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As transformações sistêmicas na Europa do Leste

EUROPA DO LESTE

As transformações sistêmicas na Europa do Leste

Lenina Pomeranz

O RELATÓRIO ANUAL de 1996 do Banco Mundial (1 1 World Development Report 1996. From Plan to Market. Washington, 1996. ), recém-publicado, é dedicado totalmente à generalização das experiências sobre o processo de transformações por que vêm passando os países da Europa Central e do Leste, além de China e Vietnã. E a cnn acaba de introduzir um programa semanal de notícias sobre Negócios no Leste. Sinais de que os referidos países atravessaram o Rubicão e ingressaram no mundo capitalista. Como, porém, em que condições? Que papel lhes é destinado no sistema capitalista globalizado?

A considerar o noticiário televísico, eles aparecem como novos mercados emergentes, proporcionando amplas oportunidades ao abundante capital disponível internacionalmente, tanto no que se refere ao mercado de papéis, quanto em relação aos investimentos diretos, nas áreas que despontam como propulsoras da recuperação econômica de grande parte deles, após a fase depressiva que marcou o ínicio da transformação. O relatório do Banco Mundial é, entretanto, mais ambicioso e contém não só uma tentativa de avaliar o processo de transformação em seus caminhos e resultados, mas também uma agenda para o seu prosseguimento no futuro. De todo modo, em ambos os casos, o foco é operacional e se distingue - ainda que nela se apoie - da ampla literatura acadêmica que sobre o assunto se tem escrito, a partir de pesquisas sobre os vários aspectos desse processo.

Esta ampla literatura não é sem sentido. Como se diz na introdução do relatório referido, "este vasto experimento [a tentativa de construção de um sistema alternativo LP] transformou o mapa econômico e político do mundo e demarcou o curso de muito do século XX. Agora a sua falha pôs em ação uma transformação identicamente radical, quando esses mesmos países mudam de rumo, buscando construir mercados e reintegrar-se na economia mundial". Dito de outra forma, no processo de transformação do próprio capitalismo de hoje, a inserção de quase um terço da população mundial, vinda de uma experiência de organização sócio-econômica distinta, tem um significado que não pode ser ignorado, e que ultrapassa os objetivos operacionais anteriormente referidos. Mormente entre os países que, como os do Leste, se incluem entre os retardatários e enfrentam a questão de como inserir-se na economia globalizada.

Não é o que ocorre, infelizmente, em nosso país. Não há, ao que se saiba - e portanto com a visibilidade que seria desejável - pesquisadores que se dediquem especificamente ao tema, exceção do núcleo formado pelo CEPSt - Centro de Estudos sobre os Países Socialistas em Transformação, da USP. Este núcleo edita um boletim trimestral, Sociedades em Transformação, e não obstante as enormes dificuldades que enfrenta, especialmente para a obtenção de recursos de pesquisa, vem lentamente construindo um espaço especializado de investigação, através da acumulação de documentação e dados e do estabelecimento gradativo de intercâmbio com pesquisadores dos países estudados, assim como de instituições análogas dos países ocidentais. A edição deste dossiê, que só pode ser realizada graças à existência de tal núcleo, constitui, portanto, um fato relevante que merece ser destacado. O Instituto de Estudos Avançados, através de sua revista, inclue-se no debate acadêmico sobre o assunto, revelando que, ao contrário do que pensam certos setores de nossa Universidade, ele tem sim relevância para o aprendizado que pavimenta o caminho da construção e da transformação social. E que a USP, por seu núcleo mais avançado, dele não se distancia.

Trata-se, naturalmente, de um primeiro esforço. E, por ser necessariamente restrito, teve de preocupar-se em apontar os aspectos do debate que parecem ser relevantes, levando em conta, ao mesmo tempo, as possibilidades que a estreiteza em que se encontra a pesquisa no Brasil permitem. Nestes termos, como abordar o tema?

