Open-access Índias e antropólogas

MULHER, MULHERES

Índias e antropólogas

Diálogo de Carmen Junqueira; Betty Mindlin

ESTUDOS AVANÇADOS entrevistou duas antropólogas no dia 4 de setembro na sede do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo – Carmen Junqueira e Betty Mindlin – a respeito de suas experiências no trabalho com as índias.

Prezarosamente nos atenderam, mas enfatizaram que suas reflexões sobre o tema resultam apenas de sua vivência com algumas comunidades indígenas, entre os Kamaiurá, os Cinta Larga, os Suruí, e outros. Ou seja, essas reflexões não devem ser consideradas como conclusões de uma pesquisa com um número expressivo de comunidades, que vivem em centenas de aldeias, cada uma mantendo suas tradições. Levando em conta essa advertência, transcrevemos abaixo o dessas opiniões.

Carmen Junqueira é antropóloga, formada em 1963 pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. É professora emérita da PUC de São Paulo. Escreveu diversos livros, como Os índios de Ipavu (Ática), Antropologia indígena (Educ), Indigenisno na América Latina (Cortez) e Sexo de desigualdade (Olho d'Água).

Betty Mindlin é antropóloga, com doutorado pela PUC de São Paulo e economista, com mestrado na Universidade de Cornell. Foi professora visitante no Instituto de ESTUDOS AVANÇADOS da USP. É autora, em conjunto com narradores indígenas, de seis livros de mitos, como Moqueca de maridos (Rosa dos Tempos) e Couro dos espíritos (Senac).(Marco Antônio Coelho)

Betty Mindlin – A Carmen acabou de escrever um livro sobre as mulheres indígenas, Sexo e desigualdade, focalizando em especial os Kamaiurá e os Cinta Larga. Assim, esse pode ser o núcleo de nossa conversa.

Carmen Junqueira – Não é muito fácil falarmos sobre a mulher indígena porque os povos com os quais trabalhamos eram de contato recente e as mulheres eram muito recatadas. Os poucos que falavam português eram homens. Quando se chegava a uma aldeia, era com os homens que se procurava falar e com as crianças. As mulheres não falavam português, como também não entendiam praticamente nada do que dizíamos.

No meu caso, demorei muito para, de fato, perceber a importância da mulher. A antropologia foi criada e sistematizada por homens, sempre com um olhar masculino. Quando se chegava numa aldeia procurava-se saber quem era o chefe, o pajé, e todos eram homens. Felizmente, na década de 1970, com o feminismo, fez-se uma crítica grande sobre esse olhar masculino. A partir de então, nós, as antropólogas, começamos a nos aproximarmos da mulher índia, mesmo sem termos uma língua em comum. Houve, então, a possibilidade de se conhecer esse universo riquíssimo, meio clandestino, das mulheres numa aldeia.

O primeiro contato mais forte que tive com as mulheres foi entre os Kamaiurá, do Xingu. Logo que cheguei, não entendia e nem falava qualquer palavra, a não ser as coisas corriqueiras. O que mais me aproximou das mulheres foi um evento em especial. Eu deixava marido e filhos ainda pequenos em São Paulo. Depois de dez, quinze, vinte dias começava a ficar com saudades e a comunicação com eles era muito precária.

Lembro-me, então, que uma vez passou um jipe na aldeia e soube que iria seguir um avião para São Paulo. Perguntaram se eu queria pedir alguma coisa. Mandei então um bilhete para meu marido. Mas deu para apenas escrever: "querido, por favor, mande-me um pacote de cigarros, beijos". Não dava tempo para escrever mais nada.

O rapaz pegou a carta para o correio aéreo, que fazia a conexão do Xingu com São Paulo. Depois de um mês veio o pacote sem nenhuma carta. Fiquei muito deprimida quando chegou o rapaz na aldeia e disse que trazia uma encomenda para mim. Perguntei se tinha mais alguma coisa, ele disse que não. Peguei o cigarro, o avião do correio aéreo passou por cima da aldeia e fui para a rede. Na aldeia, quando você vai para a rede, é porque quer afirmar mais sua privacidade, então ninguém se aproxima. Sabem que alguma coisa está acontecendo, que é para não incomodar. Pois a pessoa ou está doente e não quer ver ninguém, ou está triste, e simplesmente quer ficar sozinha. Fui para a rede e fiquei lá, extremamente triste, porque não veio uma palavra, um bilhete que fosse, dizendo: "aí vai o seu cigarro".

A mulher do dono da casa, uma índia mais velha, perguntou se eu estava doente, ou triste. Respondi que estava um pouquinho. Tudo com gestos, não falávamos língua em comum alguma. Entendi o que ela quis disser: "que eu estava triste porque tinha visto o avião e havia lembrado do meu marido e dos filhos". Para facilitar, confirmei. Continuei ali triste, chorei um pouco perto dela, porque me senti mais à vontade. Acabei dormindo um pouco também.

Quando acordei, meia hora depois, vi ao lado da minha rede um abacaxi nativo, um ananás. Quem havia dado o abacaxi havia sido ela. Chamei-a e comemos juntas. Dizem que o abacaxi é a fruta da felicidade. Comi aquele abacaxi e sarei da saudade. Então comecei a perceber essa mesma afetividade nossa, aqui entre amigas. Lá, aconteceu com uma pessoa que nem era minha amiga. E passei a trabalhar bastante com as mulheres Kamaiurá.

Aparentemente, as mulheres têm uma posição secundária na sociedade. Mas há um desnível entre o prestígio de um homem de sucesso, um grande lutador, um grande pescador, um grande pajé e a mulher. Esta é importante, mas há um pequeno desnível, não se igualam. O homem tem mais prestígio, mas com o tempo é possível perceber que a mulher não faz questão desse prestígio, ela não impõe essa necessidade à sociedade.

As índias são donas de seus corpos

No caso das Kamaiurá ocorre uma coisa muito interessante: elas têm um conhecimento enorme sobre o corpo da mulher: a formação e o funcionamento do corpo, a menstruação, a concepção, o parto, o aborto, o anticoncepcional. São donas do próprio corpo. Para um homem, ser dono do próprio corpo é uma tarefa mais simples. Para a mulher, que concebe, é mais complexo, a ela cabe a decisão de ter ou não ter o filho, abortar, tomar anticoncepcional ou praticar o infanticídio, porque isso é praticado pelas mulheres.

