EDITORIAL
No artigo de abertura escrito para o primeiro número da revista Filosofia, Ciências e Letras(l936), dizia Paul Arbousse-Bastide: ''É belo assistir ao nascimento de uma universidade''. Folheando essa publicação inaugural o leitor respira um clima de esperança que beira a euforia. O sentimento do novo dava então a tônica das opiniões que se emitiam sobre a universidade que nascera oficialmente havia apenas dois anos.
Se examinarmos de perto o teor dessa novidade, que tanto encantava um jovem professor estrangeiro em terra de missão cultural, logo nos deparamos com a asserção de que, finalmente, também soprava no Brasil o espírito universitário. Mas como defini-lo? Fala-se principalmente em cooperação, quando não em comunhão intelectual entre estudiosos de áreas diversas, matriz do que viria a ser dito mais tarde interdisciplinaridade. Estava no ar a aspiração difusa de superar certo isolamento em que viviam as grandes escolas profissionais (Direito, Politécnica, Medicina, Farmácia e Odontologia), viveiros da nossa cultura letrada e científica até aquele momento.
Creio que foi esse desejo de ampliar horizontes e abolir fronteiras nas várias esferas do saber o móvel mais poderoso de uma iniciativa de alta política cultural que envolveu a administração paulista no início dos anos 30.
Quanto à outra política, a que se fundava no poder das oligarquias estaduais, comovidas com os insucessos de 1932, terá funcionado, sem dúvida, a título de motivação grupal, mas não merece ir muito além da crônica biográfica de alguns homens públicos atuantes na época. Porque, se é fato que a grande reviravolta nacional desencadeada pela Revolução de 30 inspirou cuidados ao patriciado local, fazendo-o pensar seriamente na importância de formar novas elites bandeirantes, é também verdade que a fundação da USP em 1934 e, ao mesmo tempo, a criação de uma escola de Humanidades e Ciências Básicas que foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras mudariam e superariam de muito o desígnio inicial. Em poucos anos, aquelas inquietudes ideológicas provincianas foram perdendo peso e sentido histórico; em contrapartida, foi-se dilatando consideravelmente o alcance da proposta cultural dos fundadores.
Olhando o processo pelo prisma das origens socio-econômicas, em vez da alta burguesia cafeeira, foram os filhos das classes médias que afluíram, cada vez mais numerosos, às aulas da faculdade recém-criada e da universidade em geral. Era o fenômeno da democratização do ensino superior, paralelo à urbanização crescente que se dava em todo o país nos anos que antecederam e se seguiram à Segunda Guerra. Essa diferenciação social do alunado universitário não guardava relação alguma com qualquer projeto de formação de uma elite dirigente estadual; ao contrário, fazia parte daquele mesmo projeto de modernização nacional que vinha de Trinta e que visava à transformação mental de um Brasil recém-egresso da República Velha.
Ora, é precisamente o mapa dessas mudanças culturais vistas pelo ângulo da nova academia que o presente número de Estudos Avançados pretendeu traçar.
A tarefa era ingente, de tal modo que se impuseram, desde o começo, escolhas e descartes. Quando a Editoria da revista meteu a ombros a empresa de comemorar o 60° aniversário da USP, a primeira questão que se propôs a si mesma foi esta: fazer a crônica das origens ou o balanço da situação atual? A consulta a mestres veteranos nas áreas de Ciências Humanas e Naturais (no caso, a ajuda valiosa de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Crodowaldo Pavan) logo nos deu a resposta: na dúvida, escolher ambas as soluções, já que não eram excludentes... Com isto o trabalho de coleta e arrumação dos dados iria duplicar, mas o resultado esperava-se que seria compensador. Agora que o trabalho está pronto, cabe à comunidade uspiana e à sociedade que a sustenta o papel de julgar os resultados.
A proposta básica foi levantar e ordenar informações relativas aos estudos de Humanidades e Ciências Básicas a partir da fundação da universidade em 1934. Nunca é demais lembrar que o incremento à pesquisa básica foi a grande contribuição trazida pelos professores estrangeiros contratados pela USP desde o ano de sua criação. Muitos deles fizeram escola e deixaram discípulos que, por sua vez, formaram novas gerações de estudiosos, alguns dos quais ainda ativos na instituição.
Essa opção levou-nos a centrar a pesquisa dos dados nas disciplinas lecionadas pela antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, pensada desde o início como a célula mater de um novo sistema universitário, já que nos seus laboratórios e nas suas bibliotecas e salas de aula poderiam fazer-se estudos humanísticos e científicos puros, isto é, desvinculados de uma aplicação profissional a curto prazo. Até mesmo a formação de professores para o ensino ginasial e normal era vista, àquela altura, como um efeito benéfico mas secundário do novo projeto, e não como seu alvo prioritário, que era decididamente científico ou humanístico em sentido lato. Foram, por certo, as agruras econômicas do alunado que deram a muitos dos novos cursos da Faculdade de Filosofia um perfil profissionalizante.
