RESUMO
Este artigo propõe uma análise estilística de “Meu tio o Iauaretê”, de João Guimarães Rosa, ao mesmo tempo em que busca na cultura dos povos originários dados que possam estabelecer nexos de sentido com o conto. Tendo como paradigma o estudo pioneiro de Walnice Galvão, “O impossível retorno”, no qual a autora faz um amplo levantamento sobre a presença do jaguar na cultura ameríndia e sua relação com o texto de Rosa, buscamos investigar outros aspectos da mitologia e da vida de algumas etnias na tentativa de ampliar o horizonte interpretativo do texto ficcional. Para mediar a discussão entre o mítico e o literário e desenvolver a discussão decorrente do estudo, utilizamos alguns pontos da fortuna crítica do conto, da antropologia, da história do Brasil, da teoria literária e da psicanálise freudiana.
palavras-chave : Meu tio o Iauaretê; Mitologia ameríndia; Guimarães Rosa
ABSTRACT
This article proposes a stylistic analysis of João Guimarães Rosa’s “My uncle, the Iauaretê”, while seeking data in the culture of native peoples to establish nexus of meaning with the short story. Having as paradigm Walnice Galvão’s pioneer study “O impossível retorno” (The impossible return), in which she carries out a comprehensive survey of the presence of the jaguar in Amerindian culture and its relationship with Rosa’s text, we investigate other aspects of the mythology and life of some ethnicities, in the attempt to widen the interpretive horizon of the fictional text. To mediate and develop the discussion between the mythical and the literary, we use some points from the critical fortune of the short story, anthropology, the history of Brazil, literary theory and Freudian psychoanalysis.
KEYWORDS: My uncle the Iauaretê; Amerindian mythology; Guimarães Rosa
Introdução
O conto “Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa, publicado em 1961, é um dos pontos altos da prosa nacional. Um dos aspectos inovadores da narrativa é a forma como a matéria mítica e cultural dos povos originários é trabalhada no texto literário. Vale lembrar, de forma resumida, o enredo do texto de Rosa.
O conto, narrado em primeira pessoa, tem início quando um forasteiro perdido no meio do mato, à noite, encontra a cabana onde mora o narrador. Esse o acolhe e começa a contar sua história, à moda do diálogo oculto, no qual só se tem acesso à fala do narrador, sendo a participação do forasteiro sempre suposta. Enquanto quase nada se sabe sobre o forasteiro, Bacuriquirepa - nome dado por sua mãe, índia - conta parte de sua trajetória de vida. Contratado para matar as onças daquela região, é chamado por seu patrão de Tonho Tigreiro, sendo que o nome de batismo, dado pelo pai, é “Antonho de Eiesus”. Posteriormente, adota também o nome de Macuncozo, nome de um lugar onde morou. À medida que conta, bebendo a cachaça trazida pelo visitante, retoma sua origem mestiça - o pai era um branco, vaqueiro - e seu parentesco com as onças, dado ensinado por sua mãe. Depois de muito tempo matando as feras, arrepende-se e passa a respeitá-las e a conviver com elas, seus parentes, insistindo no fato de que ele, também, era uma onça. Fala do seu encontro amoroso com uma onça, Maria-Maria, e de como ajudou a matar diversos homens indesejados com quem se relacionara. Ao final, quase a ponto de atacar seu interlocutor, acaba morto por um tiro de revólver.
A fortuna crítica desse conto é bastante extensa, mas aqui destacamos o ensaio de Walnice Galvão, “O impossível retorno”, publicado originalmente em 1975. A relevância desse ensaio deve-se, entre outros motivos, à extensa investigação da figura do jaguar na cultura dos povos das Américas. Ponto culminante desse ensaio crítico é a transcrição do mito Kaiapó sobre a origem do fogo, guardado pelo jaguar e usado pela autora como uma das chaves interpretativas do conto.
O presente artigo toma como ponto de partida essa vertente de pesquisa - que vai do texto literário à tradição, para daí trazer elementos significativos à interpretação do conto - para buscar novos dados da cultura dos povos nativos que podem se mostrar relevantes ao estudo da ficção rosiana.
Através da análise estilística da obra, cotejada com alguns textos que contêm parte das tradições nativas, apresentaremos alguns desdobramentos possíveis da relação entre o texto literário e as onças do imaginário de diversas etnias, numa tentativa de diálogo com a fortuna crítica do conto, apontando outros caminhos interpretativos, ainda obscuros e pouco considerados pelos pesquisadores. A busca por novas narrativas e outros dados da cultura nativa que ajudem a iluminar o denso conto de Rosa e a ampliar suas possibilidades de leitura se mostram, então, pertinentes.
Onça Guarani: destruição
Entre muitos outros casos, o volume As lendas de criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani,1 de Curt Nimuendajú, publicado em português em 1987, trata da possibilidade de identificação entre homem e jaguar:
Os aguerridos Kaingýgn, inimigos dos Guarani, possuem invariavelmente um acyiguá de jaguar ou de gato do mato. O acyiguá de predador predomina totalmente sobre o ayvucué; por isso, os Kaingýng não são “como” jaguares ou comparáveis a jaguares, ou simbolizados pelo jaguar: não, eles são intrinsecamente jaguares, apenas em forma humana. (Nimuendajú, 1987, p.34, grifos do original)
Ayvucué seria o equivalente a alma, “o sopro brotado (da boca)” ou “alma surgida (do corpo)”, segundo Nimuendajú (1987, p.29). Pouco depois do nascimento de uma criança, vem juntar-se ao ayvucué o acyiguá, que seria equivalente a uma “alma animal”. Nas palavras do etnólogo: “Os Apapocúva atribuem as disposições boas e brandas do homem ao seu ayvucué, as más e violentas ao seu acyiguá. A calma é manifestação do ayvucué, o desassossego, do acyiguá” (ibidem, p.33-4). Possuir um acyiguá de animal predador seria, portanto, um dado problemático.
Lúcia Sá parece ter sido uma das primeiras autoras a mencionar a possibilidade de aproximação entre a obra de Nimuendajú com o texto de Rosa. Em seu volume Literaturas da floresta, de 2012, ela cita o livro do etnólogo alemão, mencionado acima, no qual aponta a significativa relação entre as obras. Por sua relevância, reproduzimos aqui o trecho destacado por Sá, do livro de Nimuendajú (1987, p.118, grifos do original):
Os Kaingýng são jaguares; não só na opinião dos guarani, mas eles próprios se denominam assim e se vangloriam de seu parentesco (literalmente entendido) com aquele animal predador. Quando pintam sua pele amarela com manchas ou listas negras para a luta, entendem que também na aparência se assemelham bastante ao jaguar, e o alarido que fazem no ataque soa quase como o grunhido surdo da onça quando está sobre a presa. Tudo isto não é absolutamente simbólico; levam tão a sério seu parentesco com o jaguar que, naquelas pessoas que eles mesmos denominam de mi-ve “aquele que vê jaguares”, estas ideias degeneram em uma forma peculiar de perturbação mental. Este vidente, que se desenvolve a partir do mi-ñantí “aquele que sonha com jaguares”, crê-se amado pela “filha do senhor dos jaguares” (mi-g-tan-fi), isola-se de todos os parentes e companheiros, e perambula solitário e selvagem pela mata até que lhe vêm alucinações em que um jaguar lhe indica o caminho até a jovem-onça.
Obviamente que alguns pontos em comum podem ser estabelecidos entre a observação desse autor e o texto de Rosa, afora as muitas diferenças. Há inúmeros textos que podem ter servido de base para sua criação artística. Certamente que a identificação entre certa etnia e o jaguar é um forte ponto de sustentação dessa relação, embora possa haver outros. A ferocidade do jaguar dos Kaingýng e seu “parentesco” com as feras lembra em muito o conto ora estudado, assim como o isolamento e o encontro com a “jovem-onça”.
Vale ressaltar, no estudo do etnólogo alemão, que o jaguar tem uma dimensão mítica e está presente tanto na criação quanto na destruição do mundo.
