Open-access A memória da poesia modernista

RESUMO

Nos anos 1920, os modernismos brasileiros revelavam estratégias não apenas de ruptura com a tradição, mas também de continuidade, como apontam suas relações com a elite aristocrática do café (patrocinadora da Semana de Arte Moderna) e também com o romantismo (especialmente, o de José de Alencar). A construção da memória modernista sobre o Brasil é um dos índices mais reveladores desse movimento ambivalente de ruptura e de continuidade com a tradição, destacando-se, nesse processo, o registro do histórico de violência do Brasil colonial, bem como a incorporação da fala brasileira por meio da literatura.

PALAVRAS-CHAVE: Modernismos; Ruptura; Continuidade; Memória; Violência; Fala brasileira

ABSTRACT

In the 1920s, the Brazilian modernisms revealed strategies not only for the rupture with the tradition but also for continuity, as their relations both with the coffee-based aristocratic elite (which sponsored of the Modern Art Week) and with Romanticism (especially José de Alencar’s). The construction of a Modernist memory about Brazil is one of the most revealing indices of this ambivalent movement of rupture with and continuity of tradition, highlighting, in this process, the history of violence in colonial Brazil, as well as the incorporation of a Brazilian way of speaking through literature.

KEYWORDS: Modernisms; Rupture; Continuity; Memory; Violence; Brazilian way of spea- king

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O centenário da Semana de Arte Moderna se realiza num momento de imensa complexidade. Políticas de Estado altamente conservadoras estão ampliando as desigualdades no Brasil. Se não bastasse, manifestam-se ataques incessantes à democracia, à cultura e ao conhecimento científico. Trata-se de um processo conduzido por meio daquilo que Heloísa Starling caracterizou, ao discutir o último 7 de Setembro, como um “sequestro” de símbolos nacionais, que tem como finalidade a “destruição” (apud Vasconcelos, 19 set. 2021). Por maiores que sejam os problemas concernentes à Semana de Arte Moderna, que em grande medida fez a manuteção do status quo patriarcal, é também inegável que a destruição não era o motivo desencadeador desse acontecimento que marcou a história do Brasil moderno.

Nesse sentido, não é possível esquecer que certos modernistas estiveram ligados ao trabalho de preservação do patrimônio histórico e artístico nacional, como foi o caso de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade, entre outros colaboradores que participaram da construção de um lastro modernizante a partir das artes brasileiras. As cidades históricas mineiras, obras de Aleijadinho e de mestre Ataíde são exemplos notáveis desse ímpeto de preservação do passado, em que símbolos de uma brasilidade modernizante foram sendo apresentados oficialmente mediante o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), criado em 1937, durante o governo de Getúlio Vargas.

Os modernismos brasileiros consistiram num momento-chave de construção da memória nacional, trazendo-lhe um caráter singular em comparação com as vanguardas europeias. Essas, na sua radicalidade, chegaram a anunciar de forma iconoclasta a destruição de bibliotecas e museus, negando o retorno ao passado, conforme o “Manifesto futurista”, de Marinetti, publicado no jornal francês Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909: “Nous voulons démolir les musées, les bibliothèques […]”; “Nous sommes sur le promontoire extrême des siècles!… A quoi bon regarder derrière nous, du moment qu’il nous faut défoncer les vantaux mystérieux de l’impossible?” (Marinetti, 1909, p.1).

No contexto dos modernismos brasileiros, porém, tanto antes quanto depois da criação do Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (Sphan), alguns autores fizeram da própria literatura um recurso de patrimonialização, notável em poemas de Oswald de Andrade publicados em Pau-brasil (1925); em obras de Manuel Bandeira, como “Camelôs” e “Evocação do Recife”, publicados em Libertinagem (1930), seus livros Crônicas da província do Brasil (1936) e o Guia de Ouro Preto (1938);1 em textos de Confissões de Minas (1944), de Carlos Drummond de Andrade etc.

No artigo “Patrimônio cultural e dominação”, publicado no Suplemento Pernambuco em 25 de outubro de 2021, Rogerio Proença Leite (2021) destacou que, por muito tempo, no Brasil, “as políticas de patrimônio deram as costas à pluralidade e reconheceram apenas bens culturais associados à etnia branca de origem europeia, católica e militar”, listando, em seguida, que “foram tombados e preservados fortes, igrejas, conventos, casarios coloniais, sítios de arquitetura portuguesa e monumentos à elite brasileira”. Segundo o autor, nesse processo de tombamento, não à toa ficavam à margem os “contributos artísticos e culturais das diversas culturas africanas e indígenas que se amalgamaram conflituosos na formação do povo brasileiro”.

Por outro lado, nesse mesmo artigo, Proença Leite destacou a relevância de se defender a preservação do patrimônio cultural, “por assegurar que possamos rememorar o passado e aprender com ele; e por garantir no presente a visibilidade e sobrevida das culturas em sua amplitude e diversidade”, assim participando da formação de uma “cultura cívica e democrática” (ibidem). Agora, contudo, a memória construída pelos modernismos está sob evidente risco. O incêndio do Museu Nacional, o interesse de leiloar o Palácio Gustava Capanema - um dos ícones da arquitetura moderna - são fatos inquestionáveis acerca não apenas de um “sequestro”, mas também de uma “destruição”.

Sob outra perspectiva, contemporaneamente está se passando o fortalecimento de organizações sociais que reivindicam direitos igualitários num país homofóbico, machista e racista. Nesse mesmo caminho, tendências desconstrutivistas da crítica ganham cada vez mais espaço no campo da recepção da literatura, bem como em outras áreas das Humanidades, que têm nas críticas feministas e negras dois exemplos notáveis de proposições contraepistemológicas, alterando o cenário dos estudos literários.

