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Medo, violência e política na cidade de São Paulo: a quem cabe decifrar a Esfinge da Segurança Pública?

RESUMO

Pretende-se refletir sobre o deslocamento de agenda da Segurança Pública em São Paulo, transferida de uma pauta predominante estadual, para parte central das estratégias eleitorais à prefeitura da cidade de São Paulo. A hipótese desenvolvida é que os homicídios gozaram do status de principal problema de segurança pública em São Paulo entre os anos 1990 e 2000, contudo há uma mudança de cenário com a redução do número de homicídios. E aqui entendemos que a Cracolândia, por um lado, e o intensivo aumento dos crimes patrimoniais, sobretudo os furtos e roubos de celular, por outro, assumem a centralidade como principal problema de segurança pública na cidade. A reflexão é pautada por um estudo de caso do papel da Cracolândia, área de cenas de uso aberto de drogas, no centro da cidade, na construção de um cenário agudo de medo e insegurança na população paulistana.

PALAVRAS-CHAVE:
Segurança pública; Cracolândia; Crimes patrimoniais

ABSTRACT

This paper aims to reflect on the shift in the public security agenda in São Paulo, from a predominantly state issue to a central part of the electoral strategies for the City of São Paulo. The hypothesis developed is that homicides were considered the main public security problem in São Paulo between the 1990s and 2000s. However, with the reduction in the number of homicides, the scenario has changed. Crackland (Cracolândia), on the one hand, and the intensive increase in property crimes, especially cell phone thefts and robberies, on the other hand, have become central to the public security issue in the city. The reflection is based on a case study of the role of Crackland (Cracolândia), an area of open drug use in the city center, in the construction of an acute scenario of fear and insecurity among the population of São Paulo.

KEYWORDS:
Public security; Crackland (Cracolândia); Property crimes

Introdução

Esfinge é uma palavra que remete ao mito em torno da imagem e/ou escultura de um grande animal felino com cabeça humana. Na História, suas representações egípcia e grega são as mais difundidas e a descrevem tanto como guardiã dos deuses e do espírito quanto a de um monstro pronto a proteger ou devorar os infiéis e/ou saqueadores dos templos. Nos mitos grego e egípcio, o comportamento e a intensão dos indivíduos se transformam, assim, nos grandes referentes morais a definir a reação da esfinge, que vigilantemente zela pela “ordem”. Em uma analogia, as esfinges nos lembram da relação entre violência e ordem social; da discussão em torno de como é territorialmente construída a relação entre Estado e sociedade em um país marcadamente desigual e violento como o Brasil, que possui estruturas de segurança pública frágeis e pouco submetidas a mecanismos de governança democrática (Lima, 2019_______. Segurança Pública como Simulacro de Democracia no Brasil. Estudos Avançados, v.33, p.53-68, 2019.).

Relação essa que, como alerta Luiz Antônio Machado (2014), deve ser pensada a partir de quadros empíricos específicos, que são, por definição, contingentes (históricos) e contexto-dependentes (situacionalmente definidos). Isso porque, para esse autor e com quem concordamos, a organização da vida social se produz através de inúmeras disputas e conflitos, e a noção de ordem social orienta a intervenção institucional sobre a prática e, ao mesmo tempo, constrói as referências de sentido para a ação de pessoas e grupos (Machado da Silva, 2014, p.26-7). No caso, Machado assume que a violência adquire o sentido de “um atributo moral negativo” e, portanto, nos coloca diante do desafio de jogarmos luz às arenas de debate coletivo acerca do que é percebido como “positivo”, “negativo”, ou “legítimo” na segurança pública, que é o campo organizacional no qual as respostas públicas a ela são estruturadas. O que, dito de outra forma, nos coloca o desafio de olhar tanto os aspectos societais, quanto aqueles associados às disputas e projetos políticos para a organização dos espaços urbanos e das instituições da área, que conformam a agenda política e as prioridades eleitorais.

Nessa trilha, este artigo pretende refletir sobre como o tema da segurança pública foi, nos últimos anos, se deslocando de uma agenda predominantemente estadual para, agora, ser parte central das estratégias eleitorais dos candidatos à prefeitura da cidade de São Paulo. E pretende fazer esta reflexão a partir de um estudo de caso bastante emblemático para São Paulo, que é papel da “Cracolândia”, área de cenas de uso aberto de drogas, em especial crack,1 1 Segundo Fiore (2013, p.104), o crack, criado nos Estados Unidos na década de 1970, pode ser definido como um subproduto da pasta-base da cocaína, com aparência semelhante a um fragmento de pedra. Assim, sua ação neuroquímica se assemelha à da cocaína, pois consiste na mesma substância manipulada de outra maneira, por meio do fumo: “Posto num cachimbo ou numa outra superfície metálica, como latas vazias de bebida ou papel laminado preso a um copo, é queimado junto às cinzas de tabaco, o que faz que o seu cheiro intenso fique ainda mais desagradável, ao menos para quem não gosta de fumar”. localizada nos arredores da região da Santa Ifigênia, no centro da cidade, na construção das representações sociais que retroalimentam um cenário agudo de medo e insegurança na população paulistana, frequentemente associado ao crescimento de crimes patrimoniais.

Para tanto, o presente texto está dividido em três seções principais, além desta introdução. A primeira discute o deslocamento do problema da segurança pública na cidade de São Paulo nos termos apresentados acima. Já a segunda discutirá um estudo de caso específico sobre a região da Santa Ifigênia, na área central da capital, enfocando sobretudo as dinâmicas associadas à Cracolândia e algumas modalidades de crimes patrimoniais. Por fim, a terceira sumarizará um panorama dos deslocamentos político-institucionais das duas últimas décadas.

Medo, crime e violência em territórios da cidade de São Paulo

Pesquisa Datafolha, realizada no começo de março de 2024, indicou a centralidade da questão da segurança pública para os residentes da capital paulista. O tema da segurança foi identificado como o principal problema/fonte de preocupação para a população paulistana.2 2 Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/03/11/seguranca-e-o-principal-problema-para-moradores-da-cidade-de-sp-diz-datafolha.ghtml>. Como se sabe, 2024 é ano para eleições municipais e havia a percepção, antes mesmo da divulgação dos números acima, de que o tema da segurança pública teria forte impacto no debate eleitoral entre as candidaturas para a prefeitura de São Paulo.3 3 Aqui, há que notar a questão do pacto federativo. Tradicionalmente, segurança pública é vista como tarefa essencialmente estadual, pois esse ente federativo é constitucionalmente o responsável pela maior parte das instituições policiais brasileiras, sendo as Polícias Militares e Polícias Civis. No entanto, o debate especializado há muito chama atenção para 3 fatos: i) segurança pública não é apenas tarefa de polícia, isto é, a política de segurança deve combinar ações repressivas qualificadas com ações preventivas de natureza multidisciplinar (Lima et al., 2016); ii) a necessidade de protagonismo do governo federal para a devida coordenação do Sistema Único de Segurança Pública (Peres; Bueno, 2013); iii) os municípios devem ter papel importante nas políticas de segurança (Mariano, 2004).

Não é raro que a opinião pública sobre segurança pública, crime e violência não corresponda, necessariamente, aos indicadores de vitimização (Costa, 2023COSTA, A. T. M. Segurança pública, redes e governança. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2023., p.216-49). Por isso, adotaremos neste artigo a análise das duas dimensões para que seja possível evidenciar o que entendemos como um deslocamento do problema público da segurança na cidade de São Paulo.

O presente artigo tem como objetivo, portanto, demonstrar que, dentro do trinômio segurança pública-crime-violência, houve uma mudança nas dinâmicas de crime e violência que ocupam centralidade nas representações sociais que conformam a opinião pública sobre o tema e que o faz ser percebido como principal problema a ser enfrentado pelo Estado e suas políticas públicas.