A primeira questão consistiu em delimitar o Leste. De forma ampla, ele envolve doze países da Europa Oriental, mais os três países bálticos, além da Rússia e dos países que conformam a Comunidade dos Estados Independentes (CEI). O processo de transformação neles se desenvolve de forma bastante desigual, tanto em relação à sua amplitude e profundidade, quanto à sua forma e ritmo. O ideal seria, portanto, incluir no dossiê casos que, em suas diferenças, permitissem comparações e, eventualmente, generalizações sobre o porquê das diferenças. Não só o espaço, mas também as limitações anteriormente referidas não permitiram fazê-lo. O critério consistiu, então, em se concentrar em países sobre os quais se dispôs de mais literatura e com os quais já se mantém algum grau de intercâmbio, que facilitasse a obtenção de artigos originais. Dessa forma, não se deixou de levar em conta diferenças, particularmente se se considerar Polônia, República Tcheca e Hungria, por um lado, e Rússia, por outro. Neste país, o sistema socialista - ou a tentativa de implantá-lo, se se preferir - estabeleceu-se em bases revolucionárias, no contexto, conforme artigo do professor Csaba, da primeira Guerra Mundial. Estabeleceu-se, num processo de tentativa e erro, em meio a profundos conflitos políticos, a partir das características econômico-sociais e culturais da Rússia da época; e manteve-se rígido, politicamente, condicionando a essa rigidez as tentativas de reforma econômica lá empreendidas ao longo dos últimos decênios de sua existência, mais precisamente após a morte de Stalin; além de imperial e fortemente militarizado, no contexto da guerra fria. Já Polônia, Hungria e República Tcheca tiveram o sistema implantado de maneira forçada, como resultado da Segunda Guerra Mundial e, utilizando novamente o artigo do professor Csaba, condicionado pelos entendimentos realizados em Yalta, decisivos, no seu entender, no estabelecimento dos limites das fronteiras do sistema mundial do socialismo na Europa. Não se pode subestimar a influência das lutas nacionais contra a invasão nazista, realizadas com a participação da militância comunista e a vitória soviética sobre o nazi-facismo, na configuração política desses países no imediato pós-guerra; mas é indiscutível o caráter impositivo da adoção do modelo soviético de organização econômico-social que se lhe seguiu. O entendimento desse caráter, assim como o registro da resistência a ele, expressos nos levantes dos anos 50 e 60 e nos movimentos da dissidência dos anos seguintes, constituem elementos indispensáveis para se entender o aparentemente paradoxal e tão rápido desmoronamento dos sistemas políticos desses países, observado a partir de 1989; assim como o sentimento anti-soviético dele resultante, o qual, por sua vez, permite que se associe a ausência do "invasor" e/ou de sua ameaça, à mudança do comportamento eleitoral das populações desses países, para além de simples representação de protesto e descontentamento em relação às conseqüências das reformas econômicas; ou seja, destilado o sistema de seu "componente soviético", o passado não pareceria tão ruim.

A segunda questão consistiu em identificar os aspectos relevantes a serem abordados. Aqui, as limitações anteriormente referidas mostraram-se mais sérias, devido à própria complexidade do processo. Em primeiro lugar, trata-se de um processo de transformação sistêmica; isto é, trata-se de uma transformação do sistema econômico-social, que se costuma caracterizar de maneira estreita, muitas vezes, somente no plano econômico, pela passagem da economia planejada centralmente para a economia de mercado. Em realidade, trata-se de um processo muito mais profundo e mais abrangente que envolve, além de mudanças culturais e de comportamento, também a construção da democracia. E de um processo que tem, a demarcá-lo, as características históricas e nacionais próprias a cada um dos países envolvidos, recuperadas com o irromper do processo. Essas características são mais importantes em alguns países que em outros; basta para ressaltá-las o conflito étnico na antiga Yugoslávia e o papel desempenhado pela questão nacional no desmoronamento da União Soviética. Assim, a rigor, dever-se-ia ter artigos que envolvessem tanto questões econômicas, quanto político-institucionais e sócio-culturais. O que é, obviamente, impossível nos limites do dossiê. Em segundo lugar, como já foi dito antes, trata-se de um processo que se desenvolve de forma muito desigual, tornando mais relevantes ora uma, ora outra das questões referidas nos diferentes países. O critério foi, portanto, o de buscar as questões mais gerais, comuns ao processo de transformação de todos eles e que estão no centro dos debates atualmente.