Ao propor outros modos de ler e de abordar a literatura, o novo cenário da crítica está dando visibilidade a produções artísticas e literárias que se distanciam de certos aspectos do cânone brasileiro, no qual se destacam especialmente obras modernistas ou derivadas dos modernismos. Essas às vezes têm sido definidas, por exemplo, como “antinegras”, em razão da importância que deram à miscigenação no processo formativo da sociedade brasileira, como apontaram os pesquisadores Osmundo Pinho e Jorge Augusto na live “Gira de diálogos sobre o apartaide brasileiro - Modernismo, miscigenação e totemismo antinegro”, realizada pelo Laboratório de Estudos Negros no dia 30 de outubro de 2021, com mediação de Eneida Leal Cunha. Nessa live, Jorge Augusto ainda argumentou que “o modernismo queria operacionalizar a passagem de uma identidade étnica de base racial para uma identidade étnica de base cultural”, e sem dúvida alguma a construção da memória participou ativamente desse processo.

As correntes da crítica da literatura que se dedicaram à canonização dos modernismos também estão sendo igualmente submetidas a um percurso de revisões diversas, às vezes desconsiderando seus avanços em relação ao tipo de crítica que despontava no início do século XX em jornais e revistas (Süssekind, 1993, p.13-33).

Então, ante um contexto desse tipo, em que hoje as políticas de Estado e as políticas específicas da literatura contrastam de modo explícito, como ler os modernismos brasileiros, de maneira a não celebrá-los acriticamente ou, ao contrário, torná-los um acontecimento menor, menosprezando, assim, suas implicações na arte e na cultura brasileiras criadas desde então?

Nas contradições dos modernismos brasileiros e nos conflitos internos que neles se firmaram talvez seja possível encontrar alguns meios para abordar suas colaborações e ainda seus equívocos em torno das renovações que propuseram, em relação tanto aos seus projetos literários quanto aos posicionamentos ideológicos que se manifestaram por meio deles. Suas próprias contradições e conflitos parecem sinalizar, de antemão, que os problemas dos modernismos brasileiros exigem uma visada de mão dupla, que não deve apenas celebrá-los nem se dedicar exclusivamente às desconstruções, colocando-os como um movimento reacionário, embora houvesse reacionarismo em suas tendências, como foi o caso do verde-amarelismo de Plínio Salgado (Jardim, 2016, p.83-103).

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Um dos pontos mais contraditórios dos modernismos brasileiros se mostra na permanência de algumas tradições, mesmo ao considerarmos o período em que seus protagonistas fomentavam a ideia de ruptura. Textos publicados na imprensa pelos modernistas pouco antes da realização da Semana de Arte Moderna deixam em evidência seu vínculo com uma elite de origem aristocrática ligada à economia do café, patrocinadora dessa festividade das artes brasileiras ditas de renovação.

Não raro, surgiam textos que, na imprensa, associavam a elite paulistana à cultura e à civilização europeias, portanto, à cultura oficial da época, o mesmo se passando em relação aos próprios artistas modernistas, que foram ainda associados a certas tradições referentes às artes. Na crônica “As Juvenilidades Auriverdes”, de Mário de Andrade, publicada no jornal A Gazeta de São Paulo em 7 de fevereiro de 1922, Guilherme de Almeida foi definido como um “aristocrata maravilhoso” e autor de Canções gregas; Luís Aranha, como aquele que lia e relia “todos os clássicos da língua”; Sérgio Milliet, como “outro aristocrata, educado na Suíça”; Di Cavalcanti foi associado a Lautrec e Rackam, não tendo “a cor do futurismo”; Villa-Lobos “nunca viu música de Pratella ou Russolo”, vanguardistas europeis, mas seguiu Debussy, que foi um compositor reconhecidamente romântico (Boaventura, 2008, p.41-2).

No mesmo dia, Hélio (Menotti del Picchia) publicou uma crônica no Correio Paulistano onde se referiu à Semana de Arte Moderna como “o maior acontecimento mundano da temporada”, com “as fidalgas e tradicionais figuras dos doutores Paulo Prado, Oscar Rodrigues Alves, René Thiollier: e outros tantos patrícios do mais lídimo estofo da velha aristocracia bandeirante” (Boaventura, 2008, p.43). Em seguida, apontou que, “sob os auspícios da elite paulistana”, ia comparecer “nosso mundo oficial” à Semana de Arte Moderna (ibidem, p.44). Nessa crônica, Menotti del Picchia parecia anunciar mais uma festa da high society paulistana do que o lançamento público de novas orientações no campo das artes brasileiras; parecia mais uma jogada de marketing da elite paulistana, que se lançava a novos negócios,2 do que um movimento de ruptura em busca do ajuste do “relógio império da literatura nacional”, como afirmaria posteriormente Oswald de Andrade (1978, p.9) no “Manifesto da poesia-paubrasil (1924).

Em sua conferência “O movimento modernista”, realizada em 1942, Mário de Andrade (1974, p.236) destacou uma nítida ligação entre o modernismo e a aristocracia: “Pelo seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia de espírito”. Em seguida, Mário de Andrade falou sobre Paulo Prado, uma das figuras centrais na organização da Semana de Arte Moderna: “Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma das figuras principais da nossa aristocracia tradicional” (ibidem, p.236-7).

