagem. Segundo Parmênides, ser e ser pensado são a mesma coisa.

"Thought is uttered in names that are true, i.e., names of what really is." Apenas aquilo que é pode ser pensado ou realmente nomeado; e apenas aquilo que pode ser pensado pode ser.

Naturalmente, o ponto fraco do sistema de Parmênides é que seus postulados rejeitam o mundo, a variedade das coisas resultante do Um. Essa variedade, assim como nascer, tornar-se, mudança, movimento, é, segundo ele, irreal. De sua filosofia restou entretanto o conceito de substância fundamental permanente, de uma realidade indestrutível.

Os sucessores de Parmênides deviam restabelecer a questão da realidade das coisas, da pluralidade, do mundo que nos é dado por nossas percepções e que, para Parmênides, seria apenas uma ilusão, visto que não poderia ser subtraído da unidade. Empédocles admitiu que o Um é sempre vários, visto que seria constituído de quatro partes, uma mistura de quatro elementos diferentes que podem deslocar-se — os quatro elementos de Anaximandro, o fogo, o ar, a água, e a terra. Esses elementos são eternos, imutáveis, movem-se uns através dos outros — assim como para Parmênides, o vazio também não existe para Empédocles. Para Anaxágoras, se os elementos não podem ser criados ou perecer, o aparecimento de uma coisa é o resultado de uma nova combinação dos quatro elementos, seu desaparecimento resulta de uma dissolução de uma dada combinação. Assim, Empédocles e Anaxágoras substituíram o monismo absoluto de Parmênides por uma pluralidade de elementos permanentes que podem ter movimento e, dessa forma, ocasionar mudanças.

A cosmogonia de Platão

A cosmogonia de Platão está exposta em seu diálogo Timeu: o que é permanente, imutável, é adquirido pela inteligência; o que está em transformação é adquirido pelo que ele chama de opinião. Visto que o mundo é apreendido por nossas sensações, ele não pode ser eterno, deve ter sido criado por Deus.

Os quatro elementos — fogo, ar, água, terra — são representados por números que mantêm uma certa proporção entre si. O tempo e o céu foram criados juntos. Mas os verdadeiros elementos primordiais não são os quatro elementos citados acima; são, antes, duas espécies de triângulo retângulo, sendo um a metade de um quadrado e o outro a metade de um triângulo equilátero; essas são as mais belas formas. Devido à sua beleza, Deus os utilizou para constituir a matéria. Cada átomo de um dos quatro elementos é um sólido regular (conexo) construído a partir desses triângulos: os átomos da terra são cubos, os do fogo são tetraedros, os do ar, octaedros, os da água, icosaedros. O quinto, o dodecaedro, não pode ser construído pelos dois triângulos de Platão — mas sim a partir de pentágonos regulares. Segundo Platão, Deus o utilizou no esquema do Universo — que seria, apesar dessa afirmação, esférico.

No Teeteto, Platão critica a concepção segundo a qual o conhecimento é a mesma coisa que a percepção. Apenas o pensamento pode nos fazer conhecer o que existe, ou seja, as idéias; o conhecimento consiste, portanto, em reflexões, e não, de forma alguma, em impressões e percepções.

Em Platão, como em Pitágoras, encontramos, então, as origens da concepção segundo a qual a matemática descreve o mundo, uma concepção que será incorporada na física com Galileu.

A física de Aristóteles

Como sabemos, a física e a cosmogonia de Aristóteles não contribuíram para a ciência moderna. Mas têm uma importância histórica indubitável, porque dominaram as especulações sobre o mundo até Galileu, até o século XVII. Segundo Aristóteles, existem duas espécies de movimento: o dos corpos terrestres e o dos corpos celestes. O céu consiste em dez esferas concêntricas, tendo a esfera da lua o menor raio. No interior dessa esfera, tudo o que está sob a Lua está sujeito à corrupção e à desintegração. Fora da esfera da Lua, tudo é indestrutível.