Num primeiro momento desse processo, juntamente com as grandes indagações a propósito das causas da debacle do sistema, as questões relevantes foram duas : a institucionalização democrática e a estratégia de transformação do sistema econômico.

Pouca ou insuficiente atenção foi dada às causas da derrocada do sistema. Afora alguns cientistas sociais dos próprios países, com base em sua própria experiência, e poucos outros estudiosos do Ocidente, dedicados ao acompanhamento da sociedade socialista, pouco se escreveu a propósito delas (2 2 Alguns que podem ser citados apenas para referência, são: Brus, W. & Laski, K. From Marx to the Market. Socialism in search of an economic system. Oxford, Claredom Press, 1989. Dembinski, Pavel H. Les économies planifiées. La logique du système. Paris, Ed. du Seuil, 1988. Kornai, Janos. The socialist system. The political economy of Communism. New Jersey, Princenton Un. Press, 1992. Kurz, Robert. O colapso da modernização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. Andreff, W. La crise des économies socialistes. La rupture d'un système. Grenoble, Presses Univ. Grenoble, 1993. Sapir, Jacques. L'économie mobilisée. Paris, La Découverte, 1990. Simonian, N.A. Shto my postroili ( O que construímos). Moscou, Progress, 1991. Entre as coletâneas de artigos sobre o assunto, vale citar os editados no Brasil, ainda que enfocando a problemática mais ampla do socialismo, frente ao fim da experiência histórico-concreta. Uma é a organizada por Robin Blackburn. Depois da queda. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. Outra a organizada pelo professor Emir Sader. O mundo depois da queda. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995. ). Talvez por que faltem elementos de análise tanto no plano econômico quanto no político, devido ao caráter ainda fechado das informações, neste último caso, e às imprecisões que notoriamente caracterizam as informações de natureza econômico-social. Talvez por que a proximidade histórica é muito grande, e é necessário tempo não só para a realização das investigações, como para minimizar o envolvimento ideológico mais imediato na avaliação dos dados e fatos históricos. As indagações continuam, portanto, de pé.

Nesse sentido, pareceu importante incluir neste dossiê uma análise mais recente em tal direção. O texto incluido é o do doutor László Csaba, professor e economista húngaro, autor de vários livros e contribuições sobre o tema, diretor de Kopint-Datorg, um instituto devotado a pesquisas sobre as transformações em curso no Leste Europeu, com ênfase na Hungria (3 3 Convém ressaltar que, embora dedicado ao estudo dos países do Leste, o professor Csaba acompanha também o processo de transformação dos demais países pós-socialistas. Ver a propósito The political economy of the reform strategy: China and Eastern Europe compared. Budapest, Kopint-Datorg Discussion Papers, n. 34, Nov. 1995. ). É um texto mais abrangente do que o propósito para o qual foi selecionado; o autor não se restringe à análise da crise do passado, mas procura, a partir dela, assinalar o que tem de peculiar o processo de transformação dos países dessa parte do mundo e criticar as abordagens e estratégias que não levam em conta essa peculiaridade na elaboração da estratégia da transformação. É assim, um texto que serve também para dar uma visão mais sistêmica do processo e, como tal, serve aos múltiplos propósitos deste dossiê.

