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Governança do orçamento de São Paulo revisitada pós 2014. Da escassez à sobra de recursos

RESUMO

O presente artigo discute a governança orçamentária do município de São Paulo, que é afetada por dimensões históricas, institucionais, políticas e econômicas. A partir de um conjunto de dados de receitas, despesas e estrutura de pessoal, coletados para o período de 2003 e 2023, além de entrevistas com atores-chave da governança orçamentária, busca-se analisar o atual momento orçamentário do município. Nessa análise destaca-se como a alteração em alguns dos elementos essenciais da governança do orçamento paulistano, tais como o incrementalismo das despesas e o nível de escassez, levaram a um aumento importante na discricionariedade política do chefe do Executivo. Esses dois elementos são analisados em conjunto com outros, como a da complexidade de regras orçamentárias, a hierarquia burocrática e a disputa entre atores da governança orçamentária, para buscar entender a dificuldade na efetiva execução dessa discricionariedade orçamentária no período recente, especialmente após a pandemia da Covid-19.

PALAVRAS-CHAVE:
Orçamento público; São Paulo; Conflito distributivo

ABSTRACT

This article discusses the budgetary governance of the municipality of São Paulo, which is affected by historical, institutional, political, and economic dimensions. Based on a set of data on income, expenditure, and staff structure, collected for the period 2003 to 2023, as well as interviews with key players in budgetary governance, the aim is to analyse the municipality’s current budgetary situation. This analysis highlights how changes in some of the essential elements of São Paulo’s budgetary governance, such as the incrementalism of spending and the level of scarcity, have led to a significant increase in the political discretion of the chief executive. These two elements are analysed together with others such as the complexity of budget rules, the bureaucratic hierarchy, and the dispute between budget governance actors to try to understand the difficulty in effectively implement this budget discretion in the recent period, especially after the Covid-19 pandemic.

KEYWORDS:
Public budget; São Paulo; Distributive conflict

Introdução

A governança orçamentária de um governo é determinada por fatores econômicos, fatores políticos e fatores macro e microinstitucionais. Nesse modelo, burocratas e coalizões políticas importam para a governança orçamentária, pois definem as regras do jogo microinstitucional do orçamento e por vezes também as regras do macroinstitucional, e têm suas ações limitadas e influenciadas por essas regras.

No âmbito da economia, importa o nível de escassez, como mostra Schick (1976SCHICK, A. O PPB e o orçamento incremental. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p.65-84, 1976.), uma vez que isso pode determinar a possibilidade de crescimento ou inclusão de despesas e, assim, a melhor acomodação de conflitos entre os diferentes atores na arena orçamentária. Além disso, expectativas econômicas importam, pois determinam a adoção de posturas mais ou menos conservadoras por parte dos guardiões do orçamento em razão de cenários com maior ou menor grau de incerteza e instabilidade (Wildavsky, 1969WILDAVSKY, A. B. Budgeting: A Comparative Theory of the Budgeting Process. Boston: Little, Brown and Company, 1969.).

As instituições importam nas dimensões macro e micro, as quais se imbricam e se intercalam, em uma conformação multinível em que definições e regras federais têm consequências para a governança local e podem ser reinterpretadas localmente mais do que simplesmente implementadas. O processo orçamentário em todo mundo é bastante rotineiro e inercial, com seu calendário anual predeterminado para cada etapa, da elaboração à prestação de contas. No Brasil, esse processo está rigidamente definido pela Constituição Federal para todos os entes federativos, sejam estados, sejam municípios.

Os contornos da governança orçamentária de um município como São Paulo, que é uma metrópole mundial como Londres ou Paris, têm distinções importantes comparativamente a outras cidades brasileiras. Ao mesmo tempo em que está sujeita ao regramento fiscal definido pela União em regras constitucionais e infraconstitucionais, São Paulo tem grande capacidade de gerar receita própria com impostos e recursos urbanos, o que a diferencia da maior parte dos municípios brasileiros.

O presente texto analisa como o município passou de uma situação de tensão financeira em seu orçamento em 2014 para um cenário de saldo parado em caixa, e qual foi o impacto disso no espaço de discricionariedade política do orçamento local. Para isso, é revisitado o modelo de governança orçamentária de São Paulo, apresentado em Peres (2018PERES, U. D. Análise da Governança do Orçamento Público. In: MARQUES, E. C. L. (Org.) As políticas do urbano em São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2018.), e são usadas informações de receitas, despesas e de estrutura burocrática do município do período de 2008 a 2022, coletadas em bases de dados da prefeitura municipal. Foram também realizadas 15 entrevistas semiestruturadas com atores-chave da governança orçamentária do município.

No período aqui abordado, o processo orçamentário paulistano passou por: i) alterações nas regras legais realizadas pelas administrações Fernando Had- dad (2013-2016), João Doria/Bruno Covas (2017-2020) e Bruno Covas/Ricardo Nunes (2021-2024); ii) mudanças no nível de escassez em razão de oscilações macroeconômicas pelas quais o Brasil passou; iii) alterações burocráticas; iv) novos instrumentos de controle. Essas mudanças alteraram o nível de discricionariedade do executivo e trouxeram novas perspectivas para o conflito em torno do fundo público, abrindo possibilidades alocativas, dado o aumento do volume de recursos e revelando problemas latentes na estrutura burocrática municipal.

Este artigo está estruturado em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. A primeira seção traz o debate teórico com os principais elementos analíticos utilizados para a compreensão da governança orçamentária do município. A segunda seção apresenta um breve relato do funcionamento do processo orçamentário em São Paulo e de sua governança orçamentária para, na terceira seção, discutir quais mudanças, estruturais e conjunturais, ocorreram no período recente nessa governança. A quarta seção apresenta o nível de discricionariedade orçamentária no município comparado em três momentos (2014, 2018 e 2022) e tece algumas reflexões sobre a dificuldade no efetivo uso dessa discricionariedade no momento atual. Por fim, são apresentadas as conclusões.

Debate teórico

Todo o processo orçamentário, de estabelecimento de receitas e despesas, é pontuado por decisões sobre alocação de gastos. Esse processo define os níveis de prioridade de serviços, quem deve financiar os bens e serviços públicos e quem deve receber o financiamento. Como instrumento de política pública (Lascoumes; Le Galès, 2005LASCOUMES, P.; LE GALÈS, P. Gouverner par les instruments. Paris: Sciences Po Les Presses, 2005.), o orçamento é extremamente importante para as políticas econômicas e sociais. As alocações nos orçamentos refletem os processos de tomada de decisão e estabelecem o ponto de partida para o processo de determinação dos objetivos em cada área de política pública (Rezende, 2015REZENDE, F. A Política e a Economia da Despesa Pública. Escolhas orçamentárias, ajuste fiscal e gestão pública: elementos para o debate da reforma do processo orçamentário. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.).

