DOSSIÊ ONU E A PAZ
As Nações Unidas e o conceito de segurança coletiva
Marcos Castrioto de Azambuja
QUERO EXAMINAR, na moldura da evolução das Nações Unidas, alguns aspectos - prospectivos e retrospectivos - o conceito de segurança coletiva, por tantos títulos estreitamente associado à história da principal organização internacional. O sucesso das Nações Unidas - que já se pode de alguma maneira proclamar nas comemorações do seu cinqüentenário - deve muito ao insucesso de sua predecessora, a Liga das Nações.
Talvez às Nações Unidas possa ser aplicada a frase de um escritor inglês referindo-se aos segundos casamentos - "que são um triunfo da esperança sobre a experiência".
A melancólica trajetória da primeira sociedade internacional criada em Genebra e o seu rápido esvaziamento não fizeram desanimar os que, em 1944 e 1945, acharam que era novamente necessário arrumar a vida internacional.
A Liga das Nações tem a defendê-la, talvez, o fato de que:
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foi a primeira tentativa de organizar, de forma estável e institucional, a vida internacional;
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sofreu o golpe inicial - e que se provou mortal - da ausência dos Estados Unidos;
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foi prejudicada pela falta de sensibilidade e de sabedoria das potências vitoriosas na Grande Guerra na sua política de cobrança de reparações contra a Alemanha;
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sofreu o impacto da Grande Depressão de 1929; e
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teve contra o seu êxito a ferocidade das ideologias de direita e de esquerda, que fizeram com que durante a década de 20 e de 30 virtualmente não houvesse espaço para as acomodações no centro e para os compromissos pragmáticos.
A Liga das Nações, no seu propósito de oferecer uma moldura de segurança coletiva para o mundo de seu tempo, teve também entre outros pecados o de não poder, evidentemente, incorporar os povos então colonizados; os vícios do seu juridicismo; a sua virtual cegueira para a dimensão econômica e social dos problemas internacionais, vistos apenas na configuração clássica de poder e a sua preocupação obsessiva com a problemática do desarmamento, como se esse pudesse brotar de circunstâncias de desconfiança e ressentimento e não, como sabemos agora, fosse a resultante necessária de todo um processo de confidence building e transparência e da aplicação de métodos rigorosos de verificação e controle.
As Nações Unidas, por serem um segundo ensaio, contaram com o aprendizado da tentativa anterior e, desta vez, tiveram os Estados Unidos a bordo desde o primeiro momento (com níveis oscilantes, desde então, de adesão e comprometimento), na qualidade de país sede da Conferência de São Francisco e, depois, como aquele que hospeda a sede principal da Organização, em Nova Iorque.
Os Estados Unidos, que não estavam em 1919 preparados a assumir responsabilidades de âmbito mundial, claramente estavam prontos para essa tarefa em 1945 e as tendências isolacionistas, vitoriosas em Washington logo depois da Primeira Guerra Mundial, não eram mais dominantes no último mandato de Roosevelt e quando assume o poder o presidente Truman.
As Nações Unidas abandonam as idéias desarmamentistas ingênuas de sua predecessora, passam a incluir no seu documento fundacional a temática econômica e social e inovam, de maneira muito significativa, ao propor que seja o princípio da segurança coletiva aquele em torno do qual se organizará a vida internacional.
A idéia da segurança coletiva universal, que oferece uma visão de ordem, estabilidade e permanência, nunca, até agora, se materializou, mas está no cerne das duas grandes organizações que nasceram após a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais. Certamente de maneira muito mais nítida e estruturada na onu do que na Sociedade das Nações.
A idéia fundacional da ONU, que começa a ser desenhada bilateralmente por Roosevelt e Churchill, ao se prenunciar o fim da Segunda Guerra Mundial, e que depois é ampliada nas conversas de Yalta e Potsdam, consiste na criação de um sistema central no qual os membros permanentes do Conselho de Segurança - designado no artigo 24 da Carta de São Francisco como tendo "a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais" - atuariam como virtuais polícias da vida internacional. No mesmo artigo, fica estabelecido que o Conselho de Segurança, no cumprimento de suas funções, se guiará pelo disposto nos Capítulos VI, VII, VIII e XII da Carta de São Francisco.
É evidente que o Conselho de Segurança é o âmago do sistema criado em São Francisco e, com o risco de uma relativa simplificação, poder-se-ia dizer que tudo o mais na Carta é acessório. O que surpreende neste cinquentenário é como uma organização atingida de maneira devastadora logo nos seus primeiros anos no funcionamento do seu órgão central encontrou extraordinária legitimação periférica e foi estabelecendo, ao longo das linhas de menor resistência, um expressivo corpo de doutrina e procedimentos que, bem ou mal, foi conformando algumas das regras do jogo do mundo de hoje.