A hipótese aqui desenvolvida é que os homicídios gozaram do status de principal problema de segurança pública em São Paulo entre os anos 1990 e 2000 - o pico da taxa de homicídios na cidade de São Paulo foi em 19994 4 Segundo Peres et al. (2011, p.18), a partir de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), a taxa de mortalidade por homicídio sofreu uma queda de 65,0% entre 1999 e 2007 no estado de São Paulo, e, na cidade de São Paulo, a redução foi de 74,0%. -; contudo, com a redução do número de homicídios, o cenário mudou. A significativa queda dos homicídios visualizada tanto na capital quanto no estado ao longo dos últimos anos permitiu que outros problemas da área adquirissem centralidade nas preocupações dos paulistanos. E, aqui, entendemos que a Cracolândia, por um lado, e o intensivo aumento dos crimes patrimoniais, sobretudo os furtos e roubos de celular, por outro, assumem a centralidade como principal problema de segurança pública na cidade. E, diante desse deslocamento, o que antes era um “problema de polícia” passa a ser também um problema dos prefeitos; do município.

É interessante notar, no entanto, uma diferença territorial significativa, visto que as contradições de “centro” e “periferia” ultrapassam as questões de espaço, caracterizando-se como um distanciamento geográfico e simbólico (Nery, 2016NERY, M. B. Crime e violência no cenário paulistano: o movimento e as condicionantes dos homicídios dolosos sob um recorte espaço-temporal. São Paulo, 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p.79). Mas, ainda na dimensão espacial, os homicídios foram observados enquanto um problema concentrado nas áreas periféricas da cidade de São Paulo e sua região metropolitana a partir de meados da década de 1960 (Manso, 2012MANSO, B. P. Crescimento e queda dos homicídios em SP entre 1960 e 2010: uma análise dos mecanismos da escolha homicida e das carreiras no crime. São Paulo, 2012. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p.30). A questão da Cracolândia, por outro lado, é um problema da região central de São Paulo. Os furtos e roubos, sobretudo envolvendo celulares, são um problema proporcionalmente maior, no centro expandido.

Região da Santa Ifigênia: da Cracolândia aos crimes patrimoniais

A Cracolândia tem sido uma questão para prefeitos e governadores de São Paulo há pelo menos três décadas, após diversas operações, em sua maioria policiais, justificadas por uma política de guerra às drogas e muito marcadas por um fundo de higienismo social. Essas operações apresentam, no contexto atual, certo fracasso, considerando a multiplicação de cenas abertas de uso de drogas (Marino et al., 2022MARINO, A. et al. Impactos da dispersão da Cracolândia: balanço dos velhos e novos conflitos no centro de São Paulo. LabCidade [online], 22.12.2022. Disponível em: <https://www.labcidade.fau.usp.br/impactos-da-dispersao-da-cracolandia-balanco-dos-velhos-e-novos-conflitos-no-centro-de-sao-paulo/>.
https://www.labcidade.fau.usp.br/impacto...
). As estratégias de dispersão acabam por deslocar os fluxos de concentração de usuários de drogas pelo centro expandido da cidade.

Como é facilmente percebido, estudar a Cracolândia e suas dinâmicas associadas, sobretudo do ponto de vista da política de drogas, é uma tarefa bastante complexa para a qual já há bastante acúmulo acadêmico (Rui, 2012RUI, T. C. Corpos Abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack. Campinas, 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas.; Magalhães, 2015MAGALHÃES, T. R. P. Campos de disputa e gestão do espaço urbano: o caso da “Cracolândia” paulistana. São Paulo, 2015. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.; Nasser, 2016NASSER, M. M. S. No labirinto: formas de gestão do espaço e das populações na Cracolândia. São Paulo, 2016. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.). No entanto, para o presente trabalho nos interessou a realização de um estudo de caso que possibilitasse uma observação mais ampla das dinâmicas da região, de modo que pudéssemos apreender tanto os fluxos da Cracolândia, mas também modalidades de crimes patrimoniais emergentes nesse território, além das percepções de moradores, trabalhadores, transeuntes e profissionais de segurança pública que circulam pela região, e as relações entre essas duas dimensões, que são, do nosso ponto de vista, chaves para a construção contemporânea de representações sobre crime e violência na cidade de São Paulo.

Para a realização deste estudo, utilizamos um conjunto de abordagens, estratégias metodológicas e fontes de informação complementares. Em primeiro lugar, uma abordagem quantitativa, que, a partir dos dados disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP/SP), possibilita a análise de algumas dinâmicas criminais na cidade de São Paulo e, mais especificamente, em um recorte de três distritos policiais da região central da capital, em um período histórico mais amplo, o que contribui com o balizamento da análise da conjuntura contemporânea.

Foram selecionados três distritos policiais para análise na região central de São Paulo: o 3º Distrito Policial (3º DP), em Campos Elíseos, algumas vezes referido como Santa Ifigênia; o 77º DP, em Santa Cecília; e o 4º DP, na Consolação. Esses distritos foram escolhidos por três razões: compreendem territórios de intensiva presença de dinâmicas associadas à Cracolândia e às modalidades de criminalidade patrimonial, como furto e roubo de celulares, que interessava conhecer de forma mais aprofundada. Além disso, são regiões pelas quais transitam centenas de milhares de pessoas diariamente e são áreas que, apesar de vizinhas, possuem características socioeconômicas distintas.

Foram coletados os dados relativos às ocorrências de roubo e furto nos três distritos policiais tratados, assim como na cidade de São Paulo.5 5 Os dados foram consolidados a partir da sistematização da área “Ocorrências registradas por mês”, disponível na página da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, por período e região. A consulta dos dados ocorreu entre os meses de agosto e novembro de 2023. Cabe ressaltar que as datas de referência serão indicadas junto às tabelas e gráficos, tendo em vista a possibilidade de alteração dos quantitativos, devido ao processo de atualização contínua das estatísticas no site. Disponível em: <https://www.ssp.sp.gov.br/estatistica>. Para além dessa coleta, utilizamos a ferramenta Sistema de “Monitoramento de Cenas de Uso”,6 6 Disponível em: <https://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/sistema-monitoramento-cenas-abertas>. disponibilizada pela SSP/SP desde meados do primeiro trimestre de 2023. A ferramenta consiste na disponibilização de um diagnóstico semanal da segurança pública na região central da cidade de São Paulo, relacionando-o às cenas abertas de uso de drogas. São apresentadas estatísticas da criminalidade no local, em especial de crimes patrimoniais, como roubo e furto, assim como as ações realizadas pelas instituições da segurança pública na região, desde a Secretaria até as Polícias.

A ferramenta disponibiliza, de modo interativo, um mapa com as ocorrências de roubo e furto, por tipo, acompanhado de um filtro com o “modus operandi” empregado na ação, nas áreas de abrangência do 77º e 3º Distritos Policiais. É possível selecionar, também, outros detalhamentos gerais das ocorrências, por período. Ademais, são disponibilizados os boletins de ocorrência registrados, no formato de base de dados, permitindo a visualização do detalhamento dos registros e possibilitando a análise das especificidades de cada ocorrência. Tais boletins foram utilizados, em especial, na análise do “modus operandi” nos roubos e furtos realizados na região.

Já do ponto de vista da abordagem de caráter qualitativo, a pesquisa se valeu, em grande medida, de percursos etnográficos realizados por um pesquisador que reside no bairro do Arouche, que é parte do território de interesse do estudo. Em cerca de dez meses ao longo do ano 2023, o pesquisador realizou observações diretas de caráter exploratório em diversos pontos destes territórios, além de 37 entrevistas formais e 60 entrevistas informais.7 7 As entrevistas formais foram assim distribuídas: 6 comerciantes, 14 comerciários, 2 jornaleiros, 9 moradores, 4 vítimas de roubo ou furto, e 2 policiais civis. Já as entrevistas informais incluem 12 policiais militares, 2 policiais civis, 25 transeuntes, 5 vítimas de roubo ou furto, 3 pessoas em situação de rua, 7 trabalhadores de escritórios na região, 2 assistentes sociais e 5 seguranças privados. Como praticamente todas estas interlocuções foram realizadas na rua, em poucos casos foi possível utilizar o gravador. Por fim, os métodos aqui detalhados foram complementados pela análise de material de imprensa, tendo como principal fonte o jornal Folha de S.Paulo, e outros veículos associados, como o UOL. Com essa seleção, diminuímos a possibilidade de notícias falsas ou mesmo de grande parte do sensacionalismo de veículos especializados em crime e polícia.

