REVISTA DAS REVISTAS
O mundo como representação*
Roger Chartier
O editorial da primavera de 1988 dos Annales convida os historiadores a uma reflexão comum a partir de uma dupla constatação. Por uma lado, afirma a existência de uma " crise geral das ciências sociais", que se nota tanto no abandono dos sistemas globais de interpretação, destes "paradigmas dominantes" que foram, durante certo tempo, o estruturalismo ou o marxismo, quanto na rejeição proclamada das ideologias que lhe haviam garantido o sucesso (ou seja, a adesão a um modelo de transformação radical, socialista, das sociedades ocidentais capitalistas e liberais). Por outro lado, o texto não aplica à história a íntegra de tal diagnóstico, pois conclui: "Não nos parece chegado o momento da hipótese de uma crise da história, que alguns aceitam com excessiva comodidade". A história é, pois, vista como uma disciplina ainda sadia e vigorosa, no entanto atravessada por incertezas devidas ao esgotamento de suas alianças tradicionais (com a geografia, a etnologia, a sociologia), e à obliteração das técnicas de tratamento, bem como dos modos de inteligibilidade que davam unidade a seus objetos e a seus encaminhamentos. O estado de indecisão que a caracteriza hoje em dia seria, portanto, algo como o próprio reverso de uma vitalidade que, de maneira livre e desordenada, multiplica os campos de pesquisa, as experiências, os encontros.
Um Diagnóstico Posto em Dúvida
Por que este ponto de partida que postula simultaneamente a crise geral das ciências sociais e a vitalidade preservada da história, mesmo às custas de um ecletismo um tanto anárquico? A estratégia aplicada no texto (tomado o termo aqui, não no sentido de um cálculo racional e consciente, mas designando um ajuste mais ou menos automático a uma situação dada), parece-me comandada pelo cuidado de preservar a disciplina numa conjuntura que se percebe como a marca do declínio radical das teorias e saberes sobre os quais a história tinha fundamentado seus avanços nas décadas de sessenta e setenta. O desafio tinha sido então lançado pelas disciplinas mais recentemente institucionalizadas e triunfantes intelectualmente: a lingüística, a sociologia ou a etnologia. O assalto contra a história pode tomar formas diversas, algumas estruturalistas e outras não, mas todas punham em causa a disciplina nos seus objetos ou seja, o primado conferido ao estudo das conjunturas, econômicas ou demográficas, e das estruturas sociais e nas suas certezas metodológicas, tidas como pouco seguras à vista das novas exigências teóricas.
Ao propor objetos de estudo, mantidos até então inteiramente estranhos a uma história dedicada por completo à exploração do econômico e do social, ao propor normas de cientificidade e modos de trabalho imitados das ciências exatas (por exemplo a formalização e a modelização, a explicação das hipóteses, a pesquisa em grupo), as ciências sociais minavam a posição dominante ocupada pela história no campo universitário. A importação de novos princípios de legitimação no domínio das disciplinas "literárias"desqualificava o empirismo histórico, ao mesmo tempo que visava a converter a fragilidade institucional das novas disciplinas em hegemonia intelectual (1).
A resposta dos historiadores foi dupla. Operaram uma estratégia de captação posicionando-se nas frentes abertas por outros. Donde, a emergência de novos objetos no seu questionário: as atitudes perante a vida e a morte, os rituais e as crenças, as estruturas de parentesco, as formas de sociabilidade, os modos de funcionamento escolares etc. o que significava constituir novos territórios do historiador pela anexação de territórios alheios (de etnólogos, sociólogos, demógrafos). Donde, corolariamente, o retorno maciço a uma das inspirações fundadoras dos primeiros Annales,dos anos trinta: o estudo dos utensílios mentais que o predomínio da história das sociedades havia relegado um tanto a segundo plano. Sob a designação de história das mentalidades ou, por vezes, de psicologia histórica delimitava-se um domínio de pesquisa, distinto tanto da velha história das idéias quanto da das conjunturas e estruturas. Sobre esses objetos novos (ou reencontrados) podiam ser postos à prova modos de tratamento inéditos, tomados de empréstimo às disciplinas vizinhas: tais como as técnicas de análise lingüística e semântica, os instrumentos estatísticos da sociologia ou certos modelos da antropologia.
Porém esta captação (dos territórios, das técnicas, das marcas de cientificidade) só poderia ser plenamente proveitosa se não se abandonasse nada do que tinha fundado a força da discipilina, por meio do tratamento quantitativo de fontes maciças e seriais (registros paroquiais, cotações de mercado, atas notariais, etc.). Majoritariamente, a história das mentalidades construiu-se, pois, ao aplicar a novos objetos os princípios de inteligibilidade previamente provados na história das economias e das sociedades. Por isso suas características específicas: a preferência pelo maior número, portanto à pesquisa da cultura tida como popular, a confiança no numérico e na série, o gosto pela longa duração, o primado conferido ao recorte sócio-profissional. Os traços próprios à história cultural assim definida, que articula a constituição de novas áreas de pesquisa com a fidelidade aos postulados da história social, são a tradução da estratégia da disciplina que se outorgava uma legitimidade científica renovada garantia da manutenção de sua centralidade institucional ao recuperar em seu proveito as armas que deveriam tê-la derrubado. A operação foi, como se sabe, um franco sucesso, estabelecendo uma aliança estreita e confiante entre a história e as disciplinas que, durante certo tempo, pareciam ser suas mais perigosas concorrentes.