O movimento dos corpos terrestres se produz como o dos animais, com uma finalidade. Os corpos celestes, ao contrário, são caracterizados pela regularidade de seus movimentos, produzidos pela vontade de um Deus. Além das esferas de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter e de Saturno, existe a esfera das estrelas fixas, o Primum Mobile. Além do Primum Mobile, não há movimento, tempo ou lugares. Deus, o Motor Primordial, ele próprio imóvel, produz a rotação do Primum Mobile que transmite seu movimento para a esfera das estrelas fixas e esse movimento é transmitido até a esfera da Lua: essa é a concepção do mundo cristão da Idade Média, herdada de Aristóteles e apresentada no Paraíso de Dante. Quanto à física de Aristóteles, era um corpo teórico logicamente coerente e construído para descrever os movimentos de nossa experiência de todos os dias: um corpo pesado cai para baixo; a chama se move para cima. Segundo Aristóteles, acima de tudo, cada corpo tem um lugar determinado no mundo e opõe resistência a qualquer esforço que tende a retirá-lo daquele lugar. Daí, a idéia de movimento como resultado de uma violência e, uma vez cessada a violência, os corpos em movimento voltam ao repouso. Em termos modernos, podemos dizer que a dinâmica de Aristóteles define a força como sendo a impulsão. A equação de movimento de Aristóteles é a seguinte:

onde m seria a massa do corpo. Se , o corpo está em repouso no lugar definido pelo vetor .

Segundo Aristóteles, o vazio não existe. No vazio, assim como no espaço geométrico, não existem lugares nem direções privilegiadas. Conseqüentemente, as figuras geométricas não podem descrever os corpos materiais: a física não pode ser descrita pela matemática. Seria até mesmo perigoso, segundo Aristóteles, misturar física e geometria, aplicar o raciocínio matemático ao estudo da realidade física.

A crítica de Aristóteles

Os críticos e os adversários da dinâmica de Aristóteles chamavam a atenção para o fato de que o movimento continua, assim que cessou a força, ação motriz que lhe deu origem. Dentre eles, citemos Jean Phi-lopon, Jean Buridan e Nicole Oresme, da Escola dos Nominalistas de Paris (século XIV), Leonardo da Vinci, Benedetti e Galileu (séculos XVI e XVII).

Essa crítica produziu a teoria do impetus: ao invés de considerar o ar ao mesmo tempo como resistência e motor dos movimentos, por que não admitir que alguma coisa é transmitida àquilo que se move pela ação motriz, alguma coisa que foi, então, denominada virtus motiva, virtus impressa, impetus, impetus impressus, que faz com que o movimento continue? Durante mil anos, essa noção de impetus permaneceu ambígua e confusa.

A revolução cristalizada em Galileu

Uma revolução na concepção física do mundo, a formulação de uma nova linguagem e de uma nova filosofia foram necessárias para a eclosão da física moderna. A concepção aristotélica e medieval do Cosmo finito, constituído de um certo número de esferas hierarquicamente ordenada teve de ser substituída pela idéia de um Cosmo aberto, um Universo infinito.

Se no mundo de Aristóteles havia lugar para leis aplicáveis ao Céu e leis descritivas apenas das coisas da Terra, no novo sistema do mundo existiria apenas um único tipo de leis, as leis físicas universais, válidas em toda a parte (Quadro V).


O novo sistema do mundo, que adquiriu forma mais precisa a partir de Galileu, estabeleceu, então, a identificação do espaço físico com o espaço infinito da geometria euclidiana, onde e possível pensar um corpo isolado do resto do Universo, ingrediente do princípio da inércia. O movimento e o repouso são, então, considerados como estados em um mesmo nível existencial, ontológico.

Em linguagem moderna, pode-se expressar a equivalência ontológica dos estados de repouso e de movimento retilíneo e uniforme dizendo-se que a mecânica clássica admite o grupo de Galileu: já que o repouso não precisa de nenhuma causa para se manter, o mesmo acontece com um movimento retiiíneo e uniforme que se deduz do estado de repouso pela aplicação de uma transformação desse grupo.

