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A economia política da urbanização: uma reinterpretação à luz das eleições municipais

RESUMO

O presente artigo elabora uma revisão crítica do conhecimento acumulado sobre o papel da urbanização na história e suas transformações na contemporaneidade. Destacamos o essencial desses estudos para explicar e transformar o presente e projetar o futuro não apenas das cidades, mas do conjunto do planeta, com o qual elas em grande parte se identificam. Em seguida, transpomos essa linha de raciocínio para o Brasil e a Região Metropolitana de São Paulo, identificada como síntese das principais mudanças ocorridas no país desde o final do século XIX. Por fim, consolidamos as reflexões prévias numa massa crítica provisória de concepções e possíveis linhas de ação, chamando a atenção das potencialidades e limites do ativismo urbano. Nas considerações finais sintetizamos os raciocínios anteriores, abordando as eleições municipais brasileiras de 2024, oportunidade de rever opções programáticas e contextualizar alternativas.

PALAVRAS-CHAVE:
Economia geográfica; Escalas espaciais; Metrópole de São Paulo; Política urbana; Eleições municipais; Sistema-mundo capitalista

ABSTRACT

This article presents a critical review of the accumulated knowledge about the role of urbanization in history and its transformations in contemporary times. We highlight the essentials of these studies to explain and transform the present and project the future, not only of cities, but of the planet as a whole, with which they largely identify. We then transpose this line of reasoning to Brazil and the metropolitan region of São Paulo, identified as a synthesis of the main changes that have occurred in the country since the end of the 19th century. Finally, we consolidate previous reflections into a provisional critical mass of conceptions and possible lines of action, drawing attention to the potential and limits of urban activism. In the final considerations we summarize the previous reasoning, addressing the municipal elections of 2024 in the country as an opportunity to review programmatic options and contextualize alternatives.

KEYWORDS:
Economic geography; Spatial scales; Metropolis of São Paulo; Urban politics; Municipal elections; Capitalist world-system

Introdução

No brasil, o campo da economia geográfica (economic geography, em inglês) não tem merecido a atenção devida de nossos acadêmicos. E isso num país notabilizado por sua extensão continental e ampla diversidade regional. Por contraste, os historiadores econômicos brasileiros clássicos fizeram uso qualificado de um vasto conhecimento geográfico integrado às suas análises da formação e dos fundamentos constitutivos da brasilidade. Isso, de certa forma, se perdeu com o tempo, na medida em que a economia foi se amoldando às conveniências tecnocráticas do status quo. O escopo de estudos da economia geográfica parte da constatação de que, desde a emergência da civilização, “atividades humanas e padrões de vida têm sido desigualmente distribuídas tanto entre continentes quanto entre seus territórios” (Combes et al., 2008COMBES, P.-P.; MAYER, T.; THISSE, J.-F. Economic geography: the integration of regions and nations. Princeton; Oxford: Princeton University Press, 2008., p.36; tradução nossa), e busca descobrir causas e implicações do fenômeno. Nada mais atual e necessário para o discernimento do que fazer em face da diferenciação social e territorial brasileira.

No presente artigo, buscamos discutir uma temática que vai muito além das preocupações imediatas com o presente e o futuro de São Paulo e do Brasil. Trata-se de um ensaio crítico que pretende, ambiciosamente, passar em revista parte do conhecimento acumulado sobre o núcleo explicativo da urbanização ao longo da história mundial e suas transformações na contemporaneidade. Destacamos o que se constitui, para nós, no essencial desses estudos para explicar e transformar o presente e projetar o futuro, não apenas das cidades e suas macrorregiões, mas do conjunto do planeta, com o qual elas em grande parte se identificam. Tal constitui-se o propósito central da primeira seção do artigo.

Em seguida, transpomos essa linha de raciocínio para o Brasil e a Região Metropolitana de São Paulo, identificada aqui como microcosmo e síntese das principais mudanças ocorridas no país desde o final do século XIX. O propósito é sempre destacar as insuficiências de grande parcela das visões sobre o urbano como leitmotif das transformações sociais. Isto é, permeia nossa interpretação a consideração política dos processos em curso e a identificação dos vetores determinantes desses acontecimentos históricos.

Por fim, na última seção buscamos enfeixar as reflexões prévias numa massa crítica provisória de concepções e possíveis linhas de ação. Em suma, chamar a atenção das potencialidades e dos limites do ativismo urbano.

Nas Reflexões finais sintetizamos os raciocínios anteriores, abordando, de forma indireta, as eleições municipais no país - oportunidade de rever opções programáticas -, postulações que sabemos ousadas e provocativas, no bom sentido de suscitar o debate.