O desafio então lançado à história no final dos anos oitenta, é como o inverso do precedente. Não se ancora mais numa crítica dos hábitos da disciplina em nome das inovações das ciências sociais, mas numa crítica dos postulados das próprias ciências sociais. Os fundamentos intelectuais do assalto são claros: por um lado, o retorno a uma filosofia do sujeito que recusa a força das determinações coletivas e dos condicionamentos sociais e que acredita reabilitar "a parte explícita e refletida da ação"; por outro lado, o primado conferido ao político que deveria supostamente constituir "o nível mais abrangente" da organização das sociedades e, no entanto, fornecer " uma nova chave para a arquitetura da totalidade". A história é, pois, convidada a reformular seus objetos (recompostos a partir de uma interrogação sobre a própria natureza do político), suas freqüentações (privilégio concedido ao diálogo travado com a ciência política e a teoria do direito) e, mais fundamentalmente ainda, seu princípio de inteligibilidade, destacado do " paradigma crítico" e redefinido por uma filosofia da consciência. Numa tal perspectiva, o mais urgente é, pois, separar o mais claramente possível a disciplina histórica (resgatável às custas de "dilacerantes revisões") das ciêncais sociais outrora dominantes (a sociologia e a etnologia) condenadas por sua adesão preferencial a um paradigma obsoleto (2).
De maneira discreta e eufêmica, o diagnóstico proposto pelo editorial dos Annales, por seu tratamento diferençado da história, que viveria uma " guinada crítica", e das ciências sociais, que viveriam numa "crise geral", parece-me partilhar algo desta posição. Daí uma questão prévia: a constatação proposta pode ser aceita sem reservas? Proclamar, depois de tantos outros, que as ciências sociais estão em crise não basta para estabelecê-la. O refluxo do marxismo e do estruturalismo não significa em si a crise da sociologia e da etnologia, uma vez que, no campo intelectual francês, é justamente à distancia das representações objetivistas propostas por estas duas teorias referenciais que se constroem as pesquisas mais fundamentais, invocando contra as determinações imediatas das estruturas as capacidades inventivas dos agentes, e contra a submissão mecânica à regra as estratégias próprias da prática. A mesma observação vale a fortiori para a história, obstinadamente refratária (salvo notórias exceções) ao emprego dos modelos de compreensão forjadas pelo marxismo ou pelo estruturalismo. Do mesmo modo, não parece que o efeito "volta da China", evocado para designar as desilusões e as rejeições ideológicas da última década, tenha contribuído muito para inquietar e modificar a prática dos historiadores, pois poucos foram os que fizeram a viagem a Pequim. Não foi o caso, sem dúvida, nos anos sessenta, da geração de historiadores que, de volta de Moscou, opunha à abordagem dogmática de um marxismo ortodoxo o projeto novo hoje recusado de uma história social quantitativa.
Três Deslocamentos sob Forma de Renúncia
Gostaria, pois, de sugerir que as verdadeiras mutações do trabalho histórico nestes últimos anos não foram produzidas por uma "crise geral das ciências sociais" (que deveria ser demonstrada mais do que proclamada) nem por uma "mudança de paradigma" (que não se tornou realidade apenas por ter sido ardentemente desejada por alguns), mas que estão ligadas à distância tomada, nas próprias práticas de pesquisa, em relação aos princípios de inteligibilidade que tinham governado o procedimento historiador há vinte ou trinta anos.
Três eram essenciais: o projeto de uma história global, capaz de articular num mesmo apanhado os diferentes níveis da totalidade social; a definição territorial dos objetos de pesquisa, geralmente identificados com a descrição de uma sociedade instalada num espaço particular (uma cidade, uma província, uma região) que era a condição de possibilidade da coleta e do tratamento dos dados exigidos pela história total; o primado conferido ao recorte social considerado capaz de organizar a compreensão das diferenciações e das partilhas culturais. Ora, este conjunto de certezas/abalou-se progressivamente, deixando o campo livre a uma pluralidade de abordagens e de compreensões.
Ao renunciar, de fato, à descrição da totalidade social e ao modelo braudeliano, que se tornou intimidador, os historiadores tentaram pensar os funcionamentos sociais fora de uma partição rigidamente hierarquizada das práticas e das temporalidades (econômicas, sociais, culturais, políticas) e sem que fosse dada primazia a um conjunto particular de determinações (fossem elas ténicas, econômicas ou demográficas). Daí as tentativas para decifrar de outro modo as sociedades, penetrando na meadas das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles.