São decisões graves que ela toma. Ao ser dona do próprio corpo, ela tem uma tarefa enorme, complicada. Em pouco tempo vi que todas as mulheres da tribo tinham o domínio da vida. Se não houvesse uma colaboração gostosa entre elas e os homens a sociedade não podia existir. Elas têm, realmente, um grande prestígio, que o antropólogo desavisado não percebe. São as reprodutoras da vida, mas as donas também, porque os homens não interferem na esfera do aborto, do anticoncepcional. A decisão é delas.

Assim começou o meu primeiro envolvimento com as mulheres. Veja que foi por causa de um cigarro, de uma saudade, de um bilhete mal feito (o meu).

Daí para frente, entre os povos que conheci, meu primeiro contato foi com mulheres. Comecei a perceber essa riqueza que ninguém tinha explorado, nem mesmo eu, como mulher. Para um homem, às vezes, é complicado fazer um trabalho sobre a mulher, porque levanta sempre suspeitas. Os homens índios são ciumentos, principalmente se o antropólogo vai sem mulher, solteiro.

A separação entre o masculino e o feminino

Betty – É a questão da intimidade. Eu tinha a impressão, desde o começo da minha pesquisa de campo, de uma intimidade muito grande com as mulheres, algo que independia de qualquer análise. Não sei se porque nesse povo, o primeiro por quem me apaixonei, que são os Suruí, de Rondônia, as mulheres são muito extrovertidas, falam muito. Era um povo, como disse a Carmen, bem no início do contato.

A separação entre o masculino e o feminino era algo tão flagrante, tão patente, que chamava atenção até como um assunto de pesquisa. As mulheres não usavam roupa alguma nessa época. Elas imediatamente nos cercavam com uma afetividade enorme. É uma característica desse povo o domínio feminino nítido, aparente, por exemplo, nos rituais de reclusão, que, então, em 1978, eram óbvios. (Hoje em dia não são tão óbvios.)

Entre o povo Suruí, as mulheres ficam em reclusão depois de cada parto, na menarca, quando morre alguém, nas doenças. Isoladas numa maloca, que é menorzinha, ficam quatro ou cinco juntas quando menstruadas. Conversam muito. As situações de reclusão são maravilhosas para desvendar o que pensam. Ao entrar na maloquinha, imediatamente fica-se somente com as mulheres, elas sem roupa, com criança no peito. Às vezes em situações trágicas. No meu primeiro dia na aldeia Suruí, fui levada pelo chefe de posto para visitar uma mulher com uma criança nascida na véspera. O neném estava agonizando. Morreu pouco depois. Eu tive então uma empatia muito grande com essa mulher, chorei muito com ela quando a criança morreu. Foi uma relação imediata e essa intimidade que se estabelece com as mulheres dá um resultado de pesquisa inteiramente diferente. Quando comecei a ouvir mitos, bem mais tarde, as mulheres falavam de determinados assuntos com uma espontaneidade que os homens não têm.

Você não acha que nosso papel na pesquisa, como antropólogas, é uma posição ambígua, Carmen? Temos acesso também às coisas dos homens. Vamos atrás dos pajés, dos chefes, para discutir as questões de terras. Desde as primeiras viagens é preciso identificar invasões, ver como defender a demarcação da terra. Temos conhecimento do papel do homem, mas com acesso ao universo do parto, da menstruação, do sofrimento, das mulheres que apanham, que vêm nos confidenciar, desfiar nomes dos amantes. Sabemos quem são eles pelos colares exibidos nos pescoços dos homens, presentes delas... As mulheres são um amparo muito grande para nós, antropólogas. São o chão para nos sentirmos seguras para pesquisar, porque é uma outra linguagem que temos em comum.

Por outro lado, cada povo é diferente, mas creio que tanto nos Cinta Larga como nos Suruí, – não sei o que você acha, Carmen – embora as esferas de homem e mulher sejam claras, não há rituais propriamente proibidos às mulheres. Nos Suruí não se tem a sensação de segredo para as mulheres, como entre os Kamaiurá (com as flautas jacuí).

Carmen – Sobre nossa posição como homens ou mulheres, primeiro você tem de provar que é mulher. Quando cheguei a primeira vez no Xingu, em 1965, eu era mocinha, cabelo curtinho, calça comprida, fumando, não tinha absolutamente nada de mulher. (Entre os Kamaiurá quem fuma é o pajé.) Quem usa calça comprida é o homem, o pessoal da Aeronáutica, os chefes, os empregados, os operários, os trabalhadores braçais. Logo que cheguei, fiquei no Posto Leonardo, onde morava o Orlando Villas Boas. Sentou um Kamaiurá do meu lado, era noite. Eu estava fumando, os mosquitos me atormentavam, ele bateu na minha perna e perguntou se eu era homem ou mulher. Falei que era mulher. Ele queria uma pinça. (Ele sabia que mulher tira a sobrancelha). Eles depilam-se, tiram sobrancelhas e cílios. Ri muito por causa dessa pergunta, mas quando cheguei na aldeia foi parecido. Quando as mulheres e eu fomos nos banhar, pus um maiô, mas tive que tirá-lo, para elas verem que eu era mulher. Elas não aceitaram livremente, na base da aposta, que eu era mulher. Só assim acreditaram. Vêem tamanha variedade de tipos físicos, de cabelos, de postura, que elas têm um pouco de medo, de estar introduzindo um homem no grupo restrito das mulheres. Depois que elas sabem que você é mulher, fica fácil.

O homem que desejava ser mãe

Betty – Como é a história daquele Kamaiurá que desejava ter filho no próprio ventre?

