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Polarização, desigualdade e pobreza: dilemas e desafios do mercado de trabalho na cidade de São Paulo

RESUMO

O artigo analisa o mercado de trabalho no município de São Paulo na última década, destacando como as tendências de força de trabalho, desocupação, padrão ocupacional e rendimento se refletem sobre a desigualdade de renda e a pobreza. Após um panorama histórico sobre o trabalho na cidade de São Paulo, o texto discute o período recente, com base nos dados da Pnad Contínua de 2012 a 2023, abordando as principais convergências e divergências em termos de polarização ocupacional distribuição de renda e pobreza nos cenários paulistano e nacional, apresentando também algumas dinâmicas relativas à interseccionalidade de raça e gênero. Por fim, destaca desafios para a gestão municipal, que requerem ações locais e uma agenda nacional de desenvolvimento.

PALAVRAS-CHAVE:
Mercado de trabalho; Desigualdade de renda; Pobreza; Polarização ocupacional; São Paulo

ABSTRACT

The paper analyzes the labor market in the municipality of São Paulo in the past decade, highlighting how trends in workforce, unemployment, occupational patterns, and income reflect income inequality and poverty. After a historical background tracing the role of labor in the city of São Paulo, it discusses the recent period, based on data from the Continuous National Household Sample Survey (Pnad Contínua) from 2012 to 2023. By doing so, it addresses the main convergences and divergences in terms of job polarization, income distribution, and poverty in the city of São Paulo and for Brazil as a whole, depicting also some dynamics related to the intersectionality of race and gender. Finally, it highlights challenges for municipal management, which require local actions and a national development agenda.

KEYWORDS:
Labor market; Income inequality; Poverty; Job polarization; São Paulo

Apresentação

O objetivo deste artigo é oferece uma análise do mercado de trabalho paulistano no período recente, destacando como as tendências da força de trabalho, da desocupação, do padrão ocupacional e do rendimento refletem a desigualdade de renda e a pobreza no município de São Paulo.

O texto encontra-se estruturado da seguinte maneira. A primeira seção oferece um panorama histórico sintético das transmutações do trabalho na metrópole paulistana desde o período da ascensão cafeeira (1880-1930), passando pelo auge da industrialização (1930-1930), para então focar no período da abertura econômica (anos 1990) e do crescimento com inclusão social (anos 2000), quando as desigualdades de renda e de acesso ao emprego assumiram novas feições. O objetivo é mostrar como o que acontece em São Paulo impacta e reflete as tendências mais amplas da economia e da sociedade brasileira.

A segunda seção se detém no acompanhamento das principais tendências do mercado de trabalho paulistano na última década, a partir dos dados da Pnad Contínua de 2012 a 2023. A terceira contrapõe a cidade de São Paulo e o conjunto do Brasil por meio da evolução da taxa de informalidade, dos vários tipos de emprego (por grupos ocupacionais e posição na ocupação) e seus níveis de rendimento real. Como resultado, apresentamos um retrato das condições gerais do mercado de trabalho paulistano com base nos últimos dados disponíveis, confirmando a tendência de crescente polarização ocupacional.

A quarta seção do artigo mostra como os indicadores de desigualdade e pobreza, tanto gerais como por meio de cortes de raça e gênero, podem ser compreendidos à luz da dinâmica do mercado de trabalho paulistano em contraposição com os dados nacionais.

Finalmente, com base nos dilemas enfrentados pela metrópole no período recente, destacamos alguns desafios para a gestão municipal. Embora a geração de emprego e renda e a redução da pobreza e da desigualdade exijam ações efetivas no plano local, elas dependem de maneira substantiva de uma agenda mais ampla de desenvolvimento nacional.

O trabalho na metrópole paulistana: panorama histórico

Nesta seção, são abordadas as principais tendências e configurações do trabalho na cidade de São Paulo desde o final do século XIX até a primeira década do século XXI. O contraponto entre São Paulo e o restante do Brasil mostra como esses espaços se complementam, se atritam ou exercem entre si relações de subordinação ao longo do tempo.

Três períodos são privilegiados: 1. a ascensão do complexo cafeeiro no estado de São Paulo, com impactos profundos sobre a capital; 2. a cidade de São Paulo como núcleo do processo de transformação industrial; 3. o período 1980-2010, marcado pelo agravamento das condições de trabalho nos anos 1990, sucedido nos anos 2000 pela recuperação dos níveis de renda e a queda da taxa de desocupação, desigualdade e pobreza.

Florestan Fernandes (1979FERNANDES, F. Mudanças sociais no Brasil. 3.ed. São Paulo: Difel, 1979., p.299-302) descreve a capital paulista na virada entre os séculos XIX e XX como “a primeira cidade autenticamente ‘burguesa’ do Brasil”. Isso porque a concentração demográfica - crescimento de nove vezes da população entre 1890 e 1920, totalizando 577 mil no último ano - combinou-se com a urbanização e a industrialização, engendrando “mundo social novo” com posições diferenciadas de classe.

O processo de transição do trabalho escravo para o “livre” e as diferenças regionais nos trinta anos que antecedem a década de 1920 é o ponto central que permite compreender a dinâmica do mercado de trabalho no período. No oeste paulista, recorreu-se a uma força de trabalho expropriada proveniente do exterior e marcada pelo quase-assalariamento, ao passo que no nordeste predominou a territorialização da mão de obra existente em condições de sub-assalariamento. Esses distintos regimes de trabalho estavam associados a possibilidades diversas de acumulação de capital.

O diferencial paulista residiu, portanto, na expansão do complexo cafeeiro entre 1890 e 1930 (Cano, 1977CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo, Difel, 1977., p.17-21, 234-5). Ao contrário dos enclaves exportadores típicos de outros períodos e regiões do país, logra-se agora uma integração e diversificação das atividades componentes desse complexo, capazes de “desencadear um processo dinâmico de acumulação”. Nesse contexto, se as atividades agrícolas seguem uma lógica predominantemente extensiva, as suas interações com os demais setores se localizam num espaço privilegiado: a cidade de São Paulo, que já se destaca pelo protagonismo das exportações industriais para o restante do Brasil nos anos 1910 e 1920.