Em 27 de março de 1922, em carta, Paulo Prado (2004, p.295) escreveu a René Thiollier sobre o artigo que esde havia publicado no dia anterior: “Pois então todo esse valente e belíssimo trabalho da Semana de Arte Moderna nem ao menos convenceu e conquistou o seu inteligente e ativo organizador?”.3 Em outro parágrafo, mais próximo do fim da carta, Paulo Prado buscou uma reaproximaçã, valendo-se das suas “admirações” e “culto pelo Passado”, que continuavam “intactos”, mesmo depois da Semana (ibidem, p.296).

Não por acaso, na seção “Poemas da colonização” de Pau-brasil (1925), Oswald de Andrade pôs em cena uma “transação” que formou a elite do café, de que, por sinal, alguns modernistas faziam parte, como era o caso de Paulo Prado:

a transação O fazendeiro criara filhos Escravos escravas Nos terreiros de pitangas e jabuticabas Mas um dia trocou O ouro da carne preta e musculosa As gabirobas e os coqueiros Os monjolos e os bois Por terras imaginárias Onde nasceria a lavoura verde do café (O. de Andrade, 1974, p.92)

A transação/transição ecônima é apresentada ao leitor sem problematizações, com verbos (“criara” e “trocou”) que suavizam as práticas de exploração e o próprio genocídio do povo negro, bem como ameniza a violência que caracterizou o processo de “libertação” dos escravos. Num aparente passe de mágica, o “ouro da carne preta e musculosa”, as “gabirobas” e os “coqueiros”, os “monjolos” e “bois” cedem espaço a “terras imaginárias” de onde nasceriam a “lavoura verde do café”. O cenário bucólico e idílico desse poema também colabora com a diluição das tensões referentes às estratégias de dominação da elite brasileira, que nessa seção de Pau-brasil é a única vitoriosa, com sua “lavoura verde do café”, anunciando esperança.

Nos poemas “prosperidade” e “paisagem”, que se encontram na seção “São Martinho”, podemos observar um tratamento semelhante (não problematizador) em torno da economia do café: “O café é ouro silencioso/ De que a geada orvalhada/ Arma torrefações ao sol/ Passarinhos assoviam de calor/ Eis-nos chegados à grande terra/ Dos cruzados agrícolas/ Que no tempo de Fernão Dias/ E da escravidão/ Plantaram fazendas como sementes/ E fizeram filhos nas senhoras e nas escravas” ( “prosperidade”, O. de Andrade, 1974, p.98); “O cafezal é um mar alinhavado/ Na aflição humorística dos passarinhos/ Nuvens constroem cidades nos horizontes dos carreadores/ E o fazendeiro olha os seus 800 000 pés coroados” (“paisagem”, O. de Andrade, 1974, p.98). De modo semelhante à poesia de Oswald de Andrade, em Nós (1917) Guilherme de Almeida também escreveu sobre o (re)nascimento dos cafezais, sem apresentar qualquer problematização ao leitor: “e a terra torrada, a terra torresmo, a terra estorricada no forno crepuscular das queimadas// para o renascimento simétrico e verde dos cafezais em alexandrinos// alinhados nas cabeças parnasianas das colinas penteadas com pentes-finos…” (Almeida apud Bandeira, 1996, p.86).

Por outro lado, em “a transação” há um contraste notável entre o primeiro poema e a maioria dos poemas subsequentes dessa seção, que nos revelam flashs do histórico de violência de um país radicalmente escravocrata: “O Jerônimo estava numa outra fazenda/ Socando pilão na cozinha/ Entraram/ Grudaram nele/ O pilão tombou/ Ele tropeçou/ E caiu/ Montaram nele” (“negro fugido”, O. de Andrade, 1974, p.92); “O canivete voou/ E o negro comprado na cadeia/ Estatelou de costas/ E bateu coa cabeça na pedra” (“cena”, ibidem, p.93-4); “A escrava pegou a filhinha nascida/ Nas costas/ E se atirou no Paraíba/ Para que a criança não fosse judiada” (“medo da senhora”, ibidem, p.94); “Contam que houve uma porção de enforcados/ E as caveiras espetadas nos postes/ Da fazenda desabitada/ Miavam de noite/ No vento do mato” (“levante”, ibidem, p.94); “- Chega! Peredoa!/ Amarrados na escada/ A chibata preparava os cortes/ Para a salmoura” (“azorrague”, ibidem, p.95).

Dessa maneira, o contraste é feito entre uma microcena amena e esperançosa referente à transação econômica da elite brasileira e as microcenas subsequentes, que ocupam a quase totalidade da seção. Essas microcenas subsequentes estão ligadas sobretudo ao registro cru do autoritarismo, da exploração e da violência do Brasil colonial, onde o medo se faz presente e até mesmo insuportável, como nos versos de “medo da senhora”. Nesses poemas, contudo, predomina a recusa em nomear os agentes das ações de violência e dos traumas, o que se torna evidente por meio do uso de sujeitos indeterminados (ou seriam ocultos?), como “entraram”, “grudaram” e “montaram”, bem como em “as caveiras espetadas nos postes” (“espetadas” por quem?). A crueldade da colonização foi retratada em Pau-brasil, de forma brutal, mas a “velha aristocracia” sofreu escamoteamentos na maior parte das cenas de violência retratadas por Oswald de Andrade.

