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Escola Plural

Resumos

Este artigo apresenta a Escola Plural, implantada na rede municipal de ensino de Belo Horizonte, no período 1993/1996. A proposta foi considerada inovadora por muitos, polêmica por outros, por ter procurado romper com a cultura tradicional da escola pública, implementando uma concepção de educação mais ampla, democrática, inclusiva, plural, que leve em conta múltiplas dimensões da formação da pessoa humana e na qual as crianças das classes populares tivessem condições de ser bem-sucedidas. Buscava-se responder aos desafios presentes nas políticas públicas para expandir o Ensino Fundamental e, especialmente, melhorar a qualidade da escola pública. O texto apresenta a proposta, algumas polêmicas e resultados de avaliação de seus efeitos.

Escola Plural; Educação; Ensino Fundamental e Médio; Escola pública


This paper presents the Plural School, implemented in Belo Horizonte’s local educational system from 1993 to 1996. This educational proposal has been considered innovative by many people and polemical by others since it attempted to break the traditional culture of public schooling, inserting a broader, democratic, inclusive and plural concept of education. It also attempted to take the multiple dimensions of an individual’s edification into account and to supply adequate conditions for children from lower socia classes to succeed. Moreover, it aimed at meeting the demands of public policies in order to expand elementary and middle level education and, above all, improve the quality of public schools. The article presents the proposal, some polemics involving it and its assessment results.

Plural School; Education; Elementary and Middle Level Education; Public schooling


QUALIDADE DO ENSINO

Escola Plural

Glaura Vasques de Miranda

RESUMO

Este artigo apresenta a Escola Plural, implantada na rede municipal de ensino de Belo Horizonte, no período 1993/1996. A proposta foi considerada inovadora por muitos, polêmica por outros, por ter procurado romper com a cultura tradicional da escola pública, implementando uma concepção de educação mais ampla, democrática, inclusiva, plural, que leve em conta múltiplas dimensões da formação da pessoa humana e na qual as crianças das classes populares tivessem condições de ser bem-sucedidas. Buscava-se responder aos desafios presentes nas políticas públicas para expandir o Ensino Fundamental e, especialmente, melhorar a qualidade da escola pública. O texto apresenta a proposta, algumas polêmicas e resultados de avaliação de seus efeitos.

Palavras-chave: Escola Plural, Educação, Ensino Fundamental e Médio, Escola pública.

Antecedentes

OS PRIMEIROS anos da década de 1990 testemunharam em todo o território nacional uma grande expansão das matrículas no Ensino Fundamental, em cumprimento às exigências da nova Constituição da República. Alguns desafios colocaram-se de forma clara para as secretarias municipais de Educação. O acesso à escola pública de todas as crianças em idade escolar passou a ser o primeiro grande desafio das políticas públicas da educação.

Belo Horizonte, nessa época, já contava com corpo docente do Ensino Fundamental do município bastante qualificado (mais de 80% tinham curso superior), pois a prefeitura adotou a política de admissão de professores por mérito, ou seja, exclusivamente por concurso público. Além de bastante qualificado, grande parte do corpo docente participava de movimentos de renovação pedagógica, pressionando por mudanças radicais e significativas. Algumas melhorias iam sendo progressivamente conquistadas, como a gestão democrática para a escolha de diretores de escolas e dos membros do colegiado escolar; a introdução de projetos pedagógicos nas escolas e os programas de capacitação continuada de professores. Mas faltavam ao conjunto das escolas da rede municipal diretrizes gerais de política pedagógica que orientassem a direção dessas mudanças e que contribuíssem para modificar a cultura por meio de uma nova concepção de educação. A nova gestão municipal assumiu o compromisso de introduzir inovações pedagógicas que contribuíssem para a melhoria da qualidade da escola pública.

