Resumo
Objetivo analisar a lotação e distribuição da primeira turma de oficiais enfermeiros, ao término do Curso de Formação de Oficiais, com a patente de 2º Tenente, no Hospital Central da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, em 1995.
Método estudo histórico em fontes documentais escritas e orais produzidas por meio de 19 entrevistas, sendo 18 oficiais enfermeiros e um civil. Os conceitos de poder simbólico e capital de Pierre Bourdieu consubstanciaram a análise dos achados.
Resultados a classificação obtida no curso de formação de oficiais e a experiência profissional, embora com menor peso, foram preponderantes na distribuição nos setores do hospital.
Considerações finais e implicações para prática os critérios de antiguidade da vida militar influenciaram na configuração da equipe de enfermagem no hospital militar. Destaca-se que a ocupação das chefias pelos oficiais enfermeiros foi determinada pelo capital incorporado no estágio probatório, o qual foi institucionalizado pela patente.
Palavras-chave: Enfermagem; História da Enfermagem; Enfermagem Militar; Equipe de Enfermagem; Hospitais Militares
Resumen
Objetivo analizar la capacidad y la distribución de la primera clase de oficiales enfermeros al término del Curso de Formación de Oficiales, con el grado de 2º Teniente, en el Hospital Central da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, en 1995.
Método estudio histórico en fuentes de documentos escritos y orales producidos a través de 19 entrevistas, 18 de las cuales fueron enfermeras y una civil. Los conceptos de poder simbólico y capital de Pierre Bourdieu fundamentaron el análisis de los hallazgos.
Resultados la clasificación obtenida en el curso de formación para oficiales y la experiencia profesional predominaron en la distribución en los sectores hospitalarios, aunque con menor peso.
Conclusión e implicaciones para práctica los criterios de antigüedad en la vida militar influyeron en la configuración del equipo de enfermería. Se destaca que la ocupación de los comandos por oficiales enfermeros fue determinada por el capital incorporado en la etapa probatoria, institucionalizada por el grado.
Palabras clave: Enfermería; Historia de la Enfermería; Enfermería Militar; Grupo de Enfermería; Hospitales Militares
Abstract
Objective to analyze the capacity and distribution of the first class of nurse officers, at the end of the Officer Training Course, with the rank of 2nd Lieutenant, at the Hospital Central da Polícia Militar of the State of Rio de Janeiro, in 1995.
Method historical study in written and oral documentary sources produced through 19 interviews, of which 18 are nurse officers and one civilian. Pierre Bourdieu’s concepts of symbolic power and capital substantiated the analysis of the findings.
Results the classification obtained in the training course for officers and professional experience, although with less weight, were preponderant for the distribution in the hospital sectors.
Final considerations and implications for practice the criteria of seniority in military life influenced the configuration of the nursing team at the military hospital. It is noteworthy that the occupation of the heads by the nurse officers was determined by the capital incorporated in the probationary period, which was institutionalized by the patent.
Keywords: Nursing; Nursing History; Military Nursing; Nursing Team; Military Hospitals
INTRODUÇÃO
O Quadro de Oficiais Enfermeiros da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) foi criado através da Lei Nº 2.206, de 27 de dezembro de 1993, na gestão do então governador Leonel de Moura Brizola. Nessa lei, em seu artigo 8º, consta a conversão de 163 vagas de soldado PM em 57 vagas de oficiais enfermeiros do Quadro de Oficiais de Saúde. Essas vagas foram distribuídas para as seguintes patentes: duas vagas para major; dez para capitão; 20 para 1º Tenente; e 25 para 2º Tenente. Esse quadro recebeu a denominação de “Quadro Permanente I”1:26. Tal conversão não oneraria financeiramente o planejamento do estado do Rio de Janeiro.
O Edital do Processo Seletivo para 2º Tenente PM Enfermeiro divulgou 56 vagas de 2º Tenente PM Enfermeiro, apesar de o quadro ter sido criado com o total de 57 oficiais. Além disso, a carreira militar deveria ser iniciada pela patente inferior do quadro, de modo a cumprir o interstício para as promoções. Isso explica o fato de terem entrado 56 2º Tenente PM Enfermeiro2.