Nas obras de muitos outros modernistas avultam cenas de violência que compõem um quadro traumático, localizado em diversos poemas de Raul Bopp, como “Negro” (1926),4 reunido na seção “Poemas brasileiros” de Putirum (1968). Seus versos merecem destaque porque, ao contrário de outros poemas modernistas em torno dos negros, aqui esses não são representados por características esteriotipadas, como o gingado e a sensualidade. Com força expressiva e ritmo preciso, “Negro” consiste numa história compacta da escravidão e dos seus efeitos, apresentando, no final, a palavra “urucungo” (berimbau), que vibra a queixa dos encoleirados de ferro e o clima de melancolia relacionado às suas perdas:

Pesa em teu sangue a voz de ignoradas origens As florestas guardaram na sombra o segredo da tua história A tua primeira inscrição em baixo-relevo foi uma chicotada no lombo Um dia atiraram-te no bojo de um navio negreiro E durante longas noites e noites vieste escutando o rugido do mar como um soluço no porão soturno O mar era um irmão da tua raça Uma madrugada baixaram as velas do convés Havia uma nesga de terra e um porto Armazéns com depósitos de escravos e a queixa dos teus irmãos amarrados em coleiras de ferro Principiou aí a tua história O resto a que ficou pra trás o Congo as florestas e o mar continuam a doer na corda do urucungo (Bopp, 1968, p.93)

Outros índices de violência podem ser encontrados em “Coco do major”, do livro Clã do jabuti (1927), de Mário de Andrade: “- Esta é minha filha mais nova,/ Beba, moço, que essa água é de fonte./ E os negrões afogam o pobre/ - seu mano -/ Que adubou os faxeiros do monte” (Andrade, 1993, p.198); “Essa negra Fulô”, publicado em Novos poemas (1929), de Jorge de Lima: “Ó Fulô? Ó Fulô?/ Cadê meu lenço de rendas,/ cadê meu cinto, meu broche,/ cadê meu terço de ouro/ que teu Sinhô me mandou?/ Ah! foi você que roubou./ Ah! foi você que roubou.// Essa negra Fulô!/ Essa negra Fulô!// O Sinhô foi açoitar/ sozinho a negra Fulô./ A negra tirou a saia/ e tirou o cabeção,/ de dentro dele pulou/ nuinha a negra Fulô” (Lima, s.d., p.146); “Cunhantã”, publicado em Libertinagem, de Manuel Bandeira: “Vinha do Pará./ Chamava Siquê./ Quatro anos. Escurinha. O riso gutural da raça./ Piá branca nenhuma corria mais do que ela.// Tinha uma cicatriz no meio da testa:/ - Que foi isto, Siquê?/ Com voz de detrás da garganta, a boquinha tuíra:/ - Minha mãe (a madrasta) estava costurando/ Disse vai ver se tem fogo/ Eu soprei eu soprei eu soprei não vi fogo/ Aí ela se levantou e esfregou com minha cabeça/ na brasa” (Bandeira, 1998, p.34); no poema de Carlos Drummond de Andrade (2012, p.140) sobre a Revolução de 1930, “Outubro 1930”, publicado em Alguma poesia (1930): “Olha a negra, olha a negra,/ a negra fugindo/ com a trouxa de roupa,/ olha a bala na negra,/ olha a negra no chão/ e o cadáver com os seios enormes, expostos, inúteis”; a violência também está presente em diversos textos de História do Brasil (1932), de Murilo Mendes, como “Relíquias de frei Caneca” e “O chicote de João Cândido”: “O carrasco recuou,/ Não pode o frade enforcar./ Um preso então se adianta,/ Pegou na espingarda fiel,/ Fez pontaria no frade,/ O frade caiu no chão” ( “Relíquias de frei Caneca”, Mendes, 1994, p.157); “Seu marechal, dê o fora,/ Senão leva chibatada./ Meu chicote é sem piedade,/ Sabe responder ao seu” ( “O chicote de João Candido”, ibidem, p.172). Nesse último caso, a cena se relaciona a movimentos de oposição ao sistema então vigente, que também se fazem presentes em “Cantiga dos Palmares” e “Milagre de Antônio Conselheiro”.

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Sem dúvida alguma, nos “Poemas da colonização” há uma visada crítica em torno da violência como índice hegemônico da história de dominação e como um traço das dinâmicas sociais do país. Além disso, as dinâmicas sociais típicas da brasilidade, que se formularam durante o período colonial, surgem em poemas como “pobre alimária”, agora no contexto moderno e maquínico, abrindo a seção “Postes da Light” do livro Pau-brasil:

pobre alimária O cavalo e a carroça Estavam atravancados no trilho E como o motorneiro se impacientasse Porque levava os advogados para os escritórios Desatravancaram o veículo E o animal disparou Mas o lesto carroceiro Trepou na boleia E castigou o fugitivo atrelado Com um grandioso chicote (Andrade, 1974, p.120)

No ensaio “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, publicado no livro Que horas são?, Roberto Schwarz (1987) analisou esse poema valendo-se do “enfrentamento” e da “hierarquia” presentes em seus versos. O “enfrentamento” foi identificado pelo crítico por meio do “apoteótico chicote final”, que “se destina a provar que o carroceiro não aceita intimidação de motorneiros, bondes ou advogados, nem cede a palma a ninguém quanto ao valor”. A “hierarquia” se manifesta por meio da cena de punição, em que, “apoiado nos advogados, o motorneiro desconta no carroceiro, e este, apoioado num modelo cultural mais nobre ainda, mas também deslocado, desconta no cavalo”. Por fim, Schwarz (1987, p.16) constatou: “Pessoas, bichos, coisas e lugares, além de se oporem, suspiram em uníssono por uma forma de vida superior, um lugar menos atrasado, onde carroças fossem veículos, motorneiros fossem autoridades e advogados não sofressem contratempos”.