São necessárias muitas rodadas de discussão entre os poderes Executivo e Legislativo para chegar a uma decisão e aprovar o orçamento anual da municipalidade. Ao longo do processo, há atores internos e externos à estrutura do governo que monitoram, pressionam e contestam decisões tomadas. Dessa forma, os orçamentos configuram-se em espaço soberano de conflito distributivo (Rubin, 2015RUBIN, I. Past and Future Budget Classics: A Research Agenda. Public Admin Rev, v.75, p.25-35, 2015.; Wildavsky, 2018_______. A Budget for all seasons? Why the traditional budget lasts. In: Performance based budgeting. S. l.: Routledge, 2018. p.95-112.).

A teoria orçamentária tem como uma de suas principais preocupações analíticas a margem de discricionariedade que os políticos e burocratas envolvidos no processo orçamentário usam para equilibrar os fundos (correntes e de capital) e alocá-los ao longo dos anos. Dado o caráter inercial do orçamento, Wildavsky (1969WILDAVSKY, A. B. Budgeting: A Comparative Theory of the Budgeting Process. Boston: Little, Brown and Company, 1969.) aponta que é sobre a margem discricionária que os atores principais da disputa orçamentária decidem projetos e prioridades. Essa margem representa, em geral, uma pequena porcentagem do orçamento, visto que a maior parte dos orçamentos é rígida, empregada a despesas já contratadas anteriormente (Schiavo-Campo, 2017). Mas a disputa sobre esse montante, ainda que pequeno, permite acomodação de interesses com potencial de crescimento incremental ao longo dos anos, desde que haja condições econômicas para tal, sem mudanças nos níveis de escassez, como explica Schick (1976SCHICK, A. O PPB e o orçamento incremental. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p.65-84, 1976.). Wildavsky (1969) mostra que o incrementalismo orçamentário percebido ao longo de um período estudado faz parte do processo decisório e, por isso, permite que as políticas públicas sejam ajustadas progressivamente. Apesar de ser um processo eminentemente político, a elaboração do orçamento é marcada por camadas de regras sistemáticas, constitucionais e legais, que o tornam complexo e opaco (Abreu; Câmara, 2015ABREU, C. R.; CÂMARA, L. M. O orçamento público como instrumento de ação governamental: uma análise de suas redefinições no contexto da formulação de políticas públicas de infraestrutura. Revista de Administração Pública, v.49, p.73-90, 2015.).

Assim, conforme desenvolvido em Peres (2018PERES, U. D. Análise da Governança do Orçamento Público. In: MARQUES, E. C. L. (Org.) As políticas do urbano em São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2018.; 2022), a discricionariedade política na governança orçamentária depende da combinação de quatro diferentes dimensões dessa governança, a saber: (i) complexidade das regras orçamentárias; (ii) hierarquia burocrática do orçamento; (iii) incrementalismo dos gastos; e (iv) nível de escassez. Em conjunto, essas quatro dimensões determinam o espaço de discricionariedade da política.

Na análise clássica de Wildavsky (1975_______. A comparative theory of budgetary processes. Boston: Little, Brown and Company, 1975.), na governança orçamentária há uma disputa entre dois grupos de atores, que barganham espaço orçamentário: os guardiões e os gastadores. Os guardiões, que são em geral burocratas das áreas de finanças e/ou planejamento, têm o papel clássico de buscar controlar ao máximo a despesa para garantir o equilíbrio das contas e até superavit. Já os gastadores são burocratas ou outros servidores não efetivos responsáveis pela condução das despesas nas áreas finalísticas; esses buscarão implementar suas políticas públicas setoriais, sempre buscando um maior espaço orçamentário. Na análise de Good (2014GOOD, D. The Politics of Public Money. Toronto: University of Toronto Press, 2014.) sobre o caso canadense, há, contudo, outros atores relevantes no período recente que tornam a negociação do orçamento mais complexa: os indicadores de prioridades e os controladores. Os primeiros estariam no grupo dos gastadores, porém com atributos diferentes, pois têm proximidade com o núcleo de governo para pesar nas decisões de hierarquização de gastos e sua execução; já os controladores são um grupo mais amplo que envolve o poder Legislativo e suas instituições de controle, como tribunais de contas, organizações da sociedade civil e Ministério Público, entre outros. Quanto mais complexas e rígidas forem as regras orçamentárias, especialmente as que visam à austeridade fiscal, mais difícil será negociar e barganhar o orçamento. Assim, as negociações ocorrerão se houver espaço orçamentário e dependerão de ajustes entre os guardiões, gastadores, indicadores de prioridades e controladores. Nesse caso, a complexidade do processo leva a uma especialização burocrática dos guardiões que tendem a buscar concentrar e hierarquizar o poder com intuito de garantir equilíbrio fiscal (Good, 2014).

Analisando o cenário atual do município de São Paulo, é importante destacar alguns elementos a serem considerados nesse modelo.

Couto e Cardoso Jr. (2018COUTO, L.; CARDOSO JUNIOR, J. Governança orçamentária: transformações e lacunas nas práticas de planejamento e orçamento no Brasil. Boletim de Análise Político-Institucional, n.19, p.75-82, 2018.) chamam a atenção sobre a importância desses novos atores na governança orçamentária brasileira sob a égide da austeridade fiscal imposta pela LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que propicia um relevante empoderamento dos controladores, nesse caso em especial do Legislativo, trazendo alterações no processo orçamentário. Os autores apontam que, ao mesmo tempo que os controladores, em tese, exercem um papel de arbítrio entre diferentes atores do Executivo, para avaliação da correção da execução orçamentária, eles têm interesses próprios na execução de emendas parlamentares.

Além da hierarquia burocrática e da complexidade das regras do orçamento, o incrementalismo e o nível de escassez são fundamentais na compreensão da governança orçamentária. Quanto maior o peso de decisões do passado no orçamento presente e quanto maior seu crescimento incremental, menor o espaço para novas despesas, caso a receita esteja constrangida por um momento macroeconômico de escassez, como explica Schick (1976SCHICK, A. O PPB e o orçamento incremental. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p.65-84, 1976.). Nesse caso é possível que a discricionariedade orçamentária seja uma proporção muito baixa do orçamento; ainda assim, se esse espaço for utilizado de forma estratégica pelo chefe do Executivo, apoiado pelos indicadores de prioridades, pode ser muito relevante.

A governança orçamentária envolve sempre uma tensão na disputa entre burocratas, políticos e sociedade civil, organizações públicas e privadas em torno do fundo público.