A cidade de São Paulo, “primeiro núcleo não abortado de mercado de trabalho” do país, já contava, em 1920, com uma taxa de assalariamento de 40%, contra 8% da média nacional, ainda predominantemente rural (Barbosa, 2008_______. O mercado de trabalho antes de 1930: emprego e ‘desemprego’ na cidade de São Paulo. Novos Estudos Cebrap, n.80, março de 2008., p.202, p.312-13). A noção de núcleo não abortado do mercado de trabalho remete ao fato de que, pela primeira vez, estavam dadas as condições em termos de produção e reprodução da força de trabalho, capazes de endossar uma acumulação capitalista de longo prazo, desde que o restante do país oferecesse mercado e força de trabalho para a capital e o capital nela concentrado.

Em 1920, um processo de estratificação social já se esboçava na cidade: 28% dos postos de trabalho eram não manuais (profissionais liberais, emprego público e segmentos organizados do comércio); enquanto os assalariados da indústria representavam 27% dos ocupados; paralelamente, havia o “núcleo fluido” daqueles que perfaziam uma miríade de ocupações não diretamente relacionadas às atividades de acumulação, abrigando assim outros 45% dos ocupados, sem contar o segmento dos “sem trabalho”, uma vez que o “desemprego” pressupõe uma generalização do assalariamento. As barreiras entre as posições ocupacionais eram muito maleáveis, gerando processos rápidos de mobilidade social ascendente e descendente (Barbosa, 2008_______. O mercado de trabalho antes de 1930: emprego e ‘desemprego’ na cidade de São Paulo. Novos Estudos Cebrap, n.80, março de 2008., p.214-17).

No período de 1930 a 1980, presencia-se a vigência de um modo de acumulação capitalista, “com realização interna parcial crescente”, o que demanda um mudança nas relações institucionais entre o Estado e as classes sociais com o objetivo de “fazer da empresa capitalista industrial a unidade mais rentável do sistema” (Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica à Razão Dualista/O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003., p.35-40). Esse processo é comandado do ponto de vista produtivo pela cidade de São Paulo e sua região metropolitana, inclusive o ABC), onde se situam os elos mais sofisticados da indústria e do setor de serviços. Em 1949, a cidade de São Paulo já respondia por cerca de 30% dos empregos industriais nacionais, quadro que seria reforçado durante o Plano de Metas (1956-1960). Em 1980, 45% das ocupações dos paulistanos estavam concentradas no setor industrial (Pochmann, 2001POCHMANN, M. A metrópole do trabalho. São Paulo: Brasiliense, 2001., p.72-3, 79, 94).

Nesse sentido, diferente de um mercado de trabalho paulistano em oposição ao do restante do país, o que se observa é um processo de “socialização capitalista territorialmente ampliada” (Santos, 2005SANTOS, M. A urbanização brasileira. 5.ed. São Paulo: Edusp, 2005., p.49), cujo núcleo se encontra na cidade e na sua região metropolitana, condensando não apenas o dinamismo produtivo mas também as contradições sociais. É essa conifiguração que dá origem a uma classe trabalhadora mais qualificada e mais bem remunerada nos setores de ponta, mas também a níves de pobreza que atingem proporções significativas da população em meados da década de 1970, como destacou estudo clássico realizado pelo Cebrap (1976), sob o provocativo título de “São Paulo 1975: crescimento e pobreza”.

Conforme o estudo, a “superioridade de São Paulo” estaria relacionada à “concentração do capital na cidade”, ao tempo em que “os problemas do subdesenvolvimento não desaparecem com o crescimento”. Importantes segmentos da classe trabalhadora sofreram nos anos 1970 mais do que nas décadas anteriores uma piora das condições precárias de saúde e moradia, o aumento da mortalidade infantil e o decréscimo do poder de compra do salário-mínimo. A peculiaridade residia exatamente na “exacerbação do contraste entre acumulação e pobreza” (Cebrap, 1976, p.14-19, 35-60).

Nesse contexto, destacam-se situações de “emprego restrito”, em que parcelas da força de trabalho eram “exauridas e substituídas a baixo preço”. O aparecimento da categoria de “velhos” sem relação com a idade biológica, expelidos do mercado de trabalho, revela a dimensão do exército de reserva. O desemprego oculto era a marca da condição das mulheres, muitas vezes mantidas em situação de inatividade forçada. Finalmente, o preconceito racial é a marca ideológica da “marginalização econômica de negros e mulatos”, situação compartilhada com os migrantes nordestinos, pois todos se tornam “baianos” (ibidem, p.79-105).

A cidade-sede do capitalismo industrial brasileiro gera novas formas de exclusão à medida em que se expande: os 56,5% de assalariados com carteira assinada dentre o total de ocupados, conforme a PNAD de 1976, revela também o outro lado da moeda: 23,6% de assalariados sem carteira e 19,9% de trabalhadores por conta própria. Mesmo na “melhor” estrutura ocupacional do Brasil, a vulnerabilidade no mercado de trabalho atinge dois milhões de trabalhadores na Grande São Paulo ao final do processo de industrialização.

O período 1980-2010 caracteriza-se por uma dinâmica complexa. Se nos anos 1980, o mercado de trabalho paulistano sofre com o aumento das disparidades de renda e as fortes oscilações nas taxas de desocupação, a década de 1990 se destaca pelo aumento do desemprego, informalidade e precarização do trabalho. O excedente de trabalho salta de 18% em 1979 para 39% em 1998 (Pochmann, 2001POCHMANN, M. A metrópole do trabalho. São Paulo: Brasiliense, 2001., p.128-32), ao passo que a taxa de desocupação total (incluindo desemprego oculto pelo trabalho precário e pelo desalento) salta de 9% para 19% entre 1989 e 1999 (Garcia; Gonzaga, 2014GARCIA, L.; GONZAGA, L. L. Pesquisa de Emprego e Desemprego: trinta anos de acompanhamento do mercado de trabalho da Região Metropolitana de São Paulo. Estudos Avançados, v.81, maio-agosto 2014.).