O espaço, a economia e a política: vetores fundamentais da socialização

Uma dimensão constitutiva original (em filosofia, chamamo-la esfera ontológica, isto é, a substância da existência) do próprio ser social, sem cuja explicação nossas premissas estariam perigosamente incompletas, consiste no espaço, no ambiente de vida que moldou o advento dos primeiros seres humanos, e continua determinando nossa atividade ao longo de toda a evolução humana. Essa dimensão, do ponto de vista cronológico, antecede mesmo (é condição para) a afirmação das capacidades de produção da vida material e dos conflitos pelo poder, que se constituem nos dois outros elementos da nossa tríade civilizatória, expressa no triângulo equilátero da Figura 1. Assim, economia, política e espaço são os pilares essenciais e determinantes da vida e da história humanas, fatores explicativos seminais das nossas realizações ao longo do tempo. Essa tría- de constitui-se na premissa da análise que empreenderemos no presente texto.

Figura 1
Fundamentos da civilização.

O espaço é por natureza relacional, produto de interações contínuas, esfera da pluralidade e da heterogeneidade e permanentemente em mudança. Desse modo, sempre que houver multiplicidade haverá espaço, e o desafio colocado pela revolução digital contemporânea pode ser mais bem traduzido em termos de quais novos tipos de configurações espaciais serão estabelecidos (Massey, 2005MASSEY, D. For space. London: Sage Publications, 2005.; tradução nossa).

O espaço constitui-se, assim, na base sobre a qual construímos nossas vidas (e de todos os seres orgânicos e inorgânicos). A diferença é que nós, humanos, desenvolvemos, por uma série complexa de mutações biológicas, a capacidade reflexiva de pensar o resultado de nossas ações e aperfeiçoá-las, num processo desigual, errático, mas progressivo ao longo do tempo. Criamos história, sofisticamos nossa base produtiva, geramos excedentes sistemáticos, cindimos as sociedades humanas em grupos com acesso desigual a esses excedentes e elaboramos um organismo especial para garantir a dominação dos poderosos: o Estado. Assim, sob o comando de uma progressiva capacidade de controle sobre as forças naturais, passamos a produzir nosso próprio ambiente, submetendo as forças naturais aos desígnios humanos, vivendo numa geografia pautada pelo “ambiente construído”.

Embora o tempo e o espaço sejam considerados, pela física teórica atual, realidades mutuamente condicionadas, Harvey (2006HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2006., p.145) pontua que, do ponto de vista abstrato, o espaço “possui propriedades mais complexas e específicas do que o tempo. É possível reverter o campo do espaço, e mover-se em diversas direções através dele, enquanto que o tempo simplesmente passa, e é irreversível. [...] O espaço geográfico é sempre o domínio do concreto e do específico”.

Porém, como estabelece Massey (2007_______. World city. Cambridge, UK: Polity Press, 2007., p.167; tradução nossa):

Se o espaço é conceitualizado relacionalmente, como produto de práticas e fluxos, engajamentos, conexões e desconexões, como o resultado constantemente reproduzido e alterado de mutáveis relações sociais, então os lugares devem ser entendidos como específicos nódulos, articulações, no interior dessa mais ampla geometria de poder.

Milton Santos (2000SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000., p.112) define com precisão a particularidade do lugar inserida nos marcos interativos das diferentes escalas espaciais:

O mundo, como um conjunto de essências e de possibilidades, não existe para ele próprio, e apenas o faz para os outros. É o espaço, isto é, os lugares, que realizam e revelam o mundo, tornando-o historicizado e geografizado, isto é, empiricizado. [...] [os lugares] são singulares, mas são também globais, manifestações da totalidade-mundo, da qual são formas particulares.

Consolidadas essas premissas, chegou a hora de nos atermos às características centrais do urbano, como se definiram ao longo da história e como devem ser entendidas na atualidade. Podemos afirmar preliminarmente algumas propriedades que se constituem hoje na razão de existência da cidade do ponto de vista estrutural. Primeiro, sua função econômica: a cidade é, sobretudo, um espaço produtivo. Ligado a essa função, o tamanho de seu mercado de trabalho. Vinculada à necessidade de controlar a função produtiva, surge a dimensão política da cidade, o que traz na sua trilha o desenvolvimento de suas funções culturais. Podemos agregar aqui que as cidades sempre constituíram polos de recepção e irradiação de múltiplos estímulos regionais e que as determinações mais importantes de sua existência estão ligadas a escalas mais amplas que o urbano (local), em constante interação.

Tais generalidades, contudo, servem para continuar nos aproximando do que realmente define e particulariza o fenômeno urbano. As dinâmicas de aglomeração e proximidade têm um papel essencial nesse reconhecimento. Krugman já apontava esse fenômeno numa crítica contundente ao mainstream econômico da época (cujos preceitos persistem em boa medida até nossos dias), que abstraíam de seus modelos explicativos a localização das atividades produtivas. Afirmava então: “[...] qual é o mais impressionante aspecto da geografia da atividade econômica? A resposta mais curta é claramente sua concentração” (Krugman, 1991, p.5; grifo no original; tradução nossa).