O grande objetivo era ter uma escola pública sem discriminação, pluralista, democrática, não-excludente, capaz de incorporar toda a população escolar, independentemente de raça, etnia e sexo. No horizonte das propostas, estava a implantação de uma nova concepção de educação e, por conseguinte, de uma nova lógica de ordenamento escolar. Pretendia-se um currículo mais diversificado culturalmente, que incorporasse atividades artísticas, valorizasse a história, a literatura, a abertura para a comunidade, sem descuidar das disciplinas tradicionais. Pretendia-se, também, que os alunos das escolas públicas municipais tivessem avanços progressivos em seu desenvolvimento escolar. Havia uma séria crítica à cultura da reprovação e da repetência. Nas discussões, enfatizava-se uma escola aberta à comunidade, mais alegre e prazerosa, que contribuísse para o novo desafio das políticas públicas: a permanência de crianças e jovens na escola pública.

O caminho apontava para a adoção de um Projeto Político Pedagógico que estabelecesse princípios capazes de nortear as escolas públicas da rede municipal. Naquele momento, a sociedade brasileira discutia a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em tramitação no Congresso Nacional. Na rede municipal de Belo Horizonte, havia insatisfação com a qualidade do ensino ministrado e desejo de ultrapassar os projetos pontuais e independentes de cada escola, pela adoção de uma proposta que incorporasse princípios que o grupo de educadores vinha discutindo nos fóruns sobre a LDB e que gostaria que marcasse a identidade da educação da rede. Alguns anos antes, Paulo Freire, como secretário municipal de Educação de São Paulo, havia desenvolvido o projeto de escola cidadã. Seus princípios representaram forte inspiração para a equipe da Secretaria Municipal. O magistério local reivindicava, também, que a orientação pedagógica adotada respeitasse a autonomia de cada escola de desenvolver seu próprio projeto pedagógico.

O novo desafio era promover uma ruptura com a antiga lógica de organização da escola que todos considerávamos elitista e construir um novo ordenamento escolar, capaz de produzir uma escola pública de qualidade.

Como nasceu o programa Escola Plural

Quais eram os desafios a enfrentar?

A nova equipe da Secretaria não tinha um projeto pronto e acabado para sugerir. Sabia que era necessário construir esse projeto e que essa construção deveria ser feita coletivamente. Havia no grupo a convicção de que a rede municipal não aceitaria projetos prontos e impostos.

Como mencionei, a rede municipal vinha implementando projetos pedagógicos em cada escola, decididos pelo seu próprio corpo docente. Esses projetos eram muito diversificados. Cada escola propunha uma diferente inovação com os recursos humanos de que dispunha e com o apoio financeiro e material possível da Secretaria Municipal de Educação (SMED), como o ensino de línguas (inglês e francês), recuperação de aprendizagem, atividades artísticas, esportivas etc. Entre as nossas primeiras providências, esteve o levantamento dessas experiências para detectar as mais significativas e aquelas capazes de produzir mudanças. Para evitar descontinuidade, bem como tranqüilizar os professores, fizemos, naquela época, uma observação que considero importante: todos os projetos significativos seriam mantidos. Isso possibilitou-nos estabelecer um diálogo com os professores e um clima favorável de cooperação e aceitação de mudanças, na maior parte das 178 escolas do município.

Um ano depois, tínhamos um relatório analítico sobre os principais projetos da rede. Apesar das inúmeras inovações, a estrutura da educação municipal não havia sido alterada e continuava como a da maioria das redes públicas do país. Alguns problemas graves foram analisados e detectados:

  • as propostas pedagógicas vigentes não facilitavam a progressão das crianças das classes populares: continuavam elitistas e antipopulares. As crianças das classes sociais mais baixas que estavam ingressando na rede não eram capazes de superar as diferenças culturais – acabavam por ser expulsas das escolas, cansavam-se de tantos fracassos, não dispunham das condições mínimas de estudo, tinham pouco estímulo para aprender, não tinham garantidos seus direitos de permanência na escola;

  • as práticas pedagógicas escolares reforçavam a repetência. Com muita freqüência, o aluno reprovado em uma matéria em um ano repetia tudo no ano seguinte, era aprovado naquela que perdera, mas acabava reprovado em outra. A repetência não garantia a aprendizagem das questões que haviam sido a razão da reprovação;

  • a evasão aumentava à medida que os alunos se aproximavam da idade de trabalhar. Os repetentes perdiam a auto-estima por terem de conviver com colegas muito mais jovens;