Nos anos 1990, a indústria paulistana foi especialmente afetada com o processo de abertura econômica, justamente por concentrar os elos mais avançados do setor. Longe de uma “reversão da polarização industrial”, o que se observou então foi que a redução do emprego industrial esteve relacionada à terceirização de atividades não industriais, tanto nos serviços de baixa complexidade (alimentação, limpeza e zeladoria), como nos mais complexos (serviços jurídicos, publicidade e marketing, atendimento ao consumidor, design, análise de sistemas e suporte de informática) (Comin; Amitrano, 2003COMIN, A.; AMITRANO, C. Economia e emprego: a trajetória recente da Região Metropolitana de São Paulo. Novos Estudos Cebrap, n.61, julho de 2003., p.55-7).

Foi também nesse contexto que o desemprego se tornou fenômeno de massa, deixando de afetar apenas segmentos específicos da força de trabalho e colocando a insegurança ocupacional como aspecto distintivo do mercado de trabalho. O alongamento da duração do desemprego, em paralelo à ausência de um sistema de proteção social efetivo, culmina num cenário de intenso trânsito entre as várias situações no mercado de trabalho, tornando opacas as fronteiras entre a inatividade, a desocupação e os vários tipos de ocupação. No alvorecer do século XXI, em 2001, três quartos da população economicamente ativa mudava de situação a cada 12 meses (Guimarães, 2009GUIMARÃES, N. A. Desemprego, uma construção social: São Paulo, Paris e Tóquio. Belo Horizonte: Argumentum, 2009., p.21-2).

Na década de 2000, as taxas de desocupação se reduzem fortemente depois do pico alcançado em 2003. À polarização ocupacional e ao aumento da desigualdade de renda e da pobreza observada nos 1990 se contrapõe um movimento inverso ao longo dos anos 2000. O crescimento dos estratos ocupacionais médios, combinado ao processo de formalização do trabalho e à política de valorização do salário-mínimo esteve na raiz da redução da desigualdade de renda e da pobreza no período (Barbosa; Prates, 2015BARBOSA, R.; PRATES, I. Mercado de Trabalho e Estrutura das Desigualdades. In: MARQUES, E. São Paulo, 2000: Espaços, Heterogeneidades e Desigualdades. São Paulo: Ed. Unesp/CEM, 2015. p.45-68.).

Entretanto, a estrutura básica do mercado de trabalho segue marcada pela insegurança ocupacional e pela desigualdade dos níveis de renda. Acompanhamos em seguida como o mercado de trabalho paulistano evoluiu ao longo da última década, procurando mostrar como as suas transformações têm estado na esteira das tendências relativas à pobreza e à desigualdade.

Força de trabalho, desocupação e renda no período recente

A taxa de participação da Força de Trabalho na PIA no município de São Paulo é estruturalmente maior do que a do restante do Brasil, reforçando a ideia de um mercado de trabalho mais dinâmico na cidade. Além disso, São Paulo é o principal termômetro do mercado de trabalho nacional: aquele que primeiro sofre com as crises conjunturais, mas também o primeiro a se recuperar.

Após o esgotamento do período de crescimento com distribuição da renda, a crise de 2015-2017 trouxe uma mudança no patamar histórico da taxa de participação, que cresceu de 65,8% para 71,5%. O fechamento maciço de postos de trabalho, que se traduziu na queda do rendimento das famílias sem a ampliação das políticas de proteção social (Barbosa et al., 2022), atuou como uma alavanca do engajamento num mercado de trabalho deteriorado, com a saída de pessoas da inatividade para a busca por emprego.

Esse novo patamar durou até o início da pandemia da Covid-19, quando passou de 70,3% no primeiro trimestre de 2020 para 62,8% no segundo trimestre de 2020 - o menor valor já registrado na série histórica. Nesse período atípico, boa parte dos trabalhadores foi expelida do mercado de trabalho sem ingressar no desemprego, sendo alçados diretamente à condição de inatividade. Entre os dois primeiros trimestres de 2020, contabiliza-se 775 mil novos inativos, dos quais 454 mil (59%) estavam na força de trabalho potencial.

Ainda no primeiro semestre de 2020, a OIT destacou que a redução no volume de empregos seria acompanhada de um significativo aumento da inatividade, ainda maior do que do desemprego (OIT, 2020). Isso porque muitos trabalhadores deixaram de procurar emprego tanto pela falta de oportunidades quanto pelos obstáculos impostos pelas medidas de distanciamento social. Nessas condições, a taxa de desocupação, isoladamente, deixa de ser uma medida precisa para a compreensão das tendências do mercado de trabalho (Barbosa; Prates, 2020BARBOSA, R. J.; SOUZA, P. H. G. F. de; SOARES, S. S. D. Distribuição de Renda nos anos 2010: Uma Década Perdida para Desigualdade e Pobreza. IPEA - Texto para Discussão. Brasília, v.2610, p.1-67, 2020.; Bell; Codreanu; Machin, 2020BELL, B.; CODREANU, M.; MACHIN, S. What can previous recessions tell us about the COVID-19 downturn? CEP COVID-19 Analysis, 7, p.1-25, 2020.).

O nível de ocupação (ocupados/PIA) passa, nesse contexto, a ser o indicador mais robusto para revelar a crise do mercado de trabalho, reduzindo-se subitamente de 61% para 52% entre o primeiro e o segundo trimestres de 2020 na cidade de São Paulo. Ainda na pandemia, mas com o afrouxamento das medidas de distanciamento, inicia-se uma trajetória de recuperação do nível de ocupação, que alcança novamente o nível de 61% no último trimestre de 2021. Já entre 2021 e 2023, a trajetória foi de estabilidade em torno de um patamar sensivelmente superior (62,7%), pouco acima dos níveis registrados no quarto trimestre de 2014 (60,6%).