Por sua vez, o fenômeno urbano é o “nó” decisivo nessa trama relacional. Assinala (grosso modo) a passagem de uma economia até então pautada por vínculos de parentesco na direção de uma sociedade sistematicamente produtora de excedentes e de estruturas de poder permanentes (o Estado). Portanto, marca uma mudança de qualidade na evolução civilizacional. A dinâmica urbana “criativa”, as economias de aglomeração e seu aspecto sistêmico são ressaltados por Scott (2017SCOTT, A. J. The constitution of the city: economy, society, and urbanization in the capitalist era. Los Angeles: Palgrave Macmillan, 2017.) como a característica distintiva dos núcleos urbanos ao longo da História. O autor denomina essa característica distintiva como o “nexo da terra urbana” (urban land nexus), isto é, “um conjunto de locações interrelacionadas formando uma estrutura compósita e ancorada geograficamente por forças de aglomeração” (Scott, 2017, p.23; tradução nossa). A vibração e o dinamismo que essas forças produzem constituem poderosas articulações da vida social e da ordem coletiva (ibidem, p.230), o que particulariza o fato urbano contemporâneo. Sua diversidade constitui-se numa das mais relevantes forças de aglomeração, carregada de significados materiais e simbólicos, e permeada pelas contradições vivas da cidade capitalista, com suas disputas por localizações e usos da terra urbana.

Assim, a urbanização é motivada e simultaneamente põe em marcha dinâmicas temporais e espaciais impulsionadas por economias de proximidade, escala e especialização. Por sua vez, importa notar que, não obstante o desenvolvimento urbano resultar da centralização do capital produtivo e de serviços, sua diferenciação interna se explica pela divisão entre esse e outros usos do solo, sendo administrada por meio do sistema de renda fundiária (ground-rent system) (Smith, 2008SMITH, N. Uneven development: nature, capital, and the production of space. Athens, US: The University of Georgia Press, 2008., p.184; tradução nossa). O que se casa com a concepção de “nexo da terra urbana”, de Scott, visto anteriormente. Ambas as conceituações trazem subjacente os conflitos sociais que arranjos dessa natureza acarretam.

Assentadas desse modo as bases da espacialização da atividade humana e sua concentração, mediante processos cumulativos de urbanização na história, passemos agora para a recuperação sintética dos processos mais importantes que o Brasil vivenciou a partir de finais do século XIX, exemplificados pela mudança das funções que a cidade de São Paulo e seu entorno incorporaram durante esse período. Nosso propósito na seção seguinte é compreender em linhas gerais o movimento da economia-mundo no tempo e no espaço brasileiros, as configurações específicas que se criaram e o papel ativo de São Paulo nessa dinâmica.

Brasil e São Paulo: trajetória econômica e urbana

No último quarto do século XIX, o mundo vive um conjunto de transformações de grande envergadura, conhecidas como a II Revolução Industrial. Mudanças caracterizadas pelo surgimento da grande indústria mecanizada (os primórdios da automatização), o papel da ciência comandando a produção, os novos paradigmas tecnológicos - aço, eletricidade, petróleo -, os monopólios minando os princípios da “livre concorrência”, a gerência científica do trabalho (taylorismo) e a produção em série (fordismo). Seus protagonistas foram os Estados Unidos e a Alemanha.

No Brasil, o advento da República começa a alterar nossa estagnação secular e abrir as portas para os novos ares do mundo. Podemos dividir em três macroperíodos as etapas de evolução nacional desde então (Gaspar, 2022GASPAR, R. C. Economia brasileira: as veias continuam abertas. Nossa América, n.59. São Paulo: Memorial da América Latina, 2022.).

1º macroperíodo: a transição republicana (“República Velha”)

A chegada em massa dos imigrantes a partir da última década do século XIX altera radicalmente a dimensão do mercado interno no Brasil, dispara a circulação monetária e rompe o principal bloqueio às relações capitalistas no país, com a constituição do mercado de trabalho.

A rentabilidade do café garante o reinvestimento do lucro na expansão da área plantada, potencializando o desajuste entre oferta e demanda. A política de estoques de café, adotada a partir do início do século XX, atenua, mas não resolve, esse risco. Por sua vez, a rentabilidade dos cafezais permite o transbordamento dos lucros para outras atividades, nas quais a indústria - sobretudo na capital paulista - surge como setor em ascensão.

A vida urbana nas cidades brasileiras do núcleo dominante da economia e da política - São Paulo e Rio de Janeiro - se enche de dinamismo e assume crescente caráter antioligárquico.

Associado indiretamente à era de crise - duas guerras mundiais, a Revolução Russa e a Grande Depressão de 1930 -, a insatisfação política cresce no Brasil e desemboca na Revolução de 1930. Por seu turno, a queda abrupta do comércio mundial acarretou o colapso cambial dos países primário-exportadores, como o nosso. Nesse período, São Paulo assume a primazia econômica entre as cidades brasileiras, ao se constituir no polo logístico da economia cafeeira nas suas fases mercantil-escravista nacional e exportadora capitalista (Cardoso de Melo, 1982), bem como o lócus dos primeiros e decisivos estágios da industrialização brasileira.