O consenso entre os membros permanentes do Conselho era tido como indispensável e o mecanismo do veto foi criado para assegurar que as decisões desse núcleo diretor da vida internacional, em todas as questões que não fossem de procedimento, sempre se dessem de forma concertada.
Os mecanismos da segurança coletiva como inicialmente concebida tiveram vida muito breve e, já em 1948, com os acontecimentos na então Checo-Eslováquia e em Berlim, instaura-se o ciclo da Guerra Fria, que leva à virtual paralisação do Conselho de Segurança (com exceções muito ocasionais e mesmo acidentais, como foi o caso da decisão sobre a Coréia, resultado de uma momentânea e imprudente ausência na sala da delegação soviética, o que permitiu que se votasse, sem o veto russo, a intervenção militar no conflito naquela península).
A impossibilidade de cumprir as funções centrais do Conselho de Segurança não levou a que esse órgão, mesmo nos anos mais rígidos da Guerra Fria, deixasse de funcionar ainda que de forma acessória em áreas que, embora residuais, não deixaram de ter relativa importância para o processo da manutenção da paz internacional.
O Conselho de Segurança deixou de ser o centro reitor da vida internacional, tornando-se importante foro de debate e câmara de descompressão, uma clearing house dos grandes temas da vida internacional e - o que não é menos importante -, o teatro das grandes gesticulações dos principais atores na Guerra Fria, sobretudo aquelas relacionadas com o que sucessivamente se chamou de conflitos regionais e agora, mais comumente como guerras de baixa intensidade, conseqüências muitas vezes, embora nem sempre, de manobras marginais dos dois campos opostos na Guerra Fria.
Não é supérfluo assinalar como o conceito de segurança coletiva deriva daquela curiosa mistura de idealismo e pragmatismo que talvez tenha sido uma das principais contribuições dos Estados Unidos ao tratamento da vida internacional. Tanto a Liga das Nações como as Nações Unidas serão marcadas pela impressão digital wilsoniana e rooseveltiana e em ambas o impulso fundamental ético e visionário veio dos Estados Unidos, que nas duas experiências sucessivas se contrapôs ao ceticismo ou realismo das potências européias, sempre descrentes da capacidade de qualquer grande ordenamento duradouro e consensuado da vida internacional.
A noção de segurança coletiva sobreviveu à ineficácia e à virtual paralisação do Conselho, numa demonstração talvez de que a idéia mesma tinha deitado raízes. Mesmo nos momentos mais frustrantes do longo conflito ideológico e político-estratégico que foi a Guerra Fria, não há registro de manifestação significativa de quem quisesse seja eliminar o órgão, seja declarar obsoleta a busca de um reforço da segurança coletiva.
As Nações Unidas e o conceito de segurança coletiva sobreviveram à longa travessia do deserto dos anos 50, 60 e 70 não tanto pelo sucesso do que se podia fazer em condições adversas como pela convicção difusa mas arraigada que em um mundo crescentemente interdependente e vulnerável não se podia perder o caminho, quaisquer que fossem os obstáculos momentâneos.
Desfeitas as esperanças de que o Conselho de Segurança pudesse atuar como harmonizador e enforcer das principais divergências internacionais, procurou-se, no âmbito das próprias Nações Unidas, através de uma valorização da Assembléia Geral, à qual, especialmente através da Resolução Uniting for Peace de 1959, foram conferidas atribuições não previstas na letra da Carta: encontrar capacidade supletiva de agir em situações que requeriam um tipo de ação de peacekeeping e outras que pertenciam, a rigor, ao âmbito privilegiado do Capítulo vii da Carta, que trata, como se sabe, de ações relativas a ameaças à paz, ruptura da paz ou atos de agressão, terreno reservado naquele documento exclusivamente ao Conselho de Segurança.
Essa usurpação de prerrogativas do Conselho de Segurança correspondeu também a um momento em que a aliança ocidental, apesar de paralisada pelo veto no Conselho de Segurança, podia ainda contar com muito significativas maiorias na Assembléia Geral.