Os Jaguares Originários, ou Eternos,2 a saber, a Avó-Onça3 (Jaguareté Jarýi) e seus netos, acabam por criar os gêmeos Ñanderyqueý e Tyvýry, filhos, respectivamente, dos seres primordiais Ñanderuvuçú e Ñanderú Mbaecuaá (ambos do sexo masculino) com a mulher, Ñandecý, que engravida simultaneamente dos dois. Após a morte de Ñandecý por obra dos jaguares, com as crianças ainda em seu ventre, estes, os jaguares, acabam por criar os gêmeos. Ñanderyqueý e Tyvýry tratam os jaguares por “tio”, “tuty”. Em Rosa, tio é escrito “tutira”, conforme apontou Walnice Galvão.
Os gêmeos ficam sabendo do assassinato da mãe por meio de um pássaro. A vingança da mãe assassinada pelos felinos vem após muitos acontecimentos. Os gêmeos tramam e logram vingar a morte de Ñandecy, matando todos os jaguares, exceto a Onça Prenhe (Jaguareté cuñã ipuruávae), que escapa e dá a luz aos jaguares tais como existem hoje.
Ao tratar do fim dos tempos, a mitologia dos Apapocúva-Guarani fala do Jaguarový, o Jaguar Azul, que, nas palavras de Nimuendajú (1987, p.51) é:
[...] um demônio legítimo, um ser completamente sobrenatural e imortal. Seu lugar, hoje em dia, é debaixo da rede de Ñanderuvuçú, onde aguarda o comando do deus para se arremessar contra a humanidade. Ele teria a aparência de um belo cão, grande mas não gigantesco, e seu pelo seria de um maravilhoso azul celeste.
Sem pretender entrar em detalhes dessa rica mitologia, vale apontar para essa presença feroz e destruidora dos jaguares quando vistas pela perspectiva desse grupo étnico, além da identificação dos Kaingýng - inimigos dos Guarani - com os jaguares. Seja no princípio ou no fim dos tempos, os jaguares são a expressão da ferocidade, da selvageria. Nesse aspecto, a aproximação com o Bacuriquirepa e seu relato é bastante pertinente. Em sua síntese: “onça é carrasca” (Rosa, 1976, p.144), “onça gosta de matar tudo...” (ibidem, p.129), não havendo espaço para dúvida quanto ao seu modo de agir.
Há, no entanto, dada a ambivalência do relato do onceiro tornado onça, espaço para a manifestação de um aspecto também protetor do felino em relação à sua prole, sua cria, que é o próprio narrador do conto rosiano.
Onça protetora: Xacriabá, Krenak
Bacuriquirepa fala com carinho de sua mãe, que lhe dava de comer e lhe ensinou, entre outras coisas, que as onças eram seu povo, seus ancestrais míticos. É viável supor que, assim como ele e seu tio, ela, mãe, também era onça. Diversos momentos do conto fazem menção à relação da mãe do narrador com ele e aos cuidados que a ele dispensava. Da mesma forma, associa sua mãe à própria onça cuidando dos filhotes: “Mãe minha bugra, boa, boa pra mim, mesmo que onça com os filhotes dela, jaguaraím. [...] Mãe onça morre por conta deles” (Rosa, 1976, p.148). Nada sabemos sobre seu destino através do relato de seu filho, sendo plausível que ele seja órfão, pelo comentário “tenho pai nem mãe” (ibidem, p.149).
Ao falar da saudade que sente da mãe, Bacuriquirepa usa o termo “çacyara”, para o qual Nilce Martins (2001) não encontra referência. No Vocabulário, de Ermano Stradelli (2014, p.476 e 360, respectivamente) encontra-se “saciara”, vertido como “triste”, e “cyuara”, significando “maternal”.
Por outro lado, importante lembrar que o pai do narrador era branco, vaqueiro (mimbauamanhanaçara), chamado Chico Pedro (Rosa, 1976, p.140), por quem ele não nutre afeição, chamando-o de “homem burro”.
Walnice Galvão (1978, p.30-1) aponta a proximidade do nome da onça pela qual o narrador se apaixona, Maria-Maria, com o da mãe do narrador: Mar’Iara Maria. De acordo com a cultura Xacriabá, seguindo a associação de Betty Mindlin em Palavras para Walnice (Dimas; Chiappini, 2022), outra aproximação é possível, dessa vez com a entidade mítica protetora, mulher tornada onça, Iaiá Cabocla. Além da proximidade sonora, principalmente pela alternância das vogais i e a, trata-se de figura feminina de afeto, cuidado, proteção.
Segundo a tradição dessa etnia, que hoje se localiza no norte de Minas Gerais, a onça mítica, conhecida como Iaiá Cabocla, nasceu a partir da transformação de uma mulher em onça. Originalmente, tendo avisado o irmão de que ela se transformaria em onça, tomou um cachimbo, instruindo-o de que ela mataria uma rês para beber seu sangue e ele, quando ela retornasse, deveria pôr o cachimbo de volta em sua boca para que ela voltasse a ser humana. O irmão, no entanto, ao ver a onça se aproximar de boca aberta, foge de medo, sem pôr o cachimbo de volta na boca da irmã (Índios Xacriabá, 2005, p.49).
No detalhe da boca aberta, mito e texto literário se aproximam de forma surpreendente: “Se mecê topar com Maria-Maria, não vale nada ela ser a onça mais bonita - mecê morre de medo dela. Ói: abre os olhos: ela vem, vem, vem, com a boca meio aberta” (Rosa, 1976, p.147, grifo meu).
Para os Xacriabá, “abaixo de Deus, ela é a defesa da nossa aldeia” (Índios Xacriabá, 1998, p.55). Para essa etnia, a onça cabocla é uma mulher encantada que conversa com os antepassados mortos e falava à comunidade através do membro mais antigo da comunidade, Estevão Gomes. Não há exagero em afirmar, portanto, que Iaiá Cabocla muito se assemelha a uma divindade que fala à comunidade por meio de um sacerdote.
Importante apontar no nome desse ente mítico a referência ao tratamento respeitoso dado às jovens no tempo da escravidão no Brasil: Iaiá. Aqui, portanto, há a junção do falar do escravo para designar uma senhora mestiça - cabocla - que usa seu poder para proteger o povo.
No artigo “Memória, sentimento e religião entre os Xacriabá do Norte de Minas Gerais”, a antropóloga Maria Hilda Baqueiro Paraíso correlaciona a presença do ente mítico, Yayá, a onça cabocla, com a organização social dos Xacriabá, sua identidade e sua luta pelo direito à terra. Lê-se neste artigo (Paraiso in Montenegro et al., 2008, p.314-15) a seguinte versão:
Yndaiá era uma índia Xacriabá que, desesperada com a fome vivida por seu povo, buscou uma solução. Descobriu que, à noite, se colocasse um galho de árvore (provavelmente de jurema) na boca, podia se transformar em onça e sair para matar bois e trazer carne para os membros da comunidade e matar-lhes a fome. Ao regressar, a mãe deveria colocar o galho na sua boca para que voltasse a ser humana. Um dia, segundo uma das versões, a mãe se assustou e não cumpriu o acordo. Yayá, o nome da onça, não mais se transformou em moça. Segundo outras versões, a mãe perdeu o galho e nada pode trazer para propiciar a transmutação.
A partir daí, a onça se esconderia nas cavernas, justamente onde os índios escondem as “traias”, ou utensílios usados nos rituais de evocação do ente mítico, que são mantidos em segredo pelo povo. Em outras versões (Paraiso in Montenegro et al., 2008, p.315): “os Xacriabá passaram a frequentar as cavernas em busca da carne trazida por Yayá, iniciando, desde então, os rituais de comemoração pela interferência da onça cabocla e a realizar rituais para agradecer e louvá-la, origem dos atuais rituais, quando Yayá volta a ser Yndaiá e orienta seu povo”.
