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Desafios da Educação de Jovens e Adultos no contexto do envelhecimento da população paulistana

RESUMO

O artigo trata da relação entre o envelhecimento populacional e a Educação de Jovens e Adultos (EJA) na cidade de São Paulo (SP) e visa debater os desafios gerados pela longevidade que precisam ser enfrentados pelos governos estadual e municipal. Foi feito um diagnóstico demográfico e educacional da população idosa do município e para fundamentação teórica e metodológica destacam-se as contribuições de Di Pierro (2017) e Lima (2007) para o estudo da EJA, de Debert (2012) para as questões do envelhecimento, e de Bartlett e Vavrus (2017) para a realização do estudo de caso comparativo nas redes estadual e municipal de educação. Concluiu-se que a gestão pública precisa adotar uma abordagem intersetorial, superar a visão compensatória e fortalecer a EJA, intensificando a busca ativa por pessoas idosas com baixa escolaridade, além de incluir a temática do envelhecimento nas formações continuadas de docentes e técnicos.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação de Jovens e Adultos; Envelhecimento; Município de São Paulo

ABSTRACT

The article deals with the relationship between population aging and Adult Education in the city of São Paulo (SP) and aims to debate the challenges generated by longevity that need to be faced by state and municipal governments. A demographic and educational diagnosis of the municipality’s elderly population was made and for theoretical and methodological basis, the contributions of Di Pierro (2017) and Lima (2007) to the study of Adult Education, of Debert (2012) to the issues of aging stand out, and Bartlett and Vavrus (2017) to carry out the comparative case study in state and municipal education networks. It was concluded that public management needs to adopt an intersectoral approach, overcome the compensatory vision and strengthen Adult Education, intensifying the active search for elderly people with low education, in addition to including the theme of aging in the continued training of teachers and technicians.

KEYWORDS:
Youth and Adult Education; Aging; Municipality of São Paulo

Introdução

Em 14 dezembro de 2020, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o início da Década do Envelhecimento Saudável, tendo como intuito a mobilização do poder público e das organizações da sociedade civil dos países membros em prol da melhoria da qualidade de vida e a garantia da inclusão social das pessoas idosas em suas comunidades. Esta ação é uma continuidade da agenda da ONU para a área, que no ano de 1990 intitulara o dia 1º de outubro como o Dia Internacional do Idoso, e no ano 2002 realizara a II Assembleia Mundial do Envelhecimento na cidade de Madri, da qual resultou a publicação do Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento. Além disso, merece destaque o papel de sua agência especializada, a Organização Mundial de Saúde (OMS), na produção do documento Envelhecimento Ativo: uma política de saúde (OMS, 2005), que tem orientado o debate conceitual e a formulação de políticas públicas na área da saúde e da gerontologia.

Essas iniciativas supranacionais ajudaram a impulsionar a constituição do marco legal brasileiro sobre os direitos das pessoas idosas por meio da aprovação da Lei Federal n. 8.842/94, que estabeleceu a Política Nacional do Idoso, da Lei Federal n.10.741/03, que regulamentou o Estatuto da Pessoa Idosa, do Decreto n.8.114/13, que estabeleceu o Compromisso Nacional com o Envelhecimento Ativo, e do Decreto n.9.921/19, que consolida normas relativas à pessoa idosa. Os documentos estimularam a criação de políticas estaduais e municipais por todo Brasil, fomentando o surgimento de conselhos e fóruns da pessoa idosa e de diversos programas na área do envelhecimento, normalmente conduzidos pelas pastas técnicas ligadas às áreas da Saúde, da Seguridade, da Assistência Social e dos Direitos Humanos.

A transição demográfica brasileira encontra-se em estágio avançado e a cada década que passa o índice de envelhecimento aumenta significativamente, de modo que em algumas localidades do país já existem mais pessoas com idade igual ou superior a 60 anos do que com idades igual ou inferior a 14 anos. Esse é o caso do município de São Paulo, foco deste artigo, que registrou em 2022 mais de 2 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, correspondendo a 17,7% da população estimada em 11,4 milhões de habitantes (IBGE, 2022). Os dados do Censo Demográfico de 2022 sobre o envelhecimento na cidade de São Paulo foram analisados pela equipe da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento e abordados em uma publicação temática dos Informes Urbanos (São Paulo, 2024), na qual se destaca que, pela primeira vez na história da cidade, a população idosa superou tanto a população do grupo de crianças entre 0 e 14 anos (17,1%) quanto do grupo de adolescentes e jovens entre 15 e 24 anos (13,7%).

O aumento da população idosa no município de São Paulo vem sendo acompanhado pela produção de legislações específicas nas últimas décadas, como a Lei Municipal n.13.843/04, que instituiu a Política Municipal do Idoso, e a Lei Municipal n.14.905/09, que estabeleceu o Programa Envelhecimento Ativo. Em 2021 foi publicado o Plano Intersetorial de Políticas Públicas para o Envelhecimento, coordenado pela Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e com a participação de outras 14 pastas, entre elas, a Secretaria Municipal de Educação (SME). Além das referidas legislações, destaca-se o trabalho de diferentes organizações sociais que vieram a desenvolver ações para a população idosa no município, com destaque para a atuação pioneira do Serviço Social do Comércio (Sesc) nas áreas de esporte, cultura, lazer e educação não formal. As ações do Sesc remontam à década de 1970, quando um grupo de funcionários que desenvolviam os trabalhos com os idosos na instituição foram à França em busca de formação acadêmica e trouxeram muitas das abordagens da Gerontologia daquele período para desenhar as suas ações de socialização de idosos (Cachioni, 2004CACHIONI, M. Universidade da Terceira Idade: das origens à experiência brasileira. In NERI, A.; DEBERT, G. (Org.) Velhice e sociedade. 2.ed. Campinas: Papirus, 2004.).