  • os tempos escolares, que haviam se fragmentado ao longo dos tempos – os cursos, antes anuais, passaram a ser semestrais, depois trimestrais, bimestrais etc. –, dificultavam a aprendizagem dos alunos. As escolas não respeitavam o ritmo dos alunos, já que todos tinham de aprender os mesmos conteúdos, simultaneamente e na mesma seqüência, em tempos cada vez mais curtos;

  • o trabalho dos professores era muito isolado, cada um cuidava de sua disciplina e não se preocupava com a interdisciplinaridade, ou com o trabalho de seu colega.

Esses eram alguns dos desafios que precisavam ser enfrentados ante a tentativa de se construir coletivamente uma nova proposta. Era preciso elaborar um projeto político-pedagógico que, respeitando a autonomia de cada escola, fosse capaz de estabelecer princípios a serem seguidos por toda a rede para resolver os problemas da educação municipal de Belo Horizonte.

Como foi desenhado o programa?

Foram realizados vários seminários e debates com o propósito de se discutirem propostas. A escola de qualidade devia partir de um princípio: "Todos são capazes de aprender, uns são mais rápidos, outros mais lentos, mas todos aprendem". Uma escola em que todos aprendessem no seu próprio ritmo e na qual conseguíssemos garantir a permanência de todos os alunos foi o mote que passou a orientar todas as análises. Vários eixos centrais foram discutidos nesses encontros. Um grupo de professores registrava as propostas e buscava desenvolvê-las para servir de ponto de partida no encontro seguinte. Assim, chegou-se ao primeiro esboço da proposta, para discussão com o prefeito e seus secretários, uma vez que sua implantação implicava aumento de custos, sendo necessária a aprovação da equipe governamental.

O programa

Melhorar o nível de aprendizagem das crianças matriculadas na rede; reduzir o nível de evasão escolar, retirando as crianças das ruas; reduzir a reprovação escolar; tornar a escola um centro cultural para a comunidade; tornar a escola agradável, para que as crianças tivessem prazer em freqüentá-la; em síntese, buscava-se garantir a permanência das crianças na escola pública.

A proposta da Escola Plural (Prefeitura..., 1994) estava centrada em quatro grandes núcleos. O primeiro núcleo referia-se aos eixos norteadores. Esses eixos foram os princípios orientadores de todas as demais ações da Escola Plural. São eles:

  • uma intervenção coletiva mais radical;

  • a sensibilidade em relação à totalidade da formação humana;

  • a escola como tempo de vivência cultural;

  • a escola como espaço de produção cultural;

  • as virtualidades educativas da materialidade da escola;

  • a vivência de cada idade de formação sem interrupção;

  • a socialização adequada a cada idade – ciclo de formação;

  • uma nova identidade da escola, uma nova identidade do seu profissional.

O segundo núcleo envolveu a reorganização dos tempos escolares. O programa propôs a ampliação do tempo escolar do aluno no Ensino Fundamental de oito para nove anos, buscando a continuidade do processo de escolarização, eliminando a seriação e favorecendo a construção da identidade do aluno. Nessa nova lógica, a aprendizagem passou a ser o centro do processo educativo, cujo objetivo é a formação e a vivência sociocultural próprias de cada idade. A escola passou a organizar-se em três ciclos:

  • 1º Ciclo (Infância) compreendendo alunos de seis a nove anos de idade;

  • 2º Ciclo (Pré-Adolescência) compreendendo alunos de nove a doze anos de idade;

  • 3º Ciclo (Adolescência) compreendendo alunos de doze a quatorze anos de idade.

Os ciclos de formação foram um dos pilares importantes da Escola Plural. A organização em ciclos significou uma nova lógica de organização dos tempos escolares. Os conteúdos curriculares deixaram de orientar a organização das séries e os educandos passaram a ser seus eixos orientadores. Os conteúdos escolares e a distribuição dos tempos e espaços passaram a submeter-se a um objetivo central mais plural: a formação e a vivência sociocultural próprias de cada faixa de idade dos educandos. O tempo escolar passou a ser mais flexível, mais longo e mais atento às múltiplas dimensões da formação dos sujeitos socioculturais. O respeito à organização de turmas por idades deveria facilitar as interações e favorecer a construção de identidades mais equilibradas.