Gráfico 1
Segmentos populacionais e de mercado de trabalho (em mil pessoas) município de São Paulo, trimestre de 2012 a 2023.

A taxa de desocupação, que era de 6,6% em 2014, saltou para 13,7% em 2018 e atingiu o maior valor da série durante a pandemia, no último trimestre de 2020 (16,7%). A partir de então, reduz-se em velocidade acelerada, chegando a 6,9% no quarto trimestre de 2023, pouco acima do nível verificado no último trimestre de 2014 (6,9%).

Se considerarmos, para além dos desocupados, a subocupação por insuficiência de horas e a força de trabalho potencial no total da força de trabalho ampliada (FT + FTP), ou seja, a chamada subutilização da força de trabalho, esse valor representa um contingente de mais de um milhão de pessoas em 2023, o que representa 14,0% da força de trabalho ampliada (contra 17,3% no Brasil). No quarto trimestre de 2014, esse contingente era estimado em 660 mil, ou 10,2% da força de trabalho ampliada em São Paulo (contra 12,4% para o Brasil).

Gráfico 2
Indicadores de ocupação e desocupação (em %) município de São Paulo, trimestre de 2012 a 2023.

O comportamento da renda do trabalho reforça o dinamismo da cidade de São Paulo ante o cenário nacional. Entre 2012 e 2023, o rendimento médio do trabalho no país ficou em torno de R$ 3.000, enquanto, no município, saltou de R$ 4.500 para R$ 5.343, um crescimento de 20%. Ao final do período, o rendimento médio do trabalho no município de São Paulo era 70,5% superior ao da média nacional, ante 58% no início da série.

Observados os subperíodos, vê-se que a renda média do trabalho cresce entre 2012 e 2015 a uma taxa de acumulada de 18%. No período posterior (2015-2017), acumula queda de 3%, seguida de uma recuperação de 2,5% de 2017 a 2019. Com a pandemia (2019-2021), os valores voltam a cair, recuperando-se entre 2021 e 2023, com um crescimento real de 13,2%.

A análise realizada até aqui sugere que o mercado de trabalho paulistano recuperou o seu dinamismo após uma década marcada por duas fortes crises, sendo a segunda delas a crise econômico-sanitária sem precedentes causada pela pandemia da Covid-19. Entretanto, um olhar mais detalhado sobre a estrutura ocupacional e as desigualdades que permeiam o tecido social paulistano indicam um quadro mais complexo, inclusive com algumas mudanças estruturais importantes, como exploramos a seguir.

Gráfico 3
Rendimento médio real efetivo de todos os trabalhos (em R$) Brasil e município de São Paulo, trimestre de 2012 a 2023.

São Paulo ante o cenário nacional: convergências, divergências e polarização ocupacional

Tal como já destacado, um dos aspectos distintivos do mercado de trabalho paulistano é a sua excepcionalidade frente ao cenário brasileiro. Algumas dessas diferenças vêm se reduzindo ao longo das últimas décadas, mas constrastes marcantes ainda persistem. A participação das atividades relativas a agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura, que juntas somam 8,0% do total de ocupados em nível nacional, é quase nula no município. De outro lado, São Paulo concentra uma variada gama de atividades de informação, comunicação e financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas, que representam 25,5% dos ocupados - contra 12,5% do país. São essas atividades que compõem o núcleo do setor de serviços de alta produtividade concentrado no munucípio.

A participação da indústria no conjunto do emprego, que vem declinando desde a década de 1980, continuou a perder relevância (12,7% para 10,5% entre 2014 e 2023), seguindo o movimento mais geral observado no país. O parque industrial paulistano, contudo, ainda conta com maiores níveis de produtividade e salários, estabelecendo relações intersetoriais simbióticas com o setor de serviços da cidade, além de estimular processos de incorporação tecnológica na macrometrópole paulista e nas demais regiões do estado.

Nesse contexto mais geral, um mercado mais estruturado e com menores taxas de informalidade que a média nacional sempre foram traços marcantes do município. A década recente, contudo, sugere que esse padrão esteja se alterando.

A taxa de informalidade na cidade, que era de 26,7% em 2015, atinge 34,1% em 2019. Na pandemia, ela se reduz em razão da expulsão, em maior intensidade, dos trabalhadores informais pelo vínculo mais frágil com o mercado, mas mantém-se num patamar ainda superior ao de 2015. Após os primeiros impactos da crise, o retorno dos trabalhadores ao mercado se deu num contexto de frágil e incerta recuperação, com oferta ainda reduzida de postos de trabalho nos setores mais estruturados.

A informalidade foi, portanto, a principal porta de reinserção ocupacional, atingindo 31,8% no quarto trimestre de 2023 - 5,0 p.p. superior àquela observada em 2015 - e mantendo-se relativamente estável desde então. A taxa brasileira, que era de 43,6% em 2015 (11,6 p.p. superior à de São Paulo) se manteve praticamente estável ao longo do período, o que acarretou uma queda da diferença da taxa nacional em relação à do município de 7,3 p.p. no último trimestre de 2023.

Gráfico 4
Taxa de informalidade (em %) Brasil e município de São Paulo, 4º trimestre de 2015 a 2023.

Essa dinâmica de maior vulnerabilidade dos vínculos em convergência com o cenário nacional também pode ser observada nos indicadores de posição na ocupação e composição dos agrupamentos ocupacionais. No caso do primeiro, a proporção de ocupados no setor privado com carteira assinada no município, que sempre esteve acima da média nacional, também se reduz no período. Se em 2014 o percentual de trabalhadores nessa categoria era de 51,4% no município e de 40,4% no país (com uma diferença de 10 p.p.), em 2023 esses valores alcançam 45,4% e 37,6%, respectivamente, fazendo a mesma diferença cair para 7,8 pontos percentuais.

O trabalho por conta própria foi o que mais se expandiu em termos relativos, tanto no Brasil como em São Paulo. No país, sua participação aumentou de 22,9% para 25,4%, enquanto no município seu crescimento foi mais pronunciado, saltando de 18,2% para 24,9% (um aumento de 6,8 p.p). Em paralelo, há um crescimento (em torno de 2 p.p.) dos empregados no setor privado sem carteira de trabalho assinada, com a participação média nacional mantendo-se ainda superior à do município (13,4% e 12,5%, respectivamente).