Nesse mesmo texto, a autora cita o artigo de Sonia de Almeida Marcato (1978, p.411) no qual consta o que seria um dos primeiros registros sobre o que chama de “onça oráculo”. Para Maria Hilda Paraíso, “só o pajé, conhecedor da língua de Yayá (a língua ritual na qual ainda é possível identificar alguns resquícios do antigo idioma) é capaz de acalmá-la”.
A função protetora desse ente mítico para com a etnia em questão mostra-se evidente, assemelhando-se à da onça que cuida de sua cria, protegendo e alimentando-a. No caso dos Xacriabá, o dado relevante é que grande parte das disputas de terra e da depauperação de seu modo de vida deve-se, justamente, aos criadores de gado.
A correlação desse mito com o conto é, também, bastante clara. O aspecto agressivo do comportamento do felino é devido à sua disposição de proteger a cria. A mãe bugra alimenta o narrador e lhe ensina a cultura de seu povo, o uso das ervas do mato e suas relações de parentesco. O desafeto em relação ao pai, homem branco, “burro”, estende-se à sua atividade de vaqueiro/criador de gado: “Sei só de onça. Boi, sei não. Boi pra comer. Boi fêmea, boi macho, marruá. Meu pai sabia” (Rosa, 1976, p.140).
Essa tensão do narrador em relação à figura paterna e sua atividade profissional deixa entrever a possibilidade de ler a contrapelo boa parte da prosa de Guimarães Rosa. Isso porque parcela significativa do universo sertanejo que ajudou a consagrar a literatura do autor mineiro liga-se, justamente, ao mundo do vaqueiro, daquele que lida com a criação do gado tendo, por óbvia, a figura do boi como seu corolário. Sua produção está farta de exemplos nesse sentido, bastando mencionar, entre outras, as comitivas de boiadas e seus peões, por exemplo, em “O burrinho pedrês” e “Uma estória de amor”. Ou, de outro lado, a célebre “Conversa de bois”, contrapartida bovina ao mundo das onças aqui registrado.
“Meu tio o Iauaretê” apresenta de forma expressiva o reverso desse mundo, a saber, o quanto a pecuária extensiva tal qual praticada no Brasil pressupõe um montante de violência em relação aos povos originários, junto com o extermínio de outros obstáculos - como as onças - para os bons resultados do empreendimento.
O mundo dos vaqueiros é digno de estranhamento por parte do narrador e sua história indica que seu saber, assim como seu pensamento, é oposto ao saber do pai. O enaltecimento das onças, verdadeiras ameaças à criação de gado e ao labor dos vaqueiros, é o centro do conto.
Há que se considerar o fato de que, ainda que pudesse haver histórias de enamoramentos entre brancos e mulheres nativas, é fato que foram numerosas as situações de violência e abuso. O texto não dá detalhes sobre a natureza da relação entre os pais do narrador. Mas a forma pouco afetiva com que o narrador se dirige ao pai, em contraposição ao carinho com que se lembra da mãe, serve de índice de uma tensão social que persiste através dos tempos, além de expressar uma marca pessoal de suas relações familiares.
A disputa entre os Xacriabá e os criadores de terra, na qual Iaiá Cabocla intervém de forma protetora, espelha o conflito do narrador entre o afeto e a herança maternos e o modo de vida do pai. Os interesses conflitantes das figuras parentais de Bacuriquirepa trazem para o nível textual o que socialmente se observa no caso dessa etnia. É fácil de imaginar, aliás, que tal conflito não é privilégio desse povo em questão, sendo, antes, algo próximo de uma regra geral quando se pensa na ocupação do país pelos colonizadores. Por isso se vê que o conto encena, também, ao menos uma parcela de uma questão social maior: o conflito de interesses entre o nativo e o civilizado, com modos de vida e interesses antagônicos.
O onceiro adota, por um tempo, uma forma de agir mais próxima à do pai, representante do branco civilizado, matando seu próprio povo. Contraria, assim, o ensinamento de sua mãe, que o instruiu quanto à sua ascendência. A reunião com seu povo, seu arrependimento e ação protetora em relação às onças se dá a posteriori, como se verá mais detalhadamente a seguir.
Vale notar, a propósito da forma de agir de Bacuriquirepa, especialmente com Maria-Maria, o seu falar, que se aproxima da prática do pajé Xacriabá, assinalada por Maria Hilda Paraíso, em relação a Iaiá, para acalmá-la: “Falei baixinho: - ‘Ei, Maria-Maria... Carece de caçar juízo, Maria-Maria...’ Eh, ela rosnou e gostou, tornou a se esfregar em mim, mião-miã. Eh, ela falava comigo, jaguanhenhém, jaguanhém...” (Rosa, 1976, p.138).
Entre os Krenak, a proteção da onça também é certa. Shirley Krenak (2004) escreveu a lenda narrada por seu pai, intitulada “Borum huá Kuparak”, literalmente “o índio vira onça”. Um homem recebe, em sonho, a missão de guiar seu povo para encontrar outra tribo da mesma etnia que havia partido há tempos em busca de melhores terras. No sonho, anuncia-se que ele deveria seguir o curso do sol e que, no caminho, ele sofreria mudanças. Ele anuncia a partida de todos em busca dos parentes, seguindo sempre na frente. À medida que se aproximam de seu destino, as mudanças começam a aparecer. Muda a forma de caçar para alimentar seu povo, primeiro com arco e flecha, depois correndo atrás da caça e por último se atracando com ela em luta corpo a corpo, à medida que sua força aumentava. Da mesma forma, pintas começam a surgir no índio, primeiro nos pés e depois por todo o corpo. Ao chegar a um morro, próximo à aldeia procurada, ele comunica à mulher sobre sua missão a partir daquele momento, que seria a de proteger o povo Krenak e sua cultura.
Tonho Tigreiro, após rever sua prática de matador de onça, passa a agir em conformidade com o intuito de proteger seu povo, em atitude análoga tanto à de Iaiá Cabocla quanto ao do índio Krenak. A afeição da personagem para com Maria-Maria é tal que ele cogita, caso ela se machuque, levar comida para ela: “Quando espinha pé, estraga, a gente passa dias doente, pode caçar não, fica curtindo fome... É, mas, Maria-Maria, se ficar assim, eu levo de-comer pra ela, hã, hã-ã...” (Rosa, 1976, p.150).
A partir dessas considerações, parece legítimo estabelecer outro parâmetro para a figura da onça, além daquele já apontado por Maria Cândida Almeida (2002, p.65-6), sobre a estreita associação da onça com a morte e a devoração, na perspectiva da autora, que encara o animal como um inimigo, um guerreiro. Não se trata de negar seu achado, mas de apontar que há, também, dependendo de perspectiva de etnias diversas, essa variante ligada a aspectos de proteção de seu povo, e não apenas de ameaça.
Percebe-se no conto esse movimento de identificação do narrador com a onça - seu povo - em detrimento da comunidade humana. A disposição inicial de caçar as feras, por encomenda, reverte-se: agora ele caça os humanos. Antes, as onças eram uma ameaça. Agora, reassumindo a ligação e a identidade com seu povo, a fonte de estranhamento é o humano.
A crítica já apontou esse aspecto do conto. Edna Calobrezi centra sua argumentação na articulação das noções de morte e alteridade para ler não apenas “Meu tio o Iauaretê”, mas todo o Estas estórias. A autora aponta, recorrendo à psicanálise de Freud, para o “efeito estranho” (Calobrezi, 2001, p.60), referindo-se ao imaginário que se sobrepõe à realidade, quando Bacuriquirepa assume-se como onça.
Para Freud (1996, p.261), o “estranho efeito se apresenta quando se extingue a distinção entre imaginação e realidade, como quando algo que até então considerávamos imaginário surge diante de nós na realidade, ou quando o símbolo assume as plenas funções da coisa que simboliza”. Dessa forma, a adesão do onceiro ao mundo das onças é maciça, cabendo agir como uma delas. Esse ponto culminante seria o resultado do progressivo e quase absoluto isolamento do protagonista, que é apartado do convívio de todos, enquanto é alçado à categoria de “desonçador” do sertão. Sua reação, por assim dizer, seria essa assunção dos caracteres felinos em detrimento dos humanos.