A organização dos ciclos incorporou, pois, a concepção de formação global do sujeito, partindo do reconhecimento da diversidade dos alunos matriculados e dos seus ritmos diferenciados de aprendizagem. A escola passou a ter o papel de criar espaços de experiências variadas e a dar oportunidades para a construção da autonomia e da produção de conhecimentos sobre a realidade. No ciclo, o aluno passou a ter mais tempo para aprender, e seus professores, trabalhando coletivamente, passaram a ter mais tempo para acompanhar os diferentes grupos de alunos.

Para cada ciclo de formação, foram definidos os conteúdos escolares básicos das diversas disciplinas, abordados numa perspectiva própria para cada idade, de modo a dar-lhes um tratamento pedagógico na perspectiva plural. Os conteúdos escolares incluídos em cada ciclo deveriam ser significativos para ampliar as potencialidades dos educandos. Além disso, passaram a fazer parte dos conteúdos escolares: as artes plásticas, as danças, as artes cênicas, a culinária, a fotografia, a informática, as leis trabalhistas, a ecologia, o cultivo de hortas, as questões da afetividade-sexualidade, a família, a cidadania, o trabalho etc.

Foi necessário adequar a organização das turmas por faixas de idade. Nas enturmações dos primeiros anos de implantação, a prefeitura trabalhou com classes de aceleração. No ano de 1995, foi dada maior atenção aos dois primeiros ciclos de formação. Em 1996, passamos a trabalhar, também, com o 3º Ciclo e a educação de jovens e adultos.

O terceiro núcleo diz respeito aos processos de formação plural. Partiu do questionamento ao processo de ensino e aprendizagem na cultura escolar vigente, visto como sinônimo de copiar e de memorizar um conhecimento já estabelecido e pronto, tido como verdade absoluta, que deve ser assimilada pelo educando. Conseqüentemente, ensinar vinha sendo entendido como um processo de transmissão de conhecimentos freqüentemente descolados da realidade. Os professores tinham o compromisso de cumprir o programa.

Na lógica da Escola Plural, aprender deixou de ser um ato de memorização ou acúmulo de informações, e ganhou um novo significado. Os conhecimentos passaram a ser construídos em estreita relação com os contextos em que são utilizados, sendo, por isso mesmo, associados aos aspectos cognitivos, emocionais e sociais neles presentes. Um dos desafios postos foi a conjugação do "aprender a aprender" com o "aprender a viver". O conhecimento passou a ser considerado global, tendo muitas dimensões a serem levadas em conta, como aprender participando, vivenciando sentimentos, tomando atitudes diante dos fatos, escolhendo procedimentos para atingir determinados objetivos.

Nessa perspectiva, alguns aspectos, até então marginalizados na rotina escolar, passaram a ser valorizados na formação integral, destacando-se os processos corporais e manuais e os processos socializadores. Assumiram papel fundamental a construção de valores, as representações e as atitudes perante a dignidade da vida, os direitos, as diferenças de gênero e de raça, a sexualidade, as festas, as artes e o trabalho.

A Escola Plural propôs o rompimento com a concepção tradicional de ensino e aprendizagem, passando a incorporar a realidade social e considerando as questões e os problemas enfrentados pelos homens e pelas mulheres de nosso tempo como objeto de conhecimento. Os conteúdos escolares foram repensados e ressignificados. Propôs-se o abandono do modelo compartimentado em disciplinas isoladas, para que se passasse a trabalhar com a interdisciplinaridade e com temas transversais. A inserção dos temas transversais como conteúdos curriculares possibilitou relacionar as disciplinas do currículo à realidade contemporânea, dotando-as de valor social.