Mais tarde, quando essas maiorias se dissipam pela presença determinante de numerosos países em desenvolvimento, com padrões de voto marcados pela neutralidade ou com um forte componente anti-Primeiro Mundo, a capacidade de atuar das Nações Unidas passa a ser virtualmente nula, já que o impasse no Conselho de Segurança e os números desfavoráveis ao Ocidente na Assembléia Geral faziam com que um caminho ou outro estivessem fechados a iniciativas controvertidas relacionadas com a restauração ou consolidação da paz e da segurança internacionais.
Não seria aqui o momento de examinar como a idéia inicial da segurança coletiva, gerenciada por uma grande organização mundial e, especificamente, pelo seu órgão central decisório, foi ultrapassada, operacionalmente, já no fim da década dos anos 40, por três grandes instrumentos que serão, até o fim da Guerra Fria, aqueles que de fato representam os caminhos pelos quais se procurará manter, nas décadas seguintes, a paz internacional.
Refiro-me às políticas de contenção (containement) contra ataques convencionais partindo das duas principais potências comunistas, a União Soviética e a República Popular da China, e tentativas de ampliação pela força de suas respectivas esferas de influência; às políticas de deterrência (deterrence), contra uma ameaça nuclear, sobretudo através de um vasto arsenal nuclear e múltiplos sistemas de lançamento (delivery systems) nas mãos da aliança ocidental, e à criação de subsistemas regionais de segurança coletiva que tiveram no Pacto do Atlântico Norte o seu principal modelo de referência.
Definida a paralisia do Conselho de Segurança, os sistemas alternativos a que no parágrafo anterior faço alusão foram sendo criados com maior ou menor eficácia. Creio já se poder afirmar que os conceitos gerais de contenção e deterrência foram amplamente bem-sucedidos e eficazes e que a NATO também o foi, embora enfrente hoje uma séria crise conceitual para definir seu próprio sentido futuro.
Será matéria de debate no futuro investigar se o colapso da União Soviética foi o resultado cumulativo das políticas de contenção e deterrência e crescente elevação do preço do jogo da paridade tecnológico-militar com a NATO ou se a ruína viria, de qualquer modo, por falhas estruturais do regime soviético e ineficácia insanável do próprio modelo econômico socialista.
O que também fracassou, sem dúvida, foram os subsistemas regionais de segurança coletiva, os quais presumiam que houvesse entre atores desiguais e com contraditórias motivações uma capacidade de concertação conjunta e de planejamento estratégico compartilhado.
Mencionar hoje o CENTO (Central Treaty Organization), a SEATO (Southeast Asian Treaty Organization) e o ANZUS (acordo entre a Austrália, a Nova Zelândia e os Estados Unidos) é quase uma curiosidade, tão efêmera e irrelevante foi a criação desses modelos.
A resposta do campo socialista a essas mobilizações foi a criação do Pacto de Varsóvia, que embora dispusesse de impressionantes arsenais nominais teve sempre a fragilidade de ser apenas a expressão do poder hegemônico da então União Soviética sobre os países de sua imediata circunstância da Europa Central. O Pacto de Varsóvia nunca foi mais, a rigor, do que o poder russo ampliado pela agregação de satélites e não uma aliança potencializada pelo reforço de aliados voluntários.
No caso das Américas, o Tratado do Rio de Janeiro e os vários mecanismos de concertação previstos no quadro da Organização dos Estados Americanos sobreviveram porque, a rigor, foram minimamente testados e no principal episódio militar na região no longo período da Guerra Fria, a Guerra das Malvinas, ficou evidenciado como eram tênues os compromissos hemisféricos e os instrumentos interamericanos e como os Estados Unidos, especialmente, respondiam de maneira prioritária aos seus compromissos com o Tratado do Atlântico Norte e com o seu mais próximo aliado, o Reino Unido.
Com o risco da excessiva generalização observo que nas oportunidades em que nas Américas surgiram situações de aguda controvérsia as Nações Unidas e seus órgãos não foram invocados para instrumentar as soluções pelas quais se optou. Não seria aqui, também, o caso de examinar que outros recursos foram utilizados individualmente pelos Estados Unidos ou regionalmente no âmbito da Organização dos Estados Americanos para enfrentar esses problemas.
Não toquei até agora no que talvez venha a ser visto como o fator decisivo na qualidade das relações internacionais do após-Guerra e elemento modificador do conceito mesmo de segurança coletiva. Refiro-me naturalmente ao aparecimento das armas nucleares, utilizadas nas últimas semanas da Segunda Guerra Mundial no teatro de operações do Pacífico.