No âmbito educacional, a temática do envelhecimento ainda não possui o mesmo destaque que o recebido em outras áreas já citadas. As ações educacionais mais conhecidas contemporaneamente remetem às práticas de educação não formal realizadas pelas instituições do ensino superior que seguem o modelo de Universidade da Terceira Idade, criado na Universidade de Toulouse por Pierre Vellas, em 1975, e que rapidamente passou a ser desenvolvido por universidades de diferentes continentes (Cachioni, 2004CACHIONI, M. Universidade da Terceira Idade: das origens à experiência brasileira. In NERI, A.; DEBERT, G. (Org.) Velhice e sociedade. 2.ed. Campinas: Papirus, 2004.). Contudo, a população idosa residente em São Paulo é o grupo etário em que se concentram os números mais elevados de analfabetismo e baixa escolarização comparativamente às outras faixas de idade, remetendo às problemáticas do acesso, permanência e conclusão da educação básica como um direito da população idosa e como uma responsabilidade do poder público.

A modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA) é a oferta pública que atende as demandas por escolarização da população idosa, sendo responsabilidade da gestão estadual prover o ensino médio, enquanto o ensino fundamental é responsabilidade compartilhada entre Estado e Municípios, ainda que a diretriz de municipalização do ensino fundamental venha reduzindo a atuação da gestão estadual nesse nível de ensino desde a década de 1990. O paradoxo é que essa modalidade vem apresentando uma sensível queda de matrículas desde 2007 na rede municipal de São Paulo e o perfil etário predominante dos alunos matriculados é o dos jovens de “trajetória escolar irregular” que migram para a EJA (Sampaio; Hizin, 2022SAMPAIO, C. E. M.; HIZIM, L. A. A educação de jovens e adultos e sua imbricação com o ensino regular. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v.103, n.264, 19 ago. 2022., p.271), existindo uma significativa demanda potencial de pessoas idosas que não chegam a se matricular. Desse modo, o artigo visa debater os desafios gerados pelo envelhecimento populacional que precisam ser enfrentados pela gestão municipal da cidade de São Paulo, bem como fazer algumas recomendações para a formulação de políticas e práticas educacionais que atendam as necessidades da população idosa.

A seguir, expomos os referenciais teóricos da área da educação e da gerontologia que fundamentam a educação de pessoas idosas, evidenciamos a desigualdade dos perfis dos idosos que residem em diferentes territórios da cidade de São Paulo e a forma de organização e atendimento da EJA. Os tópicos seguintes abordam a metodologia de coleta e de análise dos dados que sinalizam os desafios colocados para a gestão municipal e sustentam as recomendações para a formulação e melhoria de políticas e programas educacionais voltados à população idosa.

Concepções sobre a educação no envelhecimento

Ao se buscar na literatura acadêmica explicações sobre a pouca frequência de pessoas idosas com baixa escolarização nas salas da EJA foi possível identificar questões vinculadas tanto às concepções político-pedagógicas relativas a essa modalidade de educação quanto aos preconceitos relativos ao envelhecimento e às formas de gestão da velhice. A análise do cenário da EJA no Brasil de Di Pierro (2017, p.14) apresentou a existência de duas concepções que orientam esta modalidade educacional no país, a “corrente da educação popular” e “a visão compensatória”. A primeira concepção remonta ao pensamento de Paulo Freire e às experiências educacionais realizadas no início da década de 1960. Práticas semelhantes continuaram a existir nas décadas seguintes, sob a gestão de diferentes grupos, tendo como meta alcançar a justiça social, o respeito à diversidade e a valorização da cultura popular por meio de uma “pedagogia de participação cidadã” e de “metodologias ativas, dialógicas, participativas e interculturais” (Di Pierro, 2017, p.17). A segunda concepção, designada visão compensatória, legitima-se na busca pela “reparação dos direitos educativos violados na infância e na adolescência” e pela “reposição da escolaridade não realizada nessas etapas do ciclo de vida” (ibidem, p.14).

A visão compensatória é a predominante na organização da EJA nas redes de ensino público, relevante dadas as condições sociais brasileiras, mas que acaba por reforçar a noção de que “a infância e a juventude seriam as ‘idades próprias’ para aprender” (ibidem). A predominância histórica da face mais escolarizante dessa concepção sedimenta a ideia de que há uma idade certa, ideal, ou adequada de estudar, colocando à margem os que “perderam” a escola. Além disso, convencionou-se na EJA brasileira que essa modalidade deve reproduzir conteúdos do ensino dito regular e acelerar a aprendizagem, conduzindo à “transposição para a formação dos jovens dos adultos e inclusive idosos de formas de organização do ensino, de currículos e metodologias da educação de crianças e adolescentes” (ibidem).