Ao renunciar a tomar as diferenciações territoriais como os quadros obrigatórios de pesquisa, os historiadores franceses afastaram sua disciplina do procedimento de inventário, que provém da escola de geografia humana. A cartografia das particularidades, cuja razão devia ser encontrada na diversidade das condições geográficas, foi substituída pela pesquisa das regularidades o que significa reatar com a tradição, recusada pelos Annales dos anos trinta, da sociologia durkheimiana e preferir o estabelecimento de leis gerais, como desejava a morfologia social, à descrição das singularidades regionais (3). Daí, uma questão aguda: como pensar o acesso ao geral a partir do momento em que não é mais tido como a soma cumulativa das constatações particulares? Sabe-se da extrema diversidade das respostas, desde as que continuam fiéis a uma escala estatística das correlações e das constantes até as que reivindicam a exemplaridade dos desvios e que, ao manipular a noção paradoxal de "excepcional normal", procura o mais comum no menos corriqueiro (4).
Enfim, ao renunciar ao primado tirânico do recorte social para dar conta dos desvios culturias, a história em seus últimos desenvolvimentos mostrou, de vez, que é impossível qualificar os motivos, os objetos ou as práticas culturais em termos imediatamente sociológicos e que sua distribuição e seus usos numa dada sociedade não se organizam necessariamente segundo divisões sociais prévias, identificadas a partir de diferenças de estado e de fortuna. Donde as novas perspectivas abertas para pensar outros modos de articulação entre as obras ou as práticas e o mundo social, sensíveis ao mesmo tempo à pluralidade das clivagens que atravessam uma sociedade e à diversidade dos empregos de materiais ou de códigos partilhados.
Mundo do Texto e Mundo do Leitor: A Construção do Sentido
De acordo com estes três deslocamentos, libertadores em relação à tradição instituída, mas também produtores de incerteza por não constituírem em si um sistema unificado de compreensão, gostaria agora de formular algumas proposições diretamente derivadas de minha própria experiência. Toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa prática histórica particular, num espaço de trabalho específico. O meu organiza-se em torno de três pólos, geralmente separados pelas tradições acadêmicas: de um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos, decifrados nos seus agenciamentos e estratégias; de outro lado, a história dos livros e, para além, de todos os objetos que contém a comunicação do escrito; por fim, a análise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos e significações diferençadas. Ao longo de trabalhos pessoais ou de levantamentos coletivos, uma questão central sub-tendeu esta abordagem: compreender como, nas sociedades do Antigo Regime, entre os séculos XVI e XVIII, a circulação multiplicada do escrito impresso modificou as formas de sociabilidade, autorizou novos pensamentos, transformou as relações com o poder (5).
Daí a atenção voltada para a matéria com que se opera o encontro entre " o mundo do texto" e o " mundo do leitor" para retomar os termos de Paul Ricoeur (6). Várias hipóteses orientaram a pesquisa, fosse ela organizada a partir do estudo de uma classe particular de objetos impressos (por exemplo o corpus da literatura de colportage), ou a partir do exame das práticas de leitura, em sua diversidade, ou ainda a partir da história de um texto particular, proposto a públicos diferentes em formas muito contrastadas. A primeira hipótese sustenta a operação de construção de sentido efetuada na leitura (ou na escuta) como um processo historicamente determinado cujos modos e modelos variam de acordo com os tempos, os lugares, as comunidades. A segunda considera que as significações múltiplas e móveis de um texto dependem das formas por meio das quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes).
Estes, com efeito, não se confrontam nunca com textos abstratos ideais, separados de toda materialidade: manejam objetos cujas organizações comandam sua leitura, sua apreensão e compreensão partindo do texto lido. Contra uma definição puramente semântica do texto, é preciso considerar que as formas produzem sentido, e que um texto estável na sua literalidade investe-se de uma significação e de um estatuto inéditos quando mudam os dispositivos do objeto tipográfico que o propõem à leitura.
É preciso considerar também que a leitura é sempre uma prática encarnada em gestos, espaços, hábitos. Longe de uma fenomenologia da leitura que apague todas as modalidades concretas do ato de ler e o caracterize por seus efeitos, postulados como universais (7), uma história das maneiras de ler deve identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores e as tradições de leitura. O procedimento supõe o reconhecimento de diversas séries de contrastes. De início, entre as competências de leitura. A clivagem, essencial porém grosseira, entre analfabetizados e analfabetos, não esgota as diferenças na relação com o escrito. Os que podem ler os textos, não os lêem de maneira semelhante, e a distância é grande entre os letrados de talento e os leitores menos hábeis, obrigados a oralizar o que lêem para poder compreender, só se sentindo à vontade frente a determinadas formas textuais ou tipográficas. Constrastes igualmente entre normas de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, usos do livro, modos de ler, procedimentos de interpretação. Contrastes, enfim, entre as expectativas e os interesses extremamente diversos que os diferentes grupos de leitores investem na prática de ler. De tais determinações, que regulam as práticas, dependem as maneiras pelas quais os textos podem ser lidos, e lidos diferentemente pelos leitores que não dispõem dos mesmos utensílios intelectuais e que não entretêm uma mesma relação como escrito.