Trata-se de uma cena típica das estratégias da poesia pau-brasil, em que se justapõem o Brasil colônia e o Brasil burguês, compreendidos, nesse poema, com uma certa naturalidade: “Assim, a construção do poema superpõe coordenadas incongruentes, cujo desajuste desafia diretamente a consciência histórica: arte de vanguarda vs. ciumeiras de província; Brasil da carroça vs. Brasil dos escritórios; individualismo pagão vs. alegoria patriótica ou culto da interioridade”, analisou Roberto Schwarz (1987, p.20). Em seguida, ele concluiu: “São questões com peso real, que no entanto, por um efeito estratégico da composição, não têm maior gravidade nem parecem constituir um problema”. Em “pobre alimária”, Oswald de Andrade manifestou um retrato do Brasil que funciona como símbolo do nacional, em que não há uma efetiva ruptura com o passado, mas uma depuração e uma naturalização dos seus elementos, ainda nas palavras de Schwarz (1987, p. 22).


Retrato de Oswald de Andrade. 1922. Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 51 x 42 cm.

Já em seu “Manifesto antropófogo” despontam críticas claras ao sistema patriarcal brasileiro, estruturando-se um posicionamento contra “as elites vegetais” (Andrade, 1978, p.16) e “o pater famílias” (ibidem, p.17).

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Em pleno modernismo, Lino Guedes, filho de ex-escravos, publicou o livro Black (1926). Na década seguinte, lançaria O canto do cisne preto (1935), Ressurreição negra (1936), Urucungo (1936), Dictinha (1938), entre outros. Na antologia Poesia negra brasileira, Zilá Bernd (1992, p.38) fez considerações acerca das diferenças entre sua poética e as orientações programáticas dos modernismos brasileiros:

Publicando suas obras em plena ebulição do movimento Modernista, Lino Guedes a ele manteve-se alheio. Para a comunidade negra da época, o momento era de construir, de elaborar uma imagem positiva de si própria, e não de destruir, subverter como propunham os modernistas.

Contudo, à sua maneira, o autor do Canto do cisne negro foi também inovador, pois deixou emergir no discurso poético um eu que se assumiu como negro, pretendendo ser a voz dos homens invisíveis de sua comunidade que, embora não sendo mais escravos, permaneciam fora do poder.

Ao contrário de Zilá Bernd, acreditamos que os modernismos estavam também preocupados com a construção de uma “imagem positiva”. Essa, porém, se fazia em torno da brasilidade, e não da comunidade negra, como foi o caso específico de Lino Guedes, cuja obra consiste num importante registro do que Oswaldo de Carmargo caracterizou, no Jornal da Tarde de 27 de junho de 1987, como “um momento importante da coletividade negra pós-Abolição” (Camargo apud Bernd, 1992, p.38).

Em Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (volume 1), organizada por Eduardo de Assis Duarte (2011, p.353), Heloisa Toller Gomes observou que a “ideologia racial” de Lino Guedes “exortava a população negra […] ao trabalho, à educação, à prosperidade e conferia ao acesso à propriedade o estado de respeitabilidade”. Nesse sentido, ainda conforme Heloisa Toller, o primeiro poeta assumidamente negro do século XX “optou por um didatismo explícito que, muitas vezes, interpôs-se entre a sua criatividade e a realização de sua poesia”, às vezes avaliada pela crítica como “dogmática, submetida aos valores burgueses hegemônicos proclamados pelas elites brancas, embora agudamente consciente da secular opressão a vitimar o povo negro” (ibidem, p.353).

Apesar de certos equívocos, a poesia de Lino Guedes, apropriando-se de formas populares da lírica, como as redondilhas - e nisso há um ponto em comum com os modernistas -, foi estabelecendo duas interessantes confrontações, que compreendiam duas temporalidades, o passado e o futuro, como podemos observar no poema “Novo rumo!”, publicado em Negro preto cor da noite (1936):

“Negro preto cor da noite”, nunca te esqueças do açoite que cruciou tua raça. Em nome dela somente faze com que nossa gente um dia gente se faça! Negro preto, negro preto! sê tu um homem direito como um cordel posto a prumo! É só do teu proceder que, por certo, há de nascer a estrela do novo rumo! (Duarte, 2011, p. 358)

Nesse poema, a construção da memória em torno da violência também se torna evidente (“nunca te esqueças do açoite”), como em outros versos de Lino Guedes, mas em seguida desponta alguma projeção referente ao futuro do negro no Brasil: “É só do teu proceder/ que, por certo, há de nascer/ a estrela do novo rumo!”, valorizando, assim, a ideia de superação individual.

Em outros versos de Lino Guedes, a construção da memória em torno dos índices de violência misturam-se à lírica amorosa, desenvolvendo duas ideias de dominação, a dominação relacionada às condições a que os negras foram submetidos durante a escravidão e a dominação que se liga ao amor, como em “Sem algemas?”, publicado no livro Dictinha: “Dictinha, escute uma história/ Muito nossa: antigamente,/ Não faz muito tempo ainda,/ Foi escrava a negra gente;/ Os mais pesados castigos/ Lhe deram impunemente.” Já na estrofe que encerra o poema, lemos: “O que depois ocorrera,/ É de ontem, por que falar?/ Mas, eu ainda, Dictinha,/ Preciso me libertar/ Do penoso cativeiro,/ Em que me traz seu olhar” (Duarte, 2011, p.361). Nesse caso, o “cativeiro” foi trabalhado por Lino Guedes sob o nível tanto conotativo quanto denotativo, apresentando “algemas” que se ligavam ao plano afetivo.