A abordagem compensatória não tem se mostrado capaz de satisfazer as necessidades de aprendizagem de pessoas idosas com baixa escolarização, e as contribuições da corrente da educação popular não costumam ser amplamente incorporadas no ambiente escolar, restando a expectativa de que o conceito de educação ao longo da vida possa se tornar um princípio reorganizador dos sistemas de ensino. Esse conceito tornou-se dominante no debate internacional entre as décadas de 1960 e 1970, por meio da atuação da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e pressupõe que a educação tem “seu lugar em todas as idades da vida e na multiplicidade das situações e das circunstâncias da existência” e que a sua essência é a de ser global e permanente, ultrapassando “os limites das instituições, dos programas e dos métodos que tem sido impostos no curso dos séculos” (Faure et al., 1973FAURE, E. et al. Aprender a ser. Lisboa: Livraria Bertrand, 1973., p.220).

No Brasil, tem sido possível observar a incorporação do conceito de educação ao longo da vida em legislações da área da Educação e da Gerontologia no início do século XXI. Na década de 2010, o conceito de educação ao longo da vida foi inserido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n.9.394/96, por meio da Lei Federal n.13.632/18, e no artigo 25 do Estatuto da Pessoa Idosa, por meio da Lei Federal n.13.535/17.

O debate conceitual em torno das noções de educação e aprendizagem ao longo da vida é extenso e revela disputas de interpretação segundo perspectivas políticas, econômicas e pedagógicas diversas, tal como explanado por Boshier (1998BOSHIER, R. Edgar Faure after 25 year: down but not out. In: HOLFORD, J.; JARVIS, P. GRIFFIN, C. (Ed.) International Perspectives on Lifelong Learning. London: Kogan Page, 1998. p.3-20.), Griffin (1999GRIFFIN, C. Lifelong learning and welfare reform. International journal of lifelong education, v.18, n.6, p.431-52, 1999.) e Lima (2007LIMA, L. C. Educação ao longo da vida: entre a mão direita e esquerda de Miró. São Paulo: Cortez, 2007.). Esses autores evidenciaram como o conceito de educação ao longo da vida veio a sofrer um processo de ressemantização (Lima, 2007) na década de 1990 devido aos imperativos econômicos das políticas neoliberais, de modo a reduzir “o potencial emancipatório” do conceito estabelecido na década de 1970 (Boshier, 1998, p.8). Por essa perspectiva, a educação deixaria de ser entendida com um bem público provido pelas políticas educacionais de Estado para se tornar uma estratégia governamental (Griffin, 1999) a ser realizada pela oferta pública e/ou privada de cursos formativos normalmente vinculados às demandas do mercado de trabalho.

Para tanto, se fazia necessário despolitizar o conceito de educação, substituindo-o pelo de aprendizagem, “um constructo psicológico que soa muito parecido com educação” (Boshier, 1998BOSHIER, R. Edgar Faure after 25 year: down but not out. In: HOLFORD, J.; JARVIS, P. GRIFFIN, C. (Ed.) International Perspectives on Lifelong Learning. London: Kogan Page, 1998. p.3-20., p.8) e que possui um caráter “comportamental e individual” (Lima, 2007LIMA, L. C. Educação ao longo da vida: entre a mão direita e esquerda de Miró. São Paulo: Cortez, 2007., p.16). Assim, para Griffin (1999GRIFFIN, C. Lifelong learning and welfare reform. International journal of lifelong education, v.18, n.6, p.431-52, 1999., p.437), a aprendizagem ao longo da vida serviu de conceito-chave para o desenvolvimento das perspectivas educacionais da “Nova Direita” que se pautavam pelo discurso neoliberal de incentivo à competitividade, à aquisição de competências e à liberdade de escolha. Em outras palavras, com as possibilidades ilimitadas de acesso à informação, os indivíduos mais motivados e mobilizados a aprender se destacariam dos demais na luta por melhores condições de vida.

Transformação semelhante foi observada no âmbito da Gerontologia: Debert (2012DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. 1.ed. 2.reimp São Paulo: Edusp, 2012.) constatou a reprivatização do envelhecimento como uma das formas de gestão da velhice. A autora explicou que antes da universalização do direito à aposentadoria, a gestão da velhice era “própria da esfera privada e familiar, uma questão de previdência individual ou de associações filantrópicas” (Debert, 2012, p.13). A organização dos sistemas previdenciários elevou o status da população idosa na sociedade, deslocando-a da posição de segregados do mundo do trabalho e de dependentes dos mais novos para a condição de seres autônomos, ativos e consumidores do mercado de biotecnologias do rejuvenescimento.

Inicialmente, a percepção do envelhecimento da população como uma questão pública gerou a “progressiva socialização da gestão da velhice” (ibidem), em que as demandas do aumento da longevidade fomentaram a produção de novas políticas e programas sociais; conferiram maior reconhecimento às teo- rias e práticas geriátricas e gerontológicas; e incentivaram a criação de espaços convivência e lazer aos recém-aposentados. O conceito de terceira idade fora criado para representar os jovens idosos que buscavam superar os preconceitos antes estabelecidos em busca de um envelhecimento bem-sucedido. Contudo, num momento subsequente, veio a ocorrer o processo de “reprivatização do envelhecimento”, em que se entende a juventude como um valor a ser conquistado na idade avançada e se transforma a velhice numa responsabilidade individual, na qual os idosos passam a ser culpados pelo seu declínio biológico e pelos seus infortúnios sociais e econômicos; buscando justificar o porquê de alguns estarem numa condição de “vida sem dignidade e repleta de autodepreciação” (ibidem, p.230) mediante às novas fórmulas autopreservacionistas.