A dinâmica da discricionariedade política do orçamento depende não só da existência de receitas suficientes para financiar as despesas almejadas, mas também de como os atores disputam esse espaço discricionário e como o chefe do Executivo arbitra ou não essa disputa. O nível de discricionariedade pode mudar em razão de mudanças macroeconômicas e políticas. Essas oscilações, que podem ser compreendidas na análise de pontuações (Jones; Baumgartner; True, 1998JONES, B. D.; BAUMGARTNER, F. R.; TRUE, J. L. Policy punctuations: US budget authority, 1947-1995. The Journal of Politics, v.60, n.1, p.1-33, 1998.), levam a novas disputas entre atores e novos pontos de equilíbrio entre receitas e despesas públicas.

A governança orçamentária de São Paulo revisitada no período recente

A partir da combinação desses quatro elementos, temos uma governança orçamentária que se traduz em uma política tributária e alocativa mais ou menos progressiva, do ponto de vista da inclusão de beneficiários, considerando as orientações políticas da coalizão de governo a cada período, como tratado em Marques (2018MARQUES, E. C. L. As políticas do urbano em São Paulo. São Paulo: Editora Unesp/CEM, 2018.; 2021).

Os contornos da governança orçamentária de um município podem ser lidos através da análise das estruturas e trajetórias de receitas e despesas públicas, que nos mostra o grau de discricionariedade política no orçamento, dentro de determinado contexto político, econômico e institucional, como apresentado anteriormente.

A cidade de São Paulo, ao longo de mais de uma década, esteve atravessada por dificuldades políticas, econômicas e institucionais que acarretaram à dimensão da discricionariedade política uma difícil restrição em termos de volume, que, por isso, ampliava a importância simbólica de suas decisões alocativas, como tratado em Peres (2018PERES, U. D. Análise da Governança do Orçamento Público. In: MARQUES, E. C. L. (Org.) As políticas do urbano em São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2018.; 2022).

A partir de 2013, contudo, a governança orçamentária em São Paulo sofreu alterações significativas que levaram a um aumento do espaço discricionário do chefe do Executivo no orçamento. Apesar disso, a efetiva utilização desse aumento de orçamento discricionário não é automática, como veremos adiante.

Etapas, instrumentos, atores e constrangimentos do ciclo orçamentário de São Paulo

O município de São Paulo tem um dos maiores orçamentos do país, cerca de R$ 112 bilhões previstos para o ano 2024. Como em qualquer outro ente federativo brasileiro, o ciclo orçamentário em São Paulo segue um conjunto de regras constitucionais, infraconstitucionais e municipais. Conforme estabelecido na Constituição de 1988, o município deve, a cada mandato, elaborar, aprovar e executar a tríade orçamentária composta pelos instrumentos: Plano Plurianual de Ações (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). O PPA tem vigência de quatro anos, começando no segundo ano de mandato do atual governo e indo até o primeiro ano do mandato subsequente; já a LDO e a LOA são anuais e devem ser coerentes com a programação prevista no PPA.

A elaboração e o processamento desses instrumentos devem seguir as normas de duas leis complementares (LC n.4320/1964 e LC n.101/2000), além das regulações de diferentes portarias das Secretarias do Orçamento Federal e do Tesouro Nacional, que organizam e padronizam as receitas e despesas públicas no Brasil.

A Lei Orgânica do Município (LOM) acrescentou, por meio da Emenda n.30/2008 (São Paulo, 2008), um quarto instrumento a essa tríade, o Programa de Metas do Município, que vale do primeiro ao quarto ano do mandato atual, ou seja, um instrumento quadrienal com prazo distinto do PPA.

Figura 1
Temporalidade dos instrumentos ativos durante gestão municipal em São Paulo.

O fluxo orçamentário depende de diferentes etapas que passam pela elaboração orçamentária, ainda no primeiro trimestre do ano, na qual são definidas prioridades pelo núcleo de governo, negociação entre as guardiões e gastadores, consultas públicas, ajustes para fechamento do projeto de Lei Orçamentária Anual, tramitação legislativa entre setembro e dezembro, nova rodada de negociação entre Executivo e Legislativo, influenciada por diferentes grupos de interesse, apresentação de emendas, votação e aprovação da lei até 31 de dezembro.

Em janeiro, iniciam-se a execução orçamentária e uma nova fase de negociação entre guardiões e gastadores pela liberação dos recursos para programas aprovados em lei. Esse processo dependerá do ambiente macroeconômico que afeta a arrecadação, da relação com as esferas estadual e federal para a liberação de transferências, da evolução e controle de despesas obrigatórias, como pessoal, acompanhadas por controladores internos e externos, como o Tribunal de Contas do Município (TCM), e do nível de prioridade da programação em negociação (Good, 2014GOOD, D. The Politics of Public Money. Toronto: University of Toronto Press, 2014.; Schick, 1976SCHICK, A. O PPB e o orçamento incremental. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p.65-84, 1976.; Rubin, 2015RUBIN, I. Past and Future Budget Classics: A Research Agenda. Public Admin Rev, v.75, p.25-35, 2015.).

Há ainda a Junta Orçamentário Financeira (JOF), criada por decreto em 2013 (São Paulo, 2013), órgão que analisa pedidos de recursos das várias áreas da administração e os libera conforme a prioridade de governo e adequação orçamentária e que atualmente é composta por representantes das secretarias do Governo, da Fazenda (guardião), Executiva de Planejamento e Entregas Prioritárias, Casa Civil, Chefia de Gabinete do Prefeito e mais um representante do Gabinete do Prefeito.

Destaca-se ainda que, entre os atores que agem como controladores, há, além do TCM, os representantes do Legislativo e os Conselhos Participativos Municipais (CPM) no âmbito de cada subprefeitura, órgãos autônomos de representação da sociedade civil (Marcondes; Canato, 2015MARCONDES, M.; CANATO, P. Participação social no Planejamento e Orçamento: a experiência do ciclo participativo na gestão municipal de São Paulo. In: CARDOSO JUNIOR, J. C.; SANTOS, J. C.; PIRES, R. R. PPA 2012-2015: A experiência subnacional de planejamento no Brasil. Brasília: Ipea, 2015. p.291-311.). O município de São Paulo, no entanto, não conta mais com um Conselho da Cidade ou um Conselho Participativo, como o Conselho de Planejamento e Orçamento Participativos (CPOP), desativado em 2017 durante a gestão Doria. Essa descontinuação deixa uma lacuna na representação da sociedade civil em uma arena orçamentária coletiva com visão geral do gasto, e não fragmentada em cada território, o que enfraquece seu poder de pressão e de controle.

Esses atores que operam a governança orçamentária em São Paulo - isto é, guardiões e gastadores, indicadores de prioridades e controladores - disputam a margem de discricionariedade orçamentária em uma tensão que varia conforme o espaço que essa ocupa a cada exercício fiscal. Diferentes gestões municipais, com ideologias distintas, buscaram arbitrar o conflito em torno da margem discricionária de maneiras diversas ajustando ora receitas ora despesas ou ambos. Esses ajustes institucionais e de regras burocráticas são muito importantes, mas como ensina Fuchs (2012FUCHS, E. R. Governing the Twenty First Century City. Journal of International Affairs, v.65, n.2, p.43-56, 2012.), o contexto político de uma cidade é fundamental para definir o que os prefeitos podem e decidem fazer a respeito dessa discricionariedade.