Entre outras atitudes, isso explicaria as mortes que acaba por perpetrar, direta ou indiretamente, e que teriam um caráter reparador, sendo uma forma de compensar os tantos parentes por ele assassinados.
Lúcia Sá vai além, em seu artigo “Virar onça para vingar a colonização: ‘Meu tio o Iauaretê’”, relacionando cada uma das mortes celebradas pelo narrador com um aspecto ligado historicamente ao processo de colonização: do cavalo - símbolo da colonização europeia - passando por cada uma das vítimas humanas e suas respectivas afrontas à cultura dos povos originários, desde a ofensa aos ancestrais (Rioporo) até a avareza (Antunias). Em sua síntese: “a violência perpetrada pelo protagonista inverte a violência dos colonizadores contra os índios, sendo, pois, um ato de vingança” (Sá in Chiappini; Vejmelka, 2009, p.165).
Falou-se acima do estranhamento do mundo do vaqueiro por parte do narrador. Aqui se vê o acúmulo desses elementos que, por assim dizer, o onceiro tenta recalcar. Partindo de tudo aquilo que é do branco - ou do não nativo - para culminar com o próprio humano.
Entre pajé e cacique
Ao tratar da relação de Iaiá Cabocla com a etnia Xacriabá, Maria Hilda Paraíso assinala a função do pajé no contato com o ente mítico, sendo ele capaz de acalmá-la e ouvir seus conselhos por ser o único a falar a língua apropriada. Outros estudos dão conta do universo dos pajés, ou xamãs, tornando possível sua aproximação com o personagem rosiano.
Em seu estudo etnográfico entre os Kubeo, do noroeste amazônico, Irving Goldman (1979, p.262-4) identificou dois tipos de xamãs, o pariékokü, “homem poderoso” e o yaví, o “jaguar”, sendo esse superior àquele, pois, entre outras habilidades, pode tomar a forma desse animal.
Os yaví têm um tipo de alma (umé) diferente, e são capazes de mandar sua alma atacar a alma de outra pessoa. Esse xamã representa um tipo particularmente agressivo, e mesmo antissocial, entre o povo Kubeo, havendo grande diferença entre a forma de agir do povo e desse xamã em específico. Acredita-se que esses indivíduos podem se transformar em jaguar e, por isso, entendem que, ao encontrar um animal, tanto pode ser o espírito de um xamã quanto o cachorro (animal de estimação) dele. Ou, ainda, que o jaguar teve seu corpo tomado pela alma de um yaví. Em todo caso, é consenso entre esse povo que a ferocidade do jaguar tem origem humana.
Segundo esse autor, os yaví assumem a forma de jaguar ao vestir a pele de um jaguar. Diz-se que não é o homem, mas a pele do jaguar que come a vítima, quando um ataque acontece. Outros informantes afirmam que é a alma do yaví que assume a forma do jaguar e fica espreitando, à noite, para devorar as pessoas.
Voltando ao texto de Rosa, o onceiro relata diversas histórias sobre os ataques e os embates envolvendo os felinos e os humanos. Dentre esses, fala de como uma onça, conhecida como Pé-de-Panela, “enfiou mão por um buraco de cafua, pegou menino pequeno no jirau, abriu barriguinha dele...” (Rosa, 1976, p.146). Pouco adiante, sobre esse animal, o narrador comenta: “[...] onça velha, onça chefa, come gente, bicho perigoso, que nem até quage que feito homem ruim” (grifo meu).
O comentário do narrador sobre a ferocidade da onça ser “quage” como a de um “homem ruim” afina-se com a observação feita por Goldman quanto à procedência humana da ferocidade do animal, mas não pelo dado relativo ao xamanismo. A aproximação do texto rosiano - “que nem até quase que feito” - deixa a impressão de que, por mais que a onça seja “bicho perigoso”, ainda não chega ao mesmo patamar de um “homem ruim”, essa sim, a fera mais perigosa dentre todas.
A onça xamã também ocorre entre os Gavião-Ikolen, de Rondônia, da língua tupi-mondé. Betty Mindlin (2001, p.75) registrou em seu Couro dos espíritos a prática do “pajé - wãwã - com couro de onça”. Encontrar uma onça no mato é algo duplamente assustador, pois “não é só o terror de ser caça de uma fera: o pior é que a aparição é o chamado do pajé para quem encontrou a onça virar wãwã também, para aprender [...] ficamos com o medo maior, o caminho-obrigação: virar pajé, ser onça e outros seres, conhecer os espíritos”. Obviamente, somente os mais corajosos aceitam tal chamado.
A partir dos dados das pesquisas de Goldman e Mindlin, é relevante voltar ao texto de Rosa para tentar compreender algumas passagens mais obscuras:
Agora, eu já sei: onça é que caça pra mim, quando ela pode. Onça é meu parente. (Rosa, 1976, p.128)
Courame bonito? Tudo que eu mesmo cacei, faz muito tempo. Esses eu não vendi mais não. Não quis. Esses aí? Cangussu macho, matei na beira do rio Sorongo. Matei com uma chuçada só, mor de não estragar couro. Eh, pajé! (ibidem, p.130)
Onça, elas também sabem de muita coisa. Tem coisas que ela vê, e a gente vê não, não pode. Ih! Tanta coisa... Gosto de saber muita coisa não, cabeça minha pega a doer. Sei só que onça sabe. Mas, isso, eu sei, tudo. Aprendi. (ibidem, p.133, grifos meus em todas as citações)
Além da relação evidente do sobrinho do Iauaretê com seu povo, tais passagens apontam uma proximidade com o universo dos pajés e/ou xamãs. Mesmo parecendo pura especulação, as práticas dos pajés que se transformam em onças podem ser entrevistas nas sugestões destacadas do texto rosiano.
A começar pela evocação: “Eh, pajé!”, após a explicação de que matara uma onça de forma que não estragasse seu couro. Ele não dá maiores justificativas de por que não quis mais vender os couros em sua posse. Seriam resquícios do costume Kubeo, ou dos Gavião-Ikolen que, de acordo com Mindlin (2001, p.13): “trocam sua pele de gente pelo couro dos espíritos, são habitados por eles”? Cabe ao leitor associar, já que a evocação vem solta no texto.
O primeiro trecho destacado acima - “onça é que caça pra mim” - ainda pode ser aproximado do dado levantado por Goldman sobre os pajés que tinham a onça como animal de estimação, ou cachorro. O onceiro, agora, não se daria nem mesmo ao trabalho de caçar, pois essa função caberia aos seus parentes. Ao mesmo tempo, tal declaração se encaixa na lógica da onça enquanto ente protetor, conforme visto no tocante à tradição Xacriabá e a figura da Iaiá Cabocla.
O convívio intenso com as feras, primeiro na condição de caçador, depois, arrependido, como fazendo parte de seu povo, certamente garantiu parte do aprendizado do narrador sobre elas. Quando se lê: “aprendi”, sobre as coisas que as onças veem e sabem, ainda é curioso pensar na possibilidade de Macuncozo como uma espécie de aprendiz, assim como um índio que aceita o chamado de um wãwã, onça-pajé. A coragem necessária para responder ao chamado parece não lhe faltar, como falta ao seu interlocutor: “Cê tem medo? Mecê, então, não pode ser onça... Cê não pode entender onça” (Rosa, 1976, p.128). Ou, reforçando a relação entre a coragem e a possibilidade de aprendizado, noutra passagem se lê: “Se mecê olhar com medo, ela sabe, mecê então tá mesmo morto. Pode ter medo nenhum. Onça sabe quem mecê é, sabe o que tá sentindo. Isso eu ensino, mecê aprende” (ibidem, p.136).