Trata-se de uma poesia menos dedicada à construção das identidades afrodescendentes do que ao processo de integração do negro à sociedade de classes e ao mercado de trabalho, assumindo, dessa maneira, um notável papel pedagógico, talvez necessário num contexto de alto analfabetismo entre os negros. Há de se destacar ainda o caráter precursor de Lino Guedes como defensor da emancipação do negro por meio da literatura (do letramento), o que hoje pode ser observado em diversos projetos socioculturais e acadêmicos.

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É contra o pedantismo da elite que se firmam as críticas mais explícitas de Oswald de Andrade (1978, p.5) em relação à sua classe. No “Manifesto da poe- sia pau-brasil”, há críticas ao “lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos”. Em outra passagem desse manifesto, Oswald de Andrade se lançou contra “o gabinetismo”, defendendo, em seu lugar, a “língua sem arcaísmos, sem erudição”, que devia receber “a contribuição milionária de todos os erros”, ou seja, o português do Brasil ou a fala brasileira (ibidem). Essa orientação criativa repercute nos versos de “pronominais” de Pau-brasil, que faz parte da seção “Postes da Light”:

pronominais Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro (O. de Andrade, 1974, p.125)

Em A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica, Eduardo Jardim (2016, p.65) afirmou que as orientações programáticas do “Manifesto da poesia pau-brasil” apresentava duas frentes: a primeira, considerava a necessidade de “questionar a visão importada e artificial da vida brasileira”, enquanto a segunda exigia a conquista de uma “nova visão da realidade, que permitisse a redescoberta do país”. A partir de 1924, uma série de modernistas buscavam construir as duas frentes por meio do problema da fala brasileira, como podemos constatar através dos versos de “pronominais”, que recuperam um dos objetivos de José de Alencar na “formação” da literatura nacional. O projeto alencariano de valorizar a fala brasileira por meio da literatura seria ampliado em volume e também em profundidade investigativa durante os modernismos, tornando-se um projeto coletivo, desenvolvido em todas as regiões do país.

É bom destacar que, antes da Semana de Arte Moderna, o problema da fala brasileira ou língua nacional esteve sob o foco de interesse de alguns filólogos e linguistas,5 como Amadeu Amaral, que escreveu O dialeto caipira (1920). Amadeu Amaral seria mais tarde incluído na Antologia dos poetas brasileiros: fase moderna, organizada por Manuel Bandeira. O interesse de Amadeu Amaral pela fala brasileira, evidente em O dialeto caipira, antecedeu a operacionalização da oralidade brasileira pelos modernistas, que pretendiam construir, dessa maneira, uma literatura de ruptura em relação à gramática oficial. Para os modernistas, a questão da dependência cultural passava também pela aprovação da fala brasileira enquanto maneira “correta” de se expressar. Ao escrever por meio da fala brasileira, trazendo-a como meio de manifestação artística, ela ganharia valor e legitimidade, consequentemente. A partir do momento em que centenas de autores escrevessem a fala brasileira, ela se tornaria normal, e depois se tornaria norma.

Conforme Edith Pimentel Pinto (1990, p.49) no imprescindível estudo A Gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e contexto, as pesquisas de Mário de Andrade em torno da fala brasileira compreendiam a “estilização do ‘brasileiro vulgar’, a que, no intento de abalar focos de resistência, concitava outros escritores”. Em seguida, entre os fragmentos destacados por Edith Pimentel Pinto, encontra-se este, retirado de uma caderneta de Mário de Andrade com o título “Língua Brasileira”, depositada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP):

Si cada um, estudando com seriedade e trabalho com afinco, desse a sua solução pessoal e transitória a este problema, não dou vinte anos, o elemento culto brasileiro, quero dizer a manifestação humana civilizada e por isso representativa (não fala característica) do Brasil na civilização atual já falaria e escreveria e já teria gramáticas duma fala mais concorde com a nossa nacionalidade original, a nossa sensibilidade, ideias e civilização. (Pinto, 1990, p.49)

Foi nesse sentido que os modernistas mais intervieram nas políticas especificamente literárias: incorporando as falas brasileiras como recurso de estilo para a formação de uma literatura nacional. Não se tratava de criar um novo idioma, mas de reconhecer que as variações linguísticas produzidas no Brasil faziam parte da língua portuguesa. Em um dos seus documentos depositados no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Mário de Andrade afirmou: “[…] os chamados brasileirismos por simples bobagem de comodismo gramatical não são brasileirismos nem nada, são palavras, sintaxes novas incorporadas à fala portuguesa” (Pinto, 1990, p.52 ). Em outras palavras, havia a intenção, da parte de Mário de Andrade, de normalizar o uso das variações linguísticas do português do Brasil, tornando seu uso corrente aceitável e legítimo:

Trata-se mesmo de acabar o mais cedo possível com o ineditismo desses processos e de outros do mesmo gênero pra que todas essas expressões brasileiras, quer vocabulares, quer gramaticais passem a ser de uso comum, passem a ser despercebidos [sic] na escritura literária pra que passem a ser estudados, catalogados, escolhidos, prá formação futura duma gramática e língua literária brasileiras. (Pinto, 1990, p.53)

Como destacou Edith Pimentel Pinto (1990, p.53) , Mário de Andrade não estava preocupado em “catalogar particularidades, mas em configurar o universal, para que fosse possível ‘escrever brasileiro’. E isto, em termos de léxico, sintaxe e ritmo, consistia em aderir à escolha e à combinação dos recursos da língua portuguesa já efetivados, fixados e consagrados pelo uso comum”. A colocação pronominal do poema “pronominais”, de Oswald de Andrade, é um exemplo desse uso comum, por sinal já sinalizado, antes, por meio de paratextos de José de Alencar.