Mais do que uma nova geração de armas com seus correspondentes vetores de lançamento, as armas nucleares evidentemente representaram um revolucionário reexame da própria equação de custo-benefício de enfrentamentos bélicos entre os seus detentores ou nos quais terceiros pudessem utilizá-las ou ameaçar utilizá-las em favor de um dos lados.
Tão decisivo foi o aparecimento dos arsenais nucleares que não é demasiado dizer que toda a equação militar mundial no após-Segunda Guerra Mundial se dá à sombra de sua presença e ameaça de utilização.
O próprio conceito de deterrência a que fiz alusão anteriormente teve, evidentemente, na capacidade nuclear das potências ocidentais o seu principal ingrediente e todas as demais armas passaram a ser chamadas de convencionais, como a indicar a extraordinária ruptura que representou no pensamento estratégico a explosão de Hiroshima.
Seria paradoxal mas não improvável se as armas nucleares e as outras chamadas de destruição em massa vistas desde o seu surgimento como a maior ameaça à humanidade pudessem ter sido, pelo seu próprio poder destrutivo e por terem eliminado as hipóteses de ganhos compensatórios em grandes conflitos armados, o fator que inaugurasse um ciclo em que, se as guerras não foram evidentemente eliminadas, tenderão a ser, doravante, basicamente os chamados conflitos de baixa intensidade (low intensity wars).
Para utilizar a terminologia dos anos 60 e 70: por não ser mais racional utilizar as virtualidades da retaliação maciça, sobrava apenas espaço para as respostas flexíveis.
Voltando ao meu fio condutor, que é o da evolução do conceito de segurança coletiva nesses últimos 50 anos, devo registrar que com o fim da Guerra Fria e o desmantelamento da União Soviética, o foco mesmo das preocupações centrais desde o fim da Segunda Guerra Mundial se perdeu e iniciou-se um período de profunda indefinição estratégica e conceitual.
A tal ponto isto é verdade que os 40 anos de Guerra Fria hoje são vistos com mais indulgência e favor como constituindo um período de ampla estabilidade na equação central do poder que permitiu apenas conflitos periféricos. A rigor, somente a chamada crise dos mísseis em Cuba, em 1961, aproximou realmente o mundo de um conflito nuclear, embora também a Guerra da Coréia e os conflitos no Oriente Médio tenham representado risco significativo de desestabilização do equilíbrio mundial.
Tanto os modelos e paradigmas da Guerra Fria marcaram a nossa percepção que, ainda agora, dez anos depois do fim desse período, chamamos a fase que atravessamos como de pós-Guerra Fria, como se nos faltasse ainda um rótulo próprio para identificar o momento que vivemos. Nessa nova conjuntura, assistimos à reformulação dos velhos paradigmas e, em um quadro ainda de considerável indefinição, observa-se a superação do conceito de segurança coletiva pelos de segurança cooperativa e diplomacia preventiva, além de outros, sinalizando que em um mundo multipolar desfocalizado e marcado por uma geometria extremamente variável, novas formas de pensar e proceder são urgentemente requeridas.
Trocado em miúdos: perdida a visão inicial do imediato após-Guerra que previa o harmonioso concerto das potências e esgotada a Guerra Fria com a sua lógica adversarial rígida, é preciso nova visão e novos impulsos que substituam o que o tempo e as novas circunstâncias em certa medida esgotaram. Pede-se hoje do conceito de segurança coletiva mais e não menos do que antes.
As Nações Unidas podem e devem voltar, em alguma medida, ao tipo de pensamento organizador global de São Francisco e o Conselho de Segurança poderá vir a cumprir funções diferentes mas tão vitais quanto aquelas para as quais foi originalmente concebido.
Quase todas as premissas que levaram à criação das Nações Unidas se confirmaram bem além do que poderiam ter antecipado os seus founding fathers. Os problemas hoje, como haviam previsto, são inescapavelmente globais e a participação no processo decisório terá que ser virtualmente universal. Os temas da regulação dos fluxos financeiros; da circulação de bens e serviços; dos movimentos migratórios e da mão-de-obra; as questões macroambientais; a proteção de direitos humanos; o combate ao terrorismo e ao narcotráfico, entre outros, têm uma tal evidente transnacionalidade, envolvem tantos e tão diversificados atores, que a necessidade de que sejam regulados por grandes sistemas diretores como aqueles expressos pelas Nações Unidas e a sua constelação de agências especializadas é self-evident.
A segurança coletiva deixa de ser adversarial e fundamentalmente militar e passa a ter dimensões econômica, social, ambiental etc., que fazem com que fiquem superados os debates travados faz 20 ou trinta anos sobre a extensão desses conceitos a campos outros que não o original, estreitamente associado aos componentes militares da idéia de segurança.