Em 1543, Copérnico retirou a Terra de seu repouso abaixo do Paraíso e lançou-a ao espaço. Entre 1609 e 1619, Kepler formulou as leis de movimento dos corpos celestes, destruindo, portanto, a hierarquia das esferas do Cosmo fechado de Aristóteles. E Galileu, observando o Céu com os primeiros telescópios, descobriu novos corpos celestes não previstos no modelo aristotélico preestabelecido por Deus. Descobrindo o princípio da inércia, assim como a lei da queda livre dos corpos, Galileu abriu o caminho para a grande síntese de Newton e, como Pitágoras e Platão, declarou que o livro da natureza está escrito em linguagem matemática.

O sistema do mundo newtoniano

A física moderna adquiriu, então, sua primeira forma com o sistema de Newton, em seus Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. Sua equação do movimento, que estabelece que a força é o produto da massa do corpo por sua aceleração, esteve na base da física até a descoberta da mecânica quântica em 1925. Sua lei de gravitação universal foi a intuição de um gênio que completou a tarefa de Galileu assimilando os movimentos dos corpos terrestres aos movimentos dos corpos celestes submetidos a uma mesma força, a força de gravitação. O fato de que essa força fosse transmitida instantaneamente — uma ação à distância — era certamente um mistério que inquietou o próprio Newton. Os sucessos da mecânica newtoniana, os trabalhos de pesquisa de homens como Maupertuis, D'Aiembertt, Euler, Lagrange, Laplace, fizeram esquecer a dificuldade de interpretação da força de gravitação. Segundo Ernest Mach, a atração gravitacional perdeu seu caráter de incompreensão extraordinária para ter apenas uma incompreensão ordinária.

No século XVIII, graças à filosofia de Locke e às cartas filosóficas de Voltaire, o newtoniano se tornou o dogma do sistema físico do mundo.

O sistema de Newton incorporou as idéias atômicas. Pois, como se pode notar, não mencionei até aqui as geniais intuições dos atomistas gregos do século IV a.C., de Leucipo e de Demócrito, influenciados pelo monismo de Parmênides e de Zenão. Talvez, com a preocupação de fazer uma síntese entre os sistemas de Parmênides e de Empédocles, eles postularam que todas as coisas são compostas por átomos que se movem incessantemente no vazio, no espaço vazio; que os átomos são indivisíveis, que sempre estiveram em movimento e que estarão sempre em movimento. Os atomistas admitiam o determinismo: nada pode acontecer por acaso. O sistema filosófico de Leucipo e de Demócrito foi retomado por Gassendi no começo do século XVII; ele é um dos inspiradores da física moderna.

Está claro que essa concepção se associava harmoniosamente ao sistema do mundo de Galileu e Newton, sendo as leis do movimento de Newton responsáveis pelo movimento dos átomos (Quadros VI e VII).


(Devemos destacar o físico inglês Robert Boyle, que tentou opor o atomismo ao sistema de Galileu-Newton: em vez de ser escrito em linguagem matemática, o livro da Natureza seria um romance imaginado em termos corpusculares.)

Pela primeira vez, um antigo dualismo conceituai, que consistiria na oposição entre as noções de um e de vários adquire uma forma explícita e precisa do objeto material e de seu movimento e que agora se exprime no dualismo matéria-força (Quadro VIII).


A noção de campo

Chegamos agora a uma outra noção fundamental da física moderna, a noção de campo, resultante dos trabalhos experimentais sobre a eletricidade e o magnetismo, e cuja forma final devemos a Faraday, Maxwell e Lorentz. A união da óptica com a eletricidade e o magnetismo, baseada nas pesquisas de Galvani e Volta, de Oersted e Ampère, foi a grande síntese concluída pelas equações de Maxwell. Na época, muitos físicos, impregnados pela imagem mecânica do mundo conforme Newton, tentarão interpretar essas equações segundo certos modelos mecânicos. Heinrich Hertz, um dos mestres desses ensaios, afirma em 1894: "Todos os físicos concordam em considerar que a tarefa da física é reduzir os fenômenos naturais às leis elementares da mecânica".