Em uma das estrofes de “Evocação do Recife”, Manuel Bandeira também se lançou ao questionamento referente ao uso da gramática normativa no Brasil: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/ Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo/ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Em seguida, por meio de versos cursos, o poeta ressaltou o ridículo da imitação do modelo português: “Ao passo que nós/ O que fazemos/ É macaquear/ A sintaxe lusíada” (Bandeira, 1998, p.26).

Nesse poema, escrito em 1925, a nostalgia bandeiriana em relação ao Brasil do século XIX se encontra em destaque. Em seus versos surgem muitas cenas relacionadas ao cotidiano da cidade do Recife, com trechos que se aproximam da crônica de costumes, como em “Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas” (ibidem, p.24); “A gente brincava no meio da rua/ Os meninos gritavam:// Coelho sai!/ Não sai!// À distância as vozes macias das meninas politonavam:// Roseira dá-me uma rosa/ Craveiro dá um botão” (ibidem, p.24); “Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas/ Com o xale vistoso de pano da Costa/ E o vendedor de roletes de cana/ O de amendoim/ que se chamava midubim e não era torrado era cozido/ Me lembro de todos os pregões:/ Ovos frescos e baratos/ Dez ovos por uma pataca” (ibidem, p.25). Assim, por meio da polifonia e da “politonia”, valendo-se de recursos do português do Brasil associados às técnicas de composição do verso livre, Manuel Bandeira criou um poema que revela uma museologia do ambiente urbano de Recife da segunda metade do século XIX, construindo uma das mais importantes memórias dos modernismos, ainda que nesse poema se manifeste uma ligação inquestionável com o universo aristocrático (a elite da economia do açúcar), que é o “Recife morto. Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô” (ibidem, p.26).6

Ao se aproximar, porém, da vida cotidiana do Recife oitocentista, Manuel Bandeira ainda se aproximou da fala brasileira, problema a que dedicaria uma crônica, “Fala brasileira”, publicada em Crônicas da província do Brasil. Esse texto pode ser relacionada a suas intenções em “Evocação do Recife”: “Entre esta linguagem [falada] e a tradição literária existe um abismo como não o há em país algum, inclusive o próprio Portugal. É que a linguagem literária entre nós divorciou-se da vida. Falamos com singeleza e escrevemos com afetação” (Bandeira, 2006, p.47). Em “Evocação do Recife”, Manuel Bandeira aproximou-se não apenas da vida, mas de uma vida muito atrelada ao espaço público, como a rua, as feiras com seus pregões, os vendedores ambulantes, cavalgadas, a festa de São João etc. Por fim, o mergulho no Recife da sua infância corresponde ao mergulho mais na vida sociocultural do que na vida familiar, íntima. Recife da sua infância era, também, a construção da tal identidade brasileira, justificando ainda mais a defesa do idioma nacional, em perfeita consonância. Como afirmou Mário de Andrade (1974, p.244) na conferência “O movimento modernista”, depois de reconhecerem que viviam da “realidade brasileira”, ao modernismo “carecia verificar” o “instrumento de trabalho” para que pudessem, enfim, se expressar “com identidade”, e conforme suas palavras, “[i]nventou-se do dia pra noite a fabulosíssima ‘língua brasileira’”.

E o problema continuava a ser discutido. Entre os anos 1924 e 1930, os modernistas escreveram diversos poemas a respeito da fala brasileira, como “Língua brasileira”, de Menotti del Picchia, publicado em República dos Estados Unidos do Brasil: poema (1928):

O povo menino no seu presepe de palmeiras aguardou as oferendas de Natal. A nau primeira trouxe o Rei do Ocidente que lhe deu o tesouro sem-par do Cantar de Amigo, dos Autos de Gil Vicente e, depois, a epopeia de Camões. No navio negreiro veio o Melchior do mocambo talhado de azeviche como um ídolo benguela, com a oferta abracadabrante e gutural dos monossílabos de cabala. Nos transatlânticos e cargueiros, o Rei Cosmopolita, que tem as cores do arco-íris e os ritmos de todos os idiomas, trouxe-lhe o régio presente das articulações universais. Os três reis fizeram um acampamento de raças e ensinaram o povo menino a falar a língua misturada de Babel e da América. E assim nasceste, ágil, acrobática, sonora, rica e fidalga, ó minha língua portuguesa. (Picchia apud Bandeira, 1996, p.109-10)

Esse poema, que consiste numa breve história da formação da “língua brasileira”, apresenta equívocos notáveis acerca do processo de assentamento do português do Brasil. A própria ideia de “ensino” referente ao “povo menino”, ou seja, aos povos originários, é reveladora da falta de perspectiva crítica em torno da colonização. Seus versos compreendem uma ideia de comunhão (“um acampamento de raças”) que não espelha o relato da violência histórica encontrado em Pau-brasil, de Oswald de Andrade. Às vezes, a celebração da “língua brasileira” estava diretamente articulada à ideia de democracia racial, tornando-a menos diversa e singular do que podia ser.

Por outro lado, tratou-se de um empreendimento com resultados de grande impacto no campo da literatura brasileira. Os modernistas obtiveram conquistas fundamentais em relação às disputas sobre a fala brasileira e sua incorporação na construção não apenas das memórias modernistas, mas da própria literatura brasileira subsequente. Vinte anos depois, sob processo de autoavaliação, Mário de Andrade (1974, p.247) afirmaria, na conferência “O movimento modernista”, “que o Brasil hoje possue, não apenas regionais, mas generalizadas no país, numerosas tendências e constâncias sintáxicas que lhe dão natureza característica à linguagem”.