2º macroperíodo: etapa nacional-desenvolvimentista (1930-1980)

Décadas de transformação estrutural deliberada marcaram a periferia global no pós-guerra, com os Estados nacionais comandando a busca por caminhos autônomos para seus países. A industrialização foi o instrumento dessas mudanças. No Brasil, a decisão do novo governo pós-1930 de bancar as colheitas invendáveis de café protegeu a renda interna e promoveu o famoso “deslocamento do eixo dinâmico da economia”, de que falava Celso Furtado (2007FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.), do mercado externo para o mercado interno, fomentando a urbanização e a industrialização nacional subsequentes.

Após a constituição de grandes empresas públicas de base industrial, da organização do mercado de trabalho e da modernização do setor público promovidas nos dois governos de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954), o Plano de Metas (1956-1960) e, já na vigência da ditadura militar, o “milagre econômico” (1968-1973) e o II Plano Nacional de Desenvolvimento-PND (1976-1979) prosseguiram, sob distintas molduras institucionais, os objetivos de industrializar o país, resultando numa estrutura produtiva complexa e diversificada ao fim do período. São Paulo comanda essa alavancagem econômica, no Plano de Metas e no “milagre econômico”. A cidade industrial de padrão taylorista-fordista deu origem a um desenho metropolitano caracterizado pelo rodoviarismo, pelos bairros proletários, pelos serviços correlatos à industrialização e pelo primado do tempo mercantilizado capitalista.

A partir dos anos 1960, sérias turbulências no cenário global apontavam para o fim do ciclo virtuoso das reformas do pós-guerra e o declínio do poder norte-americano, ameaçado por revoltas e governos nacionalistas, no mundo e na América Latina. Os Estados Unidos reagiram, a partir de 1989, com a elevação dos juros, a intensificação da corrida armamentista e o apoio a uma agenda conservadora. Uma nova era de mudanças se aproximava, trazendo inovações radicais no plano da tecnologia da informação e na condução das políticas econômicas, com o declínio do papel dos Estados nacionais, a emergência dos mercados desregulados e o fortalecimento de novas esferas descentralizadas de dinamismo econômico.

3º macroperíodo: neoliberalismo e estagnação (1980-atualidade)

A crise fiscal dos Estados e a da dívida externa afetou de muitas maneiras o Brasil. Foram abandonadas as estratégias desenvolvimentistas e adotou-se um receituário neoliberal. Abertura, desregulamentação e privatização foi a tríade predominante de 1980 em diante. Embora com diferenças importantes, os variados governos que se sucederam desde então não investiram sistematicamente no progresso sustentado do país, o que elevou nossa defasagem científica e tecnológica, provocou desindustrialização, reprimarizou nossa pauta exportadora e agravou - nos últimos anos - os indicadores de desigualdade social. O resultado tem sido a estagnação de longo prazo. Toda a América Latina padece desses males, e mesmo o ciclo recente de governos de esquerda foi incapaz de reverter esse quadro e promover as necessárias reformas estruturais. Tais décadas são marcadas pelo neoliberalismo e o aprofundamento da inserção da região no atual ciclo de dominância financeira do capitalismo.

A metrópole de São Paulo e o Brasil

No Brasil, os impactos das políticas de ajuste macroeconômico aplicadas a partir do início da década de 1980 foram sentidos em profundidade, particularmente na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Os planos de austeridade incidiram fortemente sobre uma estrutura produtiva diversificada e integrada, erigida de forma contínua, com decisivo apoio estatal, entre 1930 e 1970. Nesse período, a atualização histórica do país foi rápida, em termos internacionais, resultando em incremento demográfico, expansão e diversificação do consumo, elevação dos níveis de renda e difusão dos meios de transporte modernos (automóvel e transporte de carga por rodovias), junto a uma divisão do trabalho muito mais complexa. Na esfera regional, a pesada herança colonial de desigualdades foi reproduzida sob as novas condições, com a região Sudeste - e, em parte, a região Sul - se distanciando do resto do Brasil em todos os indicadores de comportamento econômico, geração de empregos e qualidade de vida.

A urbanização brasileira seguiu ritmo acelerado, concentrando gente e recursos em metrópoles e cidades médias, em escalões seletivos do território nacional. Ao iniciar-se o século XXI, o Brasil já se constituía num espaço bastante modificado em relação aos parâmetros vigentes ao longo da maior parte do século XX, tanto na ação do Estado quanto na organização produtiva e na composição social predominante. Ao longo desse processo, a primazia urbana se viu continuamente reforçada.

Com a emergência dos fenômenos associados à globalização, a metrópole de São Paulo assistiu à transformação acelerada de seu tradicional status econômico-industrial na direção de uma polaridade não somente econômica, mas marcadamente política, administrativa e cultural. Seu crescimento vertiginoso no século XX, resultado da intensa acumulação fordista (em seguida ao auge do café) que caracterizou boa parte do período, marcou sua trajetória rumo à liderança na industrialização do país. Mas o perfil econômico do aglomerado metropolitano paulista mudou: São Paulo, desde os anos 1990, se consolidou como centro prestador de sofisticados serviços corporativos e financeiros.