Passamos a relatar os percursos e resultados deste estudo de caso. Inicialmente, contudo, é interessante evidenciar o contexto histórico do surgimento da Cracolândia, termo utilizado pela imprensa local na década de 1990 para descrever e relatar cenas de compra e uso de crack no centro da região paulistana (Nasser, 2016NASSER, M. M. S. No labirinto: formas de gestão do espaço e das populações na Cracolândia. São Paulo, 2016. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p.18). Apesar de parte da região central da cidade ter sido, desde os anos 1950, um ponto focal da criminalidade paulistana, essa região só passou a ser frequentemente nomeada como “Cracolândia” a partir de meados dos anos 1990, com a disseminação do crack na cidade de São Paulo. Antes, essa região era conhecida como Boca do Lixo, local onde ocorreu a primeira apreensão de crack na região central da cidade, em 1986 (Magalhães, 2015MAGALHÃES, T. R. P. Campos de disputa e gestão do espaço urbano: o caso da “Cracolândia” paulistana. São Paulo, 2015. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p.23).

Uma característica importante do local onde nasceu e cresceu a Boca do Lixo é que ela era caracterizada por inúmeras pensões, hotéis baratos e alguns cortiços densamente ocupados (Barros, 2004BARROS, E. L. Crimes que abalaram São Paulo. Revista do Arquivo Municipal, n.203, São Paulo, 2004.).

Figura 1
Delimitação do território da Cracolândia na cidade de São Paulo, ano 2001. Quarteirões excluídos X.

Durante a última década do século passado e os primeiros anos 2000, essas poucas quadras tinham quase um terço das prisões por drogas registradas no centro da cidade. Ademais, as estatísticas das últimas duas décadas revelam que os Distritos Policiais próximos à Cracolândia têm alto índice de crimes contra o patrimônio e baixo índice de crimes contra a vida. Segundo os policiais entrevistados, muitos são delitos cometidos pelos nóias 8 8 Categoria nativa utilizada por diversos entrevistados durante a pesquisa. Segundo Gomes e Adorno (2011, p.581), o sujeito “nóia” define-se como “aquele que está no nível mais baixo, carregando um grande estigma de alguém sem controle e sem limites em sua busca de uso do crack, não sendo confiável nem para os outros usuários. A categoria de ‘noia’, extremamente estigmatizada, em muitas situações leva o usuário a um exílio, impedindo-o de retornar à sua região de pertencimento, por conta de problemas ali. Quando passam a ser vistos como ‘noias’, em algum momento são levados a buscar outro espaço”. O termo será grafado em itálico neste texto. para obter dinheiro para comprar a droga. Ainda do ponto de vista policial, outro grande problema da região apontado é a corrupção, que envolve os pequenos traficantes com policiais civis e militares. É interessante notar que, geograficamente, as sedes da Polícia Civil e da Polícia Militar ficam muito próximas desse local. Aliás, o Departamento de Narcóticos durante anos foi vizinho da Cracolândia.

Esse histórico indica que não foi o crack que transformou a região no que é agora. Ela seguiu o processo costumeiro de degradação de áreas centrais já vivido por cidades americanas e europeias. São áreas de fácil acesso e intensamente urbanizadas, mas com edifícios em situação precária, baixos aluguéis e utilizadas para o comércio apenas durante parte do dia. O território que agora é conhecido como Cracolândia, sucessor direto da Boca do Lixo, tinha, quando entrou para o noticiário, um perímetro bem definido, e era frequentado por muito menos pessoas.

O nome Cracolândia, remetendo a uma área de uso exclusivo do crack, já não se aplica mais ao contexto atual. Segundo policiais ouvidos durante a pesquisa, há cerca de cinco anos o crack vem dividindo o espaço na região com a maconha, a cocaína e possivelmente outras drogas sintéticas, como anfetaminas, MD, LSD, GHB, ecstasy, anabolizantes, ice, quetamina, inalantes, maconha (modificada), morfina, codeína, entre outras. Além disso, o problema local não é apenas policial ou de fiscalização. Também é, especialmente, de urbanização. Em 2005, durante o período de José Serra como prefeito da cidade de São Paulo (2005-2006), ocorreu a mais planejada ação dos poderes públicos na Cracolândia (Pinho, 2017PINHO, M. Em 12 anos, prefeitos e governadores já consideraram Cracolândia problema resolvido e celebraram operações. G1, São Paulo, 22.5.2017.; Freitas, 2017FREITAS, C. São Paulo luta há 20 anos contra a cracolândia, sem vencer; por quê? UOL, São Paulo, 5.6.2017.). O único efeito que tal ação logrou foi fazer a base do tráfico de drogas se deslocar alguns quarteirões, na medida em que os nóias acompanharam os traficantes para novas áreas ou ruas na região. Assim, a cada operação policial ou intervenção pública isolada, o território da Cracolândia apenas muda algumas quadras.

À época, quando o poder público, por meio da Polícia Militar, fez essa investida, os usuários e traficantes ficaram perambulando por semanas, juntando-se em pequenos grupos de até 50 pessoas, para só depois estabelecer uma nova sede. Na Figura 2 vemos o deslocamento dos usuários da Cracolândia original para a segunda versão da sede. O ponto verde é o local de onde inicialmente ficavam os usuários até a operação de 2005. O ponto azul indica a região na qual se estabeleceram durante meses até serem “movimentados” novamente pela Polícia Militar em janeiro de 2012, fato observado por moradores do bairro à época.

Figura 2
Percurso de movimentação da Cracolândia na região central (2005-2012).

Esse modelo de atuação policial continua até os dias de hoje, mesmo depois de muitos recursos humanos e tempo investidos em várias das chamadas operações para acabar com a Cracolândia. Um exemplo recente de operações realizadas na Cracolândia foi a dispersão dos usuários do entorno da Praça Princesa Isabel, em maio de 2022, que não diminuiu as cenas de uso e tampouco o número de seus frequentadores (Marino; Rolnik, 2023MARINO, A.; ROLNIK, R. Dados da segurança pública demonstram o fracasso da política em curso na Cracolândia. LabCidade [online], São Paulo, 12.7.2023. Disponível em: <https://www.labcidade.fau.usp.br/dados-da-seguranca-publica-demonstram-o-fracasso-da-politica-em-curso-na-cracolandia/>.
https://www.labcidade.fau.usp.br/dados-d...
).

Um ponto que mostra o grau de acomodação dos órgãos públicos à situação foi relatada por entrevistados. Segundo comerciantes e funcionários das lojas próximas à Rua Santa Ifigênia, a multidão de usuários de drogas e traficantes não se fixa em um mesmo local, normalmente alteram a localização movendo-se pelas quadras. O motivo desse nomadismo, revelador de como se institucionalizou a Cracolândia, é que a funcionários da prefeitura limpam com jatos d’agua, a cada duas semanas, o local onde estão estabelecidos.

Desde que a Cracolândia foi constituída, em meados da década de 1990, ela vem sendo muito noticiada, e seu fim anunciado pelos governos estaduais e municipais que se sucederam. Na prática, porém, a situação cada vez mais faz parte do cotidiano paulistano. E a simples menção dela faz que muitas pessoas, que não sabem onde ela está realmente localizada, relacionem diretamente sua existência com a onda de furtos e roubos no centro da cidade, de acordo com as entrevistas com pessoas que estavam de passagem na região e os trabalhadores de escritório e que, objetivamente, pouco frequentam as ruas escolhidas como áreas de uso aberto de drogas. Ainda segundo as entrevistas, os moradores, os policiais, os comerciantes e/ou os comerciários saberiam distinguir os crimes praticados por usuários de drogas dos cometidos por ladrões profissionais.