Para viabilizar a mudança, a Escola Plural passou a trabalhar com propostas de intervenção pedagógica mais globalizantes. Os projetos de trabalho interdisciplinares foram enfatizados, tendo como eixo a participação dos alunos em seu processo de aprendizagem, produzindo algo que tivesse significado e sentido para eles. O conhecimento escolar passou a ser construído com base no reconhecimento de questões de interesse social e da sua reflexão, tendo como referência o conhecimento cultural acumulado, presente nas disciplinas.

O quarto núcleo procurou ressignificar a avaliação que passou a ter importância decisiva na Escola Plural. Na cultura escolar tradicional, a avaliação geralmente está centrada em um só aspecto do processo de aprendizagem dos alunos, isto é, no seu desempenho cognitivo. Era feita em alguns momentos estanques do processo, não considerando o processo vivido pelos alunos, mas apenas a quantidade de pontos que eles conseguiam acumular. Predominava, pois, um modelo quantitativo de avaliação, centrado no aluno, cujo único árbitro era o professor e cuja única finalidade era aprovar ou reprovar. Essa visão vinha sendo muito questionada pelos profissionais das escolas municipais, que buscavam opções de rompimento com ela.

A escola concebida em dimensão plural necessitava de um novo modelo de avaliação. Entendendo a educação como direito, a Escola Plural não poderia continuar avaliando para classificar, excluir, aprovar ou reprovar. Passou a pensar a avaliação como processo global, envolvendo várias dimensões do processo ensino e aprendizagem, como a intervenção do professor, o projeto curricular da escola, a organização do trabalho escolar, a função socializadora e cultural dessa instituição, a formação das identidades, dos valores e da ética. Assim, não era mais possível continuar assumindo que o único foco da avaliação deveria ser o aluno.

Passou-se a avaliar para identificar os problemas e avanços escolares e para redimensionar a ação educativa. Foi adotada a concepção de avaliação como processo formativo e contínuo. Todos os sujeitos do processo educativo passaram a ser agentes da avaliação. Vários momentos de avaliação foram discutidos e incluídos na prática pedagógica das escolas.

  • A avaliação inicial – que deveria servir para organizar os alunos de um mesmo Ciclo de Formação, não com o objetivo de homogeneização e sim com o de organização de grupos que pudessem interagir e manter canais abertos para troca e confronto de idéias.

  • A avaliação contínua – que deveria cumpria o papel de identificar problemas e dificuldades e programar atividades diversificadas, de modo a resolvê-los e superá-los, não deixando que ficassem acumulados. Pela avaliação contínua, os professores poderiam seqüenciar seus projetos de ensino e definir as competências a serem neles priorizadas.

  • A avaliação final visando a um diagnóstico global do processo vivido e a subsidiar o próximo ciclo de formação. Coexistindo com a avaliação contínua e processual, a avaliação ao final do ciclo não tinha o caráter de aprovação ou reprovação. Poderia acontecer que algum aluno não conseguisse um desenvolvimento equilibrado em todas as dimensões da formação apropriada ao ciclo de idade, dificultando sua interação em seu grupo de referência. Essa situação passou a recomendar a permanência do aluno por mais um ano no mesmo ciclo de idade. No entanto, deveria ser decidida coletivamente e considerada como situação excepcional.

O projeto de Escola Plural procurou, portanto, romper com a lógica da avaliação somativa, onde o aluno, para passar, precisa ter certo número de pontos, e propôs que outros instrumentos de avaliação de natureza mais qualitativa fossem repensados e construídos, a partir de critérios definidos e objetivos propostos.

Por que Escola Plural?

Vários aspectos conduziram ao nome Escola Plural, especialmente a idéia de uma escola mais democrática, mais ampla, mais aberta às diferentes culturas e comunidades. Desde o primeiro momento, foi possível perceber que as sugestões caminhavam para a proposição de uma escola com características pluralistas, próprias de uma sociedade democrática. Era necessário respeitar a singularidade dos projetos pedagógicos de cada escola, mas era preciso, também, estabelecer princípios que orientassem toda a rede municipal. O pluralismo de idéias valorizado pela própria Constituição Federal poderia ser o mote para a proposta. A partir daí, foi possível destacar a dimensão plural que deveria estar presente. Assim, a aprendizagem de conhecimentos científicos não mais seria voltada exclusivamente para um saber acumulado, mas deveria ser mais ampla, com o objetivo de introduzir outras dimensões na formação integral da pessoa humana. A pluralidade sugeria, ainda, uma nova perspectiva de trabalho para os educadores. Um trabalho mais coletivo, mais globalizado, menos individualizado, e menos fragmentado. Aos poucos, outras dimensões desse "plural" foram reforçando o significado da proposta.