"New readers make new texts, and their meanings are a function of their new form" (8). D. F. McKenzie designou com grande acuidade o duplo conjunto de variações variações das disposições dos leitores, variações dos dispositivos dos textos e dos objetos impressos que os sustentam que deve ser levado em conta por toda história que postule como central a questão das modalidades contrastadas da construção do sentido. No espaço assim traçado se inscreve todo trabalho situado no cruzamento de uma história das práticas, social e historicamente diferençadas, e de uma história das representações inscritas nos textos ou produzidas pelos indivíduos. Tal perspectiva tem muitos corolários. De um lado, define um tipo de pesquisa que, necessariamente, associa as técnicas de análise das disciplinas pouco afeitas a semelhante proximidade: a crítica textual, a história do livro, em todas as suas dimensões, a história sócio-cultural. Mais do que um trabalho interdisciplinar que supõe sempre uma identidade estável e distinta entre as disciplinas que firmam aliança , é antes um recorte inédito do objeto que está proposto, implicando a unidade do questionário e do procedimento, qualquer que seja a origem disciplinar dos que os partilham (historiadores de literatura, historiadores do livro, ou toriadores das mentalidades na tradição dos Afínales). Por outro lado, esta interrogação sobre os efeitos do sentido das formas materiais leva a conceder (ou re-conceder) um lugar central no campo da história cultural aos saberes mais classicamente eruditos: por exemplo, os da bibliography, da paleografia ou da codicologia (9). Porque permitem descrever rigorosamente os dispositivos materiais e formais pelos quais os textos atingem os leitores, esses saberes técnicos, por tanto tempo negligenciados pela sociologia cultural, constituem um recurso essencial para uma história das apropriações.
Esta noção parece central para a história cultural, desde que seja reformulada. Esta reformulação, que enfatiza a pluralidade dos empregos e das compreensões e a liberdade criadora mesmo regulada dos agentes que não obrigam nem os textos nem as normas, distancia-se, em primeiro lugar, do sentido que Michel Foucault dá ao conceito, ao tomar " a apropriação social dos discursos" como um dos procedimentos maiores através dos quais os dicursos são dominados e confiscados pelos indivíduos ou instituições que se arrogam o controle exclusivo sobre eles (10). Distancia-se também do sentido que a hermenêutica da à apropriação, pensada como o momento em que a " aplicação" de uma configuração narrativa particular à situação do leitor refigura sua compreensão de si e do mundo, logo sua experiência fenomenológica tido como universal e subtraída a toda variação histórica (11). A apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das interpretações, referidas a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem (12). Assim, voltar a atenção para as condições e os processos que, muito concretamente, sustentam as operações de produção do sentido (na relação de leitura, mas em tantos outros também) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que nem as inteligências nem as idéias são desencarnadas, e, contra os pensamentos do universal, que as categorias dadas como invariantes, sejam elas filosóficas ou fenomenológicas, devem ser construídas na descontinuidade das trajetórias históricas.
Da História Social da Cultura a uma História Cultural do Social
O procedimento supõe uma tomada de distância em relação aos princípios que fundavam a história social da cultura na sua acepção clássica. Um primeiro distanciamento estabeleceu-se face a uma concepção estreitamente sociográfica que postula que as clivagens culturias estão forçosamente organizadas segundo um recorte social previamente construído. E preciso, creio, recusar esta dependência que refere as diferenças de hábitos culturais a oposições sociais dadas a priori, tanto à escala de contrastes macroscópicos (entre as elites e o povo, entre os dominantes e os dominados), quanto à escala das diferenciações menores (por exemplo entre os grupos sociais hierarquizados pelos níveis de fortuna ou atividades profissionais).
De fato, as clivagens culturais não estão forçosamente organizadas segundo uma grade única do recorte social, que supostamente comandaria tanto a presença desigual dos objetos como as diferenças nas condutas. A perspectiva deve pois ser invertida e traçar, de início, a área social (muitas vezes compósita) em que circulam um corpus de textos, uma ciasse de impressos, uma produção, ou uma norma cultural. Partir assim dos objetos, das formas, dos códigos, e não dos grupos, leva a considerar que a história sócio-cultural repousou demasiadamente sobre uma concepção mutilada do social. Ao privilegiar apenas a classificação sócio-profissional, esqueceu-se de que outros princípios de diferenciação, igualmente sociais, podiam dar conta, com maior pertinência, dos desvios culturais. Assim sendo, as pertenças sexuais ou geracionais, as adesões religiosas, as tradições educativas, as solidariedades territoriais, os hábitos de ofício.