A institucionalização democrática - a primeira das questões anteriormente assinaladas - processou-se em conformidade com a evolução do processo político antes da ruptura e materializou-se com a mudança dos grupos políticos no poder e com as mudanças constitucionais e legais que viabilizaram o funcionamento de instituições políticas democráticas - o sistema multipartidário de representação e a realização de eleições. O processo não está concluído, e sua evolução é bastante condicionada pelo jogo de forças da arena política de cada país. O sistema político está ainda longe de ser perfeito, os instrumentos legais que complementam as normas constitucionais ainda não estão todos devidamente estabelecidos, mas já se pode dizer, com base na observação da evolução política desses países, que o processo segue o seu curso. Mesmo na Rússia, onde a institucionalização democrática se faz mais lenta e tumultuadamente, a realização das últimas eleições e a preservação do sistema político tal qual estruturado, frente às deficiências de saúde do presidente Yeltsin, permite que se mantenha a afirmação: o processo democrático foi introduzido e, ainda que com ranço autoritário e com todas as suas imperfeições e deficiências, segue o seu curso, não correndo o risco de retrocesso. Nesse país, as forças políticas identificadas com o sistema anterior aceitaram as regras do jogo democrático, e uma sua volta eventual ao poder, no marco dessas regras, com alguma diferença do que ocorre nos países em que isso aconteceu, não deve alterar o curso da democratização da sociedade (4 4 Ver a propósito, Notas e informações. Sociedades em Transformação, ano iii, n. 1, julho-setembro de 1996. ). Com isso, reduz-se o interesse maior pela questão da transição democrática. Entretanto, se no tocante à Polônia, à Hungria e à República Tcheca, o curso seguido parece mais "normal", face ao que foi dito anteriormente sobre o caráter impositivo do sistema, no caso da Rússia, mais especificamente da ex-urss, várias indagações a propósito do curso de democratização seguido e de suas relações com as reformas estruturais no plano econômico, permanecem; seja quanto à bastante debatida e controvertida questão da sincronização de ambos os processos, isto é, da viabilidade de conduzir as reformas econômicas num regime democrático, sem derrocada do sistema - neste caso contrapõe-se o curso soviético ao chinês, segundo o qual as transformações econômicas se realizam sem transformações no plano político; seja quanto às causas mais profundas da rigidez política do sistema soviético - neste caso, só podem ser parciais e insatisfatórias as respostas relacionadas com a Guerra Fria ou com a defesa dos interesses e privilégios da nomenclatura; trata-se, mais apropriadamente, da natureza da imbricação entre o econômico e o político no modo de funcionamento do sistema soviético, no qual o monopólio do poder e a politização/ideologização do econômico assume um papel fundamental, ainda que muitas vezes retórico. Na visão de Dembinski (1988) (5 5 Ver nota 2. ), essa imbricação é da lógica do sistema, o que torna as reformas econômicas impossíveis, sem a própria derrocada política do mesmo.

Como se pode observar, trata-se de questões mais profundas, que fogem ao aspecto político stritu senso, e que, como as indagações sobre as causas do desmoronamento do sistema, estão atualmente aguardando maior atenção.

A outra questão, relativa à estratégia da transformação econômica, é a mais abordada na literatura. E, não obstante as diferenças observáveis, envolve aspectos que, em algum sentido, são bastante familiares à problemática da modernização também no Brasil - a relação entre estabilização e reformas estruturais, o modo de inserção na economia internacional, entre outros. De todo modo, convém traçar o quadro geral dessa estratégia, ainda que em linhas gerais, a fim de situar as questões que estão sendo objeto de debate nesta fase de sua implantação e justificar, assim, a seleção dos demais artigos.