Sugestivo ainda é o procedimento do onceiro para a nomeação das onças: “elas todas têm nome. Que eu botei? Axi! Que eu botei, só não, eu sei que era mesmo o nome delas. Atié... Então, se não é, como é que mecê quer saber?” (ibidem, p.140, grifo meu). A ambiguidade na fala do onceiro deixa entrever a prática registrada por Curt Nimuendajú (1987, p.30 ss) sobre a cerimônia de nomeação das crianças, na qual o pajé consulta as “potências celestiais” para saber “que alma veio ter conosco” e, assim, determinar o nome apropriado à criança. Esse procedimento nada tem a ver com o cristão, quando o sacerdote pergunta aos pais como esta se chamará. Ressalvadas as diferenças entre o costume indígena e o que se lê no conto, Bacuriquirepa, mais do que “botar” o nome nas onças, num gesto próximo ao de Adão a nomear os animais, alega saber “que era mesmo o nome delas”, como se esse conhecimento viesse de outro lugar, não sendo apenas um mero outorgante de um nome escolhido por ele.
Outras pequenas menções apontam para a aproximação do onceiro com outras esferas dos grupos nativos, a saber, da figura do chefe, do cacique. Ao se referir à aproximação da onça Uinhúa, ele diz: “Evém ela... tuxa morubixa” (Rosa, 1976, p.145, grifo meu). Para o vocábulo tuxa, Nilce Sant’Anna Martins (2001, p.310) anota o sentido “chefe” ou “cacique”, sendo uma variação de tuxaua. A autora indica a consulta do termo “morubixaba”, no sentido de “chefe de um grupo” (ibidem, p.340).
Próximo ao final da narrativa, após relatar as mortes com as quais estava envolvido, ele se dirige ao interlocutor nos seguintes termos: “Eu sou onça, não falei?! Axi. Não falei - eu viro onça? Onça grande, tubixaba” (Rosa, 1976, p.157, - grifo meu). Permanece o sentido de chefe, mesmo de morubixaba, mas a autora consultada (Martins, 2001, p.508) frisa que “O personagem empregou o termo no sent. - acepção - expresso de ‘grande’”. A observação é pertinente, mas a ambiguidade do texto literário permite a aproximação com a grandeza da chefia de uma tribo, própria de um cacique.
É lícito cogitar que Bacuriquirepa quisesse se valer, gabar-se perante seu interlocutor, ainda mais quando se lembra que ele já estava, muito provavelmente, bastante embriagado depois de tomar a cachaça do forasteiro. Isso não diminui, no entanto, para fins de análise e interpretação do texto, a familiaridade com que ele usa esse e outros termos do universo dos povos originários. Quem, mais do que ele, para, nessa circunstância narrativa, aproximar-se e apropriar-se desses termos e dos postos distintivos de sua cultura: cacique e pajé?
O reencontro possível
Conforme o assinalado acima, é possível encontrar no texto as queixas do narrador quanto ao seu isolamento e o ressentimento em relação ao seu patrão, Nhuão Guedes, responsável último por essa condição. Vivendo isolado, reencontra aquele que acredita ser “seu povo”, estabelecendo com ele uma relação própria, sendo nítida a demarcação de território - “Onça Uinhúa vem mais não. Ela nem não é desta banda de cá. Travessou a vereda, só se a Maramonhangara foi lá, adonde que é o terreiro dela, aí a Uinhúa ficou enjerizada, se mudou... Tudo tem lugar certo” (Rosa, 1976, p.145, grifos meus). Dessa forma, o lugar de isolamento transformou-se no seu lugar, graças ao restabelecimento dos laços sociais, por assim dizer. Além disso, seu enamoramento pela onça Maria-Maria garante-lhe o sentido de sua existência ali, por estranho que possa parecer ao forasteiro/leitor.
O conto de Rosa tematiza, portanto, um reencontro: Bacuriquirepa e seu povo. Para Walnice Galvão, tal reencontro se mostra impossível, uma vez que qualquer possibilidade de uma conexão com esse passado nativo se mostra inviável, a não ser, talvez, pela transformação do narrador em onça. Tal metamorfose não garante, no entanto, nenhuma redenção ao protagonista, ainda que lhe sirva, de forma breve e precária, de afirmação do seu perfil. As onças são seu povo e elas “sabem” que ele é do povo delas, segundo seu peculiar e suspeitoso ponto de vista (Rosa, 1976, p.137).
Parece legítimo olharmos o onceiro como alguém que se identificou com as onças, tomando-as por seu povo em substituição àquilo que sua mãe, da etnia Tacunapéua, lhe dizia das onças enquanto seus ancestrais míticos. Novamente, Walnice Galvão (1978, p.30) aponta o caminho: “a solução que encontrou para o impasse da confusão de culturas foi identificar-se com as onças [...] entende ao pé da letra os ensinamentos da mãe, de que é ‘onça’; não pode mais entender a diferença entre ser onça e ter a onça como ancestral mítico” (grifo meu).
Já vimos a relevância das recordações que o narrador tem de sua mãe enquanto figura de cuidado e proteção. Tendo parte de sua criação ligada ao universo materno, com suas histórias e afetos, é plausível que ele assimilasse e tomasse esses elementos como sendo parte do seu próprio eu.
Para Freud (2011, p.60), a identificação é a “mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa”. Esse fenômeno aponta para aquilo que o sujeito “gostaria de ser”, diferente da escolha amorosa, que indica alguém que se “gostaria de ter” (Freud, 2011, p.62). Freud insiste que “a identificação se empenha em configurar o Eu à semelhança daquele tomado por ‘modelo’”.4
O conto nos mostra o onceiro no movimento de intenso “ser como” a onça, assumindo de forma massiva uma aproximação com o modo de vida dos felinos, seus parentes míticos, enquanto deixa para trás o mundo humano. Ponto alto desse processo é o seu tornar-se onça, o seu “onçar”, através do qual ele não apenas seria “como”, mas seria “a própria” onça. Ou seja, mais do que “se identificar com o outro”, o texto aponta para “ser o outro”, o que extrapola a esfera da identificação.
Difícil saber exatamente o que se passa quando o narrador conjuga o verbo “onçar”. Aparentemente, para ele, não há dúvidas de que uma mudança significativa se opera e ele vive o que para ele é verdade: deixa de ser humano para ser onça.
Seguindo os rastros de Bacuriquirepa, percebe-se que, nesse “onçar”, dados mais corpóreos, sensoriais, como o olfato e o tato, próprios do animal, são determinantes para as transformações das quais ele se vangloria:
Como é que podiam rastrear, de achar rastreando? Ela (onça Pé-de-Panela) tava longe... Como é que pode? Hum, não. Mas eu sei. Eu não percurei. Deitei no lugar, cheirei o cheiro dela. Eu viro onça. Então eu viro onça mesmo, hã. Eu mio... aí, eu fiquei sabendo. (Rosa, 1976, p.146, grifo meu)
O expediente do narrador, por mais que ele possa não ser confiável, é o de um uso dos recursos corporais e não verbais: ele se deita no lugar, sente o cheiro e mia. Assim é que ele “fica sabendo” da localização da onça que pretendia caçar.
Mais adiante, em trecho no qual ele conta de forma mais pormenorizada uma de suas transformações, observa-se, novamente, a importância do corpo e seus sentidos, não havendo menção a nada que se assemelhe à transformação que se dá por ocasião do encontro encenado no texto:
Fiquei com a vontade... Vontade doida de virar onça, eu, eu, onça grande. Sair de onça, no escurinho da madrugada... Tava urrando calado dentro de mim... Eu tava com as unhas... Tinha soroca sem dono, de jaguaretê-pinima que eu matei; saí pra lá. Cheiro dela ainda tava forte. Deitei no chão... Eh, fico frio, frio, vai saindo de todo mato em roda, saindo da parte do rancho... Eu arrupeio. Frio que não tem outro, frio nenhum tanto assim. Que eu podia tremer, de despedaçar... Aí eu tinha uma câimbra no corpo todo, sacudindo; dei acesso. (Rosa, 1976, p.149, grifos meus)
Nos dois trechos destacados, o procedimento é o mesmo: ele se deita no lugar onde havia o cheiro de onça, na soroca - toca, covil de onça - e então - como mostra o segundo trecho - vem o frio, referido também no final do conto. Mais do que identificar-se com a onça, portanto: tomar seu lugar não apenas para ser como ela, mas promover uma metamorfose deveras. Tal estado é tão intenso e o toma de forma tão absoluta que, a rigor, ninguém poderia se contrapor ao onceiro, sob o risco de ser atacado. Na sequência ele fará menção à sua nova posição, vertical, “tava de pé e mão no chão”, junto com sua renovada disposição: “danado pra querer caminhar”. Em poucas palavras: “Ô sossego bom!” (Rosa, 1976, p.149). Mas, note-se, ainda uma vez mais, a ressalva: ele não diz “patas”, mas “pé e mão” no chão.