Carmen – É uma história que eles contam. Um homem, toda vez que uma mulher passava, perguntava se poderia ir junto. Mas uma mulher sozinha acompanhada por outro homem não é bem vista. As mulheres começaram a ficar incomodadas, pois era quase um assédio. Reuniram-se em bando e resolveram tirar o papo daquele homem. Quando ele perguntou onde elas iriam, responderam que iam pegar lenha, e concordaram que ele fosse junto. Quando chegaram no mato, ele sentou e a mulher sentou em cima dele, de frente para ele. É costume sentar para ter relações sexuais. Puseram o homem sentado, veio a primeira, não aconteceu nada, veio a segunda, não aconteceu nada, e com a terceira, também. Elas perguntaram: "Você não queria tanto vir com a gente, para pegar água ou lenha, agora você está aí, inerte". "Vocês não me entenderam", disse ele, "eu queria ser mulher!" "Mas porque você não falou, nós vivemos com medo de você!". Voltaram para a aldeia e avisaram para todo mundo que ele queria ser mulher. Ele passou então a usar indumentária feminina, o uluri, semelhante a um biquíni muito pequeno, e deixou o cabelo crescer.

Os homens o namoravam, como se namora uma mulher, ou pelo menos quase como se namora uma. Ia tudo muito bem, até que um dia ele ficou "grávido". Os índios temeram que outras tribos falassem que na aldeias deles, homens tinham filhos. Envenenaram-no e o mataram. Você vê, pode-se aceitar um homem-mulher, que deseja ser mulher, mas não um homem "grávido", que tenha um filho de outro homem. Torna-se uma identidade muito confusa. Quando só o comportamento se altera, é possível. Há muitas histórias engraçadas e malandras como essa.

O ritual do amor

Quando começamos a trabalhar no Parque do Aripuanã1, o contato era bastante recente. As mulheres sabiam alguma coisa sobre os brancos – trabalhadores da Funai, braçais etc. Talvez alguma já tivesse namorado um não-índio. Lembro uma vez que nos fechamos numa casinha, maloquinha, e elas indagavam como a gente namorava, quais eram as posições do ato sexual, e se divertiam. É interessante, porque havia crianças junto, de tudo quanto era idade, três, quatro, cinco anos, e a cada novidade que eu contava ocorriam mais gargalhadas. As crianças não entendiam o português, e por incrível que pareça, elas traduziam minhas informações para os pequenos.

Contavam como namoravam, como faziam para seduzir o homem. Os Cinta Larga nos causavam medo, pareciam à primeira vista meio arrogantes, bravos. No contato com as mulheres mostraram-se um povo rico de humor, que gostava de falar besteira e de fofocar, porque nesse assunto entra aquilo que a Betty falou, você fica sabendo quem está namorando, quem está querendo namorar. É muito livre a relação amorosa, desde que seja cautelosa e elegante, mas há um namorico bastante generalizado entre eles.

Era muito engraçado porque eu tinha um gravador e eles não conheciam. Virei uma espécie de alcoviteira. Todas aquelas que estavam querendo atrair um rapaz, pediam para que eu o chamasse para ouvir a gravação da música da festa. Chamava-o, convidando-o para ir ao meu quarto para ouvir. Depois ela aparecia e tinham início os primeiros flertes, era a primeira laçada que ela dava.

Betty – Nos Suruí, havia um acampamento no mato que faz parte de um ritual desse povo, pois são divididos entre a metade que é da roça e a outra que é do mato. Esta fica na floresta por seis meses, durante a estação seca, e era nesse lugar que surgiam muitos diálogos sobre malandragem. Dormiam em tapiris, uma espécie de cobertura de palha, sem parede, cada família num lugar. Ficávamos deitados na rede à noite, conversando à distância no espaço amplo. Homens, mulheres e crianças queriam saber como se namorava, exigindo detalhes. Contavam o relacionamento com os colonos, pois era o início do contato com os não-índios. As mulheres, às vezes, davam suas fugidinhas para namorar os vizinhos. Uma novidade total para os índios era o beijo. Tudo era discutido em público e nós choravamos de rir.

Para nós, a nudez é que chamava atenção. As mulheres estavam começando a vestir calcinhas, pelo menos parte do tempo, mas não usavam mais nada, nenhum vestido, tanga ou uluri. Levávamos muitas calcinhas de presente, tanto nos pediam, de todas as cores. Eles tinham a seguinte brincadeira: homens e mulheres pegavam uma mulher adulta, balançavam no ar a pessoa, arrancavam a calcinha, e aconteciam risadas. Nós vemos a nudez como vergonha. Para eles a roupa tinha outro sentido – estavam usando de enfeite. O que se sabe sobre sexualidade indígena é praticamente nada, eis aí um assunto de pesquisa. O que sabemos?

Carmen – É pouco, muito pouco. Um índio perguntou-me se era verdade que entre nós o homem gosta de passar a mão no peito da mulher. Porque para eles é a mesma coisa que perguntar se o seu povo passa a mão no cotovelo. Confirmei e ele perguntou o por quê. Começamos a conversar sobre como era a aproximação de homem e mulher, já que andavam nus, não se precisava olhar decote de ninguém. As mulheres me contavam: "começa-se encostando o pé, esse é o primeiro toque, o pé descalço". Pareceu-me interessante, pois, para nós, pé não quer dizer nada, serve para tropeçar...

Lembro-me então que, depois de alguns meses, eu estava sentada junto com eles, e de repente um pé encostou em mim. Causou-me um choque, meu cabelo ficou em pé. É curioso, como é cultural localizar a zona erótica. Era o pé! Com as mulheres você vai descobrindo, mas é um assunto difícil de conversar sobre isso com um homem. Ele pode estar até pensando que você está insinuando alguma coisa. Mas com as mulheres é um diálogo natural investigar como você conquista uma pessoa.

O imaginário namoro de Carmen

Betty – Você teve que tirar a roupa para mostrar que era mulher. Mas, na verdade, desde as suas primeiras viagens, você foi vista como uma noiva, uma esposa possível, mesmo sem tirar a roupa diante dos homens.