Gráfico 5
Distribuição dos ocupados por posição na ocupação (em %) Brasil e município de São Paulo, 4º trimestre de 2014, 2019 e 2023.

Reforçando os dados relativos à informalidade, observa-se aqui um processo de precarização das relações de trabalho no mercado paulistano - especialmente no que concerne à abrangência da proteção social ao trabalho e à estabilidade do vínculo - tornando-o cada vez mais semelhante ao conjunto do mercado de trabalho nacional.

No caso da configuração dos grupos ocupacionais, São Paulo sempre se caracterizou por ter uma estrutura notadamente mais qualificada e com maior presença relativa de ocupações de comando, técnicas e científicas devido à concentração industrial e de serviços de alta produtividade. Dessa forma, a participação de diretores e profissionais de ensino superior (que juntos podem ser denominados de estrato superior),1 1 Embora os agrupamentos ocupacionais não se traduzam em uma estrutura de classes, é possível indicar que eles comportam uma tendência hierárquica com relação a rendimentos, níveis educacionais e autonomia organizacional, o que permite organizá-los, para efeitos expositivos, enquanto estratos sócio-ocupacionais distintos. Para um compilado sobre diferentes abordagens da relação entre ocupações e classes sociais, ver Wright (2005). é quase o dobro do obervado no país, ao passo que o inverso ocorre com o estrato mais baixo (as ocupações elementares e agrícolas observadas conjuntamente).

Na mesma direção, o estrato “médio-superior”, composto por profissionais de nível médio e trabalhadores do apoio administrativo, tem uma maior participação relativa em São Paulo maior do que no país, enquanto o oposto ocorre com o estrato “médio-inferior” (trabalhadores qualificados, operários & operadores). O único grupo, também pertencente ao “estrato médio-inferior”, cujos percentuais se mostram mais ou menos equivalentes, é o de trabalhadores dos serviços, vendedores dos comércios e mercados, com uma participação relativa próxima de 20,0%.

O período analisado indica uma sensível mudança qualitativa da estrutura ocupacional, tanto em São Paulo quanto no restante do país, com o crescimento expressivo dos profissionais de ensino superior.2 2 O crescimento do estrato profissional se encontra intimamente relacionado à expansão e diferenciação do ensino superior no período. Para uma discussão aprofundada, ver Prates (2018). Duas diferenças, contudo, chamam a atenção. Se o crescimento desse grupo na capital paulista foi muito mais intenso (5,3 p.p., contra 2,9 p.p. no Brasil ao longo do período), ele veio acompanhado de um movimento distinto nos demais estratos quando comparado ao movimento do conjunto do país.

No Brasil, o crescimento das ocupações profissionais se deu com manutenção da participação relativa das ocupações médias e às expensas, sobretudo, da redução do estrato mais inferior, as ocupações elementares. Já em São Paulo, o forte crescimento do estrato profissional foi acompanhado de uma redução de praticamente todos os estratos médios - a exceção é parte do estrato médio-inferior, formado pelos trabalhadores do comércio e serviços - ao passo que a queda das ocupações elementares foi quase irrisória.

Nota-se, assim, um processo de esvaziamento das camadas médias do mercado de trabalho paulistano, no que a literatura convencionou chamar de “polarização ocupacional” (Goos; Maning; Salomon, 2014GOOS, M.; MANNING, A.; SALOMONS, A. Explaining Job Polarization: Routine-Biased Technological Change and Offshoring. American Economic Review, v.104, n.8, p.2509-26, 2014.; Fernandéz-Macías, 2012). No cenário nacional, o padrão é menos claro, mas pode-se indicar uma espécie de “meio de caminho” entre uma polarização suave e um relativo job upgrading, na acepção de Wright e Dwyer (2003WRIGHT, E. O.; DWYER, R. E. The patterns of job expansions in the USA: a comparison of the 1960s and 1990s. Socio-Economic Review, v.1, issue 3, p.289-325, 2003.).

Com efeito, a evolução do rendimento médio real por grupamentos ocupacionais na cidade de São Paulo mostra um crescimento dos rendimentos médios do trabalho do estrato superior (diretores e gerentes e profissionais) da ordem de 12,7% e 8,5%, respectivamente, entre 2014 e 2023, tomando os últimos trimestres como base. Crescimento também significativo foi observado no extremo oposto da estrutura ocupacional, as ocupações elementares, de 11,8%. Nos demais, houve queda real para técnicos e profissionais de nível médio (-20,9%), trabalhadores do comércio e serviços (-7,3%), trabalhadores de apoio administrativo (-2,2%), operadores de instalações e máquinas e montadores (-6,6%) e para trabalhadores qualificados e operários (-1,6%).

Gráfico 6
Variação da participação relativa dos estratos ocupacionais (em p.p.) Brasil e Município de São Paulo, 2014-2023, 4º trimestre.

Já no cenário nacional, os únicos grupos com perda de rendimentos para o mesmo período (2014-2023) foram justamente os dois últimos mencionados acima, e, também em percentual reduzido (-1,7% e -1,3%, respectivamente). Os demais estratos médios andaram de lado (em torno de 3% de ganhos reais), ao passo que diretores e gerentes, com 21% de crescimento, foram os verdadeiros beneficiados do período, com ganhos bastante superiores ao das ocupações elementares, de 7%.

Depreende-se, portanto, que São Paulo continua possuindo um mercado de trabalho mais estruturado, com maiores níveis de rendimentos se comparado à média nacional e com uma estrutura ocupacional que ainda conta com uma maior participação relativa de ocupações de melhor qualidade e, em sentido inverso, menor participação das ocupações inferiores. Por outro lado, é possível sugerir movimentos concretos no sentido de um processo de precarização das relações de trabalho no município - evidenciado pelo aumento da informalidade e dos trabalhadores por conta própria - em ritmo mais acelerado que do restante do país.

