RESUMO
Neste artigo apontamos como a crise do pacto democrático de 1988 se originou a partir de novas dinâmicas fomentadas pela própria esfera pública pós-burguesa brasileira, a qual se desenvolveu em meio ao processo de redemocratização nacional. Na primeira seção apontamos de forma resumida como se deu a construção da esfera pública no Brasil desde 1822 até a redemocratização em 1988. Na segunda, apontamos como se deu a gênese e o desenvolvimento da esfera pública pós-burguesa no país, e, nas terceira e quarta seções, apontamos como sua crise se originou a partir de embates no âmbito do debate público que passavam ao largo da institucionalidade e mobilizavam a contrapublicidade: performances disruptivas e recebidas como indecorosas. Nesse sentido, argumentamos que o bolsonarismo, ao fomentar o que denominamos como contrapublicidade dominante, coloca a Nova República, novamente, sob a Espada de Dâmocles.
PALAVRAS-CHAVE:
Nova direita; Bolsonarismo; Reação conservadora; Esfera pública; contrapublicidade
ABSTRACT
In this article, we point out how the crisis of the 1988 democratic pact originated from the new dynamics fostered by the Brazilian post-bourgeois public sphere itself, which developed in the midst of the national redemocratization process. In the first section, we briefly indicate how the public sphere in Brazil was built from 1822 until redemocratization in 1988. In the second section, we show the genesis and development of Brazil’s post-bourgeois public sphere. And, in the third and fourth sections, we describe how its crisis originated from clashes in the public debate that bypassed the institutions and mobilized counterpublicity: disruptive performances perceived as indecorous. In this sense, we argue that Jair Bolsonaro and his supporters, by fostering what we call dominant counterpublicity, puts the New Republic, again, under the Sword of Damocles.
KEYWORDS:
New right; Jair Bolsonaro; Conservative reaction; Public sphere; Counterpublicity
Introdução
Em 1989, na coletânea Democratizing Brazil, a cientista política Maria do Carmo Campello de Souza publicou um texto intitulado: “A Nova Repú- blica sob a Espada de Dâmocles”. Na época, a autora apontava que a transição democrática, baseada em uma frágil aliança entre o PFL e o PMDB, e que se dava em meio a uma grave crise econômica, ainda estaria incompleta, e criou a expressão “centrismo invertebrado” para qualificar a atuação da oposição ao regime militar (Kugelmas, 2006KUGELMAS, E. Maria do Carmo Campello de Souza (1936-2006). Dados, v.49, n.1, 2006.).
No entanto, em meio a tal cenário, forjou-se um novo arranjo político: o pacto democrático de 1988. Baseado na nova Constituição e em um modo de governabilidade que ficou conhecido como presidencialismo de coalizão, tal pacto foi responsável não apenas por sustentar a Nova República, mas por demarcar uma ruptura com o modelo sociopolítico da ditadura militar, qualificado por Florestan Fernandes (1976FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.) como uma autocracia burguesa.
Além disso, o pacto também apontava para a construção paulatina de uma esfera pública pós-burguesa, cujo horizonte era incluir de forma crescente grupos socialmente subalternizados na esfera pública, ainda que de forma lenta, gradual e segura, em meio a avanços e recuos. Porém, a partir de 2011, à medida que a internet se popularizava no país, o pacto de 1988 passou a dar sinais de esgotamento ao mesmo tempo em que novíssimos personagens entraram em cena, como uma nova direita (Rocha, 2019ROCHA, C. “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo, 2019. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.) e um novo ativismo feminista (Medeiros, 2017MEDEIROS, J. Movimentos de mulheres periféricas na Zona Leste de São Paulo: ciclos políticos, redes discursivas e contrapúblicos. Campinas, 2017. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas.).
A nova direita, favorecida por uma reação conservadora aos avanços progressistas vindos do Estado e da sociedade civil, e por um crescente antipetismo, alimentado pela divulgação massiva de escândalos de corrupção associados ao Partido dos Trabalhadores, atingiu seu auge com o impedimento de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro. Já o novo ativismo feminista protagonizou performances artístico-culturais inovadoras e movimentos de resistência a setores conservadores, bem como à própria eleição do capitão reformado.
Tanto a nova direita como o novo ativismo feminista foram fenômenos que passaram ao largo da institucionalidade e da esfera pública tradicional forjados nos marcos do pacto de 1988. Para tanto, lançaram mão do que denominamos contrapublicidade, performances disruptivas e recebidas como indecorosas, como forma de chamar a atenção para determinadas demandas no debate público, assim como ocorre com o bolsonarismo, que, ao fomentar o que denominamos como contrapublicidade dominante (Rocha; Medeiros, 2021ROCHA, C.; MEDEIROS, J. Jair Bolsonaro and the Dominant Counterpublicity. Brazilian Political Science Review, v.15, n.3, p.1-20, 2021.), coloca a Nova República novamente sob a Espada de Dâmocles.
Tendo em vista tal linha argumentativa, dividimos este artigo em quatro seções, além desta introdução. Na primeira seção apontamos de forma resumida como se deu a construção da esfera pública no Brasil desde 1822 até a redemocratização em 1988. Na segunda, apontamos como se deu a gênese e o desenvolvimento da esfera pública pós-burguesa no país, e nas terceira e quarta seções apontamos como, a partir de novas dinâmicas fomentadas pela própria esfera pública pós-burguesa, se originou a crise do pacto democrático de 1988 que a sustentava.
1808 a 1988: a construção da esfera pública no Brasil
Historicamente, o debate público nacional foi tido por muitos pensadores brasileiros como frágil ou mesmo ausente, dada a hipertrofia da vida privada e a resiliência de um Estado patrimonialista no país. Contudo, concordamos com Lavalle (2004LAVALLE, A. Vida pública e identidade nacional: leituras brasileiras. São Paulo: Globo, 2004.) acerca da necessidade de repensar a vida pública brasileira sob novos parâmetros. A partir de uma apropriação criativa de conceitos oriundos do Norte Global, compreendemos o surgimento e as mudanças da esfera pública brasileira a partir de uma periodização própria: (1) o surgimento e a consolidação de uma esfera pública burguesa entre 1808 e 1930; (2) a emergência de uma esfera pública semi-burguesa, marcada pela integração democrática da classe trabalhadora urbana entre 1945-1964; e (3) a gênese de uma esfera pública pós-burguesa iniciada durante a redemocratização do país entre o final dos anos 1970 e a década de 1980.1 1 O trabalho de Perlatto (2018) serviu como inspiração metodológica para mobilizar a historiografia brasileira a fim de compreender sociologicamente as mudanças estruturais na esfera pública brasileira. Nesse esforço, procuramos levar em consideração tanto uma dimensão sociopolítica, ressaltando avanços e recuos à medida que diferentes atores sociais são incluídos ou excluídos da esfera pública tradicional, e uma dimensão técnico-cultural, analisando como os diversos meios de comunicação condicionam a esfera pública, porém sem constituir uma determinação em última instância, o que nos afasta de análises tecno-deterministas.