Diante do forasteiro, aparentemente o primeiro a testemunhar esse processo de “onçamento”, algo verdadeiramente assustador acontece, a ponto de ele lançar mão do recurso extremo, matando o onceiro.
Por isso se poderia afirmar que o arranjo do onceiro pode ter funcionado, por um tempo, enquanto a “jaguaretama” não era incomodada por ninguém. Basta refletir que a narrativa, seu desenrolar e seu desfecho trágico, se dão devido à aproximação - invasão de território? - do forasteiro - não índio - atraído pelo fogo da cabana. O entrecho narrativo ocorre por esse choque de perspectivas.
Não fosse a chegada do forasteiro buscando abrigo e o encontro fortuito - teria sido mesmo fortuito? - com a cabana do onceiro, denunciada pelo fogo, a conversa não teria tido início. Para Clara Rowland (2011, p.74), “é por contar que matou que será morto, caçador caçado em nome da fusão com o seu objeto de caça”. O narrador revela sua história que, até então, mantinha para si. É na chegada desse estranho, e perante ele, que o onceiro se vê colocado no lugar de hospedeiro/narrador. Essa mesma autora aponta a “aparente resistência a narrar” (Rowland, 2011, p.97) do tigreiro, o que se afina com a leitura aqui proposta.
Caso esse encontro não ocorresse, é provável que Bacuriquirepa continuasse sua rotina, “onçando”, na companhia de Maria-Maria. Ao menos é o que se deduz de seu relato. Ou seja, essa chegada do forasteiro, do estranho - como o retorno de algo que ficara recalcado - enseja a fatura literária, resultado da “língua solta” do narrador - pela insistência e pela cachaça do estrangeiro - que lhe custa a vida.
Enfatizamos o fato de que é graças à insistência e à cachaça do interlocutor (Rowland, 2011, p.97-8) que o mestiço se entrega, dando notícias de um viver no qual, aparentemente, não havia fissuras, dúvidas ou sinais de divisão. Para Bacuriquirepa, até aquele momento, ele era o que era, ou, mais precisamente, o que acreditava ser: onça.
Traição e reconciliação
Conforme se lê no conto, o conhecimento que o narrador tem de seu parentesco com as onças é mais antigo, vem da infância: “Eh, parente meu é a onça, jaguaretê, meu povo. Mãe minha dizia, mãe minha sabia, uê-uê... Jaguaretê é meu tio, tio meu” (Rosa, 1976, p.148, grifo meu).
O conflito interno do onceiro parece se iniciar justamente pelo fato de ele se aproveitar desse parentesco para matar seus parentes, em troca de dinheiro:
Eu não devia? Aã, eu sei, no começo eu não devia. Onça é povo meu, meus parentes. Elas não sabiam. Eh, eu sou ladino, ladino. Tenho medo não. Não sabiam que eu era parente brabo traiçoeiro. (Rosa, 1976, p.147, grifo meu)
É porque onça não contava uma pra outra, não sabem que eu vim pra mor de acabar com todas. Tinham dúvida em mim não, farejam que eu sou parente delas... Eh, onça é meu tio, o jaguaretê, todas. Fugiam de mim não, então eu matava... Depois, só na hora é que ficavam sabendo, com muita raiva... Eh, juro pra mecê: matei mais não! Não mato. Posso não, não devia. Castigo veio: fiquei panema, caipora... [...] Careço de chorar, senão elas ficam com raiva. (ibidem, p.136-7)
A referência à noção de identificação, feita acima, merece ser novamente evocada, justamente para mostrar essa divisão do narrador. Freud assinala que “desde o início a identificação é ambivalente, pode tornar-se tanto expressão de ternura como desejo de eliminação” (Freud, 2011, p.61). A alternância entre os diferentes alvos da destruição de Bacuriquirepa - primeiro, as onças, depois, os homens - aponta para a expressão dessa faceta destrutiva da identificação.
Mesmo passando todo o conto a afirmar seu parentesco com as onças, ou seja, com o universo nativo, materno, é fato que ele traz a herança paterna. Parte dessa herança passa também pela identificação com o modo de vida do não nativo, que caça as onças em nome do sucesso da criação de gado e dos assentamentos rurais em troca de dinheiro e favores. Bacuriquirepa se arrepende da época em que matava os parentes, e, no aqui e agora da narração, expressa tanto seu arrependimento quanto sua incondicional adesão à causa dos felinos.
Chama a atenção no trecho destacado acima o uso do termo ladino. Além da significação usual de esperto, astuto ou mesmo alguém que trai a confiança de outrem, sentidos que se ajustam à narrativa, há ainda uma acepção que diz respeito a uma questão relativa à condição dos povos originários. O dicionário Aurélio (Ferreira, 1986, p.1002) traz o seguinte: “dizia-se do escravo ou do índio que já falava o português, tinha instrução religiosa e sabia fazer o serviço ordinário da casa ou dos campos”. De forma mais sucinta, o Houaiss (2001, p.1711) define: “dizia-se do índio ou do escravo negro que já apresentava certo grau de aculturação”.
O termo, repetido no texto pelo narrador, aparentemente tem a função de enfatizar sua esperteza. Faz ressoar, no entanto, para além do sentido primeiro e mais conhecido, esse que aponta para o processo de aculturação do nativo, do qual o próprio narrador faz parte. Na síntese de Alfredo Bosi (1992, p.17), aculturar um povo é sinônimo de sujeitá-lo “ou, no melhor dos casos, adaptá-lo tecnologicamente a um certo padrão tido como superior”.
O narrador, quiçá movido pela necessidade, acede à possibilidade de ganhar dinheiro, além de outros favores, para caçar seu povo. Dessa forma, o aspecto ladino, esperto do onceiro revela uma forma de sobrevivência nesse contexto do Brasil sertão, pois ele se aproveita de seu parentesco com as onças para lucrar, denotando o outro sentido do termo “ladino”.
Ampliando o espectro da pesquisa, outras são as significações desse termo. No contexto da América colonizada pelos espanhóis, ladino designa também o mestiço. No relato de Rigoberta Menchú (Burgos, 1992), índia da etnia Quiché, da Guatemala, e vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 1992, é nítida a distinção entre o nativo, o mestiço - também chamado ladino - e o espanhol.5
Rigoberta Menchú explica, em suas palavras, que nem todos os ladinos são maus. Mas, na percepção de seu pai, os ladinos são aqueles que se aproveitam de sua condição de mestiços, que sabem falar a língua nativa, mas também o espanhol, para explorar os nativos. “Ou seja, é uma imagem em miniatura do latifundiário” (Burgos, 1992, p,46).6
Percebe-se, dessa forma, o quanto a força do termo ladino no texto de Rosa pode guardar de significado relevante para uma nova leitura do conto. Sem pretender estabelecer uma relação direta da cultura Quiché-Maia com a literatura rosiana, vale a reflexão de que, como se viu, o tigreiro - mestiço confesso - se diz “ladino” e, mais, “parente brabo traiçoeiro”, como quem, em atitude análoga à descrita por Menchú, aproveita-se do duplo parentesco para reproduzir com as onças a opressão sofrida pelos povos originários. Bacuriquirepa não só é mestiço como, até certo ponto, tira vantagem dessa condição, baseando-se na inocência das feras que “sabem” que ele é seu povo e ignoram suas reais intenções.