A implantação

A implantação da proposta da Escola Plural não foi simples, mas foi enfrentada com determinação e entusiasmo por boa parte do professorado e contou com a vontade política do governo. Para implantação dessa proposta pedagógica, foram necessárias mudanças em aspectos gerenciais das escolas:

  • o critério de um professor por turma foi mudado para o de um grupo de três professores para duas turmas, com eliminação do cargo de professor eventual na escola;

  • de uma gestão pedagógica feita por especialistas passou-se para uma outra feita por um grupo de educadores;

  • a enturmação feita por habilidade escolar foi substituída por outra baseada na idade, nas experiências escolares anteriores e nas vivências culturais dos alunos.

Essas mudanças tiveram impacto financeiro significativo, já que seriam necessários mais quinhentos novos professores no Quadro do Ensino Fundamental para adotar o critério de três professores para cada duas turmas de alunos e um projeto de melhoria da "materialidade" da escola, para o que foram aprovados, pela população no orçamento participativo do município, recursos da ordem de R$ 3.000.000,00, possibilitando a cada escola uma pequena melhoria nas suas condições materiais mais imediatas.

O projeto foi aprovado no Conselho Estadual de Educação, como experiência pedagógica, desde que a Secretaria Municipal de Educação se comprometesse com uma avaliação externa, após um período de quatro anos.

A implantação teve início em 1994, por meio de discussões com os diversos grupos que compõem a rede municipal de ensino. Vários eventos foram desencadeados nas nove regionais da cidade, com os professores, pais e alunos da rede. Em dezembro de 1994 foi realizada uma Conferência Municipal de Educação, com 1.500 delegados representantes de cada escola e de cada segmento escolar. Nesse evento a proposta foi aprovada por aclamação.

Em 1995, o ano escolar foi iniciado com um grande curso de formação em que as mudanças propostas foram expostas a todos os professores do Ensino Fundamental de 1ª a 4ª séries. Nesse período, as principais mudanças ocorreram no 1º e no 2º ciclos de formação. A partir de 1996, foram implantadas mudanças no 3º Ciclo e nos cursos de educação de jovens e adultos.

Em 1997, uma nova equipe pedagógica assumiu a Secretaria Municipal de Educação, dando continuidade à implantação. Uma proposta tão radical, que pretendia mudanças tão significativas na cultura escolar, não poderia ser implantada em apenas quatro anos, mas teria que ser encarada como projeto de Estado, continuando com os governos subseqüentes. Vários Congressos foram realizados visando discutir e aperfeiçoar a Escola Plural. Cursos de formação continuada foram oferecidos aos professores para orientar a implantação das práticas pedagógicas. E muitas mudanças persistem até os nossos dias.

Resultados

Durante o monitoramento da implantação, tivemos opiniões dos professores, dos pais e do público em geral. Essas opiniões eram bastante diferenciadas.

O grupo de professores que havia participado das discussões empenhou-se muito na implantação correta da proposta, desdobrando-se para colaborar na capacitação de outros companheiros. Mas um grupo bastante numeroso de profissionais – muitos dos quais não participaram das discussões – resistiu às propostas e contribuiu para a propagação de críticas fundadas ou não.

A Escola Plural abordava questões da prática pedagógica que já estavam arraigadas na cultura escolar, e a classe popular, mesmo sendo a mais prejudicada com algumas das práticas preexistentes que se pretendia modificar, não conseguiu compreender as mudanças, como seria necessário.

As maiores críticas vinham de pais e políticos, especialmente com base em dois aspectos.