Tabela 1
Rendimento médio real efetivamente recebido no trabalho principal (em R$), Brasil e Município de São Paulo, 4º trimestres de 2014, 2019, 2023

Ademais, a redução relativa dos estratos médios (que incluem os trabalhadores qualificados), acompanhada de uma maior intensificação de relações de trabalho informais quando comparado aos demais estratos, além da queda dos rendimentos, sugere um processo de polarização ocupacional que acaba por empobrecer as camadas médias, reduzindo as chances de mobilidade social ascendente e fomentando uma sociedade mais desigual e fragmentada.

Mercado de trabalho, desigualdade e pobreza

As tendências aqui observadas têm impactos significativos sobre a estrutura da distribuição de renda e a pobreza. As formas de inserção laboral e a configuração da estrutura ocupacional condicionam o acesso dos indivíduos a posições e aos retornos no mercado de trabalho, que respondem por aproximadamente 75% da renda domiciliar no Brasil. Transferências de programas sociais - excluindo-se, por exemplo, outras transferências como aposentadoria, além de provisão de serviços públicos, regras tributárias, etc., que têm efeito indireto - somam outros 15% da renda.

Tendo essa perspectiva mais geral como pano de fundo, o decênio 2012-2022 pode ser dividido, para efeitos de compreensão da desigualdade de renda e da pobreza, nos seguintes subperiodos: 2012-2014, fim do ciclo expansivo com expansão das políticas sociais; 2015-2017, crise econômica com elevação do desemprego e enxugamento das políticas sociais; 2018-2019, tímida recuperação econômica sem ampliação das políticas sociais; 2020-2021, crise da Covid, com medidas emergenciais; e 2022, que indica o início de uma recuperação econômica, ainda instável, com aumento dos valores do Auxílio Emergencial. Essa periodização permite, de saída, compreender as principais variações na desigualdade de renda, no cenário nacional.

Entre 2012 e 2015, a trajetória foi de queda da desigualdade, seguindo a trajetória observada durante o ciclo expansivo iniciado na década anterior, para voltar a crescer sensivelmente entre 2016 e 2019. A forte redução em 2020 se deve exclusivamente ao Auxílio Emergencial durante a crise da pandemia. Da mesma forma, eleva-se a desigualdade em 2021, quando o Auxílio é suspenso e a economia e o mercado de trabalho ainda patinam. Em 2022, em grande medida devido ao ano eleitoral, presencia-se uma nova queda da desigualdade de renda. A estrutura ocupacional no Brasil, por seu turno, se não andou de lado, mudou muito pouco, tal como indicamos anteriormente.

O cenário paulistano, contudo, é substancialmente distinto. Se no início do período 2012-2022 os valores de desigualdade para o município e para o Brasil eram praticamente idênticos, o último ano da série, em relação ao primeiro, indica um aumento expressivo da desigualdade na cidade de São Paulo, ao contrário do verificado para o conjunto do país.

Gráfico 7
Índice de Gini da distribuição do rendimento domiciliar per capita com e sem os benefícios de programas sociais governamentais Brasil e município de São Paulo, 2012 a 2022.

As respostas para o comportamento tão distinto da desigualdade exigem uma agenda de pesquisa em si mesma, mas é possível sugerir que uma das principais alavancas para o aumento da desigualdade de renda em São Paulo é o processo de polarização ocupacional, tal como discutido na seção anterior. O crescimento expressivo do estrato profissional, cujos rendimentos são 75% superiores à renda média do trabalho, acompanhado do crescimento do estrato inferior (ocupações elementares), cujos rendimentos são 60% inferiores a essa mesma média, ao tempo em que se observa o encolhimento e o empobrecimento dos estratos médios, é a combinação estrutural que tensiona os rendimentos do trabalho (e das famílias) para os extremos (especialmente o superior da distribuição), esvaziando o meio da distribuição de renda.

O Gráfico 8 corrobora esse argumento. Ele reproduz a mesma lógica do Gráfico 6 (polarização ocupacional) e apresenta a variação, em pontos percentuais, da fatia apropriada por cada um dos décimos de renda domiciliar per capita (1º. Décimo = 10% mais pobres e 10 º.= 10% mais ricos) no período 2012-2022.

A participação dos sétimos primeiros décimos se reduziu na cidade de São Paulo, enquanto apenas os três décimos superiores aumentaram o percentual no total da renda (especialmente o oitavo e nono décimos). As quedas mais expressivas estiveram localizadas no quatro primeiros. O quadro no Brasil é quase o oposto: as quedas de participação no total da renda se concentram no primeiro e no último, ao passo que a participação relativa de todos os demais (segundo a nono) aumentou, com destaque para o quinto ao oitavo décimos.

Embora existam uma série de fatores que afetam a forma e a intensidade pela qual a estrutura ocupacional condiciona o comportamento mais geral da distribuição de renda, a semelhança com o Gráfico 6 (polarização ocupacional) é notável tanto a nível nacional como para São Paulo. Na capital, é justamente nos décimos de renda per capita que majoritariamente compreendem os estratos médios e inferiores da estrutura ocupacional que se observa a redução da participação relativa sobre o total da renda. Em sentido inverso, foi exatamente essa fatia que cresceu em nível nacional.

Gráfico 8
Variação da participação relativa dos décimos de renda (em p.p.) Brasil e município de São Paulo, 2012-2022.

Já as implicações dessa dinâmica para o comportamento das taxas de pobreza não se fazem tão direta, em virtude da própria característica do fenômeno. A taxa de pobreza quantifica a fatia da população cujos rendimentos estão abaixo do mínimo necessário concebido previamente, qual seja, a linha de pobreza. As transformações da estrutura ocupacional e da qualidade dos vínculos, com uma tendência à precarização - como observamos no caso de São Paulo - podem não se refletir diretamente sobre a linha de pobreza, na medida em que os rendimentos médios de São Paulo continuam sendo maiores do que os verificados no Brasil, para todos os grupos ocupacionais.