O conceito clássico de esfera pública foi formulado por Habermas (2014HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Editora Unesp, 2014.) a partir de uma análise histórica do surgimento da esfera pública burguesa em países centrais da Europa ocidental. Entre os século XVII e XVIII passou a ocorrer um questionamento das autoridades estatais e eclesiásticas em coffee-houses na Inglaterra, salons na França e nas Tischgesellschaften na Alemanha. Ao longo do tempo, o público leitor que frequentava tais espaços passou a integrar um debate público baseado em uma argumentação de teor crítico-racional, tornando possível limitar o despotismo das monarquias absolutistas por meio de críticas veiculadas na imprensa escrita.
No Brasil, uma esfera pública burguesa próxima ao modelo descrito por Habermas só surgiu de forma mais permanente e com uma abrangência territorial significativa em 1808, quando a família real, fugindo da invasão napoleônica em Portugal, se instalou no Rio de Janeiro. Até então a impressão de livros e jornais era proibida, e algumas das revoltas contra a Coroa portuguesa, como a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana no final do século XVIII, se apoiaram na circulação clandestina e subterrânea de textos e discursos anti-absolutistas por meio de livros contrabandeados e sociedades secretas (Pait, 2018PAIT, H. Liberalism without a press 18th century Minas Geraes and the roots of Brazilian development. In: ROBINSON, L. (Ed.) The M in CITAMS@30: Media sociology. Emerald Publishing, 2018. p.167-79.). Ideias liberais, iluministas ou republicanas eram controladas e censuradas pelo Estado por serem consideradas perigosas e revolucionárias, dado que o Império possuía uma forte orientação católica (Neves, 1999NEVES, L. M. B. Censura, circulação de idéias e esfera pública de poder no Brasil, 1808-1824. Revista Portuguesa de História, v.XXXIII, p.665-97, 1999.). Foi apenas a partir de 1808 que a vida cultural se ampliou e as elites políticas, econômicas e culturais locais passaram a tentar influir no processo político e limitar o poder do Estado.
A expansão da liberdade de imprensa, contudo, ainda era cerceada pela censura estatal, que procurava conter ideias contrárias à monarquia e à escravidão. Além disso, o debate público existente na época visava sobretudo a conciliação de interesses divergentes de elites, e não a inclusão democrática de outros setores da sociedade (Nunes, 2010NUNES, T. T. Liberdade de imprensa no Império brasileiro: os debates parlamentares (1820-1840). São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.). Nesse sentido, a esfera pública brasileira se assemelhava àquelas de países centrais, considerando a dominação da classe burguesa sobre a classe trabalhadora, com a diferença de que, no Brasil, a economia se fundamentava no trabalho escravo. Tais limitações foram questionadas de forma decisiva apenas entre as décadas de 1860 e 1870 justamente pelo movimento abolicionista, graças à expansão do sistema universitário e à ampliação de circuitos que propiciaram o surgimento de uma opinião pública capaz de criticar as instituições imperiais (Alonso, 2015ALONSO, A. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Cia. das Letras, 2015.). Ainda assim, a abolição legal da escravidão, ocorrida em 1888, não foi acompanhada por outras reformas sociais, como a distribuição de terras, deixando intocada a grande propriedade rural.
Em 1889 a monarquia foi substituída pelo regime republicano por meio de um golpe militar; no entanto, isso pouco alterou a dinâmica da esfera pública burguesa local. Os conflitos e negociações entre elites políticas estaduais prosseguiram de forma similar ao que ocorria sob a monarquia, de modo que o debate público nacional durante a Primeira República, se resumia a um “teatro das oligarquias”, na expressão de Viscardi (2019VISCARDI, C. O teatro das oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”. Belo Horizonte: Fino Traço, 2019.). Afinal, a despeito da existência de uma imprensa operária alternativa, os analfabetos, maioria no país, não haviam conquistado o direito ao voto, o que reforçava ainda mais a exclusão das classes trabalhadoras da esfera pública.
Foi somente com o fim da Primeira República e o início do governo de Getúlio Vargas em 1930 que os trabalhadores passaram a ser incorporados como sujeitos políticos, ainda que de forma parcial. Nesse processo foi fundamental a comunicação de massas viabilizada pelo rádio, de modo similar ao que ocorreu em governos autoritários da Europa, como os de Mussolini na Itália, de Hitler na Alemanha, e de Franco na Espanha. Porém, a despeito da censura da opinião pública realizada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão criado sob a ditadura do Estado Novo entre 1937 e 1945, não havia algo como uma manipulação ou controle absolutos das massas populares por parte do Estado. Afinal, os programas radiofônicos possuíam ressonância entre o povo, na medida que apresentavam suas experiências concretas, perpassadas por suas vivências, prazeres e emoções (Haussen, 2001HAUSSEN, D. F. Rádio e política: tempos de Vargas e Perón. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.).
Assim, durante os quinze anos que Vargas permaneceu no poder (1930-1945), o Estado procurou incorporar parcialmente os discursos veiculados pela imprensa operária desde a virada do século XIX para o XX, ainda que apagasse sua origem, procurando controlar a “palavra operária”. Para tanto, Vargas inventou o trabalhismo, uma forma de legitimar a participação política da classe operária por meio da inclusão de demandas dos trabalhadores de forma subordinada ao Estado (Gomes, 2005GOMES, A. de C. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.). Foi apenas com o fim da ditadura varguista que as vozes dos próprios trabalhadores começaram a ser ouvidas de forma mais enfática no debate público, por meio do rádio e de associações de bairro, dando vazão às suas demandas e possibilitando o surgimento de uma esfera pública semiburguesa no país, ou seja, parcialmente ocupada pelas classes trabalhadoras.
No entanto, se o rádio facilitou a participação política dos trabalhadores, a imprensa escrita tradicional pouco contribuiu nesse sentido, considerando seu frágil compromisso com as instituições democráticas (Martins, 2020MARTINS, L. C. dos P. Pensamento político e imprensa brasileira no pós-guerra: democracia e participação popular na visão do Correio da Manhã no Segundo Governo Vargas. Estudos Ibero-Americanos, v.46, n.2, 2020.). Tal fragilidade ficaria especialmente explícita no início da década de 1960, quando o presidente trabalhista João Goulart anunciou sua intenção de implementar as Reformas de Base, que incluíam, entre outros avanços para as classes populares, a reforma agrária. O anúncio das reformas promoveu uma intensificação do anticomunismo entre grupos de direita, e a imprensa não titubeou em apoiar de forma explícita um golpe civil-militar para derrubar Goulart do poder em 1964. Uma vez no poder, os militares instalaram uma ditadura que durou vinte anos e interrompeu a incorporação paulatina da classe trabalhadora na política por meio da intensificação da censura, perseguição e violência que já haviam sido empregados pela ditadura do Estado Novo.
Durante a ditadura militar, a comunicação de massas deu um novo salto com a fundação da Rede Globo de Televisão, apoiada ativamente pelo governo. Criada a partir do grupo de comunicação carioca que já possuía jornais e estações de rádio, a Globo se estabeleceu como a principal rede de televisão do país, e o debate público passou então a ser regido crescentemente pela lógica da imagem. Porém, ao mesmo tempo que o telejornalismo da Globo, alinhado à ditadura, era falso e ficcional, a emissora também criticava o governo por meio das narrativas realistas das telenovelas, as quais incorporaram uma “criatividade anárquica” de artistas e roteiristas alinhados à esquerda (Bucci, 2016BUCCI, E. Televisão brasileira e ditadura militar: tudo a ver com o que está aí até hoje. Rumores, v.10, n.20, p.172-93, 2016). Assim, ainda que a consolidação da indústria cultural no país caminhasse em paralelo ao sufocamento da esfera pública (Ortiz, 2001ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2001.), a veiculação parcial da dissidência política transmitida pela televisão foi fundamental para cativar as crescentes massas urbanas do país, cujo acesso à riqueza produzida pelo país decaía com o passar dos anos.