Carmen – Nas primeiras vezes que fui para a aldeia Kamaiurá, em meados da década de 1960, meu marido foi comigo três vezes. Naquela época era pouco usual uma mulher jovem, pesquisadora, ficar com um povo indígena. Fomos bem recebidos pelo chefe da aldeia. Depois, nas outras vezes, comecei a ir sozinha. Foram bem uns oito anos de pesquisa entre os Kamaiurá. Tive de deixá-los por causa da ditadura militar. Fui para outros povos, como os Cinta Larga, do Aripuanã. Passado muito tempo, exatamente vinte anos, voltei à aldeia e encontrei o chefe, que tinha mais ou menos a minha idade. Falou para mim, "Carmen, que bom você ter voltado". Perguntei por que, se ele estava com muita saudade. Para meu espanto, ele começou a relatar o que aconteceu naquela época, em 1965, o que era totalmente fantasioso. "Quando você chegou, nessa época" (meu marido não aparecia em nenhuma versão dos relatos que ouvi dele), "lembra que fiquei muito próximo de você. Fui perguntar para a minha esposa se eu podia casar com você. Ela disse que podia, que ela gostava muito de você" (Foi aquela que me deu o abacaxi).

Ele continuou: "Um dia, o Orlando Villas Boas disse-me que não podia namorar branca. Respondi que não estava namorando. Quando você se separou do seu marido", (nesse momento eu havia me separado), "você veio de novo para cá, e depois arrumou um outro marido, mas ficou pouco tempo casada, felizmente". Mas o chefe indígena dava a entender que era ele próprio o meu marido ou amante. Não entendi muito bem. Cheguei aqui e disse para Betty – "que versão fantasiosa, que coisa esquisita". Há alguns anos recomecei a trabalhar com os Kamaiurá. A cada vez que chego, ele conta a alguém: "a Carmen era muito mocinha quando começou a vir aqui" e vem a mesma história, só que acrescida, embora ele não diga explicitamente que fui mulher ou amante dele. Põe o Orlando Villas Boas no meio. Sua versão é que fui expulsa do Xingu pelo Orlando, porque nós estávamos namorando, eu e ele, quando fui estudar os Cinta Larga.

Betty – Estávamos na época da ditadura e Carmen não pôde voltar, porque foi presa, mas Orlando sempre a defendeu e jamais pensou em qualquer namoro ou cogitou expulsá-la.

Carmen – Os militares não me deixaram mais voltar. Quando estive em julho de 2003 na aldeia, ele repetiu duas vezes essa versão, inclusive diante de uma antropóloga americana, na minha frente. Fico sem jeito de desmentir e de perguntar se ele acha mesmo que fomos namorados, porque deixa tudo no ar. Essa antropóloga mandou-me um e-mail e escreveu já ter ouvido duas vezes essa versão, elaboradíssima. É interessante, como no fundo você começa a fazer parte do imaginário deles. E as índias não acham nada de anormal. Então, eu já teria netos e bisnetos na aldeia, que são os netos e bisnetos deles e eles falam como se eu fosse a mãe dos filhos.

Betty – Quando conheci a Carmen ela havia ganho um colar de garras de onça. Era um colar de noivado, um colar de casamento, eu me lembro que fiquei muito impressionada, porque Carmen tinha o estatuto de esposa de um grande pajé, talvez um dos maiores do Xingu. Ela tem de explicar para todos antropólogos, para todo mundo, pois não há quem não pergunte se nós namoramos algum índio. Temos que explicar que não...

Carmen – Esses relatos fantasiosos talvez representem uma compensação para os homens indígenas, por ficarem tristes quando suas mulheres namoravam colonos, pois eles não tinham chance alguma de namorar uma não-índia. Essa fantasia fazia parte desse desejo, que eles nunca desmentiam. Ao contrário, alimentavam. Não era nem a dúvida, alimentavam a certeza do acontecimento. Na cabeça, pelo menos no meu caso, desse grande chefe, fui mulher dele. É interessante, é engraçado, você se sente, sei lá, responsável, de um certo modo, por essa situação. É estranhíssimo, e ninguém desmente!

Complicações amorosas na aldeia

Betty – Darcy Ribeiro publicou em sua Carta 9 um artigo sobre os Xokleng (também chamados Botocudos), com notas de seus diários de campo sobre os relatos de Eduardo Hoerhan, considerado o "pacificador" desse povo. Uma senhora alemã, empregada do posto, teve um relacionamento com um Xokleng, provavelmente o primeiro caso de um Xokleng com uma mulher não-índia – o fato se deu em 1926. O orgulho indígena despertou com tal intensidade, que, segundo Darcy, "de um dia para outro, sem qualquer razão aparente, caíram todas as regras de respeito e as relações para com o pessoal do posto, Eduardo inclusive, tornaram-se desrespeitosas".

Em 1942, um marco foi construído numa estrada, no local do encontro entre a filha de um trabalhador do posto, de catorze anos, e um Xokleng... "marco já foi substituído duas vezes por mãos desconhecidas; que tanto podem ter sido do próprio autor como de qualquer outro Botocudo, orgulhoso da façanha"2.

ESTUDOS AVANÇADOS – Pelo que vocês vão contando, no fundo, a vida amorosa dos índios é mais simples e menos complicada do que a nossa.

Betty – Ao contrário, acho que não é, cada povo é diferente do outro, e mesmo os povos com quem nós duas convivemos apresentam traços muito distintos. Nesse mesmo volume da Carta 9, republiquei, a pedido de Darcy, um artigo que escrevi sobre o amor na aldeia indígena, mas pensando especificamente nos Suruí3. Descrevi os rituais de passagem das mulheres, contrapartida de rituais masculinos. E fiquei imaginando como uma moça realizaria a vida amorosa e que espaço de liberdade ela encontra. Vê-se entre os Suruí casais que são muito fiéis, que se amam a vida inteira, mas há outros que mudam muito de parceiros, com o apoio da família. A independência feminina é relativa. Os homens é que trocam as mulheres entre si, para fazer alianças. Vi situações violentas, quase de guerra entre aldeias, em que as mulheres eram as "Helenas de Tróia". Eram obrigadas a se casar com um homem determinado em virtude de acordos feitos entre os pais, que, em geral, eram cunhados, ou era o tio materno, dando uma esposa para o sobrinho. Mas ela podia fugir e de vez em quando fugia, com aprovação tácita da própria família. Mudava de marido e de lugar. Essas situações eram variáveis. O que nos leva a indagar qual é a liberdade amorosa e sexual que as mulheres têm, dentro de que limites?