A questões apresentadas dimensionam desafios relevantes para a oferta pública da EJA no contexto do envelhecimento da população, uma vez que o formato demasiadamente escolar da modalidade se mostra pouco compatível com as especificidades educacionais das pessoas idosas, ao mesmo tempo em que a tendência a culpabilizar as próprias pessoas idosas por não se matricularem e frequentarem as salas de aula reforça os estigmas e preconceitos sobre o envelhecimento e não ajuda a restaurar o direito à educação dessa população. Consequente a isso, a inação da demanda potencial de pessoas idosas por uma EJA que não atende os seus anseios costuma ser utilizada por alguns gestores públicos para justificar o fechamento de salas de aula e unidades escolares da modalidade.

O envelhecimento na cidade de São Paulo

Como o poder público não deve apenas esperar passivamente que as pessoas idosas com baixa escolarização busquem as salas da EJA, a realização das chamadas públicas e da busca ativa - previstas na legislação1 1 No artigo 5º da Lei n.9.394 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que trata do direito público subjetivo dos cidadãos à educação, o parágrafo 1º incisos I e II obriga os poderes públicos nas respectivas esferas de responsabilidade federativa a “recensear anualmente as crianças e adolescentes em idade escolar, bem como os jovens e adultos que não concluíram a educação básica” e “fazer-lhes a chamada pública” (grifo nosso). - é fundamental para atingir esse perfil etário, mas, além disso, num município populoso como o de São Paulo, também se faz necessário que as redes de ensino público municipal e estadual consigam mapear e identificar os distritos que tenham as maiores quantidades de idosos com baixa escolarização. Nesse sentido, os documentos “Indicadores sociodemográficos da população idosa residente em São Paulo” (São Paulo, 2020) e “Plano Intersetorial de Políticas Públicas para o Envelhecimento”(São Paulo, 2021) proporcionam uma série de informações demográficas com base no dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) que favorecem o diagnóstico e evidenciam a existência de diferentes perfis socioeconômicos da população idosa, de acordo com a maior ou a menor centralidade dos distritos nos quais residem.

Em âmbito distrital, o Plano Intersetorial de Políticas Públicas para o Envelhecimento (São Paulo, 2021) ressalta diferenças significativas na esperança de vida ao nascer e na esperança de vida aos 60 anos de diferentes locais da cidade. Nos distritos mais elitizados como Alto de Pinheiros, Moema e Jardim Paulista a esperança de vida ao nascer é de 85 anos, já em distritos periféricos como São Miguel e Cachoeirinha a esperança de vida ao nascer é de 71 anos. Em relação à expectativa de vida aos 60 anos, os dados indicam que os idosos de Alto de Pinheiros, Moema e Jardim Paulista vivam em média mais 28 anos, enquanto os de São Miguel e Vila Curuçá vivam mais 18 anos. Outra diferença significativa entre os distritos paulistanos é a proporção de pessoas negras na população idosa: o distrito que possui a maior quantidade é o Jardim Ângela,2 2 Integrando a Subprefeitura de M’Boi Mirim, o Jardim Ângela originou-se de loteamentos clandestinos instalados nas proximidades da Represa Guarapiranga a partir da década de 1960, e apresenta indicadores desfavoráveis de qualidade de vida e segurança pública; é o distrito com maior concentração de população negra da capital. na Zona Sul, onde 56,3% dos idosos são negros, e o distrito com a menor porcentagem de negros do município, Jardim Paulista,3 3 Loteado já em princípios do século XX, o bairro “nobre” do Jardim Paulista localiza-se na região centro-oeste da Capital, próximo à Avenida Paulista, é bastante verticalizado e concentra moradias de população de renda média e alta, além de estabelecimentos comerciais e de serviços. possui apenas 2,8% de negros em sua população idosa.

Especificamente às questões educacionais da população idosa, a taxa de analfabetismo do município mensurada pelo Censo de 2010 (IBGE, 2010) foi de 9,02%, sendo possível perceber diferenças acentuadas entre o analfabetismo dos idosos de diferentes locais da cidade. Distritos centrais e elitizados como Consolação, Jardim Paulista e Alto de Pinheiros apresentaram as menores taxas de analfabetismo com valores oscilando entre 0,40% e 0,77%, já distritos periféricos de Marsilac, Anhanguera e Jardim Ângela apresentaram cerca 26% de sua população idosa analfabeta. O Censo de 2010 também mensurou a proporção de idosos com baixa escolaridade por distrito do município de São Paulo, calculada a partir da soma do número de idosos analfabetos com os que possuem o ensino fundamental incompleto no distrito. A média da cidade foi de 57,95%, e os distritos que apresentaram os menores valores foram os Moema, Consolação e Jardim Paulista, que têm cerca de 15% de seus idosos com baixa escolarização, e no outro extremo estão os distritos de Marsilac, com 88,87%, Lageado, com 87,18%, e Jardim Ângela, com 85,88% de seus idosos com baixa escolaridade.

Essas disparidades entre os distritos demonstram como a cidade de São Paulo foi organizada geograficamente numa relação hierarquizada entre centro-periferia, na qual a expansão territorial esteve vinculada à especulação imobiliária fomentada pela ação governamental (Rolnik; Frúgoli, 2001ROLNIK, R.; FRÚGOLI JR., H. Reestruturação urbana da metrópole paulistana: a zona leste como território de rupturas e de permanências. Cadernos Metrópole, n.6, p.43-66, 2º sem. 2001.; Santos, 1990SANTOS, M. Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. Nobel: Secretaria do Estado da Cultura, 1990.), fazendo que as desigualdades sociais e geográficas viessem a impactar diretamente no acesso à escola regular da atual população idosa.