Aliás, a operação que visa a caracterizar as configurações cultuais a partir de materiais tidos como específicos a elas (assim, exemplo clássico na identificação entre literatura de colportage e cultura popular) parece hoje duplamente redutora. De um lado, assimila o reconhecimento das diferenças unicamente às desigualdades de distribuição; de outro, ignora o processo pelo qual um texto, uma fórmula, uma norma fazem sentido para os que deles se apoderam ou os recebem.
Tomemos o exemplo da circulação dos textos impressos nas sociedades de Antigo Regime. Compreendê-la exige um duplo deslocamento em relação às abordagens iniciais. O primeiro situa o reconhecimento dos desvios socialmente mais enraizados nos usos contrastados de materiais partilhados. Mais do que se admitiu por muito tempo, é exatamente dos mesmos textos que se apropriam os leitores populares e os que não o são. Ou porque leitores de condição humilde chegassem a possuir livros que não lhes eram especificamente destinados (é o caso de Menocchio, o moieiro do Friul, leitor das Viagens de Mandeville, do Decameronou do Fioretto delia Bibbia, ou de Méenéetra, o vidraceiro parisiense, admirador fervoroso de Rousseau (13), ou que os livreiros-editores inventivos e avisados pusessem ao alcance de uma ampla clientela textos que circulariam apenas no estreito mundo dos letrados (é o caso da fórmula editorial conhecida sob o termo genérico de Biliothéque bleue, proposta aos leitores mais humildes desde o fim do século XVI pelos editores de Troyes). O essencial é, portanto, compreender como os mesmos textos sob formas impressas possivelmente diferentes podem ser diversamente aprendidos, manipulados, compreendidos.
Daí a necessidade de um segundo deslocamento atento às redes de prática que organizam os modos, histórica e socialmente diferençados, da relação aos textos. A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção: é por em jogo o corpo, é inscrição num espaço, relação consigo ou com o outro. Por isso devem ser reconstruídas as maneiras de ler próprias a cada comunidade de leitores, a cada uma dessas "interpretative communities "de que fala Stanley Fish (14). Uma história da leitura não se pode limitar unicamente à genealogia de nossos modos de ler, em silêncio e com os olhos, mas tem a tarefa de redescobrir os gestos esquecidos, os hábitos desaparecidos. A questão é de importância, pois não revela somente a distante estranheza de práticas por longo tempo comuns, mas também os agenciamentos específicos de textos compostos para os usos que não são os de seus leitores de hoje. Assim, nos séculos XVI e XVII, e aínda hoje muitas vezes, a leitura implícita do texto, literário ou não, é construída como uma oralização, e seu leitor como um leitor que lê em voz alta e se dirige a um público de ouvintes. Destinada tanto para o ouvido quanto para o olho, a obra conta com formas e procedimentos capazes de submeter o escrito às exigências próprias do desempenho oral. Dos motivos tratados no Quixote às estruturas dos livros que costituem a Bibliothèque bleue, numerosos são os exemplos da ligação tardia entre o texto e a voz.
"Whatever they may do, authors do not write books. Books are not written at all. They are manufactured by scribes and other artisans, by mechanics and other engineers, and by printing press and other machines" (15). A observação pode introduzir uma outra revisão. Contra a representação, elaborada pela própria literatura, segundo a qual o texto existe em si, separado de toda materialidade, é preciso lembrar que não há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas pelas quais atinge o leitor. Daí a distinção indispensável entre dois conjuntos de dispositivos: os que provêm das estratégias de escrita e das intenções do autor, e os que resultam de uma decisão do editor ou de uma exigência de oficina de impressão (16).
Os autores não escrevem livros: não, escrevem textos que outros transformam em objetos impressos. A diferença, que é justamente o espaço em que se constrói o sentido ou os sentidos , foi muitas vezes esquecida, não somente pela história literária clássica, que pensa o obra em si, como um texto abstrato cujas formas tipográficas não importam, mas também pela Rezeptionsästhetikque postula, apesar de seu desejo de historicizar a experiência que os leitores têm das obras, uma relação pura e imediata entre os "sinais" emitidos pelo texto que contam com as convenções literárias aceitas e "o horizonte de expectativa" do público a que se dirigem. Numa tal perspectiva, "o efeito produzido" não depende de modo algum das formas materiais que suportam o texto (17). No entanto, também contribuem amplamente para dar feição às antecipações do leitor em relação ao texto e para avocar novos públicos ou usos inéditos.