Do contato com os Suruí, passei a um quadro muito diferente, com os Gavião-Ikolen, de Rondônia. Descreveram o ritual de namoro, que me pareceu fantástico e complexo. Os Ikolen ficam namorando sem se tocar, por um período de até um ano. O rapaz e a moça deitam na mesma rede e o casamento só pode ser consumado quando a moça aceder. Seria uma vergonha para o noivo se ele tentasse qualquer gesto mais ousado, sem que tivesse espaço para isso.

Carmen – A regra Kamaiurá também é assim.

O absoluto respeito às mulheres

Betty – É uma mistura de amor cortês com um domínio do corpo e das emoções impressionante. Eles consideram que o amante que avançar sem consentimento, ou com precipitação, é um estuprador. Fizeram sobre o assunto um depoimento poético no livro Couro dos espíritos4, resultado de minha pesquisa conjunta com eles. Têm uma palavra em sua língua, que traduziram por "estuprador", para um rapaz que fizer um gesto indevido, como pôr a mão entre as pernas da moça, quando ela ainda não deixa, embora esteja deitado a seu lado, as peles se tocando. O namoro começa como um namoro urbano, com um olhar, um sinal de interesse, mas eles ficam juntos de modo contido, antes do casamento, até que ela resolva. Eles acham que se não se cria uma intimidade entre o par não pode haver sexo.

ESTUDOS AVANÇADOS – O estupro não existe?

Carmen – Lá entre os Kamaiurá, definitivamente não existe.

Betty – Nunca vi isso acontecer entre os povos que conheço.

Carmen – Meu amigo Kamaiurá, esse meu "marido", – eles têm várias mulheres, além da esposa mais velha. Ele estava há três ou quatro meses casado com a jovem, resultado daquelas trocas políticas em que a família intervém para fazer aliança e dão a filha em casamento. A mocinha gostava de um outro e não quis absolutamente nada com ele, segundo me confidenciou. Falou que estava casado, mas, de fato, ainda não estava. Eu, com a minha mentalidade paulista, sugeri: "por que você não convida a moça para pegar mel, longe, no mato? De repente, um espinho espeta seu pé, você senta e tenta tirar o espinho. Então, peça para ela ajudar" – eu dizia.

Betty – Você dá cada conselho, Carmen!

Carmen – Puxa vida, ele ficou tão horrorizado e disse, "não posso fazer isso". "Por quê?", perguntei. Ele disse que teria muita vergonha de se comportar desse modo. Ele queria dizer que era um comportamento indigno, pois um Kamaiurá jamais poderá tratar assim uma mulher. "Morreria de vergonha", ele dizia. Fui vendo, de fato, que eles não podem ter relação sexual a não ser com amplo e explícito consentimento da mulher.

O que é vedado às índias

Betty – Nas questões de sexualidade há uma enorme dificuldade em saber o que se passa entre os índios. Praticamente só acreditamos no que vemos e ouvimos, porque há um monte de dúvidas sobre todos os assuntos possíveis. As relações sexuais começam muito cedo, antes mesmo da menarca. É um fato nos povos que conhecemos. Parece não haver violência em relação às meninas e elas são educadas para o relacionamento sexual por esses parentes mais velhos, sendo criadas por eles com carinho, porque são pessoas dentro da categoria prescrita de parentesco.

Outro assunto que me intriga demais, Carmen, e também tem a ver com violência, é a casa dos homens. Há povos que têm a casa dos homens, mas cada uma é diferente da dos outros. Você conhece a casa dos homens, Carmen? O único povo que visitei, em 1983, que tem um marcado segredo para as mulheres são os Nambiquara, com as flautas sagradas, na Casa das Flautas, onde as mulheres nunca entram. Acabei vendo as flautas, porque quatro pajés dos Sararé me chamaram para gravar numa noite de lua. Eu nem sequer havia pedido para ouvir ou ver as flautas, sabendo que eram proibidas. E lá estavam eles, hieráticos, nus, sem palavras, soprando as melodias do além, dispostos em forma de cruz, cada um num ponto cardeal.

Mas as diferenças entre as casas dos homens são muito grandes se pensarmos nos Xavante, nos Kaiapó, nos Kamaiurá, nos Munduruku, nos Karajá, nos Javaé. Como conhecer a fundo as formas de tratar as mulheres nesses povos, em que o mundo dos espíritos parece tão ligado ao ritual da casa dos homens? Em alguns povos, as mulheres vão à casa dos homens em certas ocasiões, para relações sexuais com múltiplos parceiros. Noutras, jamais entram, o espaço público é masculino. Em alguns povos, só os homens podem sonhar, as mulheres não. Antropólogas, nunca entramos na casa dos homens. Nos Javaé, só a pude ver de longe. Realmente é impensável uma mulher Javaé chegar perto, até mesmo cruzar as fronteiras proibidas. Atravessar os caminhos masculinos é uma transgressão.

Carmen – No caso que conheço, o Kamaiurá, basicamente, há flautas jacuí e a casa dos homens. Se uma mulher olhar a flauta jacuí ela é estuprada por toda a aldeia. Esse é o castigo. Nunca soube de alguma que tenha sido punida, mas conta-se que uma mulher, de tal povo, que passou inadvertidamente, talvez tenha sofrido as conseqüências. Então existe o estupro como a maior punição que pode ocorrer a uma mulher, quando transgride a regra de não poder ver as flautas.

Betty – O jacuí é uma referência e um mito fundamental que existe entre vários povos, como os Munduruku. Originariamente, em tempos míticos, instrumentos musicais pertenciam às mulheres, depois foram roubados pelos homens.

A violência contra as mulheres

ESTUDOS AVANÇADOS – Há violência não restrita ao problema sexual, violência por outras razões? Estou querendo estabelecer um contraste com o "mundo civilizado", em que toda sorte de violência as mulheres sofrem.

Carmen – Entre os Kamaiurá, se um homem pega a mulher traindo, no chamado flagrante, ele bate nela. Mas é uma batida também meio para inglês ver. O inverso, se a mulher pega o marido transando com uma namorada, ela bate na mulher. E bate firme, morde, puxa o cabelo, mas não bate no marido. Por aí você vê a diferença, a mulher apanha dos dois lados, essa que apanhou, por certo depois também iria apanhar do marido depois.

Betty – Eles batem muito, os Kamaiurá?

Carmen – Os Kamaiurá não. Apenas batem para se desvencilharem da obrigação. Mas os Cinta Larga batem.