Metodologia

Mediante as questões demográficas e educacionais apresentadas com relação à cidade de São Paulo, a pesquisa empírica (Pereira, 2023PEREIRA, M. D. A educação de pessoas idosas na cidade de São Paulo: políticas e programas educacionais em Ermelino Matarazzo. São Paulo, 2023 Tese (Doutorado em Estado, Sociedade e Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. doi:10.11606/T.48.2023.tde-04122023-123941. Acesso em: 20 maio 2024.
https://doi.org/10.11606/T.48.2023.tde-0...
) que dá origem a este artigo definiu o distrito de Ermelino Matarazzo, localizado na Zona Leste, como o território da investigação por ser um espaço periférico que abriga inúmeras desigualdades sociais, econômicas e educacionais comparativamente aos distritos centrais, ao mesmo tempo em que apresenta diferentes formas de atendimento educacional que as pessoas idosas podem frequentar, tanto no âmbito da educação formal realizada nas escolas e das redes estadual e municipal de ensino quanto no âmbito da educação não formal desenvolvida segundo o modelo de Universidade da Terceira Idade ofertado pela USP Campus Zona Leste.

O distrito de Ermelino Matarazzo dista cerca de 22 quilômetros do centro histórico do município e sua ocupação remonta ao aldeamento indígena de São Miguel nos séculos XVI e XVII, mas foi a partir da década de 1930 que sua urbanização se iniciou com a instalação de uma fábrica da Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo e a construção da Variante Poá da Ferrovia Central do Brasil, que conectou o bairro ao centro da cidade. Isso fomentou a vinda de muitos migrantes, sobretudo nordestinos, que passaram a trabalhar e a morar no distrito entre as décadas de 1940 e 1980, período de intenso movimento migratório rural-urbano e inter-regional em direção às metrópoles do Sudeste e à Região Metropolitana da Grande São Paulo em particular (Baeninger, 2005BAENINGER, R. São Paulo e suas migrações no final do século 20. São Paulo Perspec [Internet]. v.19, n.3, p.84-96, jul. 2005.).

Os dados censitários do século XXI demonstram que Ermelino Matarazzo ocupa uma posição intermediária se comparados com os de outros distritos periféricos, pois, se por um lado, os dados socioeconômicos de sua população idosa são superiores aos dos distritos periféricos mais distante do centro da cidade, por outro lado, são inferiores quando comparados aos distritos da região periférica mais próximos à região central.

Como a citada investigação tinha o intuito de evidenciar o papel assumido pelo Estado na promoção de políticas públicas voltadas para a educação de pessoas idosas e de analisar os programas educacionais que os idosos poderiam aceder, foi realizada uma pesquisa de natureza qualitativa a partir da abordagem do estudo de caso comparativo proposta por Bartlett e Vavrus (2017BARTLETT, L.; VAVRUS, F. Rethinking case study research. New York: Taylor & Francis, 2017.), na qual foram selecionadas quatro unidades escolares de EJA situadas em Ermelino Matarazzo: uma Escola Estadual (EE), que atende o Ensino Médio no período noturno; uma Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF), que oferece a EJA Regular no período noturno; um Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja), que é um centro exclusivo de EJA que realiza as aulas nos turnos matutino e noturno; e uma sala do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova)4 4 O Mova surgiu em 1989 durante a gestão de Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e consiste na parceria entre organizações sociais comunitárias e a prefeitura na promoção da alfabetização de pessoas jovens, adultas e idosas. Foi instituído como programa permanente pela Lei Municipal n.14.058 de 2005. que acontece nas dependências de um Núcleo de Convivência do Idoso (NCI) em horário vespertino.

A análise comparada dos casos dessas unidades escolares ocorreu pela articulação dos eixos horizontal e vertical. Conforme a proposta teórico-metodológica de Bartlett e Vavrus (2017BARTLETT, L.; VAVRUS, F. Rethinking case study research. New York: Taylor & Francis, 2017.), o eixo horizontal busca compreender como “políticas semelhantes se desdobram em locais distintos que são socialmente produzidos e complexamente conectados”, enquanto o eixo vertical permite examinar a interpretação e a implementação de políticas por atores posicionados em diferentes níveis de uma escala (global, nacional, regional, local), bem como estudar as interações entre os atores desses distintos espaços hierarquizados. Dessa forma, o eixo vertical demonstra que apesar de os centros educativos selecionados se localizarem na região de Ermelino Matarazzo, estão inseridos em redes de governança que orientam, regulam e supervisionam as ações locais de diferentes maneiras, onde decisões que impactam no dia-a-dia das entidades de Ermelino Matarazzo são tomadas nas Diretorias de Ensino, nas Secretarias e Ministério de Educação, inclusive sob influência de diretrizes supranacionais.

O tamanho da amostra foi definido em 40 participantes, sendo selecionados três alunos idosos, cinco professores, uma pessoa da coordenação pedagógica e uma pessoa da direção escolar de cada uma das quatro unidades para estudo do eixo horizontal. Enquanto para as análises do eixo vertical foram entrevistados dois técnicos e dois gestores posicionados em órgãos regionais e centrais das Secretarias de Educação do estado e do município.