O primeiro foi a interpretação de que o projeto adotava critérios de progressão automática. Portanto, não haveria mais reprovação e todos os alunos seriam aprovados, independentemente de terem um nível adequado de aprendizagem. Com isso, muito alunos perderiam o interesse pelo estudo, já que teriam garantia de aprovação.

O segundo foi o temor de que as crianças chegassem à 8ª série sem saber ler e escrever, principalmente por causa da eliminação da reprovação. A implantação do mecanismo de retenção ao fim de cada ciclo não foi feita como deveria e não foi capaz de tranqüilizar os pais. Essas questões não foram esclarecidas, prejudicando a implantação do programa.

É importante mencionar que a nova LDB, Lei nº 9.394/96, incluiu em seu texto várias propostas que já constavam da Escola Plural, legitimando-a de certa forma.

Uma avaliação metodologicamente correta foi feita pelo Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais (Game), da Faculdade de Educação da UFMG, sintetizada no livro Avaliação da implementação do projeto político-pedagógico Escola Plural (UFMG/FAE/Game, 2000). Essa avaliação foi contratada pela Secretaria Municipal em atenção à recomendação do Conselho Estadual de Educação.

A amostra estudada pela UFMG incluiu 31 escolas, selecionadas entre aquelas que se consideravam ou não plurais, isto é, escolas que tivessem assumido os princípios e valores da Escola Plural. Essas escolas mostraram situações bem diversificadas: algumas que se diziam plurais, mas apresentaram equívocos de interpretação da proposta; outras que se diziam resistentes, mas apresentaram práticas avançadas, voltadas para os princípios da proposta; e outras, ainda, evidenciaram lutas internas, incompreensão da proposta e desavenças pessoais de poder.

A proposta gerou polêmicas. O texto dessa avaliação fez referência a algumas. A proposta, por exemplo, afirmava ser fruto de um retrato das práticas escolares emergentes no cotidiano das escolas, mas

essas práticas eram específicas de algumas escolas ou de turmas de escolas ou de grupos de professores de uma determinada escola. Em seu conjunto, vistas no formato do programa "Escola Plural", essas práticas se diluíram e se revestiram de uma complexidade maior, articuladas e envolvidas por princípios comuns direcionadores das questões pedagógicas. (ibidem, p.57)

Muitos professores que se envolveram nas discussões e que desenvolviam práticas que deram origem à Escola Plural não reconheceram nela suas experiências e se sentiram inseguros. Essa constatação justificou parte da resistência de muitos professores e pais.

O que o grupo concluiu dessa situação foi

que o processo de construção da Escola Plural está se fazendo na própria dinâmica de assimilação de seus princípios [...] Ser plural, como o próprio nome diz, é estar construindo permanentemente o projeto pedagógico de uma escola, em conformidade com as possibilidades e necessidades do seu contexto de ação pedagógica. (ibidem, p.59)

Outra constatação foi o "entusiasmo e o conhecimento teórico do programa evidenciado por muitos professores nos estudos de caso da amostra, reforçando as possibilidades de consolidação da proposta" (ibidem, p.60). O relatório mencionou, ainda, que "um número bastante significativo de professores acreditou na proposta e se esforçou para mudar a prática pedagógica como um todo" (ibidem).

Constatou-se, também, entretanto, que várias escolas continuavam funcionando tradicionalmente. As explicações principais para essas resistências foram resumidas como:

1. a falta de um processo de formação continuada mais direcionado para as dificuldades estratégicas do processo;

2. o fator de ordem político-ideológico, decorrente de ser o PT o partido que implantou a proposta;

3. a dificuldade de estabelecer um certo equilíbrio entre o respeito à autonomia da escola, à diversidade, e a necessidade de se manterem padrões mínimos de ação conjunta, numa Rede tão extensa como a da PBH. (ibidem, p.60)

O relatório comenta, ainda, que a implementação da proposta trouxe insegurança e insatisfação aos professores que atuavam nas escolas onde eram atendidas as camadas médias da população, cujos pais idealizavam uma escola tradicional, certamente mais próxima das escolas privadas. Para os pais dessas escolas, a proposta de Escola Plural representou um retrocesso, já que desarticulou a dinâmica, considerada de referência na comunidade.

Para outras escolas, houve inicialmente uma desarticulação das práticas existentes, fazendo muitos professores se sentirem inseguros quanto à nova forma de atuação. No entanto, passado um período de inércia, eles foram incorporando ao dia-a-dia da escola práticas consideradas positivas.

Os principais pontos positivos da Escola Plural apontados nos depoimentos dos professores das escolas da amostra (ibidem, p.63) foram:

  • os projetos de ensino;

  • a não-imposição de uma seqüência de conteúdos que precisa ser vencida;

  • a oportunidade de crescimento dos professores que necessitaram estudar e pesquisar mais;

  • as atividades artístico-culturais que passaram a fazer parte da rotina das escolas;

  • a conquista de um horário de planejamento e de estudos (horários de projetos e de reuniões pedagógicas semanais no turno de trabalho);

  • a socialização das informações;

  • e a democratização das decisões.

Até hoje, as diretrizes do programa Escola Plural continuam a vigorar, embora algumas modificações tenham sido introduzidas ao longo desses treze anos de implantação.

Avaliando, nesse momento, a situação da rede municipal, é possível constatar que, no conjunto, houve melhoria na qualidade da escola pública de Belo Horizonte. Por exemplo, no novo índice nacional calculado pelo Inep, o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), os alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental do município da capital mineira alcançaram um resultado superior a quase todas as demais capitais (4,9), exceto por uma, que apresenta apenas um décimo mais. É possível que muitos alunos ainda estejam chegando ao fim do Ensino Fundamental com um baixo nível de aprendizado. Esses, provavelmente, seriam aqueles que a escola tradicional reprovaria nos primeiros anos. Tendo permanecido na escola, é provável, que tenham tido oportunidade de socialização por mais tempo.

Por ocasião da última eleição para prefeito, a Escola Plural esteve em evidência no discurso dos candidatos de oposição, que a condenavam por não ter conseguido que todos os alunos tivessem um bom desempenho escolar. Muitas pessoas saíram em defesa da proposta. A mais significativa, foi a do padre Geraldo Magela, ex-reitor da PUC-MG e atual reitor da UNA, que escreveu um artigo no jornal Estado de Minas, de 11 de setembro de 2004, em que mencionou algumas falhas na implantação do projeto, como a inadequação do treinamento ministrado aos professores e a implantação simultânea das mudanças em todas as escolas. Mas acrescentou

não é por estas falhas que devemos condenar certamente o projeto de escola mais bonito que surgiu nos últimos 50 anos. Com adequação no treinamento dos professores e mais firmeza nas exigências aos alunos, "sem perder a ternura", a Escola Plural poderá recuperar-se perante a sociedade e continuar se construindo como uma nova, eficaz e bela experiência educacional.

Em síntese, a Escola Plural é, por muitas razões, um projeto pedagógico muito inovador, uma das mais corajosas tentativas de combater a evasão e a repetência e de resgatar o direito e o prazer de aprender. Se há que introduzir correções de rota, isso faz parte da dinâmica de processos coletivos e democráticos e se desenvolve no dia-a-dia da rede escolar e de suas unidades. O importante é não perder o rumo.

Recebido em 31.5.2007 e aceito em 11.6.2007.

Glaura Vasques de Miranda é professora emérita da Faculdade de Educação da UFMG. Exerceu o cargo de secretária municipal de Educação no período 1993/1996. A proposta Escola Plural foi implementada na prefeitura de Belo Horizonte a partir de 1994. O projeto foi elaborado por um grupo de professores da rede, sob a coordenação do professor Miguel Arroyo. @ – glauravm.bhe@terra.com.br

  • MAGELA. G. A Escola Plural na berlinda. Estado de Minas, 11 de setembro de 2004.
  • PREFEITURA Municipal de Belo Horizonte. Escola Plural: proposta político-pedagógica da Rede Municipal de Belo Horizonte Secretaria Municipal de Educação, 1994.
  • UFMG-FAE-GAME. Avaliação da implementação do projeto político-pedagógico Escola Plural Belo Horizonte, junho de 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2007
  • Aceito
    11 Jun 2007
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