Isso explica por que para uma linha de pobreza constante (6.85 PPP/dia por pessoa, R$ 633,00 reais por pessoa por mês em valores de 2022, algo próximo a meio salário-mínimo), a taxa de pobreza no Brasil continua consideravelmente superior à paulistana.

Entretanto, a tendência temporal para Brasil e São Paulo são distintas, com crescimento na capital paulista e redução em nível nacional, representando uma queda de 5 p.p. na diferença entre ambos do ínicio ao final da série. Veja-se, por exemplo, como o Brasil apresenta uma redução de 3,1 p.p. em relação a 2012, ao passo que em são Paulo a taxa de pobreza é 2,0 p.p. superior, se compararmos com o mesmo ano. Isso representa um aumento estimado de aproximadamente 400 mil pessoas em situação de pobreza na cidade ao longo do período.

Gráfico 9
Taxa de pobreza domiciliar per capita, US$ 6,85 PPC 2017 (R$).

Tendo-se em vista que, ao longo do período, São Paulo pouco se distingue do Brasil quanto ao comportamento da desocupação e que tampouco nenhuma pressão inflacionária extraordinária foi obervada na cidade, é razoável sugerir que o comportamento ascendente das taxas de pobreza esteja fortemente relacionado a dois fatores. Por um lado, ao menor alcance/efetividade dos programas de transferência de renda e, por outro, ao empobrecimento de certos grupos ocupacionais e à fragilização dos vínculos de trabalho, hipóteses que deixamos em aberto para uma análise futura.

Não obstante, é possível observar que os grupos mais vulneráveis à pobreza são também aqueles que ocupam as posições mais vulneráveis no mercado de trabalho, notadamente pessoas negras e mulheres.3 3 Outros grupos, cujas vulnerabilidades estão associadas a demais marcadores sociais, como idade (especialmente jovens e adultos), região, condição de migração, situação censitária (urbano x rural), Pessoas com deficiência (PcD), poderiam ser abordados nessa seção. Entretanto, tendo-se em vista a centralidade de gênero e raça para a organização e distribuição dos retornos econômicos e simbólicos no mercado de trabalho, destacaremos essas duas dimensões. Como mostra a Tabela 2, seja no Brasil, seja em São Paulo, e a despeito das diferenças na composição racial da população, as taxas de pobreza são maiores entre mulheres negras e homens negros, com valores inferiores para mulheres brancas e homens brancos.

Tabela 2
Taxa de pobreza (em%) por raça e gênero e variação no período (em p.p.) Brasil e Município de São Paulo

Dois pontos, contudo, merecem destaque. O primeiro refere-se à distância entre os grupos raciais: as taxas de pobreza da população negra são quase o dobro da população branca, tanto em nível nacional como na capital paulista. O segundo remete à evolução no período: se no Brasil, a redução da pobreza se deu com maior intensidade para homens negros e mulheres negras, o aumento da pobreza em São Paulo ocorreu de forma desproporcional justamente entre as mulheres negras.

A interseccionalidade entre raça e gênero como raiz de parte das desigualdades que se formam no mercado de trabalho e se reverberam nas taxas de pobreza tem uma dinâmica própria, que envolve características estruturais. O componente racial se expressa, sobretudo, através de uma inserção mais frágil da população negra, notadamente a maior incidência de vínculos informais/autônomos e ocupações menos estáveis, como consequência tanto de menores níveis de qualificação quanto a recorrentes mecanismos de discriminação. Ou seja, uma desvantagem cumulativa que combina diferentes chances de alcance educacional e processos discriminatórios que se materializam nas relações sociais cotidianas, afetando de forma negativa a trajetória no mercado de trabalho.

O componente de gênero, por sua vez, se materializa menos nas desigualdades de alcance educacional (mulheres são, na média, mais escolarizadas que os homens), mas sim na divisão sexual do trabalho remunerado e não remunerado que, de saída, implica menores taxas de participação feminina na força de trabalho. A esse componente se soma a segregação ocupacional e setorial (Silveira; Leão, 2021SILVEIRA, L.; LEÃO, N. Segregação ocupacional e diferenciais de renda por gênero e raça no Brasil: uma análise de grupos etários. Revista Brasileira de Estudos de População, v.38, n.1, p.1-22, 2021.).

A Tabela 3 corrobora esse argumento ao indicar em que medida cada um dos grupos estão sobre ou sub representados entre as categorias de posição na ocupação. Valores maiores que 1 indicam que há sobrerrepresentação; valores menores que 1, o oposto; e um valor igual a 1 indicaria que a proporção do grupo naquela categoria é exatamente a mesma da proporção do grupo na força de trabalho ocupada. Os resultados são bastante elucidativos.

Analisados em conjunto, os grupos de raça e gênero se distribuem desproporcionalmente da seguinte forma, segundo posição na ocupação. As mulheres, especialmente as negras, estão sobrerepresentadas no emprego doméstico, que é ainda mais segregado racialmente em São Paulo do que no restante do país.4 4 Para uma discussão sobre a heterogeneidade do emprego doméstico, ver Lima e Prates (2019). O emprego no setor privado sem carteira e o trabalho por conta própria, por sua vez, é traço típico das ocupações dos homens negros. Ou seja, mulheres negras e homens negros compartilham a fragilidade do vínculo.

Tabela 3
Taxa de sobre(sub) representação de grupos raciais e de gênero nas categorias de posição na ocupação São Paulo, 2022

De outro lado, as mulheres brancas também se encontram fortemente sobrerrepresentadas no emprego doméstico. Contudo, por comporem um grupo heterogêneo com uma fatia altamente escolarizada, esse segmento das mulheres brancas se direciona em larga proporção ao setor público. Por fim, homens brancos estão desproporcionalmente sobrerrepresentados entre os empregadores, a principal posição de comando na estrutura ocupacional.

Embora esteja longe de esgotar o fênomeno, essa configuração nos ajuda a compreender não apenas porque as taxas de pobreza são mais elevadas entre mulheres negras e homens negros, mas em que medida as próprias transformações do mercado de trabalho contribuem para a reprodução ou mesmo para o aprofundamento deste padrão de desigualdades.