Tendo em vista a variedade de pessoas e funções ocupadas, foram realizadas entrevistas individuais com os técnicos e gestores, grupos focais com os professores de cada unidade, e entrevistas e aplicação de questionários individuais com os alunos idosos. Todos os dados resultantes da coleta foram organizados de acordo com a técnica da Análise Conteúdo (Bardin, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. 4.ed. Lisboa: Edições 70, 2009., p.130-1), na qual optou-se pelo “tema” como unidade de registro para a definição “do segmento de conteúdo a considerar como unidade base” organizativa das categorias.

Como os dados de Ermelino Matarazzo contribuem para pensar a EJA paulistana

O estudo de caso comparativo com os gestores das redes de ensino estadual e municipal revelou que relação entre envelhecimento populacional e a EJA ainda estava num estágio inicial de abordagem e que o estudo da temática e o diálogo intersetorial das secretarias de educação com outras secretarias, fóruns da população idosa e demais instituições que atuam na área estava começando a ser organizado para acontecer a partir do segundo semestre de 2023. Algo que também se evidenciou nas falas das equipes gestoras e dos professores, que demonstraram desconhecer as legislações, os documentos orientadores e as contribuições teóricas da área da gerontologia. O trabalho em rede com outras unidades escolares, equipamentos públicos e instituições que atendem a população idosa do distrito de Ermelino Matarazzo era extremamente reduzido, limitando-se a ações pontuais de divulgação de atividades.

A população idosa ainda não procura os serviços educacionais da mesma maneira que demanda pelos da área da saúde, da seguridade e da assistência social, e a falta de interação das secretarias e das unidades escolares com esses setores dificulta a identificação e o contato com as pessoas idosas do distrito que possuem baixa escolaridade. Isso se revela nas entrevistas quando os gestores comentam sobre a chamada pública que as escolas realizam para a EJA, que normalmente se resume à colocação de faixas informativas próximas à portaria das escolas, telefonemas e envio de cartas, distribuição de panfletos e à divulgação pontual em alguns estabelecimentos do distrito realizada no início do ano. Somado a isso, ainda há a pouca flexibilidade de horários das aulas que ocorrem somente no horário noturno no caso das EE e das EMEF. Segundo os alunos idosos entrevistados na pesquisa, o turno da noite é quando estão mais cansados e tanto eles quanto seus familiares receiam as longas distâncias a serem percorridas e a falta de transporte público e de segurança no horário.

Malgrado a extensa demanda potencial, as estratégias de divulgação limitadas e a inadequação do formato da EJA regular às necessidades e condições das pessoas idosas fazem que a procura por matrículas seja baixa, o que impacta negativamente na abertura de turmas da modalidade. Enquanto o supervisor da rede estadual informou que são necessários 45 alunos matriculados para homologar uma nova sala do ensino médio, na rede municipal os gestores informaram que são precisos pelo menos 30 alunos, ainda que seja comum autorizar números inferiores dependendo do caso. Esses números são calculados prevendo que as turmas se mantenham mediante as altas taxas de evasão semestral, norma essa criticada pelo diretor da EMEF, que considera que isso impossibilita o atendimento da demanda pontual por vaga, uma vez que não há certeza de formação de turmas anualmente. No caso dessa unidade escolar, havia somente uma turma de oitavo ano do ensino fundamental da EJA em funcionamento, e qualquer busca de alunos por outras séries não poderia ser atendida.

Além dos desafios relacionados à acessibilidade das pessoas idosas à EJA, a coleta de dados evidenciou questões vinculadas à dificuldade de permanência delas no sistema escolar, sendo possível observar que essas dificuldades se relacionam com as concepções gerontológicas e educacionais presentes nas redes estadual e municipal de ensino. Os conteúdos gerontológicos relacionados à educação são pouco conhecidos pelos profissionais de ambas as redes, tendo em vista que não foram citados ou comentados nas entrevistas, do mesmo modo que os participantes informaram não lembrar de formações para gestores ou professores que abordassem o envelhecimento da população e os seus impactos na educação. O reduzido aprofundamento no debate também foi evidenciado no estudo das diretrizes curriculares de ambas as redes, já que tanto o Currículo Paulista da rede estadual quanto o Currículo da Cidade EJA da rede municipal mencionam a temática de forma pontual, limitando-se a reconhecer que as pessoas idosas compõem o público-alvo da EJA e que a modalidade deve atender as suas necessidades educacionais.

As ausências percebidas dificultam o entendimento das especificidades educacionais dos alunos idosos e, dependendo da situação, podem interferir na garantia do direito à educação dessas pessoas. Cury (2002CURY, C. R. J. Direito à educação: direito à igualdade, direito à diferença. Cadernos de Pesquisa, n.116, julho/ 2002., p.255) destaca que “a dialética entre o direito à igualdade e o direito à diferença na educação escolar como dever do Estado e direito do cidadão não é uma relação simples”, e ao se pensar na EJA é necessário que as políticas e programas evitem que os idosos sejam discriminados, combatendo o ageísmo, ao mesmo tempo em que se reconheçam as suas características e limitações em decorrência das perdas naturais do envelhecimento e se elaborem estratégias para minimizar essas perdas para que os idosos continuem a frequentar e a aprender em programas educacionais. Contudo, a falta de orientações formativas que envolvam os conteúdos gerontológicos relacionados à educação faz que gestores e professores não atentem a essas particularidades, ou então busquem contemplar essas demandas de maneira intuitiva e de acordo com as noções e saberes individuais de cada profissional.