A metrópole paulista está na ponta desse processo de financeirização generalizada do desenvolvimento urbano (como exemplos, os desdobramentos imobiliários das Operações Urbanas Consorciadas e os leilões de Certificados de Potencial Adicional de Construção-Cepac) (Fix, 2007FIX, M. São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo, 2007.). Tal fenômeno, por sua vez, está correlacionado à desregulação geral e à concentração da renda que lhe é inerente, bem como à informalidade e à precarização das atividades produtivas de baixo valor agregado. Trata-se do conjunto de atividades de gestão do capital, que envolve tarefas materiais e simbólicas, cujo epicentro, no Brasil, está no município de São Paulo. Como outras regiões metropolitanas consolidadas (tradicionais) do mundo, a capital e a RMSP vêm perdendo peso no PIB, pressionadas pela contínua queda na participação da indústria paulista na economia regional e nacional.

Nucleado pelo espaço de fluxos e relações que se estabelece no entorno da RMSP, o estado de São Paulo caracteriza-se pela presença do mais complexo sistema de cidades do Brasil. Além do componente financeiro e das políticas recessivas que marcaram o período que caracterizamos como de “neoliberalismo e estagnação” (1980 à atualidade), a recente trajetória da RMSP e seu entorno - a Macrometrópole Paulista-MMP - reflete a opção das empresas tecnologicamente avançadas de fortalecer a concentração de empregos e da produção nas regiões Sul e Sudeste do Brasil.

Já os empreendimentos produtivos mais tradicionais, trabalho-intensivos e/ou muito dependentes de custos, como a indústria têxtil, de alimentos e de calçados, percorreram o caminho inverso, de desconcentração produtiva, rumo a outras regiões do estado ou do país (Gaspar et al., 2015GASPAR, R. C.; APARÍCIO, C. A.; BESSA, V. A metrópole de São Paulo: desenvolvimento econômico recente e configuração interna. In: BÓGUS, L.; PASTERNAK, S. (Ed.) São Paulo; transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.).

Assim, em que pese a sensível redução do peso da indústria, o crescimento do terciário avançado na cidade e na metrópole de São Paulo deve-se, em boa medida, à base industrial preexistente e aos vínculos que a economia de conhecimento estabelece com a chamada economia real. São novos nexos empresariais dependentes de fluxos de informação produzidos nos núcleos (lugares) mais avançados do sistema.

Essa concentração assume feições aparentemente contraditórias com a dispersão espacial da atividade econômica possibilitada pelas tecnologias de informação e comunicação. Porém, nos marcos da concentração do controle, da propriedade e da apropriação da renda que singulariza as grandes empresas no sistema econômico atual, tal concentração é um corolário necessário, impossibilitando a constituição de uma economia espacial carente de pontos de aglomeração física: “o poder, neste caso econômico, possui um correlato espacial?”, indaga Sassen (2007_______. Una sociología de la globalización. Buenos Aires: Katz Editores, 2007., p.138-9; tradução nossa).

Em resumo, a metrópole de São Paulo - e todos os centros urbanos do país, obviamente, com seus pesos diferenciados - vive as agruras de um país que perdeu a capacidade de planejar seu desenvolvimento e assistiu à “inflexão ultraliberal da ordem urbana”, com predomínio do rentismo, de métodos expropriatórios e da especulação imobiliária (Ribeiro, 2018RIBEIRO, L. C. de Q. A metrópole em questão: desafios da transição urbana. 2.ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018.). A reprimarização e a desindustrialização (com notórias exceções, como a indústria de alimentos) são efeitos inevitáveis desse processo, enquanto tais tendências não forem revertidas. Pois bem, se macroestruturas e fenômenos de caráter mais abrangente - que envolvem distintas escalas espaciais e, crescentemente, a própria economia-mundo - são as determinações principais dos fenômenos urbanos, qual o papel que pode ser destinado aos movimentos sociais citadinos? Como definir e redefinir suas pautas? Melhor, qual o sentido da cadeia de determinações políticas decisivas das mudanças socioeconômicas e qual a dialética desse processo? Não nos propomos a elucidar essas questões por demais complexas e cujas respostas nunca são dadas de antemão, antes se ligam à própria marcha dos acontecimentos e dos conflitos sociais correlatos, mas sim avançar alguns elementos críticos capazes de iluminar caminhos possíveis e agendas prováveis.