A reação a essas tentativas foi, dez anos mais tarde, expressa nesta frase de W. Kauffmann: "Em lugar de todas essas tentativas sem sucesso, visando principalmente a descrever mecanicamente os fenômenos elétricos e magnéticos, não poderíamos reduzir a mecânica ao estudo das reações elétricas? Se todos os átomos da matéria consistem em um aglomerado de elétrons (segundo a tese de J. J. Thomson), sua teoria resulta portanto dessa estrutura".

No Quadro IX, é Einstein que descreve o caráter revolucionário da teoria de Maxwell; ele compara o papel de Faraday e Maxwell ao de Galileu e Newton. E, no Quadro X, Boltzmann caracteriza a noção de modelo em física moderna.



No começo do século XX, a dualidade matéria-força era expressa, de um lado pelas equações de Lorentz sobre os elétrons e, de um outro lado, pelas equações de Maxwell sobre o campo eletromagnético que determina a força que age sobre esses elétrons (Quadro XI).


Chegamos, assim, ao final do século XIX e começo do XX, com a descoberta do elétron por J. J. Thomson. Thomson, com a teoria de Lorentz que procurou descrever a matéria e seus átomos a partir de sua estrutura eletrônica.

Segundo vários físicos dessa época, as leis fundamentais da Natureza eram bem conhecidas; aos futuros físicos, restaria apenas aplicá-las aos diversos fenômenos para descrevê-los — um trabalho não mais de ciência pura, mas, antes, de ciência aplicada, de tecnologia.

Planck, Einstein, Lorentz, Poincaré

Foi exatamente nesse momento que dois homens de talento descobriram as bases de suas novas teorias, revolucionárias em relação à física clássica, e que somente elas poderiam explicar certos fenômenos novos que escapavam à explicação pelas idéias estabelecidas.

Como se sabe, Planck empenhou-se no problema da distribuição espectral da energia da radiação em equilíbrio térmico em uma cavidade fechada e opaca — o problema da radiação do corpo negro — e a solução que encontrou levou-o a estabelecer os fundamentos do modelo quântico de Bohr, modelo que, por sua vez, encontrou seus fundamentos matemáticos em 1925, na mecânica quântica.

Se o trabalho de Planck, em 1900, rompeu, apesar de suas aspirações, com a física clássica, foi consolidado por Einstein em 1905, com sua teoria dos fótons.

Ainda em 1905, como todos sabem, Einstein lançou as bases da teoria da relatividade restrita.

Tomou-se conhecimento, nessa época, de que as equações de Maxwell e as equações de Lorentz não eram invariantes em relação ao grupo de Galileu (pois não admitiam o grupo da mecânica clássica). Enquanto esse grupo implica uma velocidade da luz que depende do estado dó movimento da fonte, as equações de Maxwell implicam que a velocidade da luz no vazio não tem essa dependência. Enquanto Lorentz buscou fórmulas de transformação de coordenadas que implicariam uma contração das distâncias necessárias para explicar certas experiências (como a de Michelson-Morley), Poincaré, como bom matemático que era, estabeleceu as transformações lineares e não-homogêneas das coordenadas espaciais e do tempo, que deixam invariantes as equações de Maxwell.

Einstein e a física relativística

O mérito de Einstein foi resolver essas questões enquanto físico. Ele mostrou que a invariância da simultaneidade de fenômenos distantes no espaço ordinário acarreta a existência de sinais com uma velocidade infinita, uma hipótese, aliás, da mecânica clássica. Se abandonarmos essa hipótese, inspirada pela teoria dos campos de Maxwell e se postularmos a existência de uma velocidade de sinal luminoso finita, máxima, o tempo deve, então, se transformar, exatamente como as coordenadas, quando mudamos de sistema de referência. Ele chegou, pois, às mesmas fórmulas não-homogêneas do grupo de Lorentz, estabelecidas matematicamente por Poincaré e essencialmente descobertas por Lorentz — o grupo de transformação que hoje chamamos grupo não-homogêneo de Lorentz ou grupo de Poincaré. O grande mérito de Einstein foi discutir a fundo, e com extraordinária eloqüência, o significado físico profundo do grupo de Poincaré e de suas conseqüências. Devemos-lhe, ainda, a idéia de interrogar-se acerca das simetrias como elemento fundamental de uma teoria, ao invés de procurar deduzi-las das equações do movimento, se estas forem conhecidas. Lançou, assim, as bases físicas da teoria da relatividade e, em particular, estabeleceu a famosa relação de equivalência entre massa e energia — proposta com profundas implicações filosóficas e que teve espetacular demonstração na física nuclear e na física das partículas.