Mudança de paradigma: nível de escassez

As finanças municipais de São Paulo têm mudanças importantes ao longo do período de 2013/2023. Há alterações em diferentes itens das receitas e das despesas paulistanas abrindo espaço para novas configurações na governança orçamentária municipal. Parte das mudanças ocorre em razão das oscilações no ambiente macroeconômico afetado por uma crise fiscal federal. Também pesam para essa mudança ajustes normativos federais em uma lógica multinível que trazem constrangimentos e possibilidades locais, e finalmente parte das mudanças ocorrem por decisões políticas locais implicando nova normatização de receitas e despesas e a adoção de novos instrumentos no âmbito das finanças públicas municipais. Vejamos como isso tudo afetou a discricionariedade orçamentária paulistana.

Modificações estruturais de receitas

a) Aumento estruturado do IPTU (mudanças normativas e instrumentais)

A principal mudança em termos de impostos realizada a partir de 2013 foi a atualização da legislação do IPTU. A gestão iniciada em 2013 optou pela atualização ampliada da planta genérica de valores (PGV), que ficou defasada por ser atualizada apenas pela inflação havia anos (Minarelli, 2020MINARELLI, G. N. De onde vem o dinheiro? As receitas municipais de São Paulo entre 1988-2019. Seminário apresentado em Produção do Espaço Urbano e Finanças Contemporâneas. FAU/USP, dez. 2020.; 2021). Os valores dos imóveis foram atualizados conforme a valorização imobiliária e utilizaram-se travas de aumento para evitar variações abruptas no imposto de cada imóvel e diluir o aumento dos valores no tempo, o que foi relevante para manter a arrecadação nos anos subsequentes (Minarelli, 2020; 2021). O IPTU perde força apenas em 2020, durante a pandemia de Covid-19.

Importante destacar que essas alterações, combinadas com mudanças macroeconômicas e regionais, alçaram o IPTU à segunda receita mais importante do município em 2016. Fato inédito na história do município de São Paulo e comparativamente a outras capitais do Brasil. Além disso, as isenções previstas na alteração de 2013/2014 possibilitaram mudanças na planta genérica garantindo avanço em termos de equidade arrecadatória desse tributo (Minarelli, 2020MINARELLI, G. N. De onde vem o dinheiro? As receitas municipais de São Paulo entre 1988-2019. Seminário apresentado em Produção do Espaço Urbano e Finanças Contemporâneas. FAU/USP, dez. 2020.).

Gráfico 1
Receita anual e suas principais fontes em São Paulo (2005-2022).

b) Redução da cota-parte do ICMS e crescimento do ISS

Ao longo das últimas décadas, a cidade de São Paulo deixou de ser um centro industrial para se tornar uma capital de serviços, processo com diferentes reflexos no Tesouro. A cota-parte municipal do ICMS, imposto que taxava fundamentalmente a circulação de produtos industriais, passa a ter uma redução constante; São Paulo perde espaço no valor adicionado para outras cidades e o próprio ICMS do estado de São Paulo perde potência em comparação a outros estados e regiões (Peres; Santos, 2021PERES, U. D.; SANTOS, F. P. dos. Contribuição emergencial sobre altas rendas de pessoas físicas: enfrentar a desigualdade tributária no Brasil e a COVID-19. Revista Parlamento e Sociedade, v.8, n.15, p.103-21, 2021.). Assim, no início dos anos 2000, o ICMS deixa de ser a principal receita do município, que se torna o Imposto Sobre Serviços (ISS). O Gráfico 1 deixa claras essas alterações.

O ISS é hoje um dos impostos de maior potência de crescimento no país. São Paulo, município com maior arrecadação do Brasil, R$ 27 bilhões anuais, percebeu uma alta no recolhimento desse imposto, entre 2005 e 2022, de quase três vezes em termos reais, já que em 2005 a arrecadação era de R$ 8 bilhões anuais. Fatores macroeconômicos como o próprio crescimento do setor de serviços no Brasil, mas também institucionais, burocráticos e políticos, contaram para essa alta. A aprovação da LC n.157/2016, lei que limitou a guerra fiscal de alíquotas reduzidas praticadas por municípios do entorno de capitais nas regiões metropolitanas, é um dos fatores. Um outro fator fundamental para o incremento periódico do ISS foi a modernização do controle tributário do município, com investimento em notas fiscais eletrônicas e no monitoramento dos prestadores de serviço, e o investimento contínuo na estrutura burocrática da receita municipal. Essa enorme evolução proporcionou a redução da sonegação, dos erros e da elisão fiscal.

c) Aumento da arrecadação de Receitas de Capital

A partir de 2018, as receitas do urbano promovem um importante aumento na arrecadação de receitas de capital em São Paulo devido, sobretudo, à cobrança de Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC). A OODC, uma contrapartida financeira para se construir além do potencial construtivo básico ou coeficiente de aproveitamento básico permitido pela regulação urbanística, já existia desde 2002, quando se instituiu o Fundurb, mas o perfil de arrecadação dessa receita se altera a partir de 2018 com uma virada na macroeconomia brasileira: a redução da taxa Selic. Após um período de grave crise econômica com perda de 6,5 pp do PIB entre 2015/2016 (IBGE, 2020; Chernavsky et al., 2020CHERNAVSKY, E.; DWECK, E.; TEIXEIRA, R. A. Descontrole ou inflexão? A política fiscal do governo Dilma e a crise econômica. Economia e Sociedade, v.29, n.3, p.811-34, 2020.), o Banco Central inicia uma redução progressiva dos juros que leva ao deslocamento dos interesses econômicos privados para a realização de investimentos. Esse fato beneficia fundos imobiliários, o que aquece o setor de construção civil no município de São Paulo e implica o aumento das receitas do Fundurb em 2019.

Isso, junto com a possibilidade de ingresso no caixa de parte dos depósitos judiciais da Prefeitura de São Paulo, conforme previsto na Lei Complementar Federal n.151/2015, ajuda na alta da arrecadação de receitas de capital em São Paulo, como aparece na linha rosa do Gráfico 1, alterando o nível de escassez municipal, com aplicação do incremento anual (Schick, 1976SCHICK, A. O PPB e o orçamento incremental. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p.65-84, 1976.).