Este traçado pode ser descrito por dois eixos principais entrelaçados: um relacionado com a estabilização macroeconômica, envolvendo liberalização - de preços e de comércio exterior - e controle monetário e fiscal; outro, focalizado na privatização - ou na definição dos direitos de propriedade - e na constituição e solidificação do sistema financeiro, ambos estreitamente vinculados. A conformação desses eixos estratégicos segue, em princípio, o caminho adotado pelos países considerados para a sua implantação, o primeiro, de certa forma, num horizonte de mais curto prazo que o segundo. E pour cause; mesmo considerando-se a díficil situação econômica que constituiu a base de partida para as mudanças, a perspectiva política parece, nesse aspecto, fundamental: a liberalização, particularmente dos preços, teria maior probabilidade de assimilação na forma de um choque provocado no bojo das mudanças políticas, referendadas pelas manifestações populares nos países considerados, inclusive na própria Rússia, onde, então ainda na urss, realizaram-se em contraposição à tentativa de golpe encetada pelos dirigentes do partido no poder. Na Rússia, com mais razão, vistas as dificuldades e a impossibilidade de ajustar preços durante os longos anos da perestroika, devido à reação popular. A liberalização do comércio externo, já de certa forma iniciada com a quebra de seu monopólio, teria um efeito amortecedor, contrabalançando os efeitos da inflação corretiva, com o "enchimento das gôndolas" dos supermercados, então vazias por conta da desorganização econômica e das incertezas que cercavam o processo político no estágio final da perestroika. E, sem dúvida, em todos os países considerados, por conta do fator político, criou-se a panacéia do mercado. Ou, o que, na avaliação de um grupo de especialistas internacionais, foi considerado o erro principal na introdução das reformas e a causa de não terem produzido os resultados esperados: a crença ou "a idéia de que o mercado pode ser introduzido simplesmente pela liberação dos preços e da produção e pela criação da propriedade privada", como se fora um "deus ex-machina ou uma força misteriosa operando através de uma mão invisível" (6 6 Cabe, a propósito, mencionar o documento preparado pelo Grupo AGENDA, formado por scholars de diferentes países do Leste e do Ocidente, The market shock. An agenda for the economic and social reconstruction of Central and Eastern Europe, editado por Jan Kregel, Egon Matzner e Gernot Grabher, sob os aUSPícios da Academia Austríaca de Ciências e do Internacional Institute for Peace, de Vienna, em 1992. ), esquecendo-se que o mercado é uma instituição social, cuja criação e conformação são resultado de longo processo. Os resultados obtidos e que se prolongaram posteriormente, foram basicamente a queda da produção e do emprego, - deste, na realidade, em menor proporção que a da produção -, além da pauperização de parcela considerável da população, resultante da drástica redução de seu poder aquisitivo e da "queima" de suas poupanças provocadas pela inflação corretiva. Mas a discussão em torno deles centrou-se no ritmo de sua introdução - nas comparações entre as estratégias gradual ou de choque - e não na perspectiva institucional mais ampla, relacionada com a criação do contexto sócio-econômico do mercado. O que, naturalmente, trouxe à tona, uma nova questão: a de se o processo político, tal como se desenrolou, por um lado, e a situação econômica de partida, por outro, propiciavam as condições necessárias para uma ação voluntária e consciente de transformação institucional. Passados alguns anos, observando-se recuperação econômica dos países aqui considerados, em particular a Polônia, que constituiu paradigma da chamada "terapia de choque", a discussão sobre as vantagens dessa opção estratégica ganha corpo novamente; mas, é contrabalançada também pela volta do enfoque institucional, como o do professorCsaba, que insiste na necessidade de políticas de longo prazo e na construção institucional; e pela introdução de um novo tema, o do custo social da mesma, que constitui objeto do artigo do professor Kowalik.