O princípio de relatividade restrita afirma que é impossível, através de experiências físicas realizadas dentro de um laboratório fechado, dizer onde esse laboratório se situa no espaço de três dimensões, qual é a orientação de sentido dos três eixos nesse espaço; é, ainda, impossível distinguir uma origem absoluta do tempo inicial das experiências realizadas dentro do laboratório e não se pode detectar uma velocidade constante do laboratório — não se sabe se ele está em repouso ou em movimento em relação a um outro laboratório. Esse princípio, evidentemente, pressupõe que estamos mergulhados em uma parte do Universo onde essas condições se realizam. Um laboratório fechado, situado ria fronteira do Universo, caso este fosse fechado, deveria ser capaz de detectar sua posição.

Foi este o grande mérito de H. Minkowski: introduzir um formalismo baseado em cálculo tensorial quadrimensional, que se revelou a forma natural da teoria da relatividade e, segundo o qual, as transformações de Poincaré traduzem uma espécie de rotação seguida de uma translação no espaço-tempo — espaço constituído pelo tempo e pelas três coordenadas espaciais. Nesse formalismo, as equações relativísticas revestem-se de uma forma concisa e elegante (Quadro XII).


Da teoria da relatividade restrita, herdamos, portanto, o decisivo estabelecimento da noção de simetria das leis físicas. Se as leis físicas estabelecem relações entre variáveis associadas a objetos e a fenômenos, o princípio da relatividade exerce um controle sobre as leis físicas, tendo o caráter de uma superlei. E, dessa teoria, resulta a noção de relatividade de simultaneidade e das distâncias, da energia e de impulsão, dos campos elétricos e magnéticos.

Einstein e a teoria relativística da gravitação

Após a conclusão da teoria de relatividade, Einstein concentrou seus esforços em generalizá-la, ou seja, em responder à pergunta feita por Ernest Mach: por que os sistemas inerciais se distinguem fisicamente de todos os outros sistemas de coordenadas? Será que a independência das leis da física em relação ao estado de movimento do laboratório deve ser restrita aos movimentos retilíneos e uniformes? Ao mesmo tempo, Einstein tentava tratar o campo de gravitação segundo a teoria da relatividade restrita. Enquanto a teoria de Newton era naturalmente não-relativística (Quadro VII), as equações do campo eletromagnético e as equações dos elétrons clássicos eram incorporadas de uma maneira natural no quadro da relatividade restrita (Quadro XII). A tentativa de generalizar a equação de Poisson em uma equação de D'Alembert — sendo o campo e sua fonte escalares, invariantes relativísticas — não obteve sucesso, inclusive, porque a igualdade " massa de inércia-massa de gravitação" não podia ser nela estabelecida de maneira simples e porque a densidade de massa não é um componente de um quadrivetor nem um escalar.

A comparação das forças ditas fictícias (Coriolis e centrífugas) em um sistema em rotação com uma força de gravitação homogênea, e a possível eliminação delas por uma escolha apropriada de sistemas de referência, conduziu Einstein, nos dois casos, à descoberta do princípio de equivalência. Eis o enunciado desse princípio: é impossível, por meio de experiências físicas realizadas dentro de um laboratório fechado, dizer se esse sistema está em movimento uniformemente acelerado com uma aceleração , para cima, sob nenhum campo de gravitação, ou se, pelo contrário, o laboratório é um sistema de inércia sobre o qual age um campo de gravitação homogêneo, para baixo, com os corpos caindo com aceleração , onde || = || . Esse princípio só é possível se houver uma igualdade exata entre a massa de inércia e a massa gravitacional.