Mudança estrutural no patamar das Despesas

a) Renegociação da dívida municipal

No campo das despesas, a redução do peso do serviço da dívida é um dos fatores mais relevantes para a mudança estrutural dos últimos anos. Isso foi possível em razão da renegociação dos termos do contrato de refinanciamento da dívida com a União1 1 O Município de São Paulo assinou no ano 2000 um contrato de refinanciamento da sua dívida mobiliária com a União que previa o prazo de 30 anos, um pagamento mensal de 13% das RCL e correção do estoque com juros de 9% e pelo Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI), que levou a uma situação insustentável (González, 2009). A renegociação alterou o IGP-DI, acrescido de juros de 9% ao ano, para o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acrescido de juros de 4% ao ano, limitados à variação da Selic. por meio da aprovação federal da Lei Complementar n.148/14.

Com ela foi aprovada a troca do índice de correção monetária e redução da taxa de juros da dívida, o que permitiu recalcular o estoque e reduzir os pagamentos da dívida, abrindo espaço orçamentário para novos gastos. O Gráfico 2, da evolução das despesas com serviço da dívida de 2003 a 2021 mostra a notável redução de gastos a partir de 2016, o que alterou o peso da dívida consolidada em relação ao total da Receita Corrente Líquida do Município.

Gráfico 2
Evolução da Dívida Consolidada Líquida sobre as RCL.

b) Reforma da previdência municipal

No período analisado, o município também passou pela reestruturação da previdência municipal. O Iprem, criado no início do século XX para pagar pensões para familiares dos funcionários municipais, passou ao longo dos anos a pagar também as aposentadorias, com ajuda de recursos do tesouro municipal (Brasil, 2007). No início dos anos 2000, o município, induzido pela União que obriga entes subnacionais a reestruturarem sua previdência como critério para renegociação de dívidas (González, 2009GONZÁLEZ, J. I. T. A insustentabilidade do acordo de renegociação da dívida pública interna do município de São Paulo com o Governo Federal. São Paulo, 2009. Dissertação (Mestrado em Economia Política) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.), aumenta a alíquota previdenciária e a contribuição patronal. Essa alteração não foi suficiente, contudo, para garantir equilíbrio atuarial, em face do crescimento da parcela de inativos. A partir de 2016, a reforma da previdência municipal volta a ser tema de discussões no Legislativo e, no esteio da reforma previdência federal de 2018, São Paulo implementa uma nova reforma dividida em duas partes a partir de 2019.

Gráfico 3
Gasto do municípi de São Paulo com ativos e inativos entre 2005 e 2022.

A primeira parte da reforma aumentou a alíquota de contribuição dos servidores de 11% para 14% e criou um sistema complementar para novos trabalhadores com remuneração acima do teto do INSS. Já na segunda parte da reforma foi aprovada uma alteração na base de alíquota para inativos, que passou a incidir sobre todos os proventos acima do salário-mínimo e elevou bastante a contribuição dos inativos. Além disso, foram criados dois fundos, um para servidores que ingressaram até 2018 e que aderiram à previdência complementar, e outro para servidores ingressantes após 2018. A criação dos fundos permitiu a segregação de massas e uma redução do aporte do tesouro.

Com essas duas reformas, houve queda importante na insuficiência financeira que obrigava o Tesouro a cobrir anualmente o déficit previdenciário. Como mostra o Gráfico 4, de 2021 a 2022 são quase R$ 2 bilhões de redução.

Gráfico 4
Evolução de gastos com Regime Próprio de Previdência Social de São Paulo (2005-2022).

Mudanças conjunturais e o ajuste no incrementalismo da despesa

Ajustes conjunturais nas despesas municipais feitos em razão da pandemia da Covid-19 também tiveram importante impacto nas finanças do município.

Diante da abrupta queda da atividade econômica no primeiro semestre de 2020 em razão da pandemia, o Congresso Nacional aprovou um pacote de socorro fiscal para apoiar estados e municípios, que teriam grande perda na receita de ICMS e ISS (Comsefaz, 2020). A LC n.173/2020 criou um pacote de socorro fiscal com R$ 95 bilhões de transferência de recursos da União para compensar perdas de estados e municípios e com a suspensão do pagamento de dívidas para a União naquele ano. Porém, a adesão a esse plano de socorro fiscal impedia estados e municípios de contratar pessoal ou dar aumentos e reajustes até o final de 2021. Além dessa ação, o auxílio emergencial de R$ 600,00, aprovado pelo Congresso para apoiar famílias em situação de vulnerabilidade na pandemia, reduziu o impacto econômico da pandemia (Sanches et al., 2021SANCHES, M.; CARDOMINGO, M.; CARVALHO, L. Quão mais fundo poderia ter sido esse poço? Analisando o efeito estabilizador do Auxílio Emergencial em 2020 (Nota de Política Econômica n.007). MADE/USP. 2021. Disponível em: <https://madeusp.com>.
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). Essas duas ações combinadas colocaram mais recursos do que o esperado nos governos subnacionais, que tiveram resultado acima do esperado em 2020.

Dessa maneira, São Paulo registrou aumento real de receitas correntes de 5,4% em 2020, com pequeno aumento do ISS (1,2%) e volume importante de outras transferências da União. Além disso, houve menos despesas do que os valores orçados para o ano, já que a despesa de pessoal se manteve congelada, as escolas permaneceram fechadas por meses e houve redução de 73% no serviço da dívida com a União.

As regras do pacote de Socorro Fiscal tiveram impacto ainda em 2021, quando parte importante da despesa tem seu crescimento controlado devido ao congelamento de salário e suspensão de contratações. Como mostra o Gráfico 5, nos anos 2022 e 2023, com os reajustes do funcionalismo liberados, as despesas de pessoal voltam a crescer, ainda que em velocidade reduzida em razão do menor crescimento de despesas com inativos graças à reforma previdenciária do município.

Gráfico 5
Evolução de despesas executadas do município de São Paulo (2003-2023).

Mesmo com o crescimento dos gastos com serviços de terceiro, a partir de 2019 e investimentos a partir de 2022, a mudança estrutural nas despesas da previdência e no serviço da dívida alterou o crescimento incremental das despesas do município, levando ao surgimento de um espaço fiscal imprevisto no município.

O saldo de caixa passou de R$ 7 bilhões, em dezembro de 2016, para R$ 29 bilhões, em 2022, como mostra o Gráfico 6. Apesar de parte desses recursos serem vinculadas a alguma área de gasto, como educação ou saúde, o saldo de caixa livre em 2022 ainda foi de R$ 9 bilhões, mais que o dobro do volume livre em dezembro de 2016, que era de R$ 4 bilhões.

Gráfico 6
Evolução do Saldo em Caixa da Prefeitura de São Paulo (2014-2023).

Para se ter uma dimensão do significado desse valor, importa dizer que R$ 9 bilhões é o equivalente à soma dos orçamentos das funções urbanismo, habitação e saneamento.