Por se tratar de área pouco tratada - segundo o professor Kowalik, esta é uma das problemáticas da transformação sistêmica mais negligenciada ou até mesmo ignorada - e de um dos problemas mais sentidos atualmente no processo de transformação da Rússia, a ele dedicou-se também o artigo do dossiê relativo a esse país. Com esse objetivo, procurou-se a colaboração da economista e socióloga Tatiana Zaslávaskaia, de notoriedade internacional não só por sua postura a favor da reestruturação econômico-social e institucional proclamada pela perestroika, como também por suas análises pioneiras sobre a estrutura social e os interesses dos distintos grupos sociais na ex-URSS, a partir dos quais definiu a posição de cada um deles frente às mudanças. O seu artigo, baseado em pesquisas empíricas de monitoramento das transformações, realizadas pelo Centro Russo de Pesquisas de Opinião Pública, fala por si só, sobre o custo social do processo de transformação. Além dos dados apresentados relativos à distribuição de renda e da conformação das camadas sociais, Zaslavaskaia tece considerações sobre a discrepância entre as aspirações de ganho da população e o seu ganho real: baseando-se na literatura a respeito e nos seus próprios dados, ela se posiciona ao lado dos que acentuam o dramático empobrecimento da população; e assinala as dificuldades de adaptação da população às novas condições sociais: entre as camadas de renda mais baixa, de 86% a 88% dos respondentes entrevistados nas pesquisas referidas consideravam essas condições entre difíceis e insuportáveis.

O quadro dos resultados sociais, referenciado tanto no artigo do professor Kowalik quando no da professora Zaslavskaia, naturalmente, tem sua base não só na política de estabilização econômica, mas resulta também do processo de reformas institucionais na área da economia - a constituição e o modus operandi do sistema financeiro e a privatização em curso não só em ambos os países, Polônia e Rússia, mas em todos os demais. Como foi dito anteriormente, ambas são estreitamente vinculadas entre si, posto que a expansão do sistema financeiro se deve, por um lado, à monetização da economia; mas, por outro lado, à forma da privatização de massa, levada a cabo não só nos dois países considerados, mas praticamente em todos os países ex-socialistas. Esta semelhança nos procedimentos de privatização decorre da extensão da propriedade estatal no antigo sistema e da necessidade de legitimação de sua transferência para grupos sociais, teoricamente capazes de geri-la eficientemente. Assim, a privatização de massa realizou-se através dos vouchers - cheques de privatização - distribuídos graciosamente ou por subscrição subsidiada a toda população, os quais, por intermédio de instituições financeiras e segundo regras estabelecidas em cada país, deveriam se concentrar em mãos dos grupos sociais referidos, no mais das vezes constituídos por membros da antiga nomenclatura estatal.

A rápida expansão do sistema financeiro também encontrou respaldo no processo inflacionário; com o fim deste, ou pelo menos, com o seu arrefecimento, revela-se a debilidade do sistema financeiro e a crise que vem atravessando, tudo indicando que a sua estrutura não é ainda definitiva, estando sujeita aos ajustamentos promovidos pelos bancos centrais dos vários países.

A privatização também não conduziu a uma definitiva estrutura de propriedade; na realidade, os direitos de propriedade estão tão mal definidos e o comportamento das chamadas empresas privatizadas tão pouco alterado, que no relatório do Banco Mundial referido no início deste artigo, se utiliza o termo privatização "em sentido estrito, da alienação de empresas, solo ou outros ativos, pelo Estado e não no sentido mais amplo de qualquer ação que move uma empresa ou economia na direção da propriedade privada ou que tende a tornar o comportamento das empresas estatais mais semelhante ao de entidades privadas". Não obstante a discussão sobre a privatização privilegie outros aspectos - como o controle sobre a gerência (corporate governance), por exemplo -, a questão central, que subjaz aos conflitos de poder no plano político e está estreitamente vinculada à constituição das camadas sociais e à sua posição social, é a da definição dos direitos de propriedade. Menos porque dela dependa a permanência e a solidez do sistema oriundo do processo de transformação, conforme fazem crer certos discursos, e mais por conta dos aspectos sociais que assumem os conflitos em torno dela, como a criminalidade e o abuso de poder, que tornam a transformação menos aceitável pela grande massa da população. De certa forma, quase todos os países em transformação já concluiram a privatização de massa. O balanço está sendo feito e já há alguns textos a propósito. No entanto, as características da privatização de massa são pouco conhecidas do público brasileiro, o qual tem como referências para a questão da privatização, o processo tal qual vem sendo realizado no Brasil. Daí porque se decidiu incluir um artigo bastante detalhado e descritivo sobre o assunto, tendo a República Tcheca como referência. O artigo do doutor Mertlik não só descreve o processo detalhadamente, como ainda indica a estruturação da propriedade dele resultante; tomando o cuidado de assinalar que não se trata de uma estrutura de direitos de propriedade definitiva, mas em silenciosa e invisível mutação, através do mercado financeiro.