Dialética da interação entre as distintas escalas espaciais

Podemos admitir sem problemas que o fenômeno urbano contemporâneo “atravessa e articula múltiplas escalas espaciais” e “representa, crescentemente, a mediação principal para o conhecimento crítico de nosso mundo” (Kipfer, 2009KIPFER, S. Why the urban question still matters: reflections on rescaling and the promise of the urban. In: KEIL, R.; MAHON, R. (Ed.) Leviathan undone? Towards a political economy of scale. Vancouver: UBC Press, 2009., p.70-1; tradução nossa). Por seu turno, “o urbano não é mais simplesmente um lugar específico - embora também o seja enquanto tal -, mas um metaprocesso global de contínua mudança” (Friedmann, 2014FRIEDMANN, J. Becoming urban: on whose terms? In: BRENNER, N. (Ed.) Implosions/explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: Jovis Books, 2014., p.559; tradução nossa). De igual modo, a cidade “não pode mais ser percebida como uma unidade, pois ela agora consiste de superpostas realidades urbanas com fronteiras indistintas” (Schimid, 2014SCHIMID, C. Networks, borders, diferences: towards a theory of the urban. In: BRENNER, N. (Ed.) Implosions/explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: Jovis Books, 2014., p.68; tradução nossa). É inegável que as cidades estão numa encruzilhada histórica - uma encruzilhada civilizacional, por certo - e detêm nosso destino em suas mãos, como máquinas de progresso, criatividade e soluções ambientais sustentáveis (Goldin; Lee-Devlin, 2013GOLDIN, I.; LEE-DEVLIN, T. Age of the city: why our future will be won or lost together. London: Bloomsbury Continuum, 2013.). Tudo isso são probabilidades e dependem fundamentalmente da ação humana. Estão condicionadas a ações políticas. Ao controle e ao uso lúcido de instrumentos de poder. Onde eles se localizam enquanto polos de decisões efetivas, direcionais, com a amplitude e profundidade requeridas para condicionar mudanças abrangentes?

Estamos na presença de dois fluxos contrários de influências e determinações, um alimentando o outro reciprocamente, atuando em sentido contrário. Apenas para identificação conceitual, pois não existe qualquer cronologia, hierarquia ou prioridade temporal de um sobre o outro (aqui não faz o menor sentido saber se vem primeiro o ovo ou a galinha...), o primeiro desses vetores diz respeito à dinâmica urbana, majoritariamente responsável pelo que ocorre no mundo atual, tanto de bom quanto de ruim. Centrado nos efeitos de aglomeração, proximidade, inovação, multiplicadores de atividade, ambiente criativo, transbordamentos (spillover effects), os impulsos se reproduzem e reforçam na base (urbana), bem como são continuamente questionados e transformados no âmbito desse mesmo espaço, onde uma dialética vertiginosa de ações e contrarreações se desenrola ininterruptamente.

Por outro lado, tais vetores de irradiação se expressam em influências, decisões, comportamentos, conflitos, oriundos de núcleos urbanos diferenciados precisamente pelo fato de os requisitos para “a operação global, coordenação e controle contidos nas novas tecnologias de informação e no poder das corporações transnacionais [necessitarem] ser produzidos” (Sassen, 2001SASSEN, S. The global city: New York, London, Tokyo. 2. ed. Princeton: Princeton University Press, 2001., p.xxii; tradução nossa), o que ilumina uma dimensão usualmente negligenciada da globalização, que são as práticas de trabalho associadas aos mecanismos de comando global. Os “serviços produtivos”, para os quais a maior parcela da gestão do capital se terceirizou com a mundialização, pela complexidade e grau de exigência de suas tarefas, é altamente dependente do “ambiente inovador” e das economias de aglomeração dos grandes centros urbanos, onde se concentram recursos de informação e conhecimento essenciais ao comando corporativo (ibidem, p.xx). Pois bem, semelhante fluxo gerado nas cidades se transfere, ou se direciona, para os centros de decisão político-econômicos, são metamorfoseados em alavancas de poder, as quais, por sua vez, retornam na forma de sinais, alianças, acordos, instrumentos legislativos, narrativas culturais hegemônicas, aos focos da irradiação original, a coletividade, as cidades, as instituições, empresas, ao espaço planetário, enfim.

Temos aqui a velha relação entre infra e superestrutura, despojada de determinismos toscos e unilaterais. Pelo contrário, trata-se de uma rede de interações complexas, da qual se consegue extrair alguns nexos causais decisivos. Eles se vinculam às instituições estatais e paraestatais dos centros dominantes do capitalismo. Também se incluem nesse conjunto os aparatos de poder dos países em desenvolvimento como o Brasil. Esses grupos dominantes constituem uma nova elite, ou seja, agentes econômicos e políticos que conduzem o processo de financeirização do capital em todos os seus matizes a partir das grandes cidades globais, elos dinâmicos dessa cadeia global. Ela é formada pelos CEO e o staff dirigente das grandes corporações, pelos estratos superiores das empresas de novas tecnologias e dos serviços produtivos ao capital, pelos lobistas e altos funcionários do Estado encarregados do obscuro e altamente rentável trabalho de transferir patrimônio público ao setor privado, pelo capital imobiliário (e os grandes projetos de requalificação urbana sob sua iniciativa), e pelos segmentos encarregados de produzir as “narrativas” dominantes, a cultura dos novos tempos, a glamurosa “economia criativa”, bem como os discursos hegemônicos, crescentemente incorporados ao senso comum (Massey, 2007_______. World city. Cambridge, UK: Polity Press, 2007., p.47-9; tradução nossa).