O termo ladino, presente em “Meu tio o Iauaretê”, sintetiza a condição dividida do narrador e seu conflito. Antes, identificado com o branco e seus valores, ele matava as onças. Agora, mata os humanos, num esforço de reparar sua traição e se reconciliar com os parentes.
Conforme o conto indica, há ocasião para o arrependimento. O ponto de inflexão, aquele em que o sobrinho do Iauaretê decide parar de matar seu povo, associa-se ao conhecimento da onça Maria-Maria. Pouco antes, no parágrafo anterior àquele que apresenta o primeiro encontro desse inusitado casal, Bacuriquirepa narra um embate corpo a corpo com uma onça sem nome, uma “pinima malha larga”, ou seja, um legítimo parente seu.
Após seus companheiros, por medo, errarem o tiro, a onça ataca um grupo: “ela matou quage cinco homens”. Mesmo ferida com “mais de trinta pra quarenta facadas”, a onça ataca o narrador, se abraça com ele e causa-lhe diversos ferimentos. O mais significativo deles, porém, é este: “riscou esta cruz em minha testa” (Rosa, 1976, p.137).
O feito da onça, de acordo com o relato, pode - e deve - causar estranhamento. Como, durante um ataque feroz, haveria ocasião para que a onça lhe riscasse uma cruz na testa?
Ora, a cruz é símbolo evidente do cristianismo. Embora a significação da cruz exceda os parâmetros cristãos, sendo encontrada em diversas culturas da Antiguidade,7 assinala-se aqui sua vinculação a essa tradição, levando-se em conta outras menções ao contato do nativo com a crença trazida pelo europeu que se apresentam no conto.
No contexto da cena, a cruz marca uma mudança do proceder do onceiro, resultado do embate violento com seu parente. Tomando o trecho todo, vê-se que ele termina com a morte da onça em cima do narrador: “morreu agarrada comigo, das facadas que já tinham dado, derramou o sangue todo... Manhuaçá de onça” (Rosa, 1976, p.137, grifo meu). No comentário do onceiro feito no decorrer do relato, o termo grifado equivale, de acordo com Nilce Sant’Anna, a “chuva de sangue”. Ferido, com a cruz em sua testa e banhado de sangue, o onceiro carrega “aquela catinga por muitos dias, muitos dias...”.
O parágrafo seguinte traz o encontro de Bacuriquirepa com Maria-Maria, “primeira que eu vi e não matei” (Rosa, 1976, p.137). Embora a ordem cronológica dos acontecimentos no conto venha embaralhada pela narrativa errática e progressivamente ébria do narrador, parece significativa, como já assinalado, a motivação decisiva do onceiro em parar a matança coincidir com o encontro amoroso com Maria-Maria e esse encontro vir narrado justamente após o episódio da cruz.
Tal símbolo junta-se ao sangue, de evidente importância à fé cristã, pela simbologia da remissão dos pecados graças ao sangue do Cristo. No conto, ao invés do Cordeiro, é a onça sem nome que derrama, literalmente, seu sangue sobre o caçador, que, no parágrafo seguinte, relatará um encontro de conotação oposta à do embate, um encontro amoroso, de união e não de destruição.
A sequência dos acontecimentos sugere algo como um arrependimento do onceiro, tendo em vista a mudança nos seus parâmetros comportamentais diante de seus parentes. Tal arrependimento, é fato, não se dá por meio de qualquer palavra, pela pregação de nenhum evangelho, mas pela força bruta do embate direto com uma fera e do banho de sangue ao final da cena. De alguma forma, que não fica explícita, Bacuriquirepa parece reconsiderar sua prática, passando de matador a protetor, quase como se o combate relatado e sua posterior recuperação o preparassem para o encontro amoroso com Maria-Maria.
Pela brutalidade do confronto, no qual o contato corpo a corpo toma primeiro plano, ficando reduzido o espaço para a mediação via símbolo ou palavra, esse trecho remete à passagem anterior do conto, chamado por Walnice Galvão (1978, p.25) de “rito de passagem”, no qual o narrador come a onça e se besunta em sua gordura.
A título de comentário, tendo em vista a profusão da simbologia cristã sugerida na passagem, mas também em outras destacadas mais adiante, vale lembrar que o padre, num dos diversos gestos ritualísticos do sacramento do batismo, faz o sinal da cruz na testa de quem é batizado. Para a fé cristã, esse ritual tem a função purificadora de apagar o pecado original, decorrente da queda do Homem que cede à tentação da serpente e desobedece à proibição divina quanto à árvore do conhecimento do Bem e do Mal.
Conforme já mencionado, aqui não há evangelho e muito menos um celebrante a ministrar sacramentos. É o embate físico imediato com a pinima malha-larga e as feridas advindas dessa luta que agem sobre a disposição do narrador. Esse, como se pode acompanhar no texto de Walnice Galvão, vai progressivamente abandonando o mundo da cultura, do cozido - e de algumas mediações simbólicas - pelo domínio do cru, na direção de um passado mítico inalcançável. Identifica-se com as feras e passa a agir como uma delas.
Obviamente, pode-se levar adiante a interpretação da cena, jogando com o sentido da cruz, agora como sinônimo de sina, destino, uma “cruz” que o onceiro teria de carregar à semelhança de Cristo. Ele diz de seu sofrimento, que ficou “panema, caipora”, isto é, azarado, infeliz, doente, preço que deve pagar pela traição de seu povo. Tem inclusive de seguir o ritual expiatório: “careço de chorar, senão elas ficam com raiva”.
A respeito dessa prática, vale sinalizar o confronto, exposto por Alfredo Bosi (1992, p.69), entre os esforços evangelizadores dos jesuítas e as práticas dos povos originários. Para o crítico, em contraposição à crença católica que se tentava impor aos nativos, estava o culto dos mortos. Esse seria “o centro vivo, doador de sentido” para a esfera espiritual dos habitantes da terra, “no conjuro dos bons espíritos e no esconjuro dos maus”.
No caso do narrador, o castigo lhe sobrevém em vida e se relaciona com a traição cometida por ele, pois se aproveita de seu parentesco para, ladinamente, traí-lo, visando o ganho próprio da matança. Chorar a memória dos antepassados mortos, evitando sua “raiva”, parece próximo disso que é anotado por Bosi como culto dos mortos. Note-se que o “arrependimento” e o possível perdão - ou o afastamento de novos castigos - não se dirigem a Deus, como se esperaria no caso típico de um cristão.
A mistura das crenças próprias ao nativo com a doutrina católica é evidente. Ao mesmo tempo, constata-se a histórica restrição advinda das diversas tentativas de conversão desses povos ao cristianismo. Bacuriquirepa se expressa nos seguintes termos:
Missa, não, de jeito nenhum! Ir para o céu eu quero. Padre, não, missionário, não, gosto disso não, não quero conversa. Tenho medalhinha de pendurar em mim, gosto de santo. Tem? São Bento livra a gente de cobra... mas veneno de cobra pode comigo não - tenho chifre de veado, boto, sara. Alma de defunto tem não, tagoaíba, sombração, aqui no gerais tem não, nunca vi. Tem o capeta, nunca vi também não. (Rosa, 1976, p.143)
Ecos de uma prática antiquíssima, mas ainda atual e eficaz, são flagrados nesse trecho. Alfredo Bosi (1992, p.72), ao tratar das estratégias de evangelização dos primeiros jesuítas a desembarcar no Brasil, menciona a importância do que chama de “mediações tangíveis” que tinham a função de valorizar “a prática dos sacramentos, sinais corpóreos entre os homens e Deus”. Além dos sacramentos propriamente ditos, “difundiam-se veículos modestos, mas constantes, os objetos ditos sacramentais, como o incenso e a água benta, as relíquias, as medalhas, os rosários e terços, os santinhos [...] um sem número de signos que tornavam acessível a doutrina ensinada aos índios e negros da Colônia”.