6

Ao escrever as falas brasileiras, os modernistas normatizaram fatos de linguagem característicos do nosso povo. Dessa maneira, eles ampliaram os limites de quem podia ou não escrever, o que é um aspecto determinante das políticas especificamente literárias. Os modernistas encontraram beleza em diversas expressões da fala. Escrever a literatura brasileira consistia, em grande medida, escrever por meio das falas brasileiras, com seus elementos de interseção e também particularidades regionais.

As poéticas modernistas firmaram um pacto inestimável com a oralidade, em qu se depositavam as culturas dos povos originários e dos africanos escravizados. Infelizmente, até o momento a oralidade não foi incluída nos currículos da maioria das faculdades brasileiras de Letras, ainda que ela continue se manifestando performanticamente por meio da poesia, como atestam os numerosos saraus e slams. Sob um movimento de autoavaliação (e também de autocrítica) que as datas históricas provocam, cabe à universidade reformular seus currículos no sentido de responder melhor a demandas de um corpo discente que se tornou plural, e que de certa maneira estão forçando o preenchendo de lacunas deixadas pelos modernistas ou mal lidas por nós, que deixamos à margem, como é o caso da oralidade. Ainda nesse sentido, não se justifica mais que a canção não participe dos currículos das faculdades de Letras, levando em consideração um repertório vastíssimo de compositores, cantores e músicos excepcionais que há no Brasil. A reformulação do ensino é um último ponto fundamental, que exige ser contemplado com urgência. Apenas assim vai ser possível construir memórias cada vez mais agudamente críticas, e mais plurais e democráticas.

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    » https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/09/4950308-supremo-ergueu-a-barreira-mais-poderosa-contra-a-tirania.html

Notas

  • 1
    No artigo “O humilde patrimônio de Manuel Bandeira”, André Luís Mourão de Uzêda (2018) apresenta os resultados preliminares de sua pesquisa de doutorado, dedicada à investigação de “um modo de concepção patrimonial que se manifesta tanto em forma quanto em tema” no livro Crônicas da Província do Brasil, de Manuel Bandeira.
  • 2
    Acerca dessa questão, ver a tese de doutorado Paulo Prado e a Semana de Arte Moderna: ensaios e correspondências, de Isabel Cristina Domingues Aguiar (2014).
  • 3
    René Thiollier foi um dos organizadores da Semana de Arte Moderna realizada no Thea- tro Municipal de São Paulo, embora ele não fosse um modernista de fato.
  • 4
    Ver, além desse, os poemas “História”, “Negro” (título do mesmo poema citado em destaque), “Mãe-preta”, “Dona Chica” e “Serra do Balalão”, todos reunidos em Putirum.
  • 5
    Em carta de 3 de agosto de 1925, Manuel Bandeira escreveu a Mário de Andrade: “acho que seria grande vantagem se o grande escritor fosse ao mesmo tempo um filólogo baita. Ora isso se adquire, ciência de filólogo. Você tem de estudar a funda essa m. toda, sobretudo os estudos dialetais. Não é coisa do outro mundo: é questão de ser modernista em linguística. Meus amigos Sousa da Silveira e Nascentes que em literatura são de um passadismo incrível, em matéria de filologias sabem uma porrada de coisas da última hora na Alemanha, na França e na Espanha. Coisa de uma largueza! Se você quiser informações bibliográficas, arranjarei pra você” (Andrade; Bandeira, 2000, p.224). Em nota de Marcos Antônio de Moraes a uma carta de Manuel Bandeira, escrita provavelmente em setembro de 1925, há o seguinte esclarecimento em torno da lista: “MA pedia na carta anterior ‘o nome dos livros sobre língua’que MB prometera”. Na nota seguinte, informa: “Sousa da Silveira relaciona no início da página, livros de linguística: ‘Vendryes - Le langage./ Dauzat/ - La vie du langage./ Bourciez - Élements de linguistique romane./ Leite de Vasconcelos - Esquissé d’une dialectologie portugaise./ Brunot - Histoire de la langue française (tomo I, a parte sobre latim popular)/ Amadeu Amaral - O dialeto caipira/ Antenor Nascentes - O linguajar carioca/ […]” (Andrade; Bandeira, 2000, p.235).
  • 6
    A respeito dessa questão, ver a dissertação de mestrado de Felipe Cavalcanti (2016), onde há informações sobre a família do poeta de “Evocação do Recife”: “O que podemos afirmar é que o poeta foi um leitor assíduo da memória de sua família durante os anos de adoecimento e de perda: é o mesmo Manuel Bandeira que, anos depois da morte do tio, herdará suas preocupações com o universo familiar e social que sentia desaparecer […]. Em seguida, Felipe Cavalcanti propôs a seguinte leitura dos fatos biográficos de Manuel Bandeira, apontando que o poeta se lançaria às “saudades deste mundo patriarcal que sentia desaparecer em plena década de 1920, quando evocaria o Recife pré-moderno, centrado na casa do avô […]. Na tentativa de aproximar-se deste passado familiar que acreditava estar perdido na infância, Bandeira encontraria uma série de procedimentos poéticos que utilizaria ao longo de toda a sua trajetória poética, sobretudo a partir dos anos 1920: como veremos mais tarde, a convocação das ‘vozes’ deste tempo seria um recurso criativo primordial em sua poesia” (Cavalcanti, 2016, p.44-5).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2021
  • Aceito
    20 Dez 2021
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