Em outras palavras, estamos afirmando a continuada importância do Estado nacional espacialmente reconfigurado e organicamente capturado por parcela crescente dos grupos componentes da nova elite:

O que está ocorrendo é uma reestruturação multiescalar das configurações socioespaciais capitalistas, casada com a recomposição de arraigadas hierarquias da organização escalar, conduzindo, portanto, à qualitativamente novas geografias da acumulação de capital, regulação estatal e desenvolvimento desigual. (Brenner, 2004BRENNER, N. New State spaces: urban governance and the rescaling of statehood. New York: Oxford University Press, 2004., p. 64; tradução nossa)

Perante essa recomposição e reaglutinação de forças, que envolve todas as escalas geográficas e irrompe de grandes centros urbanos, além de reforçar as relações de desenvolvimento desigual típicos da economia-mundo capitalista, a nova hierarquia de poder está situada mais além desse conjunto de cidades fragmentadas, pulverizadas, incapazes estruturalmente de deter mecanismos de poder aptos a dirigir, ou mesmo influenciar significativamente, os macrocomandos estratégicos: controle financeiro, decisões de investimento extraterritorial, emissão de moeda, constituição de dívidas soberanas, gestão do comércio exterior, financeirização da riqueza imobiliária, monopólio da violência e dos instrumentos de guerra, acumulação de reservas internacionais, só para citar os mais importantes.

De uma perspectiva histórica, as cidades se desenvolvem desde a baixa Idade Média a partir de um princípio de riqueza, na qual o poder ainda se limita à produção de bens e sua circulação. Porém, quando os mercados se expandem e as comunicações atingem territórios cada vez mais amplos, outro princípio se impõe, a proteção da riqueza e o princípio do poder:

[...] é aqui que a cidade, na estreiteza de sua geografia, já não pode ser sustento adequado de si mesma nem, menos ainda, centro ordenador das novas necessidades que sua expansão contribuiu a criar no território. Com o Estado nacional e as primeiras formas de mercantilismo, a criação de riqueza termina por subordinar-se às necessidades e visões globais nas quais o poder de Estado se torna princípio ordenador cada vez mais poderoso. [...] Economia e poder se complementam em um nível mais alto sem deixar de ser espaço, movidos por necessidades diferentes. (Pipitone, 2003PIPITONE, U. Ciudades, naciones, regiones: los espacios institucionales de la modernidad. México: Fondo de Cultura Económica, 2003., p.94-5; tradução nossa)

A gestão sempre contraditória da economia e da riqueza transfere-se, assim, para instâncias mais elevadas de poder. Isso não tira das cidades seu papel alimentador e gerador de recursos e pautas societárias (cultura, ideologia, crenças). Mas, repetimos, os instrumentos de poder decisivos estão fora do alcance das cidades, por mais poderosas e ricas que elas sejam.

Vem das esferas mais altas do Estado nacional a responsabilidade por “desenhar cenários de futuro e criar as instituições capazes de alcançá-los”, na visão lúcida de Ha-Joon Chang (2003CHANG, H.-J. Globalisation, economic development and the role of the State. Penang: Third World Network and Zed Books, 2003., p.115). Faz-se assim imperativo que políticas urbanas direcionais estejam alicerçadas em planos de maior envergadura, de ineludível responsabilidade - no Brasil - das esferas do governo federal, para cobrar efetividade.

Desse modo, resta estabelecido o poder renovado dos centros urbanos como lugar das transformações em curso no chamado “capitalismo cognitivo”, não mais restrito a limites territoriais precisos que delimitariam as fronteiras da cidade e a oporiam à zona rural, mas num espaço ampliado de urbanização, cujos impactos (extração mineral, agroindústria, exploração dos mares e rios, manejo do lixo, poluição) atingem o mundo inteiro.

O contínuo e rápido crescimento dos clusters urbanos em países de todos os níveis de desenvolvimento econômico sugere que, ao menos para o presente, o ciberespaço está longe de debilitar a integridade espacial da cidade, pois [...] os elementos centrais do processo de urbanização, do trabalho produtivo à vida doméstica, estão ainda baseados em um grau significativo em enraizadas comunidades analógicas e interações que por seu turno geram importantes sinergias centradas na localização territorial (place-centered synergies). (Scott, 2017SCOTT, A. J. The constitution of the city: economy, society, and urbanization in the capitalist era. Los Angeles: Palgrave Macmillan, 2017., p.230; tradução nossa)

Porém, o poder renovado de núcleos urbanos direcionais não implica reconhecer que, deles, surge um novo polo de poder no mundo, que se afirma enquanto tal. Assim entendido, o tema deste artigo, as relações entre economia, política e o fenômeno urbano, justifica a oportunidade de um reposicionamento teórico e prático. Enquanto o capitalismo seguir sendo capitalismo, o vetor político do poder situa-se nas instâncias superiores da gestão do sistema, direta ou indiretamente vinculadas aos Estados nacionais, mormente das nações mais poderosas do planeta. Afetar esse núcleo e explorar suas contradições - insistimos - implica ações desde a base até o topo, mas, sem atingi-lo, mudanças de fundo, ou serão inviabilizadas, ou terão fôlego curto.