Para alcançar a aprovação, os candidatos foram submetidos às provas eliminatórias e classificatórias. Sendo assim, após quase um ano, o governador do estado do Rio de Janeiro, através do D.O, em 1994, nomeou os oficiais do Quadro de Oficiais de Saúde – QOS, do Quadro I, pertencentes à turma de Estágio Probatório de Adaptação de Oficiais (EPAO), com a seguinte distribuição: 1° TEN PM Médicos Estagiários (sete), pastores evangélicos (dois), 1° TEN PM Capelão Estagiário (quatro) e 2° TEN PM Enfermeiro Estagiário (cinquenta e sete)3.
No que se refere aos enfermeiros, inicialmente, foram convocados os 100 primeiros classificados nos exames intelectuais (prova escrita e prova prática) para participarem das demais etapas (exame físico, médico, social e psicotécnico). Ao final, foram classificados para o EPAO 94, os 57 primeiros colocados, em conformidade com a Lei estadual 2.206/1993, que criou o quadro. Não obstante, a classificação final foi de 56, em face de uma desistência1.
O Estágio Probatório de Adaptação de Formação de Oficiais ocorreu no período de novembro 1994 a maio de 1995, sendo que a primeira etapa aconteceu na Escola de Formação de Oficiais (ESFO) e a segunda no Hospital central da Polícia Militar (HCPM), de modo a realizarem o treinamento específico de saúde, na área de enfermagem militar.4 Os aprovados no estágio probatório foram nomeados para o Posto de 2º Tenente PM Enfermeiro e, incorporados ao Quadros de Oficiais de Saúde da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, a partir de 24 de maio de 1995, em consonância com o Artigo 11 do Decreto Lei Nº 216, de 18 de julho de 1975 e Artigo 43, inciso II e III, parágrafo único e parágrafo 3º do Decreto Nº 532, de 23 de dezembro de 19755,6.
A formatura dos oficiais realizou-se na Escola de Formação de Oficiais (ESFO), no dia 26 de maio de 1994. A turma de oficiais (EPAO/94) constituída de 56 enfermeiros, sete médicos e cinco capelães, foi denominada Tenente PM Manoel Veja Cesário, em homenagem ao militar assassinado em serviço, na cidade do Rio de Janeiro, em 1995 (Bol. Int. nº70 29/mai/95). A entrada dos oficiais enfermeiros já com a patente de 2º TEN PM Enfermeiro, se deu em 29 de maio de 19957.
O posto de 2º Tenente na hierarquia da corporação correspondia a posição de oficial subalterno, colocando-os em posições desvantajosas em relação aos demais profissionais da área da saúde, especialmente os médicos. Ademais, os oficiais enfermeiros só poderiam chegar ao posto de major, o que os excluiria permanentemente dos postos de comando na Polícia Militar. Tal exclusão também ocorria na Marinha, no Exército e na Aeronáutica, além do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro.
Trazidas as inquietações, frente ao problema apresentado foi elaborada a seguinte questão investigativa: como a classificação obtida no Curso de Formação de Oficiais e a incorporação da patente de segundo tenente repercutiram na distribuição da primeira turma de oficiais enfermeiros no hospital militar? Para respondê-la foi necessário o alcance do objetivo, assim formulado: analisar a lotação e distribuição da primeira turma de oficiais enfermeiros, ao término do Curso de Formação de Oficiais, com a patente de 2º Tenente, no Hospital Central da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, em 1995.
MÉTODO
Estudo histórico cuja busca de evidências está calcada na leitura e análise dos materiais de conteúdo histórico, de modo a construir uma versão balizada e erudita do período em todas as suas dimensões, por meio da crítica do passado e seus discursos8.
Os conceitos de poder simbólico e capital do sociólogo francês Pierre Bourdieu consubstanciaram a análise dos achados. Tais conceitos foram úteis ao entendimento do processo de lotação e distribuição de enfermeiros com patentes de oficiais em um espaço ocupado por profissionais com diferentes capitais, quais sejam, o capital militar, representado pelas patentes e graduações e, indiretamente, o capital econômico, representado pelos respectivos soldos, ou seja, remuneração militar; e o profissional, relacionado às profissões de saúde com suas graduações e patentes vinculadas.