Com relação aos pressupostos educacionais que orientam a EJA nas duas redes, foi possível perceber que o conceito de educação ao longo da vida é conhecido pelos seus profissionais e consta nos documentos oficiais analisados, mas a maneira como esse conceito foi abordado nas entrevistas e mencionado nos documentos remete a uma forma de interpretá-lo como uma “extensão da forma escolar ao conjunto da existência das pessoas” e não como “um princípio reorganizador de toda a actividade educativa” (Canário, 1999CANÁRIO, R. A Educação de adultos. Um campo e uma problemática. Lisboa: Educa, 1999., p.88-9). De modo que nesse cenário a educação ao longo da vida seria entendida como um ensino escolar que pode acontecer em diferentes fases da vida, ou como a garantia do direito à educação escolar em qualquer período da vida, evidenciando a prevalência da visão compensatória da EJA (Di Pierro, 2017) nas duas redes de ensino.

Na rede estadual essa perspectiva se faz ainda mais presente, já que a EJA não possui um currículo próprio da modalidade e os seus professores fazem “adaptações” do Currículo Paulista produzido para o ensino regular, além do fato de que diferentes gestores e professores entrevistados da rede estadual afirmaram que “a EJA irá acabar em breve”, desconsiderando os dados censitários de baixa escolaridade e evidenciando a visão de que a educação se encerra na obtenção de um diploma. Já na rede municipal, existem formas de atendimento que procuram desenvolver práticas educacionais que se distanciam dessa visão compensatória, como nos casos do Mova, que se orienta pela perspectiva da educação popular, e do Cieja, que se inspira em princípio freireanos e na abordagem da Escola da Ponte, em Portugal, para promover uma aprendizagem significativa numa perspectiva interdisciplinar e multisseriada.

No distrito de Ermelino Matarazzo, essas formas de atendimento são as que concentram as maiores quantidades de matrículas da população idosa, algo que já havia sido verificado por Catelli Jr, Di Pierro e Girotto (2019CATELLI JUNIOR.. R.; DI PIERRO, M. C.; GIROTTO, E. D. A política paulistana de EJA: território e desigualdades. São Paulo. Estudos em Avaliação Educacional, v.30, n.74, p.454-84, maio/ago. 2019.) na oferta municipal da EJA paulistana, mas como enfatizado pelos autores, o Mova e o Cieja representam cerca de 25% do total matrículas na modalidade, sendo que a maior parte é referente às matrículas na EJA regular realizadas nas EMEF, uma forma de atendimento onde a visão compensatória se faz mais presente dado o seu contexto de cumprimento do currículo, tal como pode se observar pela reflexão do diretor da EMEF entrevistado na pesquisa:

A gente ainda acha, enquanto professor, que entra na sala com um conjunto de saberes autorizado e escolarizado e eu preciso enfiar isso na cabeça do estudante. E temos a sensação que já superamos a “Educação Bancária”, mas eu desconfio que estamos entrando na “Educação do Pix”, que ainda é mais rápido [...] É preocupante e na EJA eles vão embora. (Pereira, 2023PEREIRA, M. D. A educação de pessoas idosas na cidade de São Paulo: políticas e programas educacionais em Ermelino Matarazzo. São Paulo, 2023 Tese (Doutorado em Estado, Sociedade e Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. doi:10.11606/T.48.2023.tde-04122023-123941. Acesso em: 20 maio 2024.
https://doi.org/10.11606/T.48.2023.tde-0...
, p.208)

O método de exposição de conteúdos da abordagem tradicional pressupõe a organização da sala em fileiras para que os alunos prestem atenção somente no professor e no conteúdo a ser ensinado. Entretanto, a falta de interação e de formação de vínculos entre os estudantes mais velhos com mais novos favorece a existência de conflitos geracionais. A pesquisa revelou que há mais casos de embates nas salas em que os professores seguem a abordagem tradicional, pelo fato de os estudantes idosos se revoltarem com o que eles classificam como a falta de concentração, respeito e de silêncio dos mais jovens. Esse tipo de conflito era menos frequente nas formas de atendimento em que os estudantes trabalham constantemente em grupos. Segundo Lima (2008LIMA, C. R. Programas intergeracionais: um estudo sobre as atividades que aproximam as diversas gerações. Campinas: Editora Alínea, 2008., p.70), os conflitos geracionais podem ser solucionados por meio da “cooperação como estratégia de aproximação entre gerações”, resultando em atividades contínuas que estimulem a convivência e a parceria na execução de tarefas para se alcançar um objetivo em comum às diferentes gerações.

Considerações e recomendações para as políticas públicas da EJA frente aos desafios da longevidade

A partir da contextualização do envelhecimento populacional e da organização da EJA no município de São Paulo, combinada com o aporte teórico e a pesquisa empírica realizada no distrito de Ermelino Matarazzo (Pereira, 2023PEREIRA, M. D. A educação de pessoas idosas na cidade de São Paulo: políticas e programas educacionais em Ermelino Matarazzo. São Paulo, 2023 Tese (Doutorado em Estado, Sociedade e Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. doi:10.11606/T.48.2023.tde-04122023-123941. Acesso em: 20 maio 2024.
https://doi.org/10.11606/T.48.2023.tde-0...
), conclui-se que a próxima gestão municipal da cidade de São Paulo precisará fortalecer a oferta pública da EJA para atender a demanda potencial de idosos com baixa escolaridade, especialmente nos distritos mais periféricos. Como esse público etário não costuma buscar espontaneamente as unidades de ensino e as universidades da terceira idade não têm por objetivo atender essas demandas educacionais, faz-se necessário que a pasta da educação municipal sistematize e profissionalize as formas de se identificar e se comunicar com estas pessoas nos distritos mais vulneráveis.