Para Florestan Fernandes (1976FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.), o objetivo principal da ditadura seria evitar a qualquer custo a democratização de riqueza, prestígio e poder, daí sua interpretação do regime como uma autocracia burguesa. Em sua visão a autocracia burguesa seria uma contrarrevolução permanente, uma forma de desintegrar todas as modalidades de esfera pública, tanto a burguesa como a semiburguesa, a fim de garantir pela violência a reprodução de um padrão de concentração extrema do excedente econômico. De fato, a ditadura reverteu a pequena redistribuição de renda que o regime democrático de 1945-1964 havia proporcionado, pois a repressão violenta do movimento sindical permitiu redesenhar instituições para alterar bruscamente a distribuição de renda em favor do capital (Souza, 2016SOUZA, P. A desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. Brasília, 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de Brasília.). Em paralelo ao aumento das desigualdades urbanas, houve também o extermínio cultural e físico de indígenas, sobretudo na Amazônia, possibilitado por uma aliança entre o governo militar, multinacionais e empresas nacionais privadas e estatais, que promoveu o avanço do extrativismo e a expropriação de terras e recursos dos povos que as habitavam (Davis, 1978DAVIS, S. H. Vítimas do milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.).
Por fim, negros, mulheres e LGNTQIA+ também foram reprimidos pela ditadura. Os primeiros por meio de uma política de vigilância e repressão do movimento negro para eliminar dissidências consideradas desestabilizadoras e subversivas, ao mesmo tempo em que eram exaltadas a mestiçagem e uma suposta harmonia racial (Kössling, 2007KÖSSLING, K. Sant’ A. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do DEOPS/SP (1964-1983). São Paulo, 2007. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.), e os últimos por uma defesa oficial da “moral e dos bons costumes” que procurava regular de modo normativo e autoritário desejos, afetos e sexualidades dissidentes e estigmatizados com a justificativa de proteger a juventude e preservar a coesão e a integração da sociedade brasileira (Quinalha, 2017QUINALHA, R. Contra a moral e os bons costumes: a política sexual da ditadura brasileira (1964-1988). São Paulo, 2017. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) - Instituto de Relações Internacionais, Universidade de São Paulo.). Assim, a autocracia burguesa, para além de ser uma “ditadura de classe” como ressalta Fernandes (1976FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.), também articulava de modo indissociável classe, etnia, raça, gênero e sexualidade, revelando o caráter interseccional do termo “burguês”: proprietário, branco, homem e heterossexual.
Tal articulação é fundamental para compreender tanto o processo político da redemocratização brasileira como a emergência do bolsonarismo no século XXI. Afinal, foi precisamente a atuação de trabalhadores, mulheres, negros, indígenas, LGNTQIA+, entre outros grupos, durante as décadas de 1970 e 1980 que impediu que a autocracia burguesa e a indústria cultural fossem capazes de determinar a redemocratização do país de cima para baixo. A despeito de não possuírem um forte poder de decisão no debate público tradicional, a circulação periférica dos discursos desses grupos, a partir de suas próprias imprensas alternativas, permitiu a formação de uma opinião pública diversa que começou a penetrar no Estado, sobretudo por meio do lento trabalho realizado por movimentos sociais (Coutinho, 2011COUTINHO, C. N. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011.).
Assim, quando a ditadura se encerra em 1985, o processo constituinte que ocorre logo em seguida, entre 1987 e 1988, acaba incorporando muitas das demandas trazidas pelos movimentos sociais. Por conta disso, a nova Constituição foi erigida a partir de um substrato progressista que incorporou uma série de demandas que a ditadura militar impedia que viessem a público, relacionadas especialmente às reivindicações de trabalhadores (Sader, 1988SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980). São Paulo: Paz e Terra, 1988.), indígenas (Lacerda, 2008LACERDA, R. Os povos indígenas e a Constituinte: 1987/1988. Brasília: Cimi, 2008.), questões ambientais (Alonso et al, 2007ALONSO, A.; COSTA, V.; MACIEL, D. Identidade e estratégia na formação do movimento ambientalista brasileiro. Novos Estudos Cebrap, n.79, p.151-67, 2007.), raciais (Neris, 2018NERIS, N. A voz e a palavra do movimento negro na Constituinte de 1988. Belo Horizonte: Letramento, 2018.), de gênero e sexualidade (Medeiros; Fanti, 2019MEDEIROS, J.; FANTI, F. Recent Changes in the Brazilian Feminist Movement: The Emergence of New Collective Actors. In: FERRERO, J. P.; NATALUCCI, A.; TATAGIBA, L. (Ed.) Socio-Political Dynamics within the Crisis of the Left: Argentina and Brazil. London: Rowman & Littlefield, 2019.; Alves, 2020ALVES, J. Os subalternos na esfera pública: Racionalidade, igualdade e justiça na primeira onda do Movimento Homossexual brasileiro. Guarulhos, 2020. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de São Paulo.), relativas aos direitos das crianças e dos adolescentes (Pinheiro, 2005PINHEIRO, A. Criança e adolescente no Brasil: porque o abismo entre a lei e a realidade. Fortaleza: Ed. UFC, 2005.), dentre outras, e por isso ficou conhecida como Constituição Cidadã.
1988 a 2010: gênese e desenvolvimento de uma esfera pública pós-burguesa no Brasil
Após a promulgação da nova Constituição em 1988, uma institucionalidade inédita emergiu no país, apoiada em um novo arranjo político: o pacto democrático de 1988. Sustentado ao mesmo tempo pela nova Constituição e pelo presidencialismo de coalizão - uma forma de governo baseada na formação de grandes coalizões parlamentares -, tal pacto se baseia no entendimento implícito de que a implementação das mudanças sociais anunciadas na Constituição deve ocorrer de forma lenta, gradual e segura, entre avanços e recuos (Nobre, 2013NOBRE, M. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.). De qualquer forma, apesar da morosidade do Estado em incorporar demandas democráticas, o debate público no Brasil passou a ser minimamente compartilhado por grupos diversos que passam a conviver entre si, a despeito de suas disparidades de poder de decisão, inaugurando no país o que Fraser (1997_______. Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy. In: ___. Justice Interruptus: Critical Reflections on the “Postsocialist” Condition. New York; London: Routledge, 1997.) denomina como esfera pública pós-burguesa. E aqui é importante chamar a atenção para o qualificativo de “burguês”.