Isso porque, apesar de os crimes de roubo e furto serem crimes “comuns” praticados no mundo todo, na Cracolândia tais ocorrências dependem de cinco fatores, a saber: tipo de vítimas, res furtiva, modus operandi, geografia local e ação das forças policiais. No território estudado, essas características podem ser explicitadas, resumidamente, da seguinte forma:

  • Tipo de vítima: a maior parte dos transeuntes na região central é de população flutuante, pessoas que trabalham ou fazem compras no local, sendo que o número de moradores é bem menor. Essa característica faz que a probabilidade de o transeunte encontrar alguém conhecido, além dos que vê em seu trabalho ou no comércio que frequenta, é pequena. Já os moradores muitas vezes se reconhecem entre os “estranhos”, mas não têm muito contato com eles, a não ser quando um ou outro trabalha com atendimento no comércio. Isso separa os indivíduos transitando nas ruas em dois grupos distintos, cada qual com sua visão da região. Normalmente os mais visados pelos criminosos são os de fora porque, como veremos adiante, os infratores moram muito próximos de onde atuam. Se roubarem ou furtarem um vizinho podem ser reconhecidos e denunciados.

  • Res furtiva: poucas pessoas carregando dinheiro em espécie, diminuindo, portanto, a probabilidade de um criminoso visar uma carteira portanto quantias valiosas, por exemplo. A fase do batedor de carteiras ficou no passado. Os cartões de crédito são de difícil uso, porque as vítimas podem cancelá-los em poucos minutos, mesmo antes de fazer um Boletim de Ocorrência. Portanto, o objeto de cobiça passou a ser prioritariamente o aparelho celular, que praticamente todos os que circulam nas ruas lotadas têm consigo e que muitas vezes é utilizado durante o trajeto a pé, para solicitar carros ou táxis por aplicativos, ou de carro, com aplicativos de GPS. Além disso, com o processo de digitalização das finanças, intensificado no contexto da pandemia de Covid-19 a partir de 2020, o aparelho celular tornou-se a porta de entrada para um conjunto de valiosas informações pessoais e recursos, incluindo os financeiros, para além do valor do aparelho (Lima; Bueno, 2023LIMA, R. S.; BUENO, S. As novas configurações dos crimes patrimoniais no Brasil. In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p.90-97, 2023. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf>.
    https://forumseguranca.org.br/wp-content...
    ). Portanto, o criminoso pode se aproveitar da subtração do aparelho para fazer transferências bancárias, fazer aquisições em aplicativos de compras, contratar empréstimos, aplicar golpes em outras pessoas encontradas na lista de contatos da vítima original, e ao final, ainda lucrar com a venda do aparelho, que poderá ser utilizado no mercado paralelo de peças ou ainda para revenda, dentro ou fora do país.

  • Modus operandi: como decorrência da densidade de pessoas circulando, a prática do roubo é dificultada, sobretudo durante o dia. Isso pois um roubo pode ser percebido por muitas testemunhas e, talvez, por um par de policiais perto, mas não à vista. Quanto ao uso de armas de fogo, é uma ocorrência mais rara durante o dia. Embora aconteçam alguns, não ocorrem frequentemente nas principais ruas durante o dia. À noite, aconteçam com mais frequência, especialmente feitos por grupos de dois ou três criminosos. Pode-se dizer, no entanto, que nesse território o furto é a modalidade mais comum.

  • Geografia local: geografia urbana com alta densidade de edifícios e em parte degradada, com prédios abandonados, algumas lojas fechadas, alta circulação de veículos em algumas vias, sendo que outras são de uso exclusivo de pedestres (os calçadões). Outra característica é a falta de áreas verdes, com apenas uma grande praça arborizada, a da República. Furtar nessas áreas significa muitas vezes correr uma ou duas quadras para se livrar da vítima, muitas vezes apenas atravessando uma avenida movimentada, ou uma aglomeração qualquer.

  • Ação das forças policiais: ação policial local mais disseminada é restrita à prevenção por meio do patrulhamento realizado pela Polícia Militar que, dado o grande número de transeuntes, tem dificuldades em identificar ladrões habituais da região. Além de patrulharem muitas vezes com veículos, o que muitas vezes impede a reação a um caso de roubo ou furto, visto que os policiais não podem abandonar a viatura durante a perseguição. É comum ver uma dupla de policiais ou guardas civis metropolitanos parados ao lado de uma viatura estacionada, da qual dificilmente se afastam. Em alguns locais, especialmente em praças ou nos calçadões, é possível visualizar patrulhas a pé, porém é possível andar durante vários minutos sem avistar qualquer presença policial desse tipo. As bases móveis, que durante anos foram muito utilizadas pela PM paulista, praticamente foram extintas no centro. Uma reclamação de vários moradores e comerciantes entrevistados foi de terem dado queixa de um crime em andamento em uma dessas bases, onde o policial de plantão, na melhor das hipóteses, avisava outros policiais pelo rádio. Em alguns casos, dizia estar sem comunicação e que o queixoso devia ligar para 190 para reportar o crime. Na realidade, atuavam, como dizem muitos policiais, apenas como “vitrine”, uma propaganda visual da Polícia Militar. Quanto à Polícia Civil, ela mal sai das delegacias, limitando-se a registrar as queixas, registrar flagrantes e “tocar” inquéritos de autoria desconhecida. Em outras palavras, a investigação praticamente tem papel cada vez menor no dia a dia desses policiais.9 O que significa um problema no médio e no longo prazos, porque o maior obstáculo ao crime profissional é a investigação (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024).

A evolução do crime segundo o Estado

Até aqui, evidenciamos a complexidade da questão da Cracolândia para a cidade de São Paulo que, todavia, não se trata de um problema novo. As representações sociais sobre esse território e suas dinâmicas, nos termos que Maria Stela Grossi Porto (2010PORTO, M. S. G. Sociologia da violência: do conceito às representações sociais. Editora Francis. 2010.) as concebe, têm sido associadas à insegurança e ao medo da violência, e muito frequentemente são vistos como causa do cenário criminal que assola os paulistanos, sobretudo do ponto de vista dos crimes patrimoniais. Representações essas que aparecem tanto em falas de moradores ou transeuntes como até mesmo nos discursos de profissionais de segurança pública atuantes na região.

É evidente que o ponto de vista passado pelos órgãos de Secretaria de Segurança Pública não corresponde exatamente ao que percebe a população local; isto é, não é raro que a sensação de insegurança da população não corresponda plenamente a determinados indicadores criminais, assim como nem sempre os dados oficiais representam plenamente os fenômenos de vitimização criminal de determinada modalidade em um território e estão sujeitos, por diferentes razões, à subnotificação de registros administrativos (Costa, 2023COSTA, A. T. M. Segurança pública, redes e governança. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2023., p.216-49; Lima, 2005_______. Contando crimes e criminosos em São Paulo: uma sociologia das estatísticas produzidas e utilizadas entre 1871 e 2000. São Paulo, 2005. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.).

Um artigo de Caetano et al. (2020CAETANO, F. M. et al. Determinantes da cifra oculta do crime no Brasil. Uma análise utilizando os dados do PNAD 2009. Estud. Econ., São Paulo, v.50, n.4, p.647-70, out.-dez. 2020.) mostra que, a partir das cifras do PNAD 2009, foi possível constatar uma diferença de 10% entre a subnotificação dos roubos e dos furtos. Sendo a do primeiro crime de 66%, e a do segundo de 56%, em um indicativo de que a variável “violência”, que diferencia esses dois tipos penais, é um fator decisivo na opção pelo registro da ocorrência policial. Ou seja, crimes mais graves tendem a ser mais notificados do que crimes considerados menos graves e/ou significativos. Seja como for, o uso de estatísticas criminais produzidas a partir dos registros policiais é tido como a forma mais rápida e acessível de se mensurar e monitorar movimentos e tendências da criminalidade. Assim, como forma de mensurar a criminalidade percebida pela Secretaria de Segurança Pública utilizamos os dados oficiais produzidos por ela a partir dos boletins de ocorrência para formular a seguinte questão: se a Cracolândia e suas dinâmicas já são conhecidas, e o centro paulistano já passou por várias outras crises de segurança, por que agora ganha nova atenção?

Essa não é uma pergunta fácil de responder. Um fator a ser considerado é que o medo e a sensação de insegurança aumentaram mais do que os números apresentados pela Secretaria de Segurança Pública mostram. O Gráfico 1 demonstra a dificuldade de avaliar com exatidão a questão, pelo menos do ponto de vista policial. Nota-se, no entanto, um viés de alta nas ocorrências registradas de furto nos três DP, considerando o período pós-pandemia, entre 2021 e 2022.