Feita a reforma universitária entre 69 e 70, alguns departamentos da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras erigiram-se em institutos ou faculdades independentes. Procuramos acompanhar o crescimento das novas unidades: o Instituto de Matemática e Estatística, o Instituto de Física, o Instituto de Química, o Instituto de Biociências, o Instituto de Ciências Biomédicas, o Instituto de Geociências, o Instituto de Astronomia e Geofísica, o Instituto de Psicologia, a Faculdade de Educação...; unidades todas herdeiras não só da tradição de pesquisa pura que se consolidara na matriz, como também das aspirações mais pragmáticas que motivavam boa parte do seu corpo discente em busca de uma profissão. Aliás, essa bivalência, que talvez seja estrutural, ainda marca a vida cotidiana de várias instituições que se originaram da antiga Faculdade de Filosofia. E de outras, mais recentes, como a Escola de Comunicações e Artes, os Institutos de Matemática, de Física e de Química de São Carlos, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. No caso dos Institutos Especializados e dos Museus, a pesquisa tende a ser hegemônica.
A partilha adotada (USP pós-34) não significa, absolutamente, que se devam ignorar os excelentes núcleos de pesquisa já existentes no estado de São Paulo antes da fundação da universidade. Quem faz história da ciência no Brasil sabe do relevo que tiveram os estudos biológicos na Faculdade de Medicina (a casa do Dr. Arnaldo...), no Museu Paulista, no Instituto Biológico, no Instituto Butantan, no Instituto Bacteriológico de São Paulo (hoje Adolfo Lutz) e em algumas disciplinas da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz, onde sempre se fundiram harmoniosamente a ciência pura e a ciência aplicada. Quanto à atualização no campo dos estudos matemáticos e físicos, deve-se ressaltar a tradição que nos legou a Escola Politécnica, cuja Revista é testemunho de um empenho científico notável. Enfim, quando se fala em cultura filosófica e política a partir de São Paulo, a instituição que primou entre todas foi a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, cujos primeiros cursos datam de 1827.
O nosso foco de atenção, porém, incidiu diretamente naquelas unidades da USP que, desde a sua implantação, assumiram como objetivo nuclear o incremento das ciências básicas e das Humanidades.
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Para a organização deste número foram contemplados tanto os objetos quanto os sujeitos do saber. Um memorial dos pais fundadores, quer estrangeiros, quer brasileiros, precede ao elenco dos cursos e das escolas.
Para falar das origens procedemos de duas maneiras complementares: publicamos perfis de mestres ilustres e fizemos entrevistas com alguns professores mais antigos que tiveram longa vivência com os formadores das suas respectivas áreas de saber. Os perfis e os depoimentos, se lidos seguidamente, dão um panorama bastante vivo do que foram os tempos fortes de cada disciplina.
Quanto às entrevistas, cabe assinalar que algumas delas já foram publicadas em números anteriores de Estudos Avançados, de sorte que não nos pareceu adequado transcrevê-las de novo no presente número.
Para obter a relação das linhas de pesquisa atuais, em geral desenvolvidas na esfera da pós-graduação, consultamos colegas dos vários departamentos envolvidos. Os textos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores. A fim de evitar omissões ou lapsos, solicitamos a todos os informantes que se abstivessem de mencionar nomes de professores que ainda se acham na ativa. De um modo geral, essa norma foi acatada.
Ao lado da informação objetiva colhemos pontos-de-vista distintos sobre as funções e o sentido de uma universidade tão complexa como a USP. Este é o papel dos textos de abertura escritos pelo atual reitor, professor Flávio Fava de Moraes, e pelo professor Miguel Reale que por duas vezes, e com vinte anos de intervalo, ocupou a reitoria. E é também a razão da presença de artigos ensaísticos de intelectuais voltados para a política cultural como Eduardo Portella e Marilena Chauí, que dão à revista o necessário sal da polêmica democrática.
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O capítulo dos agradecimentos é bem nutrido. O Editor contou com o pleno apoio da direção do IEA, na pessoa do professor Umberto Guiseppe Cordani. A articulação do trabalho muito deve à solicitude da Mesa Editorial. Condição sine qua non da realização da revista inteira foi o empenho diário do Editor-Executivo, Marco Antônio Coelho, também responsável pelas entrevistas e pelos depoimentos. Na feitura material da obra, merecem louvor a dedicação e a competência do Assistente Editorial, Dario Luis Borelli. A fisionomia gráfica do texto e da capa é mérito exclusivo do artista Fred Jordan que há anos nos honra com a sua colaboração. A iconografia, copiosa e significativa, deve-se ao zelo de Miriam Lifchitz Moreira Leite, que tem pronto um excelente memorial fotográfico da Faculdade de Filosofia.
Agradecemos também a presteza dos funcionários da Coordenadoria de Comunicação Social da USP na confecção da revista. E os aportes financeiros da Comissão de Credenciamento de Periódicos Científicos da USP, da Fundação Moinho Santista, da Fapesp, do CNPq, da Autolatina Brasil S.A., do Banco do Brasil e do Banespa.
Alfredo Bosi
Instituto de Estudos Avançados
setembro de 1994
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Nov 2005 -
Data do Fascículo
Dez 1994