Representações Coletivas e Identidades Sociais
A partir deste terreno de trabalho em que se enredam o texto, o livro e a leitura, podem-se formular várias proposições que articulam de maneira nova os recortes sociais e as práticas culturais. A primeira alimenta a esperança de levantar os falsos debates em torno da divisão, dada como universal, entre as objetividades das estruturas (que seria o território da história mais segura, que, ao manipular documentos maciços, seriais, quantificáveis, reconstrói as sociedades tais como verdadeiramente eram) e a subjetividade das representações (a que se ligaria uma outra história dedicada aos discursos e situada à distância do real). Uma tal clivagem atravessou profundamente a história, mas também as outras ciências sociais como a sociologia ou a etnologia, opondo abordagens estruturalistas e procedimentos fenomenológicos, as primeiras trabalhando em grande escala sobre as posições e as relações dos diferentes grupos, muitas vezes identificadas a classes, os segundos privilegiando o estudo dos valores e dos comportamentos de comunidade mais restritas, muitas vezes tidos como homogêneos (18).
Tentar superá-la exige, a princípio, considerar os esquemas geradores dos sistemas de classificação e de percepção como verdadeiras "instituições sociais", incorporando sob a forma de representações coletivas as divisões da organização social "As primeiras categorias lógicas foram categorias sociais; as primeiras classes de coisas foram classes de homens em que estas coisas foram integradas" (19) , mas também considerar, corolariamente, estas representações coletivas como as matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social "Mesmo as representações coletivas mais elevadas só têm existência, só são verdadeiramente tais, na medida em que comandam atos" (20).
Este retorno a Marcel Mauss e Emile Durkheim e à noção de " representação coletiva" autoriza a articular, sem dúvida melhor que o conceito de mentalidade, três modalidades de relação com o mundo social: de início, o trabalho de classificação e de recorte que produz configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais "representantes" (instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe.
Uma dupla via abre-se assim: uma que pensa a construção das identidades sociais como resultando sempre de uma relação de força entre as representações impostas pelos que detêm o poder de classificar e de nomear e a definição, de aceitação ou de resistência, que cada comunidade produz de si mesma (21); outra que considera o recorte social objetivado como a tradução do crédito conferido à representação que cada grupo dá de si mesmo, logo a sua capacidade de fazer reconhecer sua existência a partir de uma demonstração de unidade (22). Ao trabalhar sobre as lutas de representação, cuja questão é o ordenamento, portanto a hierarquização da própria estrutura social, a história cultural separa-se sem dúvida de uma dependência demasiadamente estrita de uma história social dedicada exclusivamente ao estudo das lutas econômicas, porém opera um retorno hábil também sobre o social, pois centra a atenção sobre as estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ser-percebido constitutivo de sua identidade.
Para o historiador das sociedade de Antigo Regime, construir a noção de representação como o instrumento essencial da análise cultural é investir de uma pertinência operatória um dos conceitos centrais manuseados nestas sociedades. A operação de conhecimento está, assim, ligada ao utensílio nacional que os contemporâneos utilizavam para tornar sua própria sociedade menos opaca ao entendimento. Nas definições antigas (por exemplo, a do Dicionário universal de Furetière em sua edição de 1727) (23), as acepções correspondentes à palavra "representação "atestam duas famílias de sentido aparentemente contraditórias: por um lado, a representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa. Na primeira acepção, a representação é o instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe uma "imagem"capaz de repô-lo em memória e de "pintá-lo" tal como é. Dessas imagens, algumas são totalmente materiais, substituindo ao corpo ausente um objeto que lhe seja semelhante ou não: tais os manequins de cera, de madeira ou couro que eram postos sobre a uma sepulcral monárquica durante os funerais dos soberanos franceses e ingleses ("Quando se vai ver os príncipes mortos, exibidos em seus leitos de morte, só se vê a representação, a efígie") ou, mais geralmente e outrora, o leito fúnebre vazio e recoberto por um lençol mortuário que " representa" o defunto (" Representação diz-se também na igreja de uma falsa uma de madeira, coberta por um véu de luto, em torno do qual se acendem cirios, quando se oficia uma cerimônia fúnebre") (24). Outras imagens funcionam num registro diferente: o da relação simbólica que, para Furetière, é "a representação de algo de moral pelas imagens ou pelas propriedades das coisas naturais(...). O leão é o símbolo do valor, a bolha o da inconstância, o pelicano o do amor materno". Uma relação decifrável é portanto postulada entre o signo visível e o referente significado o que não quer dizer, é claro, que é necessariamente decifrado tal qual deveria ser.
A relação de representação entendida como relação entre uma imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga - traça toda a teoria do signo do pensamento clássico, elaborada em sua maior complexidade pelos lógicos de Port Royal (25). Por um lado, são essas modalidades variáveis que permitem discriminar diferentes categorias de signos (certos ou prováveis, naturais ou instituídos, aderentes a ou separados daquilo que é representado, etc.) e caracterizar o símbolo por sua diferença com outros signos (26). Por outro lado, ao identificar as duas condições necessárias para que uma tal relação seja inteligível (ou seja, o conhecimento do signo como signo, no seu desvio em relação à coisa significada, e a existência de convenções regulando a relação do signo com a coisa), a Lógica de Port-Royal propõe os termos de uma questão fundamental: a das possíveis incompreensões da representação, seja por falta de " preparação" do leitor (o que remete às formas e aos modos de inculcação das convenções), seja pelo fato da "extravagância" de uma relação arbitrária entre o signo e o significado (o que levanta a questão das próprias condições de produção das equivalências admitidas e partilhadas (27).