Discricionariedade orçamentária e política: as dificuldades na efetivação da despesa

O saldo de caixa no Gráfico 6 indica que as mudanças nas receitas e despesas do município de São Paulo alteraram bastante a discricionariedade política do prefeito no período atual vis-à-vis a situação enfrentada em 2014. Se naquele momento havia enorme dificuldade em realizar grandes investimentos com recursos do tesouro municipal (Peres, 2018PERES, U. D. Análise da Governança do Orçamento Público. In: MARQUES, E. C. L. (Org.) As políticas do urbano em São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2018.), a situação hoje é distinta. O Gráfico 7 apresenta as despesas do município de São Paulo classificadas como incomprimíveis ou comprimíveis (discricionárias), conforme Rezende (2015REZENDE, F. A Política e a Economia da Despesa Pública. Escolhas orçamentárias, ajuste fiscal e gestão pública: elementos para o debate da reforma do processo orçamentário. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.) e Dall’Acqua (2005), em três momentos: 2014, 2018 e 2022. As despesas incomprimíveis são aquelas obrigatórias por regra constitucional ou legal, como salários do funcionalismo, pagamento de dívidas, sentenças judiciais, vinculação constitucional da educação e da saúde, além de gastos do Legislativo. Já as despesas comprimíveis são aquelas que o poder público, em tese, tem margem para decidir quanto e como fazer, pois são despesas de custeio da máquina, manutenção da cidade e investimentos.

É importante notar, contudo, que mesmo dentre as despesas comprimíveis há aquelas que são muito complexas e implicam dificuldade em redução, como despesas com coleta de lixo e transporte coletivo, contratos de serviços de longo prazo, de grande volume de recursos e que envolvem licitações complexas (Godoy, 2021GODOY, S. R. The politics of incremental progressivism: Governments, governances and urban policy changes in São Paulo. New York: Wiley, 2021. p.175-92.; Campos, 2021CAMPOS, M. L. Increasingly governing bus services through policy instruments. In: MARQUES, E. C. L. The politics of incremental progressivism: Governments, governances and urban policy changes in São Paulo. New York: Wiley, 2021. p.136-54.). Além disso, outras áreas comprimíveis, como o custeio das áreas meio, subprefeituras e de áreas sociais (exceto educação e saúde), têm um limite de redução para garantir o funcionamento mínimo da máquina pública. Finalmente, temos a parte que é de fato discricionária e com a qual se pode fazer investimentos ou novas despesas de caráter continuado.

Esse espaço de discricionariedade é expressivamente maior em 2022 em relação a 2014. Seguindo as trilhas de Schick (1976SCHICK, A. O PPB e o orçamento incremental. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p.65-84, 1976.) e Jones e Baumgartner (2005JONES, B. D.; BAUMGARTNER F. R. The Politics of Attention. Chicago: University of Chicago Press, 2005.), é possível dizer que isso aconteceu em razão de pontuações na despesa de endividamento, na alteração do incrementalismo da despesa de pessoal e nas receitas do município, o que alterou o nível de escassez e, por consequência, o espaço de discricionariedade.

Gráfico 7
Gastos comprimíveis e incomprimíveis da PMSP em 2014, 2018 e 2022.

Apesar desse salto na discricionariedade orçamentária, que representa um espaço político fundamental de barganha e negociação orçamentária para o chefe do Executivo (Fuchs, 2012FUCHS, E. R. Governing the Twenty First Century City. Journal of International Affairs, v.65, n.2, p.43-56, 2012.; Wildavsky, 1975_______. A comparative theory of budgetary processes. Boston: Little, Brown and Company, 1975.; Schick, 1976SCHICK, A. O PPB e o orçamento incremental. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p.65-84, 1976.), o volume de despesas de investimentos não cresceu no período de 2020 a 2022, na proporção dessa disponibilidade, registrando-se ao longo dos últimos anos o saldo de caixa já apresentado.

Nesse caso parece haver duas questões envolvidas nessa dificuldade de gasto: a gestão dessas despesas depende de pessoal especializado e focado nesse controle, e essa gestão também necessita de uma estratégia clara dada pelo núcleo de governo, para que haja um plano de investimentos ágil e factível com o calendário fiscal, seguindo o princípio da anualidade e as metas do PPA e do Programa de Metas do Município.

Para melhor compreender as razões desse saldo orçamentário não executado, compreensão dessa fragilidade estrutural e como isso impacta o processo de execução orçamentária foram utilizadas 15 entrevistas semiestruturadas com diferentes atores relevantes na governança orçamentária de São Paulo. Do total, 13 dos entrevistados fizeram ou fazem parte do poder Executivo em secretarias meio ou finalísticas, sendo 2 tomadores de decisão de nível político, 4 burocratas de alto escalão e 7 burocratas de nível médio. Houve conversas ainda com um burocrata do Legislativo e com um representante da sociedade civil. As entrevistas buscaram entender a visão desses atores sobre o processo orçamentário, dificuldades presentes e passadas em utilizar recursos e qual o nível de tensão entre os atores relevantes da governança orçamentária.

Execução fragilizada

A burocracia especializada em orçamento atua tanto na Secretaria de Fazenda (Sefaz) como em cada secretaria finalística numa relação de barganha para conseguir liberar recursos e executá-los. Essas duas burocracias orçamentárias têm finalidades distintas, conforme nos ensina Wildavsky (1975_______. A comparative theory of budgetary processes. Boston: Little, Brown and Company, 1975.): enquanto os primeiros são guardiões interessados em controlar as despesas, o segundo grupo, gastadores, age com objetivo de executar ao máximo os recursos de sua pasta.

Os dois núcleos se envolvem na disputa pela execução da despesa pública, e aqui é necessário destacar que essa execução é bem mais lenta e complexa que a da receita pública, pois, uma vez liberada pela Sefaz para as secretarias finalísticas, passa por três fases: empenho, liquidação e pagamento (Brasil, 2024). Para empenhar a despesa é preciso realizar um processo licitatório, para só então iniciar a execução dos recursos com o empenho da despesa e aguardar a entrega do bem ou serviço contratado para liquidar e enviar para o pagamento pela Tesouraria Municipal, quando efetivamente o dinheiro sai do caixa.

Dessa maneira, os gastadores, responsáveis pela execução das despesas nas diversas áreas sociais e de infraestrutura, precisam ter estratégia e planejamento para solicitar e gastar seus orçamentos. E o núcleo de governo, que inclui os guardiões e os indicadores de prioridades políticas (representados pela Secretaria de Governo e/ou Gabinete do prefeito), deve coordenar as diferentes ações nas várias secretarias para conseguir os resultados almejados sem incorrer em déficit ou superávit desnecessário. Numa cidade do porte de São Paulo, sem estratégia, planejamento e coordenação, é possível que o recurso arrecadado não seja utilizado, mesmo havendo grande demanda e necessidade das ações.