Betty – Alguns povos de Rondônia batem bastante na mulher. A gente vê muito olho roxo.

Carmen – Quando se trata de um homem que é da aldeia não ligam. Mas quando é homem de fora, que é de outros grupos Cinta Larga, que chega na aldeia e namora, aí não pode. Também se há um namoro que não é previsto pelas regras possíveis do circuito matrimonial, a mulher apanha. Nunca vi apanhar, mas dizem que ela, toda quebrada, vai para a rede.

O extremo carinho com as crianças

ESTUDOS AVANÇADOS – E a violência contra mulheres por outras razões? Por negligência nos afazeres, por exemplo?

Carmen – Varia muito de povo para povo. Estamos falando sobre Kamaiurá, Cinta Larga, Suruí, Gavião, que são os que conhecemos melhor. Entre os Kamaiurá, por exemplo, é difícil, quase impossível, um adulto bater numa criança. A criança, a rigor, pode fazer praticamente tudo o que quer e, à medida que ela cresce, tem de aprender a ser mais generosa com as outras gerações. Aprende que se for generosa consegue prestígio social. A criança pequena é uma soberana. Entre os Kamaiurá a idéia é no decorrer da vida aprender que os mais fortes devem atender aos mais fracos. Uma criança mais velha é mais forte do que uma criança menor, um chefe é mais forte que um reles índio, que não tem roça grande. Há uma hierarquia de reconhecimento social, no qual, no topo, estão os grandes pajés. Quem são os grandes chefes? São as pessoas que, além de outras várias qualidades, são os apaziguadores. Isso significa que se eu visitar a aldeia e levar um presente para o chefe, ele num segundo redistribui tudo que recebeu. A generosidade só se sustenta, não pelo que foi feito no passado, mas no cotidiano, você precisa dar, dar, dar... A criança não é punida, porque é preciso ser generoso com o neném, com a menina, com o menino. Claro, se a criança está muito impertinente, eles pensam que se trata de doença. Pegam o escarificador e vão arranhar a menina para fazer uma sangriazinha, para que ela sare.

Betty – Só que eles escarificam mesmo.

Carmen – Eles falam que ela está precisando do iaiap, como eles chamam. Nos Cinta Larga é diferente. Os Cinta Larga são caçadores, guerreiros. Até mais ou menos a década de 1960 faziam correrias em Vilhena para se defenderem, mas atacando também. Para eles o valor maior não é ser generoso, embora eles sejam muito generosos; o valor maior é a auto-suficiência.

Você tem de se proteger, de saber viver, numa guerra, fora da guerra, na mata ou fora dela. Você vê uma mãe irritada batendo na filha. Uma vez, enquanto nós ouvíamos uma gravação, a menina chorava. A mãe, irritadíssima, bateu na filha, sem muita força. A menina veio e imediatamente virou um tapa na cara da mãe. Eu parei, porque achei que ia quebrar o pau. Eu não sabia o que fazer, mas a reação da mãe foi rir. Comecei a perceber que as crianças, às vezes, eram estimuladas a reagir para se defender. Isso dava uma alegria muito grande aos adultos, saber que a criança está se autoprotegendo, desenvolvendo a capacidade de defesa. Era quase como se fosse uma estimulação. Com os Suruí como era?

A influência dos não-índios

Betty – As crianças são tratadas assim, nada é negado a elas. Dizem que se alguém bater numa criança, e depois ela morrer, a tristeza e o arrependimento do adulto vão ser insuportáveis. As pessoas brigam por causa das crianças e se um adulto não faz o que a criança está pedindo, outro vai lá e reclama, dá briga entre os adultos.

Hoje em dia talvez comecem a bater nas crianças, um pouco imitando os nossos padrões. Estão muito cercados pelos não-índios, estão indo muito à cidade. Agora, com as mulheres ocorre por vezes alguma violência física. Em alguns povos vemos pessoas machucadas. No Guaporé, as mulheres mostravam ter conhecimento da Delegacia da Mulher. As mulheres já sabem que não podem apanhar.

Carmen – Os Suruí e os Cinta Larga tiveram um contato recente com a Funai e um assédio grande da fronteira agrícola (no fim da década de 1970 e na de 1980). Então, eles já estão envolvidos pela população de colonos e das cidade, vendo os exemplos de bebidas, desordens, madeira, diamante e garimpagem etc.... Você não pensa que a violência em relação à mulher tenha ficado mais aguda, mais intensa, por força de uma cópia de um padrão não-índio?

Betty – Isso é verdade, mas por outro lado, dentro da tradição anterior – não sei se é o nosso olhar, dos nossos padrões feministas – eu tinha às vezes a sensação de que as mulheres eram subalternas, submetiam-se demais na forma de servir. São gestos que talvez não tenham o mesmo significado interno para os índios, mas quando os homens entregam um objeto à mulher, eles não dão na sua mão, atiram no chão para ela ir pegar. Elas estão sempre servindo, sempre atentas aos desejos masculinos, eu ficava perturbada, às vezes, com coisas que são menores, que não chegam a ser violência, mas que são indício da situação social.

Quanto ao jogo por mulheres, a guerra por mulheres, isso certamente é anterior ao contato dos índios com as cidades. Porque um chefe chega a matar um dos seus para pegar a mulher dele. Seria preferível uma forma menos definitiva de alijar o rival. Mas parece que a tomada à força das mulheres está inserida na tradição de vários desses povos.

Carmen – Nos Cinta Larga, uma vez comecei a indagar sobre as diversas incursões guerreiras que eles haviam feito. Suas guerras são incursões entre eles mesmos, entre grupos próximos, de várias aldeias. Em todos os casos, o começo da história era sempre uma mulher, ou um homem suspeitando que uma mulher havia envenenado seu filho. E por isso o filho morreu, ou era uma mulher que aquele grupo tomou dele, ou que ele tomou daquele grupo. Não houve um caso, entre eles, de incursões guerreiras entre os Cinta Larga, ou seja, entre os diversos povos com denominação de Cinta Larga, que não tivesse em sua origem uma mulher. Claro, com outros povos indígenas era outra história, tinham matado um casal e foram revidar. Sempre havia uma mulher no meio, era a Guerra de Tróia.