Gráfico 1
Ocorrências de furto, por DP (2011-2022).

O Gráfico 1 mostra a evolução dos registros de furtos registrados nos últimos 12 anos nos três distritos policiais aqui selecionados para análise. Para o 77º DP, cuja área incluí a região da Cracolândia, evidencia-se a tendência menos acentuada, mas constante de crescimento nos registros de furtos. Nos outros dois distritos, o número registrado é inclusive menor que o de 2019, um ano antes da pandemia. Já o Gráfico 2, de roubos, mostra uma realidade diferente.

Gráfico 2
Ocorrências de roubo, por DP (2011-2022).

Uma informação evidente no Gráfico 2 é que, nos três distritos, houve um aumento substancial do número de roubos entre 2021 e 2022, com destaque para o crescimento observado no 3º Distrito Policial da Capital. Para que possamos aferir com maior precisão a questão, os Gráficos 3 e 4 mostram as ocorrências por semestre, a partir de 2018. A ideia é verificar se o pânico trazido na imprensa nos primeiros meses de 2023 estaria ancorado em um aumento substancial dos crimes patrimoniais no período ou se foi motivado apenas pelo noticiário mais constante sobre os casos, principalmente depois das invasões de estabelecimentos comerciais da região ocorridos em março de 2023.

Gráfico 3
Ocorrência de furto, por DP (1s 2018 - 1s 2023).

Nessa visão semestral, pode-se notar que os furtos se mantiveram mais ou menos constantes nos dois últimos semestres, no DP de Santa Cecília. Já em Campos Elíseos e Consolação, cresceram. Porém ainda distantes do recorde do início de 2019 (3º) e 2018 (4º).

Gráfico 4
Ocorrência de roubo, por DP (1s 2018 - 1s 2023).

Como os números de casos registrados demonstram, o comportamento da criminalidade aparentemente mudou. Enquanto o pico de furtos ficou no passado, embora o viés seja de alta nas ocorrências desde 2021 para o 3º e 4º DP. Já o número de ocorrências de roubo é mais impressionante. Apenas no 77º as ocorrências ficaram relativamente estáveis. Na área da Consolação subiram, para depois se manterem estáveis nos dois últimos semestres. E o 3º DP mostrou um crescimento muito acentuado, chegando a quase 4 mil casos no primeiro semestre de 2023. A disseminação da sensação de insegurança poderia estar associada mais intensamente ao medo de ser vítima de crime patrimonial, sobretudo roubo, que encontrou forte tendência de alta.

Enquanto um furto muitas vezes não provoca uma ida da vítima à delegacia para fazer um Boletim de Ocorrência, o roubo é mais frequentemente noticiado às autoridades (IBGE, 2022). Existem pelo menos dois motivos para o roubo normalmente ser denunciado, segundo os entrevistados que já foram vítimas. Um deles é que eles ficam mais indignadas quando são ameaçadas. O segundo é que em um furto comum, como descreveremos adiante, o indivíduo tem pouco tempo para visualizar o transgressor. Portanto, não consegue descrevê-lo com alguma exatidão para a autoridade policial. O registro de um furto vai depender do valor do bem subtraído, tanto em termos financeiros quanto em termos de impacto na vida das pessoas (documentos, bens segurados, entre outros).

O aumento de roubos também tem um significado mais preocupante. O de que os ladrões que antes apenas subtraíam um bem usando da velocidade ou habilidade, agora estão se armando ou juntando-se em quadrilhas/bandos para conseguir praticar o crime. Ou seja, o modus operandi está em transformação, e numa direção que provoca mais medo nos que circulam no centro paulistano, que é percepção do risco associado de aumento no número de latrocínios (roubo seguido de morte), numa região historicamente não caracterizada por esse tipo de ocorrência.

Tabela 1
Número de vítimas de latrocínio (1) Cidade de São Paulo, 3º DP Campos Elísios, 4º DP Consolação e 77º DP Santa Cecília - 1º semestre - 2019-2023.

Como demonstram os números, o latrocínio é bem raro nos três DP estudados, e, na Cracolândia, não foi registrado nenhum caso em cinco meses. Mesmo assim, o medo persiste, como veremos nos dados obtidos por meio das entrevistas ou da observação direta. No caso dos homicídios comuns, a situação muda para pior, com aumento dos registros desse tipo de crime. Embora não tenha tido um crescimento exponencial, a região contrasta claramente com o total do município, que decresceu 23% no período.

Tabela 2
Número de vítimas de homicídio doloso (1) (2) Cidade de São Paulo, 3º DP Campos Elísios, 4º DP Consolação e 77º DP Santa Cecília - 1º semestre - 2019-2023.

O 4º DP historicamente concentra menos ocorrências de homicídio doloso. Já no 77º DP, o pico ocorre no primeiro semestre de 2021, um período em que ainda estávamos em isolamento social devido à pandemia. E o 3º Distrito é o recordista, como ocorre em vários outros tipos de crime como latrocínios, furtos e roubos. De qualquer forma, a quantidade de casos é pequena, sendo seu recorde também no primeiro semestre de 2021. Como já referido, os crimes contra a vida, sobretudo os homicídios dolosos, historicamente tiveram sua maior concentração associada a regiões periféricas da capital e Região Metropolitana de São Paulo. Num ponto o Centro acompanha o resto da cidade, o do número de latrocínios estar muito abaixo de homicídios. Esses números estão mais relacionados com o de roubos, já que são uma consequência deles.

O modus operandi criminal

Nos três distritos policiais analisados, a forma de agir dos ladrões tem alguma semelhança, mas existem algumas peculiaridades que diferenciam a maneira de atuar dos ladrões que furtam ou roubam. O modus operandi dos criminosos descritos a seguir deriva, em sua maior parte, das entrevistas e observação. Porém podem ser encontrados exemplos da maioria deles nos dados de boletins de ocorrência disponibilizados pela SSP/SP.

Furto

Entre os casos de furto, especialmente de celular, se destacam quatro modalidades, segundo as entrevistas e o levantamento feito nos dados da Secretaria de Segurança Pública: ciclistas, velocistas, tapinha e janeleiro, que serão detalhados a seguir.10 10 Para cada tipo será indicado ao menos um exemplo de Boletim de Ocorrência registrado e disponibilizado pela ferramenta Sistema de “Monitoramento de Cenas de Uso”, da SSP/SP, indicada anteriormente.

Ciclistas11 11 BO FC8159 - 17.4.2023. - É uma modalidade que exige um grau razoável de destreza, porque implica em pedalar uma bicicleta, normalmente também objeto de furto, na contramão do tráfego de veículos, junto ao meio fio. Durante o trajeto a vítima é identificada rapidamente, normalmente por conta de ter o celular na mão e estar próxima da rua digitando. Em um átimo o ladrão arranca o celular da mão e dispara sem que o indivíduo lesado tenha tempo de tentar qualquer reação. A ideia de pedalar na contramão é para evitar perseguição de carro policial, ou de particulares.

Algumas vezes é possível identificar essas quadrilhas, de 3 a 5 membros devido a algumas peculiaridades: os tipos de bicicleta são dos mais diversos, de preços muito distintos, o que normalmente não ocorre com os ciclistas que andam em bando. Também é possível notar nessas gangs mudanças bruscas de velocidade sem motivo aparente. Um olhar atento ao redor veria que estão próximos a uma ou mais pessoas, possíveis alvos. Quando isso ocorre um deles se destaca e ataca rapidamente, enquanto os outros se desviam para o outro lado da via, passando pela vítima antes do autor do furto. Só mais tarde é que se reúnem para partilhar os despojos, passando-os para um receptador.

Velocistas12 12 BO FE3860 - 17.4.2023. - São normalmente jovens, a grande maioria do sexo masculino, que pegam os celulares num momento de descuido e saem correndo na direção que já estavam caminhando. Na maioria das vezes atuam sozinhos, mas também podem atuar em dupla, um dando cobertura ao outro, atuando como olheiro e esbarrando nas pessoas que tentam perseguir o colega, aumentando a confusão, mas demonstram sua cumplicidade.