A partir dessas reflexões sobre o elevador que cai em queda livre, Einstein recorreu ao formalismo de Minkowski para dizer que, em geral, quando subordinamos a distância infinitesimal entre dois pontos a um sistema arbitrário, essa distância se expressa segundo a equação abaixo, onde as funções , de ponto e do tempo, são os componentes de um tensor simétrico. Graças a Marcel Grosmann, Einstein conheceu a geometria de Riemann e o cálculo diferencial absoluto de Ricci e Levi Civita. E sua grande intuição criadora o fez erigir como postulado que o campo de gravitação é o tensor . Ao mesmo tempo, ele pesquisou as variáveis e as equações do espaço físico. Usando suas próprias palavras: " Conhecemos, com certeza, um caso especial, o de um 'espaço livre de campo" tal como é considerado na teoria da relatividade restrita". Esse tipo de espaço é caracterizado pela distância elementar . Dentro de um sistema arbitrário, essa quantidade pode ser assim escrita:

"Se, após essa transformação, as derivadas primeiras de não se anularem, existe um campo gravitacional em relação a esse sistema..."

Visto que a densidade de massa, fonte do campo de Poisson, é equivalente a uma densidade de energia segundo a relatividade restrita e como esta a caracteriza como um dos componentes de um tensor, o tensor energia-pulsão , fica claro que a nova equação deve conter como fonte. A parte diferencial que substituiria o laplaciano do postulado newtoniano deveria, então, ser um tensor de segunda ordem, contendo derivadas segundas do potencial gravitacional , assim como de suas derivadas primeiras, uma equação do tipo:

Após vários anos de pesquisas, de tentativas e erros, Einstein finalmente descobriu sua famosa equação em 1915. Ele identificou ao campo de gravitação e, na geometria de Riemann, encontrou as ferramentas para descobrir a forma de . Trabalhando praticamente sozinho, conduzido por sua excepcional imaginação, foi levado a aplicar o cálculo diferencial absoluto a seu mundo físico de quatro dimensões; juntamente com a geometria de Riemann, esse calculo lhe forneceu os elementos geométricos para sua equação do campo gravitacional.

Ao longo de suas pesquisas, uma intuição tomava corpo em seu espírito; de acordo com ela, o espaço físico está dinamicamente associado à gravitação, a dinâmica gravitacional é descrita pela geometria do espaço. Como encontrar essas variáveis e as equações que traduzem matematicamente essa intuição? O Quadro XII nos apresenta uma síntese das equações da teoria. E de fundamental importância a condição que, em uma vizinhança suficientemente pequena, possamos estabelecer um sistema de referência (tangencial) localmente inercial, ou seja, onde desapareçam localmente os efeitos da gravitação. E a forma geral do princípio de equivalência. Desse sistema, podemos, então, passar a um outro igualmente inercial por intermédio de uma transformação de Lorentz local. E desse modo que introduzimos a noção de espinor em relatividade geral: invariante em relação a uma transformação geral de coordenadas, mas se transformando como espinor de Dirac sob as transformações locais de Lorentz.

A teoria relativista da gravitação previu efeitos que foram observados de acordo com a predição, entre os quais o deslocamento do periélio de Mercúrio, a dependência do andamento dos relógios e das distâncias em relação à gravitação. É ela a base da cosmologia moderna. Outros efeitos, tais como a existência de singularidades, os buracos negros, as ondas gravitacionais, são objeto de pesquisa e estudo.

A relatividade geral imprimiu em Einstein uma concepção matemática do conhecimento físico, evocando, de certa maneira, as concepções de Pitágoras e Platão.

Uma síntese similar é concluída nas teorias dos campos de calibre. O postulado segundo o qual todas as interações são descritas por tais campos leva a uma síntese matéria-força, visto que os campos de calibre são exigidos pelo princípio segundo o qual a equação da matéria é invariante em relação a transformações de fase local pertencentes a um certo grupo.