O recorte temporal deste estudo é o ano de 1995, quando os oficiais enfermeiros terminaram o Curso de Formação de Oficiais (CFO) e foram lotados no Hospital Central da Polícia Militar, com a patente de 2° Tenente PM Enfermeiro da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
Cumpre mencionar que, o Hospital Central da Polícia Militar, em 1995, tinha 53 anos de existência e contava com cerca de 220 leitos hospitalares. Era um hospital geral, onde eram atendidas várias especialidades, destacando-se a Cirurgia Geral e Ortopedia, em face da grande demanda de pacientes. Possuía também clínicas especializadas para tratamento de doenças crônico-degenerativas. Além disso, atendia diariamente policiais feridos por armas de fogo, cuja condição física, levava à necessidade de atendimento5.
As fontes históricas utilizadas foram documentos escritos e orais. As escritas, constituídas de boletins, livros de Ordens e Ocorrências do HCPM (1995) e da Supervisão de Enfermagem do HCPM (1994), os quais foram localizadas no acervo do HCPM. As orais foram produzidas por meio de entrevistas do tipo semiestruturadas, sendo entrevistados 18 oficiais enfermeiros integrantes da primeira turma de Oficiais Enfermeiros do Quadro de Saúde da PMERJ, em 1994. Também foi entrevistada uma enfermeira civil que desempenhava o cargo de chefe de enfermagem, no período em estudo.
As entrevistas, gravadas por meio digital, foram consentidas mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), após todo o esclarecimento dos objetivos desta pesquisa. Após a transcrição das gravações, os entrevistados realizaram a leitura com vistas a validação.
Como critério de inclusão, no tocante aos oficiais enfermeiros, foram eleitos os lotados no HCPM que desempenharam funções de chefia de setores, no período estudado, qual seja, 1995 a 1997. Foram excluídos aqueles que não apresentavam condições físicas ou quaisquer outros impedimentos para concessão de entrevista, tais como moradia fora do Rio de Janeiro, licença ou férias. O critério de inclusão da enfermeira civil foi a sua permanência no hospital após a chegada dos oficiais enfermeiros e o fato de ter sido a enfermeira-chefe do hospital antes da chegada dos mesmos. Os critérios de exclusão foram os mesmos aplicados aos oficiais enfermeiros. A identificação dos entrevistados consistiu na sigla correspondente à profissão de Enfermeiro, seguida de um número sequencial.
Para compor o corpus documental foram considerados os critérios de pertinência, suficiência, exaustividade, representatividade, homogeneidade e organização dos documentos9. A análise dos achados, de acordo com o método histórico e com ênfase em estudos sobre a história da enfermagem, levou em conta o conjunto documental e não os documentos isoladamente.
O estudo derivado de projeto de tese de doutorado em desenvolvimento, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery e Hospital Escola São Francisco de Assis (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética nº 67049517.0.0000.5238, em 25/04/2017), seguiu as diretrizes éticas em consonância com a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.
RESULTADOS
Depois de formados, os 2º TEN PM enfermeiros foram lotados no Hospital Central da Polícia Militar, no dia 29 de maio de 1995, para serem distribuídos pelos setores do HCPM. Sobre a lotação dos oficiais enfermeiros nas unidades de saúde da PMERJ e, posterior distribuição interna no HCPM, extratos das entrevistas evidenciam que a classificação obtida no Estágio Probatório de Adaptação de Formação de Oficiais foi preponderante, seguida da experiência profissional:
Então, no momento das escolhas, já havia pessoas que tinham sua preferência pelo HCPM e as demais unidades da PMERJ, por antiguidade. No que se refere a classificação interna pelos setores do HCPM, eu não me recordo mais como é que foi essa distribuição, se nós... eu me lembro que em algum momento nós respondemos alguns questionários de experiências, de especializações que alguns já tinham, se eu não me engano acho que essa distribuição foi baseada nisso [...] (E1).
Então, a gente foi recebida por uma enfermeira civil e como nos outros hospitais, era necessário ter supervisão de enfermagem 24 horas e isso não tinha aqui, porque não tinha enfermeiros e quantitativo para isso... e como sendo um hospital militar essa figura do supervisor foi colocada com o enfermeiro de dia, assim como tinha o médico de dia e o oficial administrativo de dia. E não havia número suficiente de enfermeiros, para cobrir todