Open-access Revistas ilustradas: fonte para revisão sobre o preconceito e imaginário social na imigração japonesa

MUITO SE TEM enfatizado sobre a prodigalidade das recentes abordagens históricas, sob o influxo da Nova História. Aliás, já não tão nova assim, pois, gerada na esteira da École des Annales (1930), conheceu revisões, etapas e contribuições, vivenciando-se desde os anos 1990 novos aportes, que hoje tem em Michel Vovelle, Michel Foucault, Marc Ferro e Roger Chartier teóricos frequentes na inspiração metodológica para significativos trabalhos na área.

Ficaram para trás as limitações da História factual de Jules Michelet (1798-1874) e aquela de proposta positivista e científica de Leopold von Ranke (1795-1886). Hoje, o novo trato da História contempla focos inusitados de pesquisa, privilegiando aquela da “longa duração” (Braudel, 1949), ou da “História vista por baixo” (Thompson, 1966, 1987), ou da Micro-História (Ginzburg, 1987) e os tantos tratos das mentalidades (Vovelle, 2004) e dos imaginários. A empreitada tem sido árdua, pois opera com estratificações de classe sociais, massas anônimas, vencidos e esquecidos dos processos históricos, em amplo tratamento multidisciplinar e interdisciplinar da História. Logo, o leque de fontes que se abriu para pesquisas de tal magnitude foi rico e diversificado, permitindo caminhos e fontes inusitados para a busca de testemunhos soterrados pelas tantas camadas das visões dos vencedores, das histórias oficiais, institucionais, “vistas de cima”, conforme escritas sob o crivo dos fatos ou dos postulados positivistas.

Entre as novas fontes utilizadas nesse novo mister, as revistas periódicas, particularmente as ilustradas, têm se colocado como vestígios documentais potencializados para percorrer e reavivar o passado em muitos aspectos. Nelas, desde que contextualizadas, são apreendidas as respectivas dinâmicas cotidianas, os registros de narrativa de época, as estéticas emergentes e/ou consagradas, os registros da arte gráfica coeva, enfim – uma gama diversificada de respostas ao historiador, que com elas souber interagir e proceder às indagações pertinentes ao recorte de seu estudo.

O preâmbulo acima sobre narrativas históricas renovadas, temáticas inusitadas e fontes alternativas justifica-se para introduzir a obra da historiadora Márcia Yumi Takeuchi (2016), conforme se constata no livro de sua autoria Imigração japonesa nas revistas ilustradas. Preconceito e imaginário social (1897-1945). Trata-se de bem cuidada edição da Edusp, com auxílio Fapesp, lançada em 2016, resultado de seu doutorado defendido na FFLCH-USP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Luiza Tucci Carneiro.

Nesse trabalho, a autora se propõe a apreender os preconceitos e o imaginário social sobre o imigrante japonês no Brasil, em arco de longa duração, de 1897 a 1945, balizas referentes à chegada dos japoneses no Brasil até ao final da Segunda Guerra Mundial. Para isso, prioriza a fonte “revistas ilustradas” do período, com as quais trabalha em cotejo com as fontes oficiais da legislação pertinente sobre o assunto, assim como com a documentação do Itamaraty, órgão diretamente envolvido com o programa imigratório.

Essa conjugação permitiu-lhe recuperar a representação de um tempo repleto de ocorrências e nuances até aqui insuspeitas, possibilitando novas visões do período em meio à sua complexidade. Vale lembrar que o recorte espacial selecionado se caracterizou no Brasil por ocorrências de peso, como a mudança de regime político, revoluções, golpes de estado, ditadura, guerra mundial, modernização tecnológica, além de rupturas de ordem vária, destacando-se aquela da estética passadista com a emergência do modernismo.

Sem perder o foco da pesquisa, a autora atravessa os bastidores de uma trajetória plural e transformadora e vai além do imaginário sobre o imigrante japonês no Brasil. Aliás, as palavras-chave da obra são restritas para classificar as áreas de interesse do trabalho, pois a pesquisa ultrapassa as questões da imigração japonesa e dos japoneses no país, assim como a política de imigração, o imaginário e o preconceito racial. Sem dúvida, a autora dá conta de todas elas, mas permite ampliar essa paisagem cultural, territorial e temporal, para novas indagações e/ou ocorrências na mentalidade, no espaço e no tempo trabalhados.

Certo que a bibliografia sobre a imigração japonesa no Brasil é rica em pesquisas acadêmicas sobre o tema.1 Na sua maioria, trabalham e analisam estereótipos que associam os nipônicos à propaganda fabricada para seu ingresso no Brasil – em momento de forte culto eugênico – quando a “raça amarela” era vista fisicamente como imprópria à construção do novo homem brasileiro então previsto pelo Estado: loiro, alto e forte. Contudo, o uso da fonte “revista ilustrada” sinalizou a Márcia Takeuchi uma possível abordagem metodológica, para um tema – “Preconceitos e imaginário social da imigração japonesa” – de difícil apreensão na documentação de época, dado o caráter difuso e subjetivo dessa manifestação.

No espaço limitado desta resenha, limito-me às linhas gerais do trabalho, detendo-me em especial na dimensão que mais me diz respeito, que é aquela do uso das revistas como fonte e, no limite, como objeto de estudo.

A autora inicia situando na vasta bibliografia utilizada os antecedentes da imigração japonesa no Brasil, trabalhados na complexa intercessão entre as visões do Itamaraty, a ideologia do progresso cultivada pela República e a construção da nação que se propunha à criação de um novo homem brasileiro. Como conclusão dessa parte introdutória, infere a necessidade da avaliação da Intelligentsia nacional sobre o nativo e o exótico nas revistas.

E por que nas revistas? Vale lembrar que, nessa altura, o Brasil, despossuído de casas editoras, tinha nas revistas o raro espaço de inserção para essa Intelligentsia colocar-se em letra impressa, ou veicular mensagens por meio de seus artistas gráficos (chargistas, caricaturistas, fotógrafos etc.). A ampla segmentação dessa rede impressa periódica permitiu a comunicação e propaganda voltada aos mais diversos grupos sociais, profissionais e étnicos, de tal forma que se apresentava como “retrato de época”, em várias dimensões. Tratava-se de impresso de custo baixo, fácil leitura, artigos curtos e ligeiros, e dotados de ilustrações, figurando como espaço quase exclusivo para a “leitura” da rala população leitora e, junto a isso, para veiculação dos projetos nacionais em curso. Nele, o “perigo amarelo” aparecia ao sabor dos interesses da política imigrantista, dos ideólogos do período, consumidos mesmo pela população semianalfabeta do país, que as “lia” por meio das caricaturas e charges, inexoráveis em todas elas.

Na perspectiva metodológica, o procedimento da autora se pautou por práticas inerentes ao trabalho com a fonte revista, procedendo previamente, durante três anos, à seleção de charges e artigos em revistas publicadas em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre os anos 1908 e 1945, atendendo aos critérios de localização, periodicidade estável e atenção para as ocorrências político-sociais do momento no país. Assim, estabeleceu como meta inventariar todas a revistas selecionadas, número a número, no que se refere aos textos e imagens sobre o Japão e aos imigrantes japoneses no Brasil. Foram trabalhadas as revistas cariocas Careta, Fon-Fon!, Revista da Semana e Vamos Ler! e as paulistanas O Sacy, O Pirralho e A Cigarra, editadas nos centros de maior expressão econômica, produção gráfica de ponta e público leitor mais ampliado do país.

Cabe lembrar que essas publicações foram exatamente aquelas que conheceram circulação expressiva para a época, espelhando a sociedade à qual serviram, dotadas de expedientes e colaboradores literários já de renome, assim como de ilustradores disputados no mercado. Os caricaturistas Voltolino, Phoca, e os pintores Di Cavalcanti, Alfredo Norfini e Umberto Della Latta são nomes recorrentes nessas publicações, quer como diretores artísticos dos periódicos, quer como ilustradores ocasionais. Destacando a iconografia das revistas (charges políticas, reproduções fotográficas e imagens pictóricas) talvez como principal fonte trabalhada, a autora valeu-se de repertório significativo de estudiosos da imagem e do humor, respectivamente Boris Kossoy e Elias Thome Saliba, fundamentando teoricamente as análises imagéticas e humorísticas.

Logo, as revistas ilustradas propiciaram à autora – muitas vezes mais do que o oferecido pelo jornal – os clichês xenófobos e racistas do cotidiano delas emanado, sobretudo quando tratados sob a figuração até amigável e simpática do japonês de “sorriso amarelo”. Junto a isso, apreendeu as constantes discussões que permearam a vinda e permanência desse grupo no Brasil como mão de obra para a lavoura do café. Essa representação, via de regra, os tratava de forma negativa, como temidos e rechaçados, fosse pelo estranhamento do biótipo diverso do ocidental, fosse pelo registro pejorativo e tendencioso advindo das posições bélicas tomadas pelo Japão, no contexto da Guerra da Manchúria e mesmo da Segunda Guerra Mundial.

O rastreamento da fonte “revista” permitiu identificar e conferir mitos, construções estereotipadas e preconceitos, recuperados imageticamente, mas também embasados pelos aportes das circulares e discussões da documentação do Itamaraty. Vale lembrar que naquela altura – salvo poucos nomes e exceções – a instituição era marcada pelo culto da eugenia então em voga, que procurava por meio de teorias científicas correntes elevar o branqueamento da raça, a construção do homem brasileiro a exemplo do modelo ariano, sob discursos falaciosos de uma nacionalidade formada por homens fortes, que fariam o Brasil forte. Não por acaso deu-se nesse período o cultivo da educação física no contexto da busca de um nacionalismo que primava por fazer “Homens Fortes para um Brasil Forte” (Bercito, 1991).


“A Pendenga Nipo-Americana”

“A Gueixa no Palácio Teatro”.

Ou seja: Márcia Takeuchi articulou, sobretudo, duas fontes de caráter e conteúdos diversos na forma e no conteúdo: aquela das revistas ilustradas (conforme já consta do título), documento periódico informal, coevo ao fenômeno da imigração, galhofeira e iconograficamente rica, mas também conjugou esse material às fontes oficiais, em particular a documentação do Itamaraty, exercendo sobre ambas a necessária crítica documental externa e interna, de rigor na análise de todo e qualquer discurso de época.

Vale abrir um pouco mais o leque das contribuições de Takeuchi nessa obra, nascidas sempre do trabalho articulado e crítico das fontes mencionadas – as revistas e as circulares do Itamaraty – para acrescentar, por fim, as contribuições de sua produção, que não se limitam tão só às informações do título (o que já seria muito), mas que vão além. Por meio de narrativa sedutora, que nos enreda na leitura do princípio ao fim, enveredamos por capítulos da história de São Paulo; da questão da imigração como um todo, não exclusivamente japonesa; da mentalidade vigente no período em amplo espectro; da contribuição literária de figuras seminais da época, pondo em cena nomes relevantes da cultura brasileira de então. Avança ainda por aspectos novos e diversos da economia cafeeira, aparentemente já tão trabalhada; a dinâmica da economia paulista na passagem do capital agrário para o comercial e industrial e mesmo financeiro.

Da Primeira República ao Estado Novo, percorrem-se anos vitais no processo histórico do país, permeados por situações conflitantes e modelos políticos variados, decretação de Estados de sítio, golpes, revoluções, movimentos messiânicos, tempos beligerantes.

Surpreendentemente, quase todos esses episódios estão nesse livro. Sobressai, sem dúvida, a temática à qual se propôs a autora, qual seja, a questão do preconceito e dos imaginários que vicejaram por aqui com a presença japonesa no Brasil, no período aludido. Nesse sentido, Takeuchi colhe na fonte periódica revista as figurações mais eloquentes e arrebatadoras para a confirmação da tese defendida, sobre o difícil percurso do imigrante japonês no Brasil. Imprime crítica arguta às imagens estereotipadas então veiculadas, não obstante o acolhimento amável conforme o representavam na folha impressa, fosse como a gueixa elegante, símbolo de feminilidade da mulher do Oriente, fosse como o valoroso samurai e mesmo aquele do elemento dócil e submisso, reproduzido com o recorrente “sorriso amarelo”.

Ao filtrar e reunir os estilhaços de imagens reproduzidas nas revistas, a autora empreendeu o trabalho paciente e filigranático de recompor as práticas e os agentes de uma saga ainda não totalmente explorados pela historiografia.

Logo, Imigração japonesa nas revistas ilustradas: preconceito e imaginário social (1897-1945), de Márcia Yumi Takeuchi, é leitura necessária e urgente em tempos de discriminações explícitas ou mesmo camufladas, permitindo a revisão de preconceitos, muitos deles até hoje arraigados na sociedade. Para além disso, o uso competente da fonte “revista ilustrada” revela o rigor metodológico necessário para seu uso, acenando com sua viabilidade e potencialidade no trato dos mais variados recortes temáticos. Fica aqui a enfática sugestão para seu uso, seja como principal fonte para estudos das mais diversas áreas, seja como fonte complementar para a possível reconstrução do passado.


“Personagens da Alta Comédia”.

ota

Referências

  • BERCITO, S. de D. R. Ser forte para fazer o país forte 1991. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1991.
  • BRAUDEL, F. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II Paris: Librairie Armand Colin, 1949.
  • CARNEIRO, M. L. T. Livros proibidos, ideias malditas O Deops e as minorias silenciadas. São Paulo: Estação Liberdade, 1987.
  • CHARTIER, A. M.; HÉBRARD, J. Discursos sobre a leitura 1880-1980 São Paulo: Ática, 1995
  • _______. A história cultural, entre práticas e representações Rio de Janeiro; Lisboa: Bertrand Brasil S.A.; Difel, s. d.
  • CRUZ, H. de F. A imprensa paulistana: do primeiro jornal aos anos 50. In: PORTA, P. (Org.) História da cidade de São Paulo A cidade no Império. São Paulo: Paz e Terra, 2004. v.2, p.351-85.
  • DEZEM, R. Matizes do “Amarelo” A gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil. 1879-1908. São Paulo: Humanitas; Fapesp; LEI, 2005.
  • GINZBURG, C. O queijo e os vermes O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • GOMES, A. M. de C. Ideologia e trabalho no Estado Novo. In: PANDOLFI, D. (Org.) Repensando o Estado Novo Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1999.
  • MARTINS, A. L. Revistas em revista Imprensa e práticas culturais em tempos de República. 1889-1922. São Paulo: Edusp, 2001.
  • TAKEUCHI, M. Y. Imigração japonesa nas revistas ilustradas Preconceito e imaginário social (1897-1945). São Paulo: Edusp, 2016.
  • THOMPSON, E. P. History from below. In: The Times Literary Supplemnt 7 de abril de 1966, p.279, 280.
  • _______. A formação da classe operária Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 3v.
  • VOVELLE, M. Ideologias e mentalidades São Paulo: Brasiliense, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2017
  • Aceito
    10 Jul 2017
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