A burguesia, para além de fazer referência a uma classe social, possui um significado interseccional que também remete ao caráter de raça, gênero e sexualidade de seus integrantes. Afinal, quem participava do modelo original habermasiano de esfera pública? O burguês não era apenas alguém oriundo da classe social de proprietários, mas também possuía capital cultural (era educado), tinha raça (branco), gênero (homem cis), sexualidade (heterossexual) e idade (adulto). Tendo isso em vista, Fraser cria a categoria de esfera pública pós-burguesa para dar conta de uma nova realidade histórica que sucedeu àquela da esfera pública burguesa. Assim, no entendimento da autora, o qual compartilhamos, a esfera pública pós-burguesa seria um tipo ideal de organização da esfera pública no qual, a despeito da permanência de hierarquias de classe, gênero, raça, etnia e idade, grupos subalternos como mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+, crianças, entre outros, passam a ter uma capacidade crescente de produção e circulação de contradiscursos e de incidência no sistema político, na grande mídia, na indústria cultural e no sistema educacional. Mas como isso ocorreu no Brasil?
A literatura nacional aponta como grupos sociais subalternos começaram a constituir arenas discursivas alternativas ainda nos anos 1970, durante o início da abertura da ditadura militar. Tais grupos, a despeito de contarem com poucos recursos de ordem material e organizacional em comparação com grupos de elite (Dreifuss, 1989DREIFUSS, R. A. O jogo da direita na Nova República. Petrópolis: Vozes, 1989.), conseguiram incidir na criação de uma nova institucionalidade no processo de redemocratização, tanto durante a Constituinte como nos governos que se seguiram, por meio da criação de políticas públicas específicas e novos órgãos de governo sob os governos eleitos democraticamente até o impedimento de Dilma Rousseff. Posteriormente, muitos desses grupos também passaram por um processo importante de institucionalização no âmbito da própria sociedade civil, como apontam Lavalle et al. (2018LAVALLE, A. et al. (Org.) Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018.). Contudo, a despeito dos avanços inegáveis produzidos pela maior porosidade do Estado, e da própria sociedade civil, a emergência e o processo de aprofundamento de uma esfera pública pós-burguesa de 1988 até 2010 foi bastante acidentado e permeado por avanços e recuos, ambiguidades e contradições. E, nesse sentido, é exemplar o caso do movimento feminista.
Ao final da década de 1990, a literatura que se debruça sobre o status do movimento feminista brasileiro conclui que esse teria se institucionalizado (Alvarez, 1994ALVAREZ, S. et al. Mujeres y participación política: avances y desafíos en América Latina. Tercer Mundo Editores, 1994.). Tal processo de institucionalização teria ocorrido tanto em um nível estatal, considerando a atuação de feministas nos poderes executivo e legislativo e sua participação em conselhos e demais órgãos burocráticos, como no nível societal no que diz respeito à forma organizacional do movimento, que teria migrado de grupos informais para ONG profissionalizadas. Além disso, também foi possível constatar uma maior participação do movimento em espaços internacionais como conferências e fóruns políticos e a formação de redes de articulação nacional e internacional (Machado, 2016MACHADO, L. Feminismos brasileiros nas relações com o Estado. Contextos e incertezas. Cadernos Pagu, 2016. ).
A partir do primeiro governo Lula, o processo de institucionalização alcançou um novo patamar com a entrada massiva de militantes feministas no Estado, promovendo um “ativismo institucional” (Abers; Tatagiba, 2015ABERS, R.; TATAGIBA, L. Institutional activism: Mobilizing for Women’s health from inside Brazilian bureaucracy. In: ROSSI, F. M.; BÜLLOW, M. V. (Ed.) Social movement dynamics: New perspectives on theory and research from Latin America. London: Routledge, 2015. p.73-101.). Já no primeiro ano do governo é criada a Secretaria de Política Especial para Mulheres (SPM), com orçamento próprio, status ministerial e vinculada diretamente à Presidência da República, atendendo a uma demanda histórica do movimento. Posteriormente foram obtidas conquistas como a promulgação da Lei Maria da Penha (2006) e a criação de equipamentos públicos e políticas específicas para efetivá-la, além de avanços no que tange ao cuidado integral da saúde da mulher, especialmente considerando a atuação da “Área Técnica da Saúde da Mulher”, integrante do Ministério da Saúde.
O “ativismo institucional” feminista, no entanto, também enfrentou dificuldades e tensionamentos, especialmente tendo em vista a questão do aborto, uma das pautas centrais do movimento. Como resultado da Primeira Conferência de Políticas para Mulheres havia sido criada uma Comissão Tripartite com o objetivo de elaborar um anteprojeto para a legalização da prática, mas no momento da apresentação do Projeto de Lei na Câmara, em setembro de 2005, houve um recuo do Poder Executivo no apoio à proposta por conta da pressão da Comissão Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da bancada evangélica, e de tensões oriundas do escândalo do “mensalão”, o que fez que o projeto fosse arquivado (Machado, 2016MACHADO, L. Feminismos brasileiros nas relações com o Estado. Contextos e incertezas. Cadernos Pagu, 2016.). Poucas foram as vozes que se manifestaram contra o recuo do governo em relação à questão do aborto, o que reforçou o diagnóstico de analistas e militantes de que o movimento feminista teria se institucionalizado, se esvaziado e se afastado das ruas.
De fato, vozes críticas ao governo eram escassas no debate público entre 2006 e 2010, e diferenciações ideológicas e programáticas substantivas pareciam ter deixado de existir no sistema político durante o auge da popularidade do governo Lula. Se à esquerda vários movimentos sociais pareciam ter se institucionalizado e se esvaziado, como ilustra o caso do movimento feminista, à direita, determinados segmentos passaram a se sentir órfãos em termos de representatividade tendo em vista a atuação da oposição ao governo, sobretudo considerando o descontentamento gerado pelo que ficou conhecido como escândalo do “mensalão”. Por conta disso, uma nova direita em formação, diferente da direita que atuava dentro dos marcos estabelecidos pelo pacto de 1988, passou a se expressar e se organizar em fóruns da internet, especialmente no Orkut, rede social cuja popularidade precedeu a do Facebook no Brasil, e cujos usuários na época eram, em sua maioria, pessoas das classes média e alta, com alta escolaridade e moradoras do eixo sul-sudeste (Rocha, 2019ROCHA, C. “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo, 2019. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.).
A antiga rede possibilitou a formação de comunidades nas quais era frequente o uso de pseudônimos e a criação e circulação de contradiscursos que possuíam pouco ou nenhum espaço em arenas discursivas centrais. Entre os temas debatidos e defendidos pelos variados grupos que compunham a nova direita em formação é possível destacar, além da defesa radical do livre-mercado, o enaltecimento da monarquia brasileira, o antipetismo radical, a necessidade de combater as elites globalistas e seu projeto de poder mundial, e a necessidade de promover as tradições ligadas ao Ocidente cristão. Porém, havia uma ideia-força, propagada especialmente pelo filósofo e escritor Olavo de Carvalho, que foi capaz de aglutinar esses e demais contradiscursos a despeito de suas diferenças: a de que a consolidação do pacto de 1988 e de uma esfera pública pós-burguesa no país equivaleria à consolidação de uma “hegemonia cultural esquerdista”, a qual precisaria ser ativamente combatida para que um novo pacto social pudesse ser construído.