Novamente as Nações Unidas, como há 50 anos atrás, precisarão encontrar aquela mistura de pensamento visionário e pragmatismo operacional que permitam estruturá-la para os novos tempos.
Os conceitos de diplomacia preventiva - tão caro ao atual Secretário-Geral das Nações Unidas - e de segurança cooperativa - que vai mais além ao sugerir toda uma nova metodologia e um novo universo de aplicação - apontam na mesma direção.
Trata-se, na verdade, de transformar os 50 anos das Nações Unidas não apenas em uma efeméride mas em um importante ponto de inflexão. O que se busca, de fato, é procurar definir como será a nova ordem internacional que os novos tempos parecem exigir.
Marcam a nova configuração internacional, entre outras, as seguintes características:
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esvaziamento da ameaça nuclear;
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ausência de riscos imediatos de conflitos que afetem o equilíbrio internacional;
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singularidade do poder militar norte-americano, ao qual não se oferecem rivais expressivos;
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identificação de uma agenda crescente de temas globais, de que é emblemática a proteção ao meio-ambiente em sua dimensão atmosférica e planetária;
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surgimento e proliferação de numerosos regimes reguladores, mais ou menos informais, que operam no campo científico-tecnológico, militar e estratégico, financeiro e de propriedade intelectual.
Os antigos conceitos e ferramentas das Nações Unidas requerem urgente e extenso aggiornamento. A exigência de agir logo e com grande abrangência deve ser temperada por reflexão e prudência não menos profundas. Uma nova ordem mundial (a expressão é difícil de evitar, mas deve ser usada com cautela) tem de ser o resultado de um amplo processo legitimador e não pode ser o resultado da visão de um só país, mesmo que generosa.
A adequação do conceito de soberania aos novos tempos passa pelas mesmas exigências. A soberania tem que ser adaptada mas não pode ser perdida. A ação solidária internacional, que terá de ir além das tradicionais operações de paz (peacekeeping) para os novos e maiores desafios da criação da paz (peacemaking) e da organização dos Estados (Nation building), requer cuidadoso desenho e engenharia.
As novas medidas de controle de armas e desarmamento, com suas diversificadas e exigentes técnicas de verificação e controle, e o efetivo funcionamento de acordos de dimensão universal que visam a proibição de armas de destruição em massa ou minimamente sua não-proliferação, requerem melhores ferramentas e outras instituições.
Fica evidente que a revisão da Carta das Nações Unidas, passando pelo redimensionamento do Conselho de Segurança para equipá-lo a exercer, por fim e plenamente, as funções de oferecer ao mundo uma eficaz segurança coletiva, é tarefa já para os próximos meses.
Estamos nos aproximando de uma visão multidimensional e interdisciplinar da segurança coletiva à qual devemos chegar pelo exercício mais amplo dos procedimentos da diplomacia parlamentar de participação universal e não pela expressão da vontade de um país ou pequeno grupo de países, por mais que um e outros representem extraordinárias massas de poder e influência.
No capítulo conclusivo de seu recente livro sobre a diplomacia, Henry Kissinger sugere a continuada validade do conflito básico entre dois conceitos de segurança coletiva: os que brotam da longa experiência européia - de que o Cardeal de Richelieu foi um dos primeiros expositores - na qual o máximo que se pode obter é o equilíbrio dos poderes com o predomínio da razão de Estado, e os que derivam da visão wilsoniana de que o mundo pode aspirar a uma grande harmonia de interesses, respeitados os interesses de cada um. Talvez não possa ocorrer a vitória de um modelo sobre o outro e talvez não se encontre uma síntese satisfatória.
Minha convicção é, contudo, de que os fenômenos da globalização dos problemas e da universalização dos atores levarão à expansão do conceito de segurança coletiva, através de níveis crescentes de legitimidade do processo decisório, e que as palavras ordem e segurança deixarão seus limites mais estreitos e encontrarão uma redefinição compatível com as esperanças do mundo em que começamos a viver.
Marcos Castrioto de Azambuja é embaixador do Brasil na Argentina e ex-secretário geral do Ministério das Relações Exteriores.
Palestra feita pelo autor no Colóquio Carta de São Francisco: 50 anos depois, organizado pela Área de Assuntos Internacionais do Instituto de Estudos Avançados na Sala do Conselho Universitário da USP no dia 23 de junho de 1995.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Jun 2005 -
Data do Fascículo
Dez 1995