As mulheres na guerra e no amor

Betty – Eis o poder das mulheres, no amor e na guerra, afirmando-se, vencendo. Fico fascinada por rituais amorosos como os dos Nivacle, descritos por um dos maiores antropólogos paraguaios, Miguel Chase-Sardi, numa excelente tradução e bela edição feita pela poeta Josely Vianna Baptista, que traduziu muitos escritores latino-americanos, Cortázar e Roa Bastos entre outros5.

O amor entre os Nivacle lembra o dos Gavião-Ikolen, pois é a mulher, nas festas, que provoca a aproximação de um possível pretendente. Rouba-lhe um objeto e o incita a vir buscá-lo em segredo em sua cama, durante a noite. Ele não sabe se é o único a ser chamado ou se há outros, o que seria grande humilhação. Ao certificar-se de ser o eleito, deita-se com ela em silêncio – mas ela está envolta num saco de fibras de caraguatá, e ao seu redor dormem parentes. Na madrugada, já começam a conversar baixinho e assim por muitos dias, sem se tocar. Até que, ainda coberta pelas fibras, ela o abrace e lhe dê lanhadas que deixam sangramento e cicatrizes visíveis, das quais ele se orgulha ao ser visto pelos outros na manhã seguinte. Mas o casamento só se consuma quando ela quer, depois de conversas entre os pais de ambos, um acerto material e uma festa, para a qual ele provê caça e alimentos. A essa altura, quando finalmente ela retira a tal da armadura, o saco de dormir, já haviam criado uma intimidade entre si.

Não sei se muitos homens gostariam de atravessar essa prova de amor dos ferimentos... Enfim, esse ritual é uma visão do mundo, do corpo, do amor, do que são os sentimentos. Mas, Carmen, você não acha que se a mulher não é exatamente igual ao homem no mundo indígena, por outro lado a imagem que temos é de uma liberdade amorosa que nós não temos?

Carmen – Também penso que a liberdade da mulher indígena é maior.

Betty – Essa liberdade realmente existe, apesar da posição da mulher não ser a mesma do homem. As mulheres no mundo indígena não são chefes, são pajés apenas em alguns povos, não têm tanto acesso às drogas alucinógenas, ao sobrenatural. No entanto, penso que mesmo dentro dessa ciumeira de casamento elas realizam-se mais. Podem dar "escapadas", jamais são solitárias. Em geral, os homens é que são poligínicos – há poucos povos com poliandria, com alguns casos no Brasil, raros. Mas elas namoram bastante. Se um homem namora sete ou oito mulheres é porque a mulher está namorando sete ou oito homens, a gente vê pelos colares, no pescoço das pessoas.

Betty – Gostaria que a Carmen tivesse falado mais do delicioso livrinho que é Sexo e desigualdade, comparando dois temperamentos de mulher, a Kamaiurá e a Cinta Larga. Desde que ela provou o abacaxi paradisíaco da saudade, sua experiência tornou-se densa. E no livro ela vai percorrendo o quotidiano dos índios como alguém de dentro, mas com um olhar penetrante de analista de sociedades.

Carmen – Quase nada sistematizamos aqui, mas em nossos trabalhos, no registro da mitologia, o amor e a sexualidade passaram a ser um núcleo importante.

Notas

TRECHOS selecionados por Betty Mindilin do livro de Carmem Junqueira Sexo e desigualdade: entre os Kamaiurá e os Cinta Largo (São Paulo, Olho d'Água, 2002).

Mulher

"Mavutsinim, o criador solitário do mundo, estava criando a humanidade a partir de troncos do mato, quando "[...] surge um bando de mulheres, saídas ninguém sabe de onde, interrompendo o processo com seu olhar profano. Os troncos regridem à forma roliça, engolindo braços e pernas [...]." (p. 19)

Menstruação

"A explicação que os Kamaiurá costumam dar para a menstruação remonta a Mavutsinin que, talvez por descuido, deixou minúsculas piranhas na barriga das mulheres que criou. A todo mês elas mordiscam suas entranhas, provocando perda de sangue. Mas custa crer que o imenso perigo que a menstruação oferece tenha sido derivado de uma origem tão casual. É mais razoável supor que Mavutsinin as amaldiçoou, fazendo com que periodicamente lembrem à sociedade que foram elas as causadoras do fracasso da primeira tentativa de criação do homem. Imagino que Mavutsinin, ao ser surpreendido gerando vida, dom feminino que ele usurpou, acabou punido pelo próprio olhar profano das mulheres e obrigado a recomeçar o encantamento dos troncos. Sua vingança foi marcá-las com um estigma eterno, fazendo com que o sangue por elas vertido evoque o mistério da morte, a negação da vida, a destruição." (p. 27)

Convivência

"A primeira coisa que chama a atenção na aldeia, situada ao lado da linda lagoa de Ipavu, é o ritmo compassado da vida e a serenidade das pessoas. O bom-tom não recomenda manifestações exageradas: choros convulsivos, alegria esfuziante, raiva explosiva, amores impetuosos. Embora a dor, a felicidade, a ira e a paixão sejam experimentadas, elas representam sentimentos íntimos que não devem ser externados sob pena de constranger o próximo. Essas regras são seguidas bem de perto pela maioria dos Kamaiurá, fazendo com que o cotidiano na aldeia seja permeado de tranqüilidade e, num certo sentido, de silêncio. Na penumbra das longas casas ovais, o tom das vozes é baixo, os gestos discretos, o que combina com a elegância dos corpos, a beleza das pinturas e dos adornos. Dificilmente se vê alguém irritado, sem paciência; são todos reservados, embora gentis." (p. 31)

Ainda sobre os Kamaiurá, gravidez indesejada

"As mulheres afirmam fazer uso de ervas para evitar a concepção e garantir maior espaçamento entre uma gravidez e outra. Seriam verdadeiros anticoncepcionais usados com regularidade. Mas como a vida sexual é sujeita a imprevistos e improvisações, em quase todas sociedades, pode ocorrer uma gestação indesejada. Mulheres momentaneamente sem marido ou cujo marido esteve ausente por um período longo de tempo recorrem a práticas abortivas, que geralmente conjugam ingestão de drogas à base de ervas e massagens abdominais. Não há qualquer condição de se dar à luz uma criança sem pai, sem um homem que esteja legitimamente investido dessa tarefa. Em vista disso, tanto a mulher solteira como a casada orientam seu comportamento dentro do padrão de liberdade sexual culturalmente aceito, mas não transgridem as regras que regem a formação da família e a inserção da prole na estrutura social.