Na metade da década de 1990, Carvalho já defendia tal ideia, mesmo antes da chegada do PT ao poder. Para tanto, considerava que a esquerda dominaria determinadas arenas centrais de circulação de discursos na sociedade civil: jornais e revistas, ONG, editoras de livros, e cursos de ciências humanas nas principais universidades brasileiras, mais notadamente na Universidade de São Paulo. Em meio ao auge de popularidade do governo Lula, tais arenas, criticadas por Carvalho por sua falta de pluralidade ideológica, também passaram a abranger o próprio Estado, a conexão do PT via Foro de São Paulo com outros países latino-americanos que à época reivindicavam o bolivarianismo, e a Rede Globo, cujas novelas eram denunciadas por leitores de Carvalho no Orkut por seu conteúdo “comunista”.
Contudo, se o “esquerdismo” atribuído às produções da maior emissora de televisão do país é algo passível de questionamento, havia uma arena discursiva que sem sombra de dúvida era hegemonizada pela esquerda à época: o movimento estudantil. Dado que parte significativa dos frequentadores dos fóruns digitais da nova direita emergente era composta por estudantes universitários, não tardou para que passassem a compartilhar em alguma medida das ideias de Carvalho considerando sua própria experiência universitária, percebidas como permeadas por exclusões e silenciamentos (Rocha, 2019ROCHA, C. “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo, 2019. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.). Com o tempo, não só a ideia de que existiria uma “hegemonia esquerdista” no país passou a ganhar mais adeptos, mas a própria forma de combatê-la passou a se consolidar entre a nova direita emergente: a política do choque (Rocha; Medeiros, 2020), ou, como denominamos aqui, a contrapublicidade.
Para compreender as dinâmicas contemporâneas da esfera pública, antes de mais nada é preciso compreender que não existe algo como uma esfera pública unificada, mas sim uma multiplicidade de públicos. Os públicos aos quais fazemos referência aqui são formados a partir da existência de textos, vídeos, imagens, fotos, áudios, performances, e demais mensagens formuladas a partir de linguagens diversas, e de sua circulação reflexiva. Além disso, é preciso frisar que públicos podem ser mais ou menos locais, mais ou menos integrados, mais ou menos oficiais e institucionalizados, e mais ou menos digitalizados (Celikates, 2015CELIKATES, R. Digital Publics, Digital Contestation: a New Structural Transformation of the Public Sphere? In: CELIKATES, R.; KREIDE, R.; WESCHE, T. (Ed.) Transformations of Democracy. London: Rowman & Littlefield, 2015.).
O que todos os públicos possuem em comum, porém, é o fato de que são espaços auto-organizados, voluntários e orientados para uma sociabilidade entre estranhos, ou seja, para a formação de vínculos entre pessoas que não se conhecem a priori. Desse modo, participar de tais públicos requer um mínimo de participação e atenção, além de um entendimento compartilhado de que seus argumentos devem ser baseados em um modo de reflexão crítico-racional, entendimento esse que atua como uma espécie de ideologia hegemônica em públicos dominantes. Isso ocorreria porque, ainda que modos discursivos e de endereçamento de caráter performativo estejam presentes em algum grau em qualquer público (Warner, 2002WARNER, M. Publics and Counterpublics. New York: Zone Books, 2002.), a argumentação de tipo crítico-racional possuiria uma legitimidade maior na medida em que permitiria uma interlocução mais eficaz com o Estado, com a Ciência e com o Capital.
Os públicos podem ser mais ou menos centrais e mais ou menos periféricos (Fraser, 1997_______. Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy. In: ___. Justice Interruptus: Critical Reflections on the “Postsocialist” Condition. New York; London: Routledge, 1997.), e a esfera pública pós-burguesa possibilita a constituição de dois tipos principais de públicos periféricos: os públicos subalternos e os públicos não subalternos. Ambos formulam e circulam contradiscursos procurando utilizar argumentos de tipo crítico-racional com o intuito de penetrar públicos centrais nos quais determinadas percepções, questionamentos ou debates são negligenciados, silenciados ou mesmo desprezados.
Os primeiros são denominados como subalternos2 2 O uso da qualificação de subalterno diz respeito a uma posição social dominada ou dominante no interior de sistemas de opressão (Hill Collins, 2009). Considerando que a subalternidade possui, necessariamente, tanto um aspecto estrutural e objetivo quanto um aspecto simbólico e subjetivo. por serem formados majoritariamente por pessoas que são objetivamente subalternizadas, e cujos membros, em sua totalidade, possuem uma percepção compartilhada acerca das relações estruturais de dominação que os interpelam como sujeitos e que também perpassa públicos centrais, o que explica em grande medida a dificuldade de penetração dos discursos elaborados por públicos subalternos nessas arenas discursivas.
Já os últimos são caracterizados como não subalternos por serem formados por pessoas que, independentemente de serem ou não objetivamente subalternizadas socialmente, não se reconhecem como tal ou não o fazem de forma central, mas que compartilham ideias e visões de mundo que são negligenciadas em públicos centrais, daí a condição periférica que os caracteriza vis-à-vis públicos centrais.
Nesse sentido, um exemplo de público subalterno, retomando o exemplo do feminismo, seriam ativistas feministas que procuram utilizar argumentos de tipo crítico-racional para demandar mais creches, aborto legal até a 12ª semana de gestação e mais equipamentos públicos para o atendimento de vítimas de violência doméstica ao Estado, chamar a atenção para a negligência da Ciência tendo em vista investigações acerca do corpo da mulher e produções intelectuais de mulheres negras, ou mesmo criticar dinâmicas mercadológicas que reforçam determinados padrões e estereótipos de feminilidade.
Já os públicos não subalternos poderiam ser formados, por exemplo, por leitoras do economista austríaco Ludwig Von Mises, ou admiradores da monarquia brasileira, que almejam que suas ideias possam influenciar a organização do Estado, ser ensinadas nas universidades e influenciar empresários.
Ainda que, no entanto, a esfera pública pós-burguesa possibilite uma maior porosidade de arenas discursivas centrais considerando a atuação de públicos periféricos subalternos e não subalternos, isso não elimina a possibilidade de se formarem contrapúblicos. Ou seja, públicos que elaboram e circulam contradiscursos que se opõem frontalmente a um horizonte cultural percebido como dominante e que são expressos a partir de uma forma de endereçamento necessariamente disruptiva, indecorosa e chocante, denominada aqui de contrapublicidade (Warner, 2002WARNER, M. Publics and Counterpublics. New York: Zone Books, 2002.). Considerando sua atuação na esfera pública pós-burguesa, entendemos que os contrapúblicos também se dividem em dois tipos ideais principais: contrapúblicos subalternos e contrapúblicos não subalternos.
Os primeiros são formados majoritariamente por pessoas que são objetivamente subalternizadas, e cujos membros, em sua totalidade, possuem uma percepção compartilhada acerca da dominação estrutural que os interpela como sujeitos e que também perpassa os públicos centrais. No entendimento das pessoas que os integram, o fato de públicos centrais serem perpassados por relações estruturais de dominação limitaria o alcance de discursos de tipo crítico-racional junto a essas arenas, o que motivaria o emprego da política de choque para chamar atenção da sociedade para estas relações de dominação, como fizeram as ativistas feministas que participaram das Marchas das Vadias ao exporem seus seios em público e romperem com as regras de decoro da sociedade brasileira relacionadas à exposição do corpo lido como feminino.