Outra característica desse tipo de furto é que dificilmente ocorre quando as ruas estão mais vazias. A multidão sempre ajuda a fuga, disfarçando os movimentos do fugitivo. Um dos dois casos observados diretamente foi uma exceção, aparentemente havia três jovens operando juntos. A ação delituosa foi praticada por dois jovens, um esbarrando na mulher escolhida como alvo e outro subtraindo o celular. Aparentemente foram auxiliados por uma mulher de cerca de 30 anos de idade, que ficou no amontoado de espectadores, falando alto e apontando numa direção diferente da seguida pelos dois ladrões. Assim que uma dupla de PMs a cavalo chegou, ela se esgueirou no meio de multidão, seguindo na mesma direção que a dupla original. Um dos militares chegou a interpelá-la, mas ela respondeu algo não audível e foi liberada.

Tapinha13 13 Não foi possível obter dados de casos do nos dados disponibilizados pela SSP/SP. Aparentemente detalhes do tipo só são passiveis de registro no histórico registrado nos Boletins de Ocorrência. - São casos em que o dono da res furtiva resiste, segurando firme o celular e o disputando. Algumas vezes, se a situação persiste, ou o objeto cai no chão, o criminoso foge, evitando o amontoado que vai se formando e diminuindo o risco de ser detido. Outras vezes, porém, ele usa de violência, o chamado tapinha na mão da vítima, que com frequência larga o celular, surpresa com a ação. Isso não é tão comum, pois na maioria das vezes é desnecessário, a surpresa da ação é o suficiente. Outra circunstância a se levar em conta é que, num caso como esse o crime pode escalar de furto para roubo, pois o delegado, promotor ou juiz as vezes encara como uso da violência, portanto ação digna de uma pena maior.

Esse método não faz parte do modus operandi apenas dos velocistas, mas também dos que se esgueiram nas janelas dos veículos para furtar objetos. Como veremos a seguir.

Janeleiro14 14 BO FD9374 - 17.4.2023. - É um criminoso que atua com muita frequência nos semáforos da região, embora também ocorra em outras áreas da cidade. Sua forma de atuar é simples, o ladrão furta o celular, ou outro objeto deixado no banco dos veículos, esgueirando-se através de uma janela aberta, e corre na direção contrária ao fluxo dos veículos, sumindo de uma travessa da avenida onde atuou. O sentido inverso é mais raro, atuar na travessa e correr para a avenida, pois assim a fuga tende a chamar a atenção de um maior número de pessoas. Quando atuam numa rua menos movimentada o usual é, como em outras modalidades, correrem no sentido inverso ao trânsito.15

Uma variante ocorre quando o objeto cobiçado pelo ladrão está num veículo com os vidros fechados. Nesses casos o autor do delito quebra a janela do passageiro com uma pedra qualquer, possivelmente colhida no local, e aproveitando-se do estrondo e da surpresa que causa, furta e sai correndo antes que o motorista possa esboçar qualquer reação. Alguns taxistas residentes na região entrevistados disseram que não aceitam mais corridas que os obriguem a ficar parados no trânsito na região próxima à Avenida Duque de Caxias, mesmo mantendo a janela fechada, pois nesse caso o prejuízo é maior e o susto não permite qualquer ação em tempo útil. Dois falaram que já estão escolados o suficiente para perceber de longe atividades suspeitas, e quando veem um provável ladrão se aproximando põe o celular no chão e ficam espertos encarando o suspeito.

Roubo

Os roubos são normalmente praticados, como já mencionado, quando as ruas estão mais vazias, ou durante a noite. Assim como no caso dos furtos existem várias modalidades que puderam ser observadas nas entrevistas, reportagens e nos dados fornecidos pela SSP de São Paulo. Basicamente os mais empregados modus operandi de roubo são cinco.

  • 1 Intimidação de pessoas desprotegidas ou idosas.16 16 FC1785 - 17.4.2023. Como esse registro se deu na delegacia do Idoso, é possível supor que tenha sido feito por um, porém as vezes eles atendem também pessoas de todos os tipos. Existem muitos relatos desse tipo de abordagem da região, mas não nos dados da Secretaria de Segurança. Na maioria das vezes, os ladrões se aproximam da vítima e a ameaçam, muitas vezes sem qualquer tipo de arma. O mais comum é essa modalidade ser empregada por dois criminosos, sendo que há relatos envolvendo os nóias. Um caso menos comum foi coletado durante entrevista com uma dupla de policiais militares a menos de duas quadras do núcleo da Cracolândia; do fluxo. Durante a fala de um deles, um indivíduo se aproximou e noticiou que um senhor teria sido atacado por dois ladrões, mas conseguido tirar seu celular da mão de um deles. Então correu com os dois em sua cola. E disse que tinha certeza de que eram nóias porque um deles corria atrás da vítima com um cobertor amarrado no pescoço, como se “fosse a capa do Super-Homem”, completou.

  • 2 Grupo de ladrões. Grupo que cerca alguém e o obriga a dar seus bens. Algumas vezes essa modalidade ocorre em lugares com muitos transeuntes, que nem reparam (ou fingem que não) no fato ou ficam só observando de longe. A vítima muitas vezes é cercada em um local mais ermo, ou mesmo em frente a uma loja que está com as portas fechadas. Algumas pessoas foram roubadas em locais muito frequentados, como os calçadões, ou até mesmo a Avenida Paulista, onde o policiamento é muito mais constante. Supostamente os ladrões contam com olheiros para avisar da aproximação da polícia, ou para interferir caso alguém tente auxiliar a vítima. Aliás esse é o principal motivo que alguns alegam para não ajudar, pois correriam risco de serem esfaqueados, agredidos. Já a vítima que se vê cercada usualmente é agredida com tapas e chutes. Existem relatos de indivíduos que foram deixados nus na rua, durante a noite, em um desses ataques. Nos episódios conhecidos, o número de ladrões varia de três a sete.

  • 3 Arma branca,17 17 FC 1556 - 17.4.2023. normalmente estilete. Essa variedade pode ser praticada por uma ou mais pessoas. As ocorrências são muito parecidas com a dos casos anteriores, já que procuram pessoas que pareçam mais indefesas, portanto, com menor possibilidade de ter de usar a arma. Depois do crime, as armas são escondidas ou entregues para cúmplices, para não propiciar prova material caso apreendidos pela polícia. Atualmente não é usual os ladrões andarem com essas armas nos bolsos nos locais próximos ao centro por conta do incremento do policiamento após os eventos que mencionamos no início do texto, as invasões feitas por nóias em dois locais de comércio próximos a região da antiga “Boca Lixo”.

  • 4 Arma de fogo. 18 18 FE 1858 - 18.4.2023. Não é muito comum, porém existem casos de roubo armado a transeuntes e lojas.19 19 Entre os entrevistados, apenas três disseram ter presenciado um roubo a mão armada, já nos casos de furto existem muitas testemunhas. Já o roubo por grupo, intimidação e arma branca conseguimos 17 pessoas afirmam ter testemunhado pelo menos uma ocorrência. Um número maior teria ouvido da própria vítima. Quanto ao “ouvi dizer” genérico quase todos os entrevistados disseram ter ouvidos algum caso de roubo a mão armada, mas poucos conseguem determinar os fatos com mais precisão, onde, quando e quem. A única exceção, ouvido durante uma conversa rápida, que disse que é tudo exagero da imprensa, foi um taxista antigo, cujo ponto fica perto da Praça da República. Um deles é o roubo em lojas,20 20 FC8212 - 17.4.2023. que muitas vezes ocorre quando essas estão para fechar. Dos quatro casos do tipo que foram revelados pelos entrevistados, um deles foi feito por três indivíduos, os outros por dois. Em uma ocorrência específica, narrada por uma atendente de loja vizinha a dos fatos, dois ladrões armados atacaram uma loja de doces na área do 3º Distrito. Eles entraram por volta das 18h30, fecharam as portas, ameaçaram as duas atendentes limparam o caixa e saíram, tudo em menos de 5 minutos, demonstrando profissionalismo. Essa loja, especializada em chocolates, antes do crime fechava às 19 horas, mas depois do evento mudou para as 18 h. No que foi seguida pela maioria do comércio próximo.