São Bento foi vítima de tentativa de assassinato por envenenamento. Mas, após abençoar o cálice envenenado, como fazia com todos os alimentos, este se quebra. Daí a crença de que ele livraria de picada de cobra. Mas o narrador prefere seus próprios métodos, ao invés de se apegar à fé no santo. Dentre esses “métodos”, vale pontuar a fé naquilo que se pode ver, como a medalha ou a imagem do santo, em contraposição àquilo que não viu, alma de defunto, “sombração”, tagoaíba - “fantasma, aparição sobrenatural, assombração” (Rosa, 2003, p.113) - ou o capeta.
A importância da religiosidade popular enquanto mediadora entre o convívio do antigo com o moderno na obra de Guimarães Rosa já foi apontada por Alfredo Bosi (1988, p.22). Por isso não se deve estranhar a presença desses elementos na narrativa ora estudada, nem tampouco a discussão desenvolvida. A afirmação de Bosi se faz no contexto de seu estudo sobre Primeiras estórias, ressaltando os aspectos providencial e prudencial da religiosidade. No caso do Iauaretê, coloca-se em primeiro plano a postura do narrador ante seu passado - permeado de culpa pela morte dos parentes - e a sua nova forma de agir, na qual se alia e se identifica às suas antigas vítimas, além da possibilidade de ir para o céu. A particularidade aqui é justamente o dado sincrético, no qual catolicismo e tradição nativa se encontram na constituição subjetiva do onceiro.
Um recado sem fim
O breve percurso crítico trilhado nesse artigo partiu de uma premissa simples: para tentar abarcar a riqueza de um texto como “Meu tio o Iauaretê” é preciso considerar a relação do texto literário com suas possíveis fontes. Se nem todos os mitos ou tradições evocadas aqui estiveram na origem da composição do conto, ainda assim podem guardar relações de sentido com a obra de Rosa, devido ao amplo repertório intelectual do autor mas, sobretudo, à riqueza mesma de seu texto, com planos de significação que se desdobram e se superpõem, estendendo-se virtualmente ao infinito.
Como se pode vislumbrar, as poucas considerações e associações feitas aqui, trabalhadas criticamente como aquilo que pode ser associado com a cultura dos povos nativos, dão notícias de um recado que vem se desdobrando há séculos, e parece não se esgotar. Oriunda da aurora dos tempos, a longa história que une o homem aos seus antepassados míticos passou da transmissão oral dos povos originários ao registro dos europeus, colhida da boca de informantes diversos, muitos deles sobreviventes do massacre que há séculos assola os habitantes originários das Américas.
Dentre as muitas fontes possíveis, Rosa se utilizou da matéria ancestral para compor o seu conto, com a maestria que lhe é característica. Além da relação entre seu texto e suas origens (aquelas histórias que podem ter servido de matéria prima), vê-se que sua obra acaba por se inserir, como um enxerto da literatura nos moldes europeus, na transmissão desse recado nativo, além de se comunicar com outras narrativas originárias que tematizam a relação do homem com o jaguar. Por sua vez, a leitura de “Meu tio o Iauaretê” por sujeitos de etnias diversas tem consequências muito particulares,8 que podem ir da revolta e indignação até o entrar em contato e o divulgar de outras histórias que se ligam ao conto, por diferentes “graus de parentesco”.
Na continuidade desse recado, infinitamente passado adiante, vê-se, entre outros movimentos, sua retomada pelos nativos da tradição antes recolhida e retrabalhada pelos descendentes do europeu colonizador. Além do fenômeno da literatura produzida por eles - não apenas aquela que eles já tinham, de tradição oral, mas agora também registrada de forma escrita e publicada em livro - é possível se deparar com produções como a de Kaká Werá Jecupê, de origem tapuia, intitulada As fabulosas fábulas de Iauaretê, que retoma o registro de narrativas feito por Couto de Magalhães em O selvagem, recontando-as à sua maneira, além de acrescentar outras histórias de etnias diversas, misturando-as com criações de sua lavra pessoal. Isso tudo sinalizando, em posfácio e na contracapa, o fato de escritores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector terem se inspirado na tradição que é deles, tendo O selvagem como um de seus nortes referenciais.
A história e o debate certamente não acabam aqui. Espera-se que o presente estudo, na medida em que tentou aprofundar as relações de sentido entre a escrita rosiana e a cultura dos povos originários - algo que certamente merece mais estudos -, possa também ampliar ainda mais os horizontes de investigação e valorização da literatura nacional, de ontem e de hoje, onde e por quem quer que ela seja feita.
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Notas
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1
Cabe lembrar que esse volume foi publicado originalmente em Berlim, em 1914. Além disso, os autores, Nimuendajú e Rosa, trabalharam para o mesmo Serviço de Proteção ao Índio, ainda que em épocas distintas.
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2
Segundo Nimuendajú (1987, p.50), os jaguares dessa categoria “não são, a rigor, demônios verdadeiros, mas apenas os antepassados dos jaguares atuais; eles não são nem imortais, nem se destacam por terem forças mágicas. Ao contrário, são-lhes próprias somente uma selvageria e uma estupidez brutas, ocasionalmente revestidas de um matiz de bondade”.
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3
Ao longo de seu trabalho, Nimuendajú discute e compara a mitologia Guarani com a de diversas etnias. A grafia do nome “jaguar” apresenta variantes. Destaca-se, como exemplo, por sua semelhança com o nome adotado por Rosa em seu conto, a grafia Yahuéte, de acordo com a tradição Chiriguano.
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4
Outra maneira de pensar a questão da identificação, com a contribuição freudiana de Totem e tabu, já foi empreendida por Walnice Galvão.
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5
O glossário do livro de Elisabeth Burgos (1992, p.285, tradução minha), no qual o relato oral de Rigoberta Menchú é transformado em narrativa em primeira pessoa, a autora esclarece que ladino é “aquele guatemalteco que - qualquer que seja sua posição econômica - rechaça individualmente ou por herança cultural os valores indígenas de origem Maia. O termo ladino implica também mestiçagem”.
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6
O pai de Rigoberta fala dos “indígenas ladinizados” para se referir àqueles que não são mestiços, mas agem em conformidade com a lógica do colonizador. Da mesma forma, ouve dele que ela não foi à escola, pois ali “vão te ladinizar” (Burgos, 1992, p.216). Segundo as explicações de seu avô, a decadência e as precárias condições de vida de seu povo se deram devido à ação direta dos espanhóis. Para ele, “os melhores filhos dos nossos antepassados foram aqueles que foram abusados. Incluindo as rainhas que eram escolhidas por nossa comunidade eram abusadas. Daí nasceram os ladinos” (ibidem, p.214).
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7
A consulta ao Dicionário de símbolos, de Chevalier e Gueerbant (2018, p.309 ss) dá uma noção da extensão do símbolo da cruz em diversas culturas. Além da menção ao cristianismo, vale ressaltar que ela é, de todos os símbolos, “o mais universal, o mais totalizante”, guardadas as devidas proporções. Sendo o símbolo do intermediário, do mediador, representa também as encruzilhadas, tanto concretas quanto abstratas. Essas considerações não fogem à situação de Bacuriquirepa que, entre humano e animal, de caçador se identifica com a caça e revê, dado certo cruzamento de circunstâncias, o rumo de sua existência.
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8
Segundo Betty Mindlin em Palavras para Walnice (Dimas; Chiappini, 2022): “A leitura de ‘Meu tio o Iauaretê’ constou de vários projetos de formação de professores indígenas, em Minas e em outros estados, acompanhando a produção escrita e oral de cada povo com seus mitos. Houve quem se insurgisse contra o narrador se dizer indígena por parte de mãe. “Como é Tacunapéua, se não está no meio deles e de nenhum outro povo? Sem iguais, sem mulher, filhos, pajé, terra? Então nós indígenas somos do domínio do cru (cru-eldade)? Desprovidos do fogo? Representamos o que é selvagem, não civilizado, animal, violento, comedor de gente, vencido pelo invasor na cena final?”
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Mar 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
16 Jul 2020 -
Aceito
19 Jul 2020