No caso da cidade de São Paulo, a expansão dos estratos ocupacionais inferiores e das posições na ocupação sem direitos sociais - a maioria dos trabalhadores conta própria, além dos empregados sem carteira e dos vinculados a estabelecimentos familiares - são alguns fatores que auxiliam na explicação do comportamento da pobreza e a forma pela qual mulheres negras e homens negros estiveram ainda mais propensos a vivenciar esta condição ao longo do período estudado.

Considerações finais

Ao longo do texto, procuramos mostrar em que medida o mercado de trabalho paulistano apresentou mudanças estruturais expressivas no segundo decênio do século XX. Num primeiro olhar, quando se observam as taxas de participação, de desocupação e o nível de ocupação, os valores encontrados ao final do ciclo de crescimento (2014), depois das sucessivas crises, alcançam os mesmos patamares positivos em 2023.

Contudo, se escavarmos para além da superfície, o quadro é bem diferente para o período. Há um aumento importante da informalidade e da taxa de subutilização da força de trabalho, com uma polarização dos agrupamentos ocupacionais. Isso se reflete na desigualdade, que se eleva entre 2012 e 2022 e, de certa forma, aproximam cada vez mais São Paulo do contexto nacional. Se a antiga capital da industrialização possui níveis de renda superiores para todos os tipos de ocupação e vínculo, os seus níveis de desigualdade superam os do país e de boa parte das capitais do Brasil, inclusive as nordestinas. Isso se explica pela elevação da participação na renda apropriada pelos décimos superiores de renda, ao passo que décimos intermediários e inferiores perdem espaço. Mesmo a pobreza, ainda inferior à nacional, se elevou no período, ao contrário da redução no restante país.

Tudo indica que o mercado de trabalho paulistano tende a se tornar mais desigual e polarizado, diminuindo seu papel de núcleo das transformações sociais do país, mesmo quando combinava “crescimento e pobreza”. O crescimento da renda do trabalho para boa parte dos grupos ocupacionais, inclusive para as camadas médias, tem se estagnado, preservando apenas os estratos superiores e mais qualificados. O padrão de crescimento - ou a nova articulação produtiva com a economia nacional - parece estimular a desigualdade.

Postos os dilemas, os desafios estão relacionados à tentativa de alterar esse cenário. Nesse sentido, destaca-se a importância do fortalecimento do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda com a ampliação dos recursos para a formação profissional e para a intermediação de mão de obra, de forma a garantir a manutenção e ampliação do atendimento de qualidade, articulado com o Programa Seguro-Desemprego e acionando os vários níveis da federação, por meio do Conselho Municipal do Trabalho, Emprego e Renda. Além disso, a integração do atendimento do Sistema Nacional de Emprego com a criação e manutenção das políticas de desenvolvimento econômico e de inclusão produtiva com o potencial de geração de renda e emprego e de combate a precarização, como o estímulo as atividades empreendedoras individuais e coletivas, com foco na economia solidária, facilitando o acesso a microcrédito orientado e assistido. Tudo isso aliado à promoção e a retomada de uma agenda municipal do trabalho decente e de uma pesquisa de emprego e desemprego que possibilite avaliar periodicamente os indicadores para as diversas regiões intra municipais da cidade de São Paulo, uma vez que a cidade apresenta desigualdades sociais e de acesso ao mercado de trabalho significativas entre regiões.

Por mais que se avance nessas searas, o enfrentamento estrutural dos desafios está em grande parte relacionado ao padrão de desenvolvimento nacional, à sua maior ou menor capacidade de gerar empregos e de distribuir renda. No quadro atual, tudo indica que, do ponto de vista produtivo, a cidade de São Paulo acabou se convertendo numa metrópole de serviços cada vez menos entrosados com a estrutura produtiva local. O grau de verticalização/hieraquização dessas atividades vem acompanhado de menor diferenciação social interna. Mesmo quando elas se espraiam para fora da capital, não têm o mesmo poder de gerar transformações na estrutura produtiva nacional como no passado.

Com efeito, não se trata de voltar ao passado, mas de caminhar rumo a novas oportunidades. Dois vetores nos parecem estratégicos: incorporar a inclusão social como meta, inclusive pela sua capacidade geradora de empregos e de renda, por meio da expansão das políticas públicas (saúde, educação e assistência social); e apostar em novos conglomerados produtivos, fundados na alta produtividade e no potencial de emprego, tendo em vista o ainda existente diferencial da cidade no plano nacional. Essas ações de liderança tecnológica em novos setores e segmentos - num contexto de “nova industrialização” tal como propugnado pelo governo federal - poderiam ser desenvolvidas inclusive no sentido de reverter a atual hierarquia espacial da cidade.

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Notas

  • 1
    Embora os agrupamentos ocupacionais não se traduzam em uma estrutura de classes, é possível indicar que eles comportam uma tendência hierárquica com relação a rendimentos, níveis educacionais e autonomia organizacional, o que permite organizá-los, para efeitos expositivos, enquanto estratos sócio-ocupacionais distintos. Para um compilado sobre diferentes abordagens da relação entre ocupações e classes sociais, ver Wright (2005).
  • 2
    O crescimento do estrato profissional se encontra intimamente relacionado à expansão e diferenciação do ensino superior no período. Para uma discussão aprofundada, ver Prates (2018).
  • 3
    Outros grupos, cujas vulnerabilidades estão associadas a demais marcadores sociais, como idade (especialmente jovens e adultos), região, condição de migração, situação censitária (urbano x rural), Pessoas com deficiência (PcD), poderiam ser abordados nessa seção. Entretanto, tendo-se em vista a centralidade de gênero e raça para a organização e distribuição dos retornos econômicos e simbólicos no mercado de trabalho, destacaremos essas duas dimensões.
  • 4
    Para uma discussão sobre a heterogeneidade do emprego doméstico, ver Lima e Prates (2019).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2024
  • Aceito
    25 Jun 2024
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