Quanto mais fortalecida a burocracia das áreas finalísticas, menor a assimetria informacional com a da área fazendária, e maior a probabilidade de processos corretos serem enviados para conseguir a liberação de recursos. O inverso também é verdadeiro: órgãos mais frágeis, com menor estrutura burocrática, tendem a ter menor orçamento e mais dificuldade para executá-lo (Silva, 2015SILVA, Lucas Ambrózio Lopes da. The Middle-level Bureaucracy in the Brazilian Federal Revenue Department: selective insulation and construction of bureaucratic capabilities. Middle-level Bureaucrats, p.221, 2015.).

Conforme Fuster e Coelho (2022FUSTER, D. A.; COELHO, F. Força de Trabalho na Prefeitura Municipal de São Paulo: dados para o seu (re)planejamento. In: Encontro Brasileiro de Administração Pública. Sociedade Brasileira de Administração Pública: São Paulo, 2022.), na Sefaz há um número importante de funcionários, já que a maior parte da carreira de auditores da Receita está aí, além de outras carreiras de gestão e os quadros dedicados à gestão de recursos humanos. A alta qualidade dos funcionários da Sefaz mostra um contraste com muitas secretarias menores e menos estruturadas com poucos cargos de gestão e que apresentam dificuldades no processamento e execução orçamentária.

Para explicar a complexidade e a assimetria no relacionamento dessas burocracias no município de São Paulo, é preciso trazer um dado importante: o quadro de servidores ativos. Há uma queda de 13% no total de servidores ativos entre 2009 e 2022. Essa situação já foi destacada por Fuster e Coelho (2022FUSTER, D. A.; COELHO, F. Força de Trabalho na Prefeitura Municipal de São Paulo: dados para o seu (re)planejamento. In: Encontro Brasileiro de Administração Pública. Sociedade Brasileira de Administração Pública: São Paulo, 2022.), que apontam que a redução de pessoal não se deu em todas as secretarias de forma equilibrada, há núcleos burocráticos mais concentrados e organizados em algumas secretarias, como Educação, Saúde e Fazenda.

Gráfico 8
Evolução do quadro de servidores ativos e inativos da PMSP (2009-2022).

Esse desequilíbrio de cargos efetivos e estrutura burocrática não é recente, mas tampouco está perto de ser resolvido. Fuster (2022FUSTER, D. A.; COELHO, F. Força de Trabalho na Prefeitura Municipal de São Paulo: dados para o seu (re)planejamento. In: Encontro Brasileiro de Administração Pública. Sociedade Brasileira de Administração Pública: São Paulo, 2022.) mostra que há uma distância entre o planejamento e a gestão de pessoal central da prefeitura e os RH de cada secretaria. A gestão de pessoal e solução desses gargalos depende de cada secretaria ter um plano e solicitar cargos à Gestão com a concordância da SeFaz, e esses serem aprovados, algo que não é simples.

Conforme relato de diferentes entrevistados, tanto de áreas meio quanto de finalísticas, nos últimos anos há uma precarização de estruturas burocráticas na prefeitura de São Paulo.

Em relação ao processo de execução orçamentária, importa, em especial, a presença de burocratas especialistas nas áreas de orçamento, licitação e gestão de contratos. Esses burocratas totalizam, em 2020, 1.034 cargos, sendo a menor parte dos burocratas efetivos (379) formada por profissionais de carreiras específicas de orçamento, e esses, não sendo suficientes para equipar todas as áreas da prefeitura, se concentram em algumas secretarias (Godoy; Peres, 2022_______. The Governance of Public Budgeting: a Proposal for Comparative Analyses - the Cases of São Paulo and London. Braz. political sci. rev., v.16, n.2, e0004, Jun. 2022.).

Nas entrevistas, a avaliação é de que a baixa institucionalização das secretarias nessa área dificulta a relação entre áreas finalísticas e Sefaz e a efetiva utilização do orçamento pelos órgãos. Em mais da metade das secretarias e várias subprefeituras há mais de 40% desses cargos ocupados por servidores comissionados. Quanto maior o número de comissionados nesses cargos de gestão orçamentária, maior a dificuldade do órgão em executar adequadamente o orçamento (Godoy; Peres, 2022_______. The Governance of Public Budgeting: a Proposal for Comparative Analyses - the Cases of São Paulo and London. Braz. political sci. rev., v.16, n.2, e0004, Jun. 2022.). Seja por uma dificuldade em planejar o gasto ou dominar as regras legais, seja pela instrução inadequada de pedidos de crédito adicional, são vários os elementos que apontam a fragilidade da execução de órgãos que não têm burocratas de carreira orçamentária.

Dessa maneira, a relação entre guardiões e gastadores em São Paulo é fragilizada em muitas secretarias por um desbalanceamento, tanto numérico quanto de fundamentação técnica. Além disso, um dos entrevistados (gestor de área finalística) relata que a Sefaz segue preocupada com uma perspectiva de austeridade fiscal mesmo em um momento em que a realidade das receitas e despesas do município foi alterada.

Na atualidade, há maior saldo de caixa e maior discricionariedade para a contratação de pessoal, em razão das mudanças já apresentadas, porém um outro regramento federal preocupa a gestão fiscal: a Emenda Constitucional n.109/2021.2 2 Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc109.htm>. A Emenda n.109 indica que os entes subnacionais devem manter despesas correntes abaixo de 95% das receitas correntes para a manutenção de equilíbrio de longo prazo como critério para contratar operações de crédito. Apesar de essa emenda ter caráter facultativo, as implicações de perda de concessão de garantias e aval para operações de crédito são medidas de força institucional da União perante estados e municípios. Mesmo com a atual situação de caixa, essa tem sido uma preocupação no município de São Paulo, onde os guardiões velam pelo “equilíbrio intergeracional” e a incerteza do cenário futuro, seja por conta de despesas impulsionadas por investimentos, seja por mudanças nas receitas em razão da reforma tributária nacional, levam a uma atitude de precaução.

Dessa maneira, temos, por um lado, um grupo pulverizado e diverso de gastadores em secretarias de maior ou menor porte, com capacidade enfraquecida de gestão orçamentária e de contratos; e, por outro lado, um grupo de guardiões formado majoritariamente por burocratas de carreira com posicionamento mais unificado no controle do gasto e preocupado com a gestão fiscal diante das incertezas futuras e das atitudes erráticas de muitos gastadores.

A mediação desses dois grupos precisa ser feita pelo núcleo estratégico de governo a partir da busca pela concretização dos objetivos e metas do governo. O relato de entrevistados que já participaram da JOF em momentos distintos, porém, é de que não há clareza nesse núcleo sobre estratégia e prioridades. Mudanças constantes e dispersão de comando têm sido a tônica dos últimos anos. Em parte, isso se deve, na opinião dos entrevistados, pela descontinuidade da ocupação dos cargos de comando, até mesmo do próprio chefe do Executivo, que mudou três vezes entre 2017 e 2022, o que levou à alta rotatividade de secretários no núcleo estratégico e nas áreas finalísticas.