Reflexões finais

O que as eleições municipais do final de 2024 projetam para as cidades e o país? Sabemos que, a par da retórica de mudança e solução dos problemas econômicos e sociais da comunidade, típica da narrativa eleitoreira, em termos concretos nada de muito significativo pode ser feito. Depois de a democracia brasileira correr sério risco no período 2019-2022, a alteração na correlação de forças regionais e nacionais talvez seja um dos efeitos mais importantes da disputa, de olho no pleito presidencial de 2026. Nos pequenos municípios, as forças políticas são, em geral, indiferenciadas nos seus efeitos sobre a gestão pública, normalmente vinculadas aos poderosos da localidade. Já nas médias e, sobretudo, grandes cidades, os resultados são sem dúvida mais significativos, afetando o bem-estar coletivo, a destinação dos investimentos governamentais, os usos da terra, a participação democrática e o universo cultural. Grandes projetos urbanos podem, por sua vez, potencializar vocações produtivas e ambientais, atraindo capitais de fora. Políticas de marketing e empreendedorismo urbano, contudo, têm sido uma constante, perpassando administrações de esquerda e de direita no país. Isso, por si só, revela a encruzilhada das administrações municipais, premidas por urgências sociais, pela carência de recursos orçamentários e de meios de poder efetivo, como apontamos ao longo do texto. Tais estratégias de empreendedorismo urbano (assim como a guerra fiscal) usualmente resultam num jogo de soma zero, quando não acarretam prejuízos irreversíveis de longo prazo às cidades envolvidas em projetos que privilegiam o capital, provocam segregação e especulação imobiliária, destroem tradições e o patrimônio histórico. Exemplos disso são propiciados pela herança dos megaeventos esportivos e a atração do turismo predatório.

O discurso eleitoreiro local na maioria das vezes leva a uma autêntica “lógica do absurdo”: se todos os problemas de um único município fossem resolvidos, como apontam os discursos dos candidatos que prometem resolver os déficits de emprego, saúde, educação, habitação e transporte - como num passe de mágica -, se isso por milagre ocorresse numa cidade, no instante seguinte tais problemas se recomporiam, pois as demandas de outras localidades, contíguas e distantes, buscariam a satisfação de suas necessidades na localidade operadora do “milagre”, recompondo o equilíbrio anterior, como observado no princípio dos “vasos comunicantes”.

O que está em questão é o fato de os pleitos locais e regionais pela Reforma Urbana e o Direito a Cidade - e o conjunto dos planos, propostas, políticas afins - constituírem-se numa base programática para consignas mais gerais e abrangentes, vinculadas às bandeiras de luta e reivindicações, de distintas naturezas ideológicas, pelo desenvolvimento, industrialização, ações de classe, raça e etnia, por ações ambientais, culturais, participativas, de inclusão digital, redistribuição da valorização imobiliária e controle do uso do solo, pelo combate à desigualdade, pela modernização tecnológica, reforma agrária, entre outras. Abrigadas nesse contexto político mais amplo, as plataformas locais ganham força, capacidade de mobilização e poder multiplicador. Enraízam nos impulsos dinâmicos das comunidades as estratégias gerais de transformação social. Compõem um arco dialético de alimentação recíproca. Uma totalidade concreta de múltiplas determinações.

No caso específico do Brasil, planos macroeconômicos e estratégias de desenvolvimento são, portanto, vitais. Por mais complexo que seja retomar o planejamento, reformar o Estado e reforçar seu corte redistributivo e empreendedor (Mazzucato, 2014MAZZUCATO, M. O Estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.; 2024), num país dividido e polarizado, amargando décadas de estagnação e neoliberalismo, essa tarefa é urgente e imprescindível. E implica uma abordagem holística, integradora de múltiplos setores econômicos e experiências.

Vivemos em um sistema-mundo de natureza capitalista. Nele, como vimos, as partes e o conjunto estão em constante mudança. Conflitivo e polarizado. E os centros urbanos são elos cada vez mais ativos na produção de seus resultados, embora não se constituam em seus centros de decisão, situados up there. Estamos enredados numa densa teia de interações mútuas, cujo sentido é mister identificar. Seja no Brasil, seja no mundo, o encaminhamento desses conflitos é uma questão em aberto, cujo conteúdo político assume proporções altamente sensíveis. E seu desencadeamento constitui-se em tarefa de partidos, classes, movimentos e redes sociais, organizações sindicais e empresariais, universidades e centros de produção de saber, ou seja, de expressões da sociedade organizada, dotadas da transversalidade indispensável à objetivos dessa envergadura.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2024
  • Aceito
    18 Jun 2024
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