A temática do envelhecimento populacional precisa fazer parte das pautas prioritárias da agenda educacional de ação e de formação dos profissionais da rede de ensino, além do fato de que as conquistas e inovações do Cieja e do Mova não podem escamotear a predominante visão compensatória da EJA regular que prevalece nas EMEF, sendo necessário problematizar e refletir criticamente sobre as concepções educacionais e rever as condições de trabalho docente, da forma de atendimento que mais possui matrículas da EJA no município. As considerações são extensivas à rede estadual de São Paulo que ainda não regulamentou a jornada de trabalho e de formação em serviço para os professores que atuam na EJA das EE. A falta de materiais de orientação e a rotatividade elevada dos docentes a cada semestre favorece a prevalência da visão compensatória ao inviabilizar o trabalho coletivo e o acompanhamento pedagógico dos alunos.

Desse modo, visando a superação dos desafios abordados ao longo do artigo, busca-se contribuir com a produção e desenvolvimento de políticas e de práticas educacionais com pessoas idosas, emitindo algumas recomendações. A primeira recomendação situa-se no campo da divulgação da EJA e na garantia da mobilidade das pessoas idosas, indicando o emprego das tecnologias da comunicação e informação que ampliem as chamadas públicas para a modalidade, bem como a extensão da cobertura das políticas de transporte escolar especializado aos estudantes com mais de 80 anos ou mobilidade reduzida e a abertura de salas da EJA em horário diurno e com carga horário flexível.

Além da acessibilidade, é recomendável que as redes de ensino elaborem processos de orientação para a adaptação escolar das pessoas idosas. Durante as entrevistas foi possível conversar com estudantes idosos que ficaram distantes da escola entre cinco e sete décadas, e que sentiram muitos impactos ao retornar à EJA. O processo de adaptação recomendado compreende: o acolhimento dos alunos idosos por parte da equipe gestora e dos professores que necessitam identificar os processos de desigualdade e de discriminação que essas pessoas idosas sofreram e registrar os seus objetivos educacionais; a realização de atividades contínuas de integração intergeracional entre os alunos; e a aplicação de exames de reclassificação para que esses idosos sejam alocados em turmas de acordo com os seus níveis de conhecimentos e habilidades e não nas séries que interromperam os estudos.

A terceira recomendação é para que as redes de ensino busquem apoio técnico consultivo para a elaboração de orientações normativas e para a realização de formações continuadas com temáticas que tratem da superação do ageísmo e da promoção de práticas educacionais com pessoas idosas. Já a quarta recomendação sugere uma maior institucionalização da EJA nas políticas de educação básica, visando que a equipe gestora e os professores tenham um plano de carreira específico e possam se dedicar a essa modalidade educacional, de modo a garantir um tempo de atuação mais duradouro e espaços de estudo e formação específicos.

Por fim, a última recomendação indica a necessidade de se produzir políticas intersetoriais em que as secretarias estadual e municipal de Educação façam parcerias com as secretarias de Saúde, de Assistência Social, de Trabalho e de Cultura e com os Conselhos Estaduais e Municipais da Pessoa Idosa, visando a elaboração de um sistema de educação de pessoas idosas em que se tenha o cruzamento de informações que favoreçam a busca ativa e a identificação das vulnerabilidades e das necessidades dos idosos, bem como exista a cooperação e integração das propostas e dos equipamentos públicos. É possível integrar as ações das formas de atendimento da EJA com os NCI, com as das Unidades Básicas de Saúde, e de outras instituições especializadas que coexistem no mesmo território. Cabendo, inclusive, a proposição de projetos educacionais integrados que tenham adesão com as políticas urbanísticas do selo cidade amiga do idoso do governo estadual e do selo bairro amigo do idoso, do governo municipal. Numa expectativa de que a combinação de práticas educacionais formais e não formais interligadas num contexto socioespacial possa indicar caminhos para a efetivação dos conceitos de educação ao longo da vida e de envelhecimento ativo numa cidade educadora.

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Notas

  • 1
    No artigo 5º da Lei n.9.394 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que trata do direito público subjetivo dos cidadãos à educação, o parágrafo 1º incisos I e II obriga os poderes públicos nas respectivas esferas de responsabilidade federativa a “recensear anualmente as crianças e adolescentes em idade escolar, bem como os jovens e adultos que não concluíram a educação básica” e “fazer-lhes a chamada pública” (grifo nosso).
  • 2
    Integrando a Subprefeitura de M’Boi Mirim, o Jardim Ângela originou-se de loteamentos clandestinos instalados nas proximidades da Represa Guarapiranga a partir da década de 1960, e apresenta indicadores desfavoráveis de qualidade de vida e segurança pública; é o distrito com maior concentração de população negra da capital.
  • 3
    Loteado já em princípios do século XX, o bairro “nobre” do Jardim Paulista localiza-se na região centro-oeste da Capital, próximo à Avenida Paulista, é bastante verticalizado e concentra moradias de população de renda média e alta, além de estabelecimentos comerciais e de serviços.
  • 4
    O Mova surgiu em 1989 durante a gestão de Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e consiste na parceria entre organizações sociais comunitárias e a prefeitura na promoção da alfabetização de pessoas jovens, adultas e idosas. Foi instituído como programa permanente pela Lei Municipal n.14.058 de 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2024
  • Aceito
    19 Jun 2024
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