Já os contrapúblicos não subalternos são formados por pessoas que, independentemente de serem ou não subalternizadas socialmente, não se reconhecem como tal ou não o fazem de forma central. O que as une é a percepção compartilhada de que suas visões de mundo são subordinadas a um horizonte cultural dominante que as aliena, silencia, menospreza e até mesmo ridiculariza, daí o recurso à contrapublicidade. E aqui é importante frisar que essa percepção subjetiva compartilhada pode ou não estar alinhada com uma subordinação objetiva. Bastante ilustrativo nesse sentido é a defesa de Olavo de Carvalho do uso consciente do palavrão com o objetivo de chocar ao romper com o decoro dos públicos dominantes, compreendido pelo filósofo como uma “camisa-de-força”.
Considerando especificamente a atuação dos contrapúblicos, é possível dizer que, subalternos ou não, todos fazem recurso à contrapublicidade. Isto é, todos fazem uso do choque intencional, do recurso à performatividade disruptiva e da transgressão de normas de decoro, os quais podem ser utilizados de forma consciente como uma estratégia política contra-hegemônica radical. Isso ocorre quando existe uma percepção por parte dos membros de determinados públicos de que suas ideias não conseguem circular em públicos dominantes, e de que a própria manifestação das visões de mundo e modos de vida que defendem estão sob ameaça iminente. Além disso, é importante também chamar atenção para a dimensão do papel exercido pelas dinâmicas que perpassam a recepção da contrapublicidade, o que também diferencia a atuação dos contrapúblicos daquela dos demais públicos como iremos apontar a seguir.
2011 a 2018: públicos, contrapúblicos e a reação conservadora
Em um intervalo de apenas quatro anos após a saída de Lula do poder, entre 2011 e 2014, segmentos mais conservadores da sociedade sentiram os avanços propiciados pela esfera pública pós-burguesa como um verdadeiro choque de progressismo. Em 2011 foi criada a Comissão Nacional da Verdade para investigar os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar, e, no mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável homoafetiva. No ano seguinte, o mesmo tribunal reconheceu o direito ao aborto em casos de anencefalia fetal e confirmou a validade do sistema de cotas raciais nas universidades públicas. Em 2013 foi promulgada a PEC das Domésticas, que ampliou os direitos trabalhistas das trabalhadoras e trabalhadores domésticos, e em 2014 a “Lei da Palmada”, que proíbe o uso de castigos físicos e tratamentos cruéis e degradantes a crianças e adolescentes.
Ainda que tais políticas tenham representado avanços inegáveis para grupos subalternos no Brasil, isto não implicou, automaticamente, a diminuição de relações de opressão em nossa sociedade, pelo contrário. A conquista das cotas raciais ocorreu em paralelo à continuidade do genocídio da juventude negra; a criação da Lei Maria da Penha não impediu o aumento de feminicídios em anos posteriores; o reconhecimento inédito de direitos a terras indígenas e quilombolas conviveu com a perseguição e violência intensa dirigida a estes grupos; assim como o direito à união civil entre pessoas do mesmo sexo continua a conviver com altos índices de violência relacionados à comunidade LGBTQIA+.
Tendo em vista, para além das movimentações na arena institucional, as manifestações de contrapúblicos subalternos começaram a se disseminar em uma velocidade cada vez maior. Isso ocorreu sobretudo em virtude de uma conjunção entre a intensificação brutal dos conflitos socioeconômicos e socioculturais (em torno da redistribuição de renda e das fronteiras entre público e privado) e a popularização crescente da internet no país,3 3 Sobre a correlação entre a popularização da internet e o crescimento de contrapúblicos, ver Downey e Fenton (2003). o que aumentou exponencialmente o alcance potencial de indivíduos e grupos dos mais alternativos, como foi o caso das Marchas das Vadias. Inspiradas na Slut Walk canadense, as marchas, cujo mote central era a liberdade do próprio corpo, pipocaram em todo o território nacional entre 2011-2012. Logo uma série de fotos de manifestantes com seios desnudos, assim como imagens de performances disruptivas realizadas por coletivos culturais, que apareciam quebrando santas e introduzindo crucifixos no ânus, inundaram a mídia tradicional e as redes sociais provocando reações de choque, como atestam depoimentos de pessoas das classes trabalhadoras:4 4 Tais depoimentos foram coletados em 2019 no âmbito da pesquisa “Conservadorismo e questões sociais” realizada pela Plano CDE e pela Fundação Tide Setúbal, em que Camila Rocha atuou como consultora técnica e pesquisadora de campo em conjunto com Esther Solano. O relatório da pesquisa está disponível em: <http://conteudo.fundacaotidesetubal.org.br/downloadconservadorismo>.
Eu me sinto agredida e até ofendida quando eu vejo o movimento feminista agredindo outra pessoa pela religião, pelo partido político ou pelo lado que elas estão. Isso não é válido. É um movimento em prol das mulheres e não para agredir outras mulheres ou a sociedade. Eu vi na televisão em um movimento feminista na avenida paulista que introduziram crucifixos no ânus, vi artistas dizendo que Jesus era gay, ou que Deus é homossexual.5 5 Referência a imagens capturadas em 2015 na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, como a de um homem vestido de Jesus Cristo beijando outro homem e a de uma transsexual presa a uma cruz. Já a referência à introdução de crucifixos no ânus é, ao que tudo indica, um caso de colapso contextual: em vez de cena da Av. Paulista que teria sido televisionada, a entrevistada deve ter em mente a performance do Coletivo Coiote na Marcha das Vadias no Rio de Janeiro em 2013 (cf. Gomes, 2018). Eu acho que isso é agredir a religião das outras pessoas. (Mulher, São Paulo, 2019)
Para além do choque sentido com os avanços progressistas na arena institucional, segmentos conservadores da sociedade também se sentiram atacados no âmbito da sociedade civil, dado o espraiamento da contrapublicidade feminista e queer, inclusive considerando o que foi percebido como um aumento de sua representatividade na mídia tradicional, como nas já referidas novelas da Rede Globo:
Tem muitos gays que gostam de afrontar, esse é o problema, eles querem a mídia, bota na novela, na Malhação, impõem aquilo. Eles se empoderam, acham que são donos da verdade, vão andar de mãos dadas no shopping e você tá com o seu filho ali. Fazer entre quatro paredes tudo bem, a casa é deles, mas a sociedade não é obrigada a aturar, a assistir. (Homem, Rio de Janeiro, 2019)
Ainda que reações semelhantes possam ser encontradas com relativa facilidade em todos os estratos de renda, dado o profundo enraizamento de dinâmicas de opressão no país, no caso específico das classes trabalhadoras, o “choque progressista” também desencadeou um ressentimento específico, sobretudo entre trabalhadores com mais de quarenta anos:
Se a gente falar veado para veado, ele vai se defender e a gente não pode. Se falar negro para o negro também. Se tocar na mulher ela tem a Maria da Penha, e a gente? Não é direitos iguais? A corda sempre arrebenta para os mais fracos, e os mais fracos somos nós. Deveria ter uma lei para proteger a gente também. (Homem, Porto Alegre, 2019)