  • 5 Mata Leão,21 21 Não conseguimos identificar exemplo dessa modalidade pelos dados disponibilizados pela SSP/SP, mas esta foi citada em diversas entrevistas. aplicado por dois ou mais criminosos. Nessa modalidade, também com maior aplicação nos locais com menos transeuntes ou possíveis testemunhas, um indivíduo chega por trás do alvo e o imobiliza com esse golpe.22 22 Técnica de estrangulamento em que o atacante usa ambos os braços e mãos em volta do pescoço do oponente para imobilizá-lo. Se usado ao extremo pode provocar desmaio ou mesmo a morte. Enquanto isso o cumplice retira carteira, celular, bolsa ou mochila do infortunado. Apesar da necessidade de técnica e alguma força, a prática dessa modalidade atraiu certos nóias que tentam dessa forma suplementar ganhar mais dinheiro para as pedras.

Essas modalidades de furto e roubo não contemplam todas as ocorrências, mas descrevem a maioria delas. É relevante lembrar que, como sempre, o crime está sempre mudando, já que os profissionais percebem quando uma modalidade proporciona mais lucros e menor risco. O importante, para este artigo, foi mostrar que a multiplicidade de modus operandi problematiza esquemas de causalidade entre as diferentes variáveis que compõem o cenário urbano da região e que não há, necessariamente, uma explicação única para as dinâmicas que inseriram a Cracolândia no debate mais geral sobre rumos e sentidos da segurança pública.

Deslocamentos político-institucionais na segurança pública

O presente artigo teve por objetivo, até aqui, descrever as dinâmicas socioespaciais associadas à assunção da combinação entre a Cracolândia, crescimento dos crimes patrimoniais e narcotráfico, sobretudo a partir das diversas mudanças da localização do “fluxo”, como é conhecida a concentração de usuários de drogas a céu aberto, e que estão conectadas com a forma como as políticas públicas municipal e a estadual foram sendo formuladas e implementadas a partir de 2007, ano que marca a grande intervenção na região por parte da prefeitura de São Paulo, intervenção essa que, estruturada a partir da dispersão dos usuários, parece ter inaugurado não só uma nova abordagem política, porém parece lançar os alicerces de uma nova forma de compreensão do fenômeno.

E é sobre esse deslocamento que essa parte final se debruçará. Ao que tudo indica, a redução dos homicídios na cidade e o crescimento dos crimes patrimoniais atualizaram a narrativa corrente de parcela da sociedade de que vê no crime organizado em torno das drogas razão suficiente para a manutenção da “guerra às drogas” e aceitação da separação da sociedade entre “bandidos” e “cidadão de bem” (Lima, 2019_______. Segurança Pública como Simulacro de Democracia no Brasil. Estudos Avançados, v.33, p.53-68, 2019.). Mas, mais do que isso, relembrando o que dissemos no início deste texto, de que a organização da vida social se produz através de inúmeras disputas e conflitos, a Cracolândia se constitui empiricamente num caso emblemático de como a intervenção institucional constrói as referências de sentido para a ação de pessoas e grupos. O que os dados e relatos até aqui tratados revelam é que a combinação dos efeitos da ação pública na Cracolândia, do peso que a região tem no mercado das drogas ilícitas no Brasil,23 com o movimento dos crimes patrimoniais tem servido com eixo estruturador de representações sociais que reforçam o medo e a insegurança como insumos fundamentais das novas formas de sociabilidade da vida na metrópole.

O material empírico aqui reunido demonstra que, no limite, ganha tração no imaginário social a ideia de que os viciados que antes ficavam circunscritos à região da “boca do lixo”, passaram, diante da repressão e dispersão policial, a circular pelo Centro da Cidade como zumbis (mortos vivos, nas palavras de policiais ouvidos em reportagens e na pesquisa) sob o domínio e a serviço do crime organizado para o cometimento crescente de crimes patrimoniais. Os homicídios, como efeitos da expansão do narcotráfico, estavam territorialmente localizados, em sua grande maioria, na periferia e não mobilizavam a sociedade paulistana como um todo. A partir da redução de tais ocorrências, no começo da década de 2000, o crescimento dos crimes patrimoniais, que afetaria a todos, passa a ocupar posição de destaque entre as preocupações da sociedade. A questão, contudo, é que muda o referente empírico, mas não muda a força da narrativa de que a droga é a principal causa da violência criminal em São Paulo. E, nesse processo, a Cracolândia surge como uma das “causas” dessa nova configuração da criminalidade e, sobretudo, serve para que as instituições de segurança pública possam diluir responsabilidades sobre o controle do crime. Ao fazerem isso, elas trazem para o debate outras esferas de governo e outras instituições, mas mantêm a prerrogativa de definirem o enquadramento discursivo sobre como o tema será tratado, já que são elas que deteriam a legitimidade primeira para lidar com crime e violência (Adorno; Alvarado, 2022ADORNO, S.; ALVARADO, A. Criminalidade e a governança de grandes metrópoles na América Latina: Cidade do México (México) e São Paulo (Brasil). Revista Dilemas - IFCS-UFRJ, v.15, p.79-115, 2022.).

Dito de outra forma, o que antes, com os homicídios, era um problema de administração de conflitos de natureza criminal passa, agora, a ser um problema que reúne aspectos criminais, urbanos e de saúde pública, não reduzíveis à pauta exclusivamente policial. Novos atores ganham destaque, a começar pelo papel das guardas municipais. Mas os efeitos do narcotráfico continuam a ser o referente histórico e de continuidade a explicar a recombinação das variáveis que agora fortalecem o engajamento dos municípios na segurança pública. Tanto que, no debate atual, quase todas as questões associadas passam pela ação das Guardas Municipais, que cresceram cerca de 35% entre 2013 e 2023 no país todo, e só em alguns casos o tema da prevenção da violência e redução de vulnerabilidades ganha destaque (Lima, 2022LIMA, R. S et al. Saber acadêmico, guerra cultural e a emergência das ciências policiais no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v.37, p.e3710805 2022-21, 2022.; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024).

Em conclusão, o presente artigo abre algumas frentes de pesquisa que precisam ser mais bem exploradas e trabalhadas. Não há respostas definitivas. Entretanto, o texto permite tomar a disputa de sentido e impacto da combinação de variáveis criminais, urbanas e de saúde pública na região da Cracolândia como um microcosmo das disputas políticas que estão postas para o debate eleitoral das próximas eleições, na ideia proposta por Simmel (1955SIMMEL, G. Conflict and the web of group affiliations. Glencoe: The Press of Glencoe, 1955.) de reconhecer que os conflitos permitem montar o cenário no qual serão definidos os limites de regulação da sociedade e as esferas públicas de mediação e resolução de litígios. Vinte quatro anos depois, é possível visualizar na região da Cracolândia uma versão atualizada da hipótese proposta por Lima (2000LIMA, R. S. Conflitos sociais e criminalidade urbana: uma análise dos homicídios cometidos no Município de São Paulo em 1995. São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p.14), em sua dissertação de mestrado sobre os homicídios cometidos em São Paulo no ano de 1995. Nela, o autor defende que a população de São Paulo estaria convivendo com o que ele denominou falência gerencial da cidade e, consequentemente, o imaginário coletivo encontrava na paisagem urbana de São Paulo e na realidade dos homicídios da época os elementos necessários para o exacerbamento do medo e da insegurança e para a transformação e ruptura dos laços de sociabilidade.

Em 2024, os crimes patrimoniais teriam ocupado a posição dos homicídios, mas as demais condições socioespaciais e institucionais que influenciam na agenda da segurança pública seriam os mesmos, num indicativo de que os deslocamentos políticos-institucionais ocorridos na segurança pública nas últimas duas décadas não foram suficientes para garantir o direito social constitucional à segurança (art 6, da Constituição Federal). A questão que fica, para encerrar, é se o novo protagonismo dos municípios na segurança pública será acompanhado por reformas na arquitetura institucional e nas culturas organizacionais das forças de segurança pública e/ou se é só uma forma de dissipar demandas e pressões sociais por justiça social, prevenção da violência e cidadania. Diante dessa indagação, decifrar a esfinge da segurança pública ainda é um desafio arriscado e violento para parcelas significativas da população, ainda mais em um tempo social de “guerra cultural”, como bem destacaram Lima et al. (2022LIMA, R. S et al. Saber acadêmico, guerra cultural e a emergência das ciências policiais no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v.37, p.e3710805 2022-21, 2022.).