Eis o que escreve em um ensaio sobre o método da física teórica: "Os físicos (do tempo de Newton) estavam antes, em sua maioria, imbuídos pela idéia de que os conceitos fundamentais e as leis fundamentais da física não são, no sentido lógico, invenções livres do espírito humano, mas podem ser deduzidos das experiências por 'abstração', ou seja, por um caminho lógico. Na verdade, foi apenas a teoria da relatividade geral que claramente reconheceu a inexatidão dessa concepção. Ela demonstrou que podíamos, com um fundamento bastante afastado do fundamento de Newton, explicar a respectiva área dos fatos experimentais de maneira até mais satisfatória e mais completa que o próprio fundamento de Newton permitiria". E mais adiante: " Segundo nossa experiência, até hoje, temos o direito de estar convencidos de que a natureza é a realização do que podemos imaginar de mais simples matematicamente. Estou persuadido de que a construção puramente matemática nos permite encontrar esses conceitos e os princípios que os ligam entre si e que nos fornecem a chave da compreensão dos fenômenos naturais. Os conceitos matemáticos utilizáveis podem ser sugeridos pela experiência, mas não podem, em hipótese alguma, ser dela deduzidos". Eis as linhas gerais da grande conclusão de Einstein em física, eis suas preocupações epistemológicas (Quadro XIII); o Quadro XIV recapitulará essa grande aventura epistemológica.



Não menciono sua substancial obra na área política, também não me delongarei em discutir suas concepções sobre o caráter probabilístico do conhecimento que a mecânica quântica postula, cujos fundamentos esclareceu muito bem nas discussões que manteve com Niels Bohr.

Viver na época de Einstein é um privilégio para todos nós. Particularmente, tive o privilégio, quando me dirigia da Universidade de Princeton ao Institute for Advanced Study para discutir com Pauli, com quem eu trabalhava em 1944 e 1945, de encontrar Einstein pelo caminho, que ele percorria toda tarde, entre o Instituto e sua casa em Mercer Street. A imagem de Einstein, simples e sorridente, parecia irradiar como um profeta saído das páginas de livros sagrados. Nós o víamos sempre no teatro Mc Cornick do campus de Princeton, nos concertos de Wanda Landowska, de Rudolf Serkin, de Adolphe Bush, do famoso quarteto de Budapeste. Einstein também ia às conferências no Instituto e na Universidade, entre as quais a de Bertrand Russell, sobre o confronto que inevitavelmente se produziria entre os Estados Unidos e a União Soviética após a Guerra. E, no Fine Hall, seu seminário sobre a última forma da teoria da unificação atraiu grande audiência. Para mim foi um privilégio vê-lo e ouvi-lo, ao lado de Hermann Weyl, Von Neumann e Dirac. Foi um privilégio ter sido amigo, nessa época e alguns anos mais tarde, de Wolfgang Pauli e Robert Oppenheimer, de Oscar Klein e Hideki Yukawa, de Richard Feynmann, do matemático Salomon Lefschetz e do humanista Américo Castro, de Sandoval Vallarta, Marcos Moshinsky, de Abraham Pais e Jack Steinberger, de Josef Maria Jauch, de C. N. Yang e Ning Hu. Sua obra está certamente impregnada do que Aristóteles dizia sobre os Pitagóricos: "os elementos dos números são os elementos de todas as coisas e o céu inteiro é uma escala musical". E o sutil Deus que Einstein invocava como o geômetra do Universo talvez fosse também o Deus das cantatas de Bach.

José Leite Lopes é físico exerceu cargo de secretário-adjunto da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. Foi professor-visitante da USP em 1984 e um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas em Física (CBPF). É Professor Emérito da Universidade de Strasbourg I.

Tradução de Belkiss Jasinevicius Rabello. O original em francês encontra-se à disposição do leitor no IEA/USP para eventual consulta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2006
  • Data do Fascículo
    Ago 1991
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