A ansiedade e a sensação de descartabilidade frente a um mundo do trabalho em rápida transformação, e o medo da perda de um já reduzido poder econômico apareciam insistentemente nos depoimentos. Daí a constatação, “a corda sempre arrebenta para os mais fracos e os mais fracos somos nós”. No entanto, diferentemente do que ocorreu no contexto anglo-saxão, não havia referência a algo semelhante à figura da welfare queen (Nunes, 2020NUNES, R. Alvim errou a mão na trollagem nazi inspirada na direita dos EUA. Folha de S.Paulo, 21 jan. 2020.), ainda que eventualmente as pessoas criticassem supostas fraudes no Programa Bolsa-Família, mas um desejo de que a proteção social a grupos subalternizados abrangesse mais pessoas e incluísse direitos trabalhistas: “deveria ter uma lei para proteger a gente também”. Além disso, à percepção da própria desproteção se somavam sentimentos de traição e abandono em relação ao Partido dos Trabalhadores e à esquerda em geral, que teriam deixado os trabalhadores à própria sorte ao concentrarem suas energias no combate de opressões de outra ordem:
Eu voto no PT desde que eu me conheço como eleitor e me senti enganado. Eles prometeram que iam governar para o povo, para o pobre, e eles simplesmente distorceram a esquerda. Pegaram a esquerda que era o Partido dos Trabalhadores e transformaram numa esquerda que é o partido das mulheres, dos gays, dos LGBTs, tudo que é à margem foi se juntando ao PT e virou uma anarquia só. Em vez deles levarem as coisas de uma forma que edificasse a sociedade os caras queriam promiscuidade. (Homem, Rio de Janeiro, 2019)
Uma forma de ler essa fala é a partir da noção de discurso reprivatizador (Fraser, 1989FRASER, N. Unruly practices: Power, discourse, and gender in contemporary social theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989.): a resistência conservadora à politização e à desnaturalização promovidas por discursos oposicionais feministas e LGBTQIA+, recepcionadas como desordem frente a uma “ordem natural”. Por outro lado, falas como esta não significavam necessariamente uma rejeição às figuras que representavam o combate a essas opressões e à maior parte de suas demandas. Na percepção das pessoas entrevistadas, o problema é que tais lutas fariam pouca ou nenhuma referência à dimensão coletiva, conectando-se materialmente com o cotidiano das classes populares, de modo que, via de regra, os discursos veiculados acerca das opressões a mulheres, negros e LGBTQIA+, passaram a ser recepcionados por parte significativa das pessoas como se estivessem “reduzindo a realidade” de forma superficial a determinados marcadores de diferença:
Ah, porque a Marielle é uma heroína, mas por que ela era uma heroína? Porque ela era mulher, negra e lésbica. Porra, a mulher fez tanta coisa importante, mas colocam isso em primeiro lugar, reduzem à mulher, negra e lésbica. (Homem, Rio de Janeiro, 2019)
Dada a escassez de arenas discursivas intermediárias que possibilitassem a formulação e circulação reflexiva de outros discursos próprios das classes trabalhadoras para além daqueles circulados em redes sociais e fóruns digitais, as igrejas neopentecostais acabavam por se constituir, por vezes, nas únicas esferas de sociabilidade acessadas pelas classes trabalhadoras em que tais temáticas eram abordadas com maior frequência.6 6 As igrejas figuravam frequentemente como a única experiência comunitária em que era possível estabelecer laços de confiança e conversar a respeito de certos temas, de modo que era frequente um temor entre fiéis mais assíduos de que o PT e a esquerda, ao “atacarem a religião”, fossem destruir justamente o único espaço de sociabilidade acolhedor que possuíam. Para mais dados sobre o tema cf. Valle (2020). Assim, se seus fiéis mais assíduos costumavam ser mais enfáticos na recusa de um discursividade progressista, que percebiam como ataques à Igreja e a seus modos de vida, é possível dizer que praticamente todas as pessoas, independente do credo professado, sentiam-se encurraladas. Por um lado, o Estado produzia políticas públicas e livros didáticos progressistas sem mediações discursivas que incluíssem as classes populares, e, por outro, encontravam o choque e a agressão oriundos da contrapublicidade subalterna. Daí a sensação relatada de que determinados discursos lhe estavam sendo impostos.
Tais percepções logo foram ecoadas pela nova direita emergente que já vinha se consolidando desde 2006. Jair Bolsonaro, na época um deputado federal historicamente marginalizado e desprezado pelas elites políticas, não hesitou em tomar a dianteira na reação ao “choque progressista”. Ao lado de outros parlamentares conservadores, conseguiu barrar a impressão do material escolar relativo ao projeto “Escola sem homofobia”, oriundo do programa “Brasil sem homofobia”, formulado originalmente em 2004 e apelidado pejorativamente de “Kit Gay”. Porém, não obteve o mesmo sucesso em relação à instalação da Comissão Nacional da Verdade, e nem no que tange à aprovação da união civil homoafetiva, regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça em maio de 2013, o que fez com que a contrapublicidade de direita passasse a ser empregada ativamente como forma de combater o que percebiam, em consonância com as teses defendidas por Olavo de Carvalho, como uma “hegemonia cultural esquerdista”.
Assim, à medida que Bolsonaro e seus filhos passaram a ficar mais conhecidos nas arenas discursivas frequentadas por membros da nova direita emergente, a formação de contrapúblicos bolsonaristas se acelerou. Isso se deu tanto por conta da relativa facilidade em acionar e mobilizar subjetividades tendo em vista a naturalização de dinâmicas de dominação,7 7 Agradecemos a Fernando Baldraia o valioso comentário à exposição oral de nossos argumentos feita no 5º episódio do podcast Diálogos Mecila: Conservadorismos em debate. como uma virtude do fortalecimento da candidatura de Jair Bolsonaro à presidência em meio aos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, permeados por discursos antipetistas, anticorrupção e antissistema (Ortellado; Solano; Moretto, 2016 ; Telles, 2016TELLES, H. A direita vai às ruas: o antipetismo, a corrupção e democracia nos protesto antigoverno. Ponto e Vírgula, v.19, p.97-125, 2016.). Ao incorporar todos esses elementos em sua retórica, para além do discurso de lei e ordem, que respondia tanto à insegurança frente à criminalidade como ao “choque progressista”, o militar reformado passou a ser tido pelos manifestantes como uma possível opção para cargo.8 8 De acordo com um survey conduzido à época por Esther Solano e Pablo Ortellado. Conhecido por seus discursos polêmicos e disruptivos, o capitão reformado logo recebeu o apelido de “bolsomito”, em referência às suas “mitagens”. “Mitagem” e “lacração” são gírias que fazem referência à capacidade de encerrar uma discussão de forma exemplar deixando o interlocutor sem reação e que se popularizaram na internet justamente em meio às dinâmicas ensejadas entre públicos e contrapúblicos.