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  • MAGALHÃES, T. R. P. Campos de disputa e gestão do espaço urbano: o caso da “Cracolândia” paulistana. São Paulo, 2015. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
  • MANSO, B. P. Crescimento e queda dos homicídios em SP entre 1960 e 2010: uma análise dos mecanismos da escolha homicida e das carreiras no crime. São Paulo, 2012. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
  • MARIANO, B. D. Por um Novo Modelo de Polícia no Brasil: A inclusão dos Municípios no Sistema de Segurança Pública. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
  • MARINO, A. et al. Impactos da dispersão da Cracolândia: balanço dos velhos e novos conflitos no centro de São Paulo. LabCidade [online], 22.12.2022. Disponível em: <https://www.labcidade.fau.usp.br/impactos-da-dispersao-da-cracolandia-balanco-dos-velhos-e-novos-conflitos-no-centro-de-sao-paulo/>.
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  • MINGARDI, G. Tiras Gansos e Trutas. São Paulo: Scritta, 1992.
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  • SIMMEL, G. Conflict and the web of group affiliations. Glencoe: The Press of Glencoe, 1955.

Notas

  • 1
    Segundo Fiore (2013, p.104), o crack, criado nos Estados Unidos na década de 1970, pode ser definido como um subproduto da pasta-base da cocaína, com aparência semelhante a um fragmento de pedra. Assim, sua ação neuroquímica se assemelha à da cocaína, pois consiste na mesma substância manipulada de outra maneira, por meio do fumo: “Posto num cachimbo ou numa outra superfície metálica, como latas vazias de bebida ou papel laminado preso a um copo, é queimado junto às cinzas de tabaco, o que faz que o seu cheiro intenso fique ainda mais desagradável, ao menos para quem não gosta de fumar”.
  • 2
    Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/03/11/seguranca-e-o-principal-problema-para-moradores-da-cidade-de-sp-diz-datafolha.ghtml>.
  • 3
    Aqui, há que notar a questão do pacto federativo. Tradicionalmente, segurança pública é vista como tarefa essencialmente estadual, pois esse ente federativo é constitucionalmente o responsável pela maior parte das instituições policiais brasileiras, sendo as Polícias Militares e Polícias Civis. No entanto, o debate especializado há muito chama atenção para 3 fatos: i) segurança pública não é apenas tarefa de polícia, isto é, a política de segurança deve combinar ações repressivas qualificadas com ações preventivas de natureza multidisciplinar (Lima et al., 2016); ii) a necessidade de protagonismo do governo federal para a devida coordenação do Sistema Único de Segurança Pública (Peres; Bueno, 2013); iii) os municípios devem ter papel importante nas políticas de segurança (Mariano, 2004).
  • 4
    Segundo Peres et al. (2011, p.18), a partir de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), a taxa de mortalidade por homicídio sofreu uma queda de 65,0% entre 1999 e 2007 no estado de São Paulo, e, na cidade de São Paulo, a redução foi de 74,0%.
  • 5
    Os dados foram consolidados a partir da sistematização da área “Ocorrências registradas por mês”, disponível na página da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, por período e região. A consulta dos dados ocorreu entre os meses de agosto e novembro de 2023. Cabe ressaltar que as datas de referência serão indicadas junto às tabelas e gráficos, tendo em vista a possibilidade de alteração dos quantitativos, devido ao processo de atualização contínua das estatísticas no site. Disponível em: <https://www.ssp.sp.gov.br/estatistica>.
  • 6
    Disponível em: <https://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/sistema-monitoramento-cenas-abertas>.
  • 7
    As entrevistas formais foram assim distribuídas: 6 comerciantes, 14 comerciários, 2 jornaleiros, 9 moradores, 4 vítimas de roubo ou furto, e 2 policiais civis. Já as entrevistas informais incluem 12 policiais militares, 2 policiais civis, 25 transeuntes, 5 vítimas de roubo ou furto, 3 pessoas em situação de rua, 7 trabalhadores de escritórios na região, 2 assistentes sociais e 5 seguranças privados. Como praticamente todas estas interlocuções foram realizadas na rua, em poucos casos foi possível utilizar o gravador.
  • 8
    Categoria nativa utilizada por diversos entrevistados durante a pesquisa. Segundo Gomes e Adorno (2011, p.581), o sujeito “nóia” define-se como “aquele que está no nível mais baixo, carregando um grande estigma de alguém sem controle e sem limites em sua busca de uso do crack, não sendo confiável nem para os outros usuários. A categoria de ‘noia’, extremamente estigmatizada, em muitas situações leva o usuário a um exílio, impedindo-o de retornar à sua região de pertencimento, por conta de problemas ali. Quando passam a ser vistos como ‘noias’, em algum momento são levados a buscar outro espaço”. O termo será grafado em itálico neste texto.
  • 9
    Para uma discussão acerca das dificuldades enfrentadas pelas Polícias Civis no Brasil, tanto do ponto de vista de efetivos quanto do ponto de vista de produtividade no que se refere à investigação criminal, entre outros aspectos relevantes do tema, ver Raio-X das instituições de segurança pública do Brasil (2024).
  • 10
    Para cada tipo será indicado ao menos um exemplo de Boletim de Ocorrência registrado e disponibilizado pela ferramenta Sistema de “Monitoramento de Cenas de Uso”, da SSP/SP, indicada anteriormente.
  • 11
    BO FC8159 - 17.4.2023.
  • 12
    BO FE3860 - 17.4.2023.
  • 13
    Não foi possível obter dados de casos do nos dados disponibilizados pela SSP/SP. Aparentemente detalhes do tipo só são passiveis de registro no histórico registrado nos Boletins de Ocorrência.
  • 14
    BO FD9374 - 17.4.2023.
  • 15
    Crimes do tipo foram relatados por testemunhas, taxistas e motoristas de aplicativos que foram vítimas do furto, mencionados nos boletins de ocorrência da Polícia Civil, e objeto de observação direta em apenas um caso, ocorrido num cruzamento embaixo do Minhocão.
  • 16
    FC1785 - 17.4.2023. Como esse registro se deu na delegacia do Idoso, é possível supor que tenha sido feito por um, porém as vezes eles atendem também pessoas de todos os tipos.
  • 17
    FC 1556 - 17.4.2023.
  • 18
    FE 1858 - 18.4.2023.
  • 19
    Entre os entrevistados, apenas três disseram ter presenciado um roubo a mão armada, já nos casos de furto existem muitas testemunhas. Já o roubo por grupo, intimidação e arma branca conseguimos 17 pessoas afirmam ter testemunhado pelo menos uma ocorrência. Um número maior teria ouvido da própria vítima. Quanto ao “ouvi dizer” genérico quase todos os entrevistados disseram ter ouvidos algum caso de roubo a mão armada, mas poucos conseguem determinar os fatos com mais precisão, onde, quando e quem. A única exceção, ouvido durante uma conversa rápida, que disse que é tudo exagero da imprensa, foi um taxista antigo, cujo ponto fica perto da Praça da República.
  • 20
    FC8212 - 17.4.2023.
  • 21
    Não conseguimos identificar exemplo dessa modalidade pelos dados disponibilizados pela SSP/SP, mas esta foi citada em diversas entrevistas.
  • 22
    Técnica de estrangulamento em que o atacante usa ambos os braços e mãos em volta do pescoço do oponente para imobilizá-lo. Se usado ao extremo pode provocar desmaio ou mesmo a morte.
  • 23
    Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, de 2021, a Polícia Paulista estimou em R$ 200 milhões de reais o lucro do narcotráfico com a Cracolândia, sendo que o quilo do Crack estaria sendo vendido a um preço mais de 50% ao da Cocaína. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/06/pcc-lucra-mais-com-crack-na-cracolandia-de-sp-do-que-com-cocaina-em-higienopolis.shtml>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2024
  • Aceito
    20 Jun 2024
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