A dificuldade em ter uma sinalização clara do núcleo estratégico afeta tanto os guardiões quanto os gastadores. Para os primeiros é mais uma incerteza que reforça o papel de controle desses atores; para gastadores é também uma incerteza que leva à demora em planejar despesas, o que no caso de investimentos pode ser muito prejudicial visto a lentidão de uma licitação de obras, que pode demorar de seis meses a dois anos entre a formatação e a contratação (Fassio, 2017FASSIO, R. Novos parâmetros para o poder de compra do Estado. São Paulo, 2017. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo.).

Essa situação pode levar tanto a inação e manutenção de elevado saldo financeiro em caixa, a soluções precárias para o fundo público, por parte de gastadores, como a dispersão de várias contratações para “aproveitar” a discricionariedade ou ainda a contratação de contratos vultosos por emergência,3 3 A PMSP, nos últimos três anos, gastou R$ 4,9 bilhões em 307 contratos emergenciais, sem licitação, como aponta matéria do portal de notícias UOL. Ver em Herdy, Canário e Neves (2024). depois de uma longa demora e ausência de estratégia. O que tende a implicar contratos mais caros e de gestão mais difícil.

Qualquer dessas soluções é um problema em uma cidade que foi privada por anos de investimentos necessários em áreas sociais e infraestrutura urbana, e é marcada por enormes desigualdades sociais e cumulativas (Bittencourt; Giannotti, 2023BITTENCOURT, T.; GIANNOTTI, M. Evaluating the accessibility and availability of public services to reduce inequalities in everyday mobility. Transportation research part A: policy and practice, v.177, p.103-833, 2023.).

Considerações finais

A governança orçamentária do município de São Paulo no período recente sofreu mudanças em dimensões relevantes. O nível de escassez foi alterado tanto pela redução do endividamento quanto pela possibilidade de aumento de receitas de impostos, de contratação de operações de crédito e de outras receitas de capital. O incrementalismo das despesas de pessoal foi alterado por uma mudança na contribuição previdenciária que possibilitou a redução da insuficiência financeira paga pelo Tesouro Municipal ao Iprem. Essas alterações possibilitaram o aumento da margem discricionária do orçamento, porém a complexidade de regras macro e microinstitucionais para a execução orçamentária seguiu com o acréscimo de um novo regramento federal para garantir o equilíbrio das despesas correntes. Essa complexidade, somada à insegurança de cenários macroeconômicos no país e instabilidade estratégica do núcleo político do poder Executivo paulistano, tem mantido a burocracia fazendária, guardiões, numa postura conservadora em relação às despesas. Já a burocracia orçamentária das áreas finalísticas, gastadores, fragilizadas em contratações e em formação especializada na última década, tem apresentado dificuldade tanto em planejar quanto em executar os recursos. Essa situação levou ao acúmulo de saldo em caixa entre 2018 e 2022, quando mais de R$ 20 bilhões ficaram parados apesar das demandas não atendidas da população. Isso mostra a necessidade de maior pressão e controle sobre esses recursos para seu adequado uso no sentido de atendimento à população, por meio da reestruturação de pessoal da prefeitura, sob risco de que o uso contínuo do fundo público de maneira emergencial e pulverizada leve à ineficiência e desperdício de recursos, aumentando a desigualdade social em São Paulo ao invés de reduzi-la.

A equidade na oferta de políticas públicas na cidade deve ser uma prioridade, e quanto a isso foi aprovado em 2021 um índice de redução de desigualdade social que deveria ser utilizado na priorização de investimentos, e esse não está em pleno uso; e em 2023 a meta era a utilização de ao menos R$ 1,2 bilhão seguindo essa priorização, o que não ocorreu. A escassez de burocracia especializada, a ausência de estratégia e de coordenação política não transformaram essa meta em prioridade de fato.

Nesse processo também pesa a ausência do controle externo da sociedade civil, a fragmentação territorial da participação enfraquece a pressão que poderia existir em uma arena coletiva e representativa das subprefeituras e áreas temáticas de políticas públicas no sentido de uma alocação mais redistributiva.

A efetividade da discricionariedade orçamentária não depende apenas do equilíbrio de receitas e despesas na perspectiva de gerar incremento anual, o balanceamento de forças entre guardiões, gastadores, indicadores de prioridades e controladores é relevante para nortear sua alocação e a priorização política é fundamental para determinar que esse uso seja adequado e redistributivo.

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Legislação e jurisprudência

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  • BRASIL. Lei n.4320, de 17.3.1964. Diário Oficial da União, 23 mar. 1964.
  • BRASIL. Lei Complementar n.101, de 4 de maio de 2000. Lei Complementar n.101 de 4.5.2000. Diário Oficial da União, 5 maio 2000.
  • BRASIL. Lei Complementar n.148, de 25.11.2014. Diário Oficial da União, 26 nov. 2014.
  • BRASIL. Lei Complementar n.151 de 5.8.2015. Diário Oficial da União, 6 ago. 2015.
  • BRASIL. Lei Complementar n.157 de 29.12.2016. Diário Oficial da União, 30 dez. 2016.
  • BRASIL. Lei Complementar n.173 de 27.5.2020. Diário Oficial da União, 28 maio 2020.
  • BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Apelação n.620.947.5/0-00. Apelante: Instituto de Previdência Municipal de São Paulo - IPREM. Apelado: Amelia Tye Fujita de Araújo e outros. 2007. São Paulo, 26.6.2007. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=233500>.
    » https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=233500
  • SÃO PAULO (SP). Decreto (municipal) n.53.687, de 2.1.2013. Secretaria do Governo Municipal, 2 de jan. 2013.
  • SÃO PAULO (SP). Emenda à Lei Orgânica do Município n.30, de 26.2. 2008. Secretaria Geral Parlamentar da Câmara Municipal de São Paulo, 26.fev. 2008.

Notas

  • 1
    O Município de São Paulo assinou no ano 2000 um contrato de refinanciamento da sua dívida mobiliária com a União que previa o prazo de 30 anos, um pagamento mensal de 13% das RCL e correção do estoque com juros de 9% e pelo Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI), que levou a uma situação insustentável (González, 2009). A renegociação alterou o IGP-DI, acrescido de juros de 9% ao ano, para o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acrescido de juros de 4% ao ano, limitados à variação da Selic.
  • 2
    Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc109.htm>.
  • 3
    A PMSP, nos últimos três anos, gastou R$ 4,9 bilhões em 307 contratos emergenciais, sem licitação, como aponta matéria do portal de notícias UOL. Ver em Herdy, Canário e Neves (2024).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2024
  • Aceito
    19 Jun 2024
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