Quando os anticoncepcionais e as técnicas de abortamento fracassam, resta aguardar o parto e, sem mesmo secionar o cordão umbilical, enterrar o recém-nascido juntamente com a placenta. O infanticídio é eticamente aceito como forma de impedir a sobrevivência daqueles sem lugar na sociedade. O mesmo procedimento é adotado com recém-nascidos defeituosos e com gêmeos." (pp. 53-54)

Nos Cinta Larga: conceito de múltipla paternidade na concepção

"Como os Cinta Larga são muito namoradores, ao primeiro cochilo do marido, a mulher permite a outro homem contribuir para a formação da criança que está em seu ventre. Há uma idéia difusa de que a saúde da futura criança é muito importante, associada à justificativa da necessária ajuda ao marido da gestante e, finalmente, o desejo de sair da rotina doméstica e viver uma pequena aventura. Em nome da reprodução, os amantes se entregam à satisfação sexual. A prática é disseminada por todo o grupo e, publicamente, todos fingem ignorá-la. Mas após o nascimento da criança alguns homens sentem necessidade imperiosa de declarar aquilo que não é surpresa para ninguém, embora exagerando fantasiosamente as dimensões das supostas contribuições alheias. É quando o marido ofendido inicia um pequeno tumulto na aldeia, afirmando que o filho não é seu, e, às investidas, ameaça matá-lo. Um parente próximo, sem afobação, o acalma prontamente.

A mulher permanece passiva, guardando em segredo o número de namorados, se é que os tem, e a intensidade desses amores, para só muito mais tarde indicar à criança o homem que realmente trabalhou para que ela se tornasse gente. [...] O segredo torna-se público quando a criança refere-se a outro homem com um termo semelhante ao empregado para chamar seu pai [...] Por volta dessa ocasião, o marido já não sente necessidade de reafirmar sua autoridade sobre a esposa, sendo até possível que ele próprio haja sido indicado pai da criança de outra mulher." (p. 86)

Ou sobre a independência feminina

"A menina está longe de ter atitude passiva no casamento. Desde cedo a mãe aconselha o pretendente, seu irmão, a a agradar a jovem noiva levando-lhe comida, especialmente carne, mel, ou mesmo a primeiras frutas de estação. Pois todos sabem que se ela não quiser casar-se nada poderá ser feito. Na casa do marido ela chora, fica na rede o dia todo, não permite sua aproximação, insiste em voltar para a casa dos pais ou, simplesmente, foge. De nada adianta a braveza do pai e de outros parentes próximos ou, ao contrário, as bajulações de última hora na tentativa de convencê-la a ficar. Na maioria dos casos observados, depois de muita discussão e ameaças, prevaleceu a vontade dela."[...] "É interessante observar como a jovem esposa consegue harmonizar seu espírito ainda infantil com o novo status de mulher casada. Ao lado do marido é, às vezes, exageradamente solene e calada, para em outras ocasiões, com meninas da mesma idade, se divertir subindo e descendo das árvores, como qualquer moleque. Os banhos de rio são onde melhor se pode observar como progride sua relação com o homem. Em meio a brincadeiras de jogar água no outro, agarrar as pernas da companheira durante um mergulho, toques, cochichos e gostosas gargalhadas, o homem se aproxima delicadamente do corpo vibrante de curiosidade da menina. Comenta-se com naturalidade que as relações sexuais podem iniciar-se mesmo antes da puberdade.

Se no casamento com a esposa do pai cabia ao rapaz aprender com a mulher, aqui a experiência se inverte: um homem, por volta de 25 anos, conduz a menina para uma vida sexual regular, despertando nela desde logo o desejo de ser mulher. Talvez seja esse o motivo que faz com que, criança ainda, a esposa-menina assuma as funções de mulher, sem abafar a alegria infantil. Lamentavelmente, é difícil saber como o imaginário indígena trabalha essa relação e que tipo de fantasia povoa a mente dos jovens." (p. 82)

O ritmo dos Cinta Larga

"A marca característica das atividades produtivas em Serra Morena é também a descontinuidade. O encadeamento do fazer social é tão imprevisível quanto a duração de seus momentos. Excursões de caça e coleta tanto são intercaladas por longos períodos de lazer como podem suceder-se quase ininterruptamente; no auge da época do plantio nada impede que o trabalho seja interrompido para dar lugar a um expedição de coleta que pode durar horas ou dias [...]".

"É enorme o prazer com que se alimentam: sem voracidade, apreciando cada mordida e com a disposição de tudo consumir, Frutas, castanhas ou um simples pedaço de cará são degustados pausadamente, Improvisam colheres com pequenos pedaços de palha dobrada para lambiscar o mel que assim é consumido quase que gota a gota." (p. 69)

  • 1
    Quando falamos do Parque do Aripuanã, estamos nos referindo às terras dos Cinta Larga, Suruí, Zoró, à região como um todo, embora apenas o miolo dessas terras tenha oficialmente o nome de Parque do Aripuanã.
  • 2
    "A pacificação dos Xokleng",
    Carta 9, Gabinete do Senador Darcy Ribeiro, 1991, p. 48.
  • 3
    "Amor e ruptura na aldeia indígena", em Ieda Porchart (org.),
    Amor, casamento e separação, São Paulo, Brasiliense, 1922, reproduzido em Darcy Ribeiro,
    Carta 9, Brasília, Senado Federal, 1991, pp. 85-97.
  • 4
    Betty Mindlin, Digüt Tsorabá, Sebirop Catarino e outros narradores Gavião-Ikolen, Couro dos espíritos. São Paulo, Senac/Terceiro Nome, 2001. 201 p.
  • 5
    Miguel Chase-Chardi,
    O amor entre os Nivacle, Organização e tradução de Josely Vianna Baptista, Curitiba, Cadernos da Ameríndia 3, Tipografia do Fundo de Ouro Preto, 1966.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Fev 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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