A contrapublicidade bolsonarista é, no entanto, via de regra, muito mais radical que uma “mitada”, tendo em vista sobretudo a exaltação frequente de coronel Carlos Brilhante Ustra, conhecido torturador que atuou durante a ditadura militar. Nesse sentido, é possível destacar dois pontos altos da contrapublicidade bolsonarista antes de sua vitória nas urnas. O primeiro é a homenagem a Ustra realizada por Bolsonaro no plenário em meio à votação do impeachment de Rousseff, em que o militar declarou: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”. O segundo se deu em meio à campanha eleitoral de 2018, quando Carlos Bolsonaro compartilhou nos stories 9 9 Fotos e vídeos curtos que só podem ser visualizados na referida rede por um curto período de tempo pois saem do ar em 24 horas. de sua conta no Instagram uma imagem que ironizava a campanha anti-Bolsonaro organizada por grupos de mulheres nas redes sociais conhecida como #EleNão. A foto, compartilhada com a legenda “sobre pais que choram no chuveiro!”, fazia referência a uma cena de tortura e mostrava um homem ensanguentado, com a cabeça envolta por um saco plástico, a boca aberta, e o nome do movimento grafado em seu peito desnudo.10 10 Curiosamente, segundo apurou o jornal El País, o criador da imagem seria um apoiador do #EleNão e teria criado a montagem para denunciar a censura à campanha, no entanto, ao ser compartilhada por Carlos Bolsonaro a partir do perfil @direitapvh, essa foi ressignificada e recepcionada como contrapublicidade bolsonarista.
2022: a contrapublicidade no Planalto e a crise do pacto de 1988
Considerando tudo o que foi exposto até aqui, entendemos que os contrapúblicos têm duas dimensões centrais: um caráter ambivalente e um caráter paradoxal. No que tange à ambivalência, é possível dizer que os contrapúblicos fomentam um potencial de democratização da esfera pública dominante ao apontarem para ausências de pluralidade no debate público e chamarem atenção para sofrimentos sociais que são pouco ou nada tematizados em públicos dominantes, como procuramos apontar a partir de depoimentos de pessoas das classes trabalhadoras, e que também figuram naqueles coletados pela socióloga Arlie Russell Hochschild (2016HOCHSCHILD, A. R. Strangers in Their Own Land. New York: The New Press, 2016.) junto a apoiadoras e apoiadores do Tea Party na Lousiana, Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, no entanto, os contrapúblicos também estimulam a fragmentação sociocultural - pela multiplicação dos códigos oposicionais - e a polarização sociopolítica. A polarização política, em especial, é alimentada pelos contrapúblicos dado que esses operam segundo uma lógica de que existem apenas inimigos políticos a serem destruídos, e não adversários políticos que poderiam ser alvo de cooptação, negociação ou derrota temporária. Para os membros dos contrapúblicos a impossibilidade do debate repousa na percepção de que seus inimigos agem sempre de forma má-intencionada, são pervertidos, “mentirosos com ambições psicóticas”, nas palavras de Carvalho, não possuem humanidade e nem racionalidade, ou então foram vítimas de alguma “lavagem cerebral” que os doutrinou para defenderem ideias malignas, o que torna impossível qualquer debate racional de ideias.
Assim, ainda que os membros dos contrapúblicos possuam argumentos de tipo crítico-racional para sustentar suas posições, optam preferencialmente pela recusa ao debate. Já o caráter paradoxal dos contrapúblicos está em sua relação com a conflitualidade. Os contrapúblicos não apenas instauram o conflito entre o horizonte cultural dominante e um horizonte alternativo, como também permitem nomear o conflito e esboçar a sua própria utopia de reorganização da vida pública (Warner, 2002WARNER, M. Publics and Counterpublics. New York: Zone Books, 2002.). De modo geral, os públicos dominantes trabalham com a naturalização de seu próprio horizonte cultural e, assim, perpetuam a dominação de seus códigos, performances, ideias e estruturas, uma vez que se apresentam como consensuais, ou seja: livres de conflitos. A contrapublicidade desnaturaliza estes falsos consensos; mas sua dimensão paradoxal está na dificuldade em sair da conflitualidade pura e fabricar novos consensos, que possam ser mais inclusivos e mais reflexivos.
Nesse sentido, a atuação de Jair Bolsonaro e seus filhos no governo seria um exemplo paradigmático da conflitividade pura: trai e abandona aliados, sabota acordos, impede novos consensos (pois isso seria justamente trair o próprio princípio da contrapublicidade) e não inspira a construção de uma solidariedade social nem mesmo em tempos de pandemia. Seu único objetivo é demolir as bases dos públicos dominantes que ainda operam dentro dos limites do pacto de 1988 e lhe dão sustentação no Estado e na sociedade civil. Para tanto, busca naturalizar o próprio extremismo, ao mover o horizonte cultural cada vez mais à direita (Nunes, 2020NUNES, R. Alvim errou a mão na trollagem nazi inspirada na direita dos EUA. Folha de S.Paulo, 21 jan. 2020.), apontar para a ruptura com o pacto de 1988, e com o arranjo político que lhe é correspondente, e sinalizar a instauração futura de um regime autoritário em meio a manifestações de grupos radicalizados, fazendo com que, em 2022, a Nova República esteja, novamente, sob a Espada de Dâmocles.
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Notas
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1
O trabalho de Perlatto (2018) serviu como inspiração metodológica para mobilizar a historiografia brasileira a fim de compreender sociologicamente as mudanças estruturais na esfera pública brasileira.
-
2
O uso da qualificação de subalterno diz respeito a uma posição social dominada ou dominante no interior de sistemas de opressão (Hill Collins, 2009). Considerando que a subalternidade possui, necessariamente, tanto um aspecto estrutural e objetivo quanto um aspecto simbólico e subjetivo.
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3
Sobre a correlação entre a popularização da internet e o crescimento de contrapúblicos, ver Downey e Fenton (2003).
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4
Tais depoimentos foram coletados em 2019 no âmbito da pesquisa “Conservadorismo e questões sociais” realizada pela Plano CDE e pela Fundação Tide Setúbal, em que Camila Rocha atuou como consultora técnica e pesquisadora de campo em conjunto com Esther Solano. O relatório da pesquisa está disponível em: <http://conteudo.fundacaotidesetubal.org.br/downloadconservadorismo>.
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5
Referência a imagens capturadas em 2015 na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, como a de um homem vestido de Jesus Cristo beijando outro homem e a de uma transsexual presa a uma cruz. Já a referência à introdução de crucifixos no ânus é, ao que tudo indica, um caso de colapso contextual: em vez de cena da Av. Paulista que teria sido televisionada, a entrevistada deve ter em mente a performance do Coletivo Coiote na Marcha das Vadias no Rio de Janeiro em 2013 (cf. Gomes, 2018).
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6
As igrejas figuravam frequentemente como a única experiência comunitária em que era possível estabelecer laços de confiança e conversar a respeito de certos temas, de modo que era frequente um temor entre fiéis mais assíduos de que o PT e a esquerda, ao “atacarem a religião”, fossem destruir justamente o único espaço de sociabilidade acolhedor que possuíam. Para mais dados sobre o tema cf. Valle (2020).
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7
Agradecemos a Fernando Baldraia o valioso comentário à exposição oral de nossos argumentos feita no 5º episódio do podcast Diálogos Mecila: Conservadorismos em debate.
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8
De acordo com um survey conduzido à época por Esther Solano e Pablo Ortellado.
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9
Fotos e vídeos curtos que só podem ser visualizados na referida rede por um curto período de tempo pois saem do ar em 24 horas.
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10
Curiosamente, segundo apurou o jornal El País, o criador da imagem seria um apoiador do #EleNão e teria criado a montagem para denunciar a censura à campanha, no entanto, ao ser compartilhada por Carlos Bolsonaro a partir do perfil @direitapvh, essa foi ressignificada e recepcionada como contrapublicidade bolsonarista.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Maio 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
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Recebido
18 Out 2021 -
Aceito
12 Dez 2021