As formas de teatralização da vida social na sociedade de Antigo Regime dão o exemplo mais manifesto de uma perversão da relação de representação. Todas visam, de fato, a fazer com que a coisa não tenha existência a não ser na imagem que exibe, que a representação mascare ao invés de pintar adequadamente o que é seu referente. Pascal desnuda este mecanismo da "vitrina" que manipula os signos destinados a produzir ilusão e não a fazer conhecer as coisas tais como são:
Os nossos magistrados conheceram bem esse mistério. As suas togas vermelhas, ps arminhos com que se enfaixam como gatos peludos, os palácios em que julgam, as flores-de-lis, todo esse aparato augusto era muito necessário: e, se os médicos não tivessem sotainas e galochas, e os doutores não usassem borla e capelo e túnicas muito amplas de quatro partes, nunca teriam enganado o mundo, que não pode resistir a essa vitrina tão autêntica. Se possuíssem a verdadeira justiça e se os médicos fossem senhores da verdadeira arte de curar, não teriam o que fazer da borla e do capelo; a majestade destas ciências seria bastante venerável por si própria. Como, porém, possuem apenas ciências imaginárias, precisam tomar esses instrumentos vãos que impressionam as imaginações com que lidam; e destarte, com efeito, atraem o respeito" . (Pascal, Pensamentos, tradução de Sérgio Milliet, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1957, pp. 70-71)
A relação de representação é, desse modo, perturbada pela fraqueza da imaginação, que faz com que se tome o engodo pela cerdade, que considera os signos visíveis como índices seguros de uma realidade que não o é. Assim desviada, a representação transforma-se em máquina de fabricar respeito e submissão, num instrumento que produz uma exigência interiorizada, necessária exatamente onde faltar o possível recurso à força bruta: "Só os homens de guerra não estão disfarçados assim, porque na realidade a sua parte é mais essencial: estabelecem-se pela força, ao passo que os outros o fazem pela aparência" (28).
Toda reflexão engajada sobre as sociedade de Antigo Regime só pode inscrever-se na perspectiva assim traçada, duplamente pertinente. Por considerar a posição " objetiva" de cada indivíduo como dependente do crédito que aqueles de que espera reconhecimento conferem à representação que dá de si mesmo. Por compreender as formas de dominação simbólica, pelo "aparelho" ou pelo "aparato", como escreve La Bruyère (29), como o corolário da ausência ou do apagamento da violência imediata. E portanto no processo de longa duração de erradicação da violência, tornada monopólio do Estado absolutista (30), que é preciso inscrever a importância crescente das lutas de representação, cuja problemática central é o ordenamento, logo a hierarquização da própria estrutura social.
O Sentido das Formas
A constatação pode levar a uma segunda proposição que visa identificar os desvios mais socialmente enraizados nas diferenças mais formais. E isso, por duas razões possivelmente contraditórias. Por um lado, os dispositivos formais textuais ou materiais inscrevem em suas próprias estruturas as expectativas e as competências do público a que visam organizando-se portanto a partir de uma representação da diferenciação social. Por outro lado, as obras e os objetos produzem sua área social de recepção, muito mais do que as divisões cristalizadas ou prévias o fazem. Recentemente, Lawrence W. Levine fez a demonstração disso, mostrando que a maneira como eram representadas as peças de Shakespeare na América do século XIX (ou seja, misturadas com múltiplas outras formas de espetáculo, tomadas de empréstimo à farsa, ao melodrama, ao ballet, ao circo) tinha criado um público amplo, ruidoso e irriquieto, que ia muito além da pura e simples elite burguesa e letrada (31). Estes dispositivos de representação do drama shakesperiano são da mesma ordem que as transformações "tipográficas" operadas pelos editores da Bibliothèque bleue sobre as obras postas no catálogo: ambos visam, com efeito, a inscrever o texto numa matriz cultural que não é a dos destinatários primeiros e a permitir assim uma pluralidade de apropriações.
Os dois exemplos levam a considerar as diferenciações culturais, não como a tradução de divisões estáticas e imóveis, mas como o efeito de processos dinâmicos. Por um lado, a transformação das formas através das quais um texto é proposto autoriza recepções inéditas, logo cria novos públicos e novos usos. Por outro, a partilha dos mesmos bens culturais pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade suscita a busca de novas distinções, capazes de marcar os desvios mantidos. A trajetória do livro no antigo Regime francês pode testemunhar isso. Tudo acontece como se as diferenciações entre os modos de ler fossem multiplicadas e afinadas à medida que o escrito impresso fosse se tornando menos raro, menos confiscado, mais corriqueiro. Enquanto a simples posse do livro, durante muito tempo tinha significado por si mesma uma superioridade cultural, são os usos do livro, legítimos ou selvagens, e a qualidade dos objetos tipográficos, finos ou vulgares, que se encontram progressivamente investidos de uma tal função.