O conjunto dos artigos que compõe este dossiê, nos limites de espaço e dadas as condições de desenvolvimento dos estudos sobre a sua temática, buscou fornecer um panorama das questões que constituem objeto das discussões em torno do processo de transformação sistêmica dos países da Europa do Leste. A complexidade desse processo e as suas contradições tornam a tarefa de edição do dossiê especialmente difícil. Não obstante, se espera tê-la de alguma forma realizado, graças à colaboração dos autores, os quais prazerosamente se dispuseram a divulgar os seus trabalhos - inéditos, no caso dos professor Kowalik e da professora Zaslávskaia - em nosso país e em nossa revista ESTUDOS AVANÇADOS. A todos eles, e aos seus tradutores, os nossos agradecimentos.

Notas

Lenina Pomeranz é professora associada da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, pesquisadora da Área de Assuntos Internacionais do Instituto de Estudos Avançados da USP e editora de Sociedades em Transformação.

  • 1
    World Development Report 1996. From Plan to Market. Washington, 1996.
  • 2
    Alguns que podem ser citados apenas para referência, são: Brus, W. & Laski, K.
    From Marx to the Market. Socialism in search of an economic system. Oxford, Claredom Press, 1989. Dembinski, Pavel H.
    Les économies planifiées. La logique du système. Paris, Ed. du Seuil, 1988. Kornai, Janos.
    The socialist system. The political economy of Communism. New Jersey, Princenton Un. Press, 1992. Kurz, Robert.
    O colapso da modernização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. Andreff, W.
    La crise des économies socialistes. La rupture d'un système. Grenoble, Presses Univ. Grenoble, 1993. Sapir, Jacques.
    L'économie mobilisée. Paris, La Découverte, 1990. Simonian, N.A.
    Shto my postroili (
    O que construímos). Moscou, Progress, 1991. Entre as coletâneas de artigos sobre o assunto, vale citar os editados no Brasil, ainda que enfocando a problemática mais ampla do socialismo, frente ao fim da experiência histórico-concreta. Uma é a organizada por Robin Blackburn.
    Depois da queda. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. Outra a organizada pelo professor Emir Sader.
    O mundo depois da queda. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995.
  • 3
    Convém ressaltar que, embora dedicado ao estudo dos países do Leste, o professor Csaba acompanha também o processo de transformação dos demais países pós-socialistas. Ver a propósito
    The political economy of the reform strategy: China and Eastern Europe compared. Budapest, Kopint-Datorg Discussion Papers, n. 34, Nov. 1995.
  • 4
    Ver a propósito, Notas e informações.
    Sociedades em Transformação, ano iii, n. 1, julho-setembro de 1996.
  • 5
    Ver nota 2.
  • 6
    Cabe, a propósito, mencionar o documento preparado pelo Grupo AGENDA, formado por
    scholars de diferentes países do Leste e do Ocidente,
    The market shock. An agenda for the economic and social reconstruction of Central and Eastern Europe, editado por Jan Kregel, Egon Matzner e Gernot Grabher, sob os aUSPícios da Academia Austríaca de Ciências e do Internacional Institute for Peace, de Vienna, em 1992.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 1996
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