É sem dúvida essa atenção dada às " formalidades das práticas" (segundo a expressão de Michel de Certeau), do lado da produção ou do da recepção, que mais prejudicou uma maneira clássica de escrever a história das mentalidades. Em primeiro lugar, obrigando-a a considerar os discursos em seus próprios dispositivos, suas articulações retóricas ou narrativas, suas estratégias de persuasão ou de demonstração. Os agenciamentos discursivos e as categorias que os fundam como os sistemas de classificação, os critérios de recorte, os modos de representações não se reduzem absolutamente às idéias que enunciam ou aos temas que contêm. Possuem sua lógica própria e uma lógica que pode muito bem ser contraditória, em seus efeitos, coma letra da mensagem. Segunda exigência: tratar os discursos em sua discontinuidade e sua discordância. Durante muito tempo, pareceu fácil o caminho que levava a concluir a partir da análise temática de um conjunto de textos a caracterização de uma " mentalidade" (ou de uma " visão do mundo" ou de uma " ideologia"), e depois fazia passar desta última a uma consignação social unívoca. A tarefa parece menos simples desde a partir do momento em que cada série de discursos seja compreendida em sua especificidade, ou seja inscrita em seus lugares (e meios) de produção e suas condições de possibilidade, relacionada aos princípios de regularidade que a ordenam e controlam, e interrogada em seus modos de reconhecimento e de veridicidade. Reintroduzir assim no âmago da crítica histórica o questionário estabelecido por Foucault para o tratamento das "séries de discursos "é certamente mutilar a ambição totalizadora da história cultural, desejosa de reconstruções globais. Mas é também a condição para que os textos, quaisquer que sejam, que o historiador constitui em arquivos, sejam subtraídos das reduções ideológicas e documentais que os destruíam enquanto "práticas descontínuas" (32).
Figuras do Poder e Práticas Culturais
Nossa última proposta visa a rearticular as práticas culturais sobre as formas de exercício do poder. A perspectiva supõe um distanciamento em relação ao " retorno do político", que parece ter tomado uma parte da historiografia francesa. Fundada sobre o primado da liberdade do sujeito, pensado como livre de toda e qualquer determinação, e privilegiando a oferta de idéias e aparte refletida da ação, uma tal posição obstina-se numa dupla importância: ignora as exigências não sabidas pelos indivíduos e que no entanto regulam aquém dos pensamentos claros e muitas vezes apesar deles as representações e as ações; supõe uma eficácia própria às idéias e aos discursos, separados das formas que os comunicam, destacados das práticas que, ao se apropriarem deles, os investem de significações plurais e concorrentes.
Nossa perspectiva é outra: quer compreender a partir das mutações no modo de exercício do poder (geradores de formações sociais inéditas) tanto as transformações das estruturas da personalidade quanto as das instituições e das regras que governam a produção das obras e a organização das práticas. A ligação estabelecida por Elias entre, por um lado a racionalidade de corte entendida como uma economia psíquica específica, produzida pelas exigências de uma forma social nova, necessária ao absolutismo e, por outro, os traços próprios à literatura clássica em termos de hierarquia de gêneros, de características estilísticas, de convenções estéticas designa com acuidade o lugar de um trabalho possível (33). Mas é também a partir das divisões instauradas pelo poder (por exemplo entre os séculos XVI e XVII entre razão de Estado e consciência moral, entre patronagem estatal e liberdade de foro íntimo) que devem ser apreciadas tanto a emergência de uma esfera literária autônoma como a constituição de um mercado de bens simbólicos e de julgamentos intelectuais ou estéticos (34). Estabelece assim um espaço da crítica livre onde se opera uma progressiva politização, contra a monarquia do Antigo Regime de práticas culturais que o Estado tinha durante algum tempo capturado em seu proveito ou que tinham nascido como reação a seu ascendente, na esfera do privado.
Num momento em que se encontra muitas vezes recusada a pertinência da interpretação social, que estas poucas reflexões e propostas não sejam tomadas como índice de um alinhamento a uma tal posição. Ao contrário, na fidelidade crítica à tradição dos Annales, elas gostariam de ajudar a reformular a maneira de ajustar a compreensão das obras, das representações e das práticas às divisões do mundo social que, conjuntamente, significam e constroem.
Notas
Roger Chartier é historiador e diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris.
Tradução de Andrea Daher e Zenir Campos Reis.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Fev 2006 -
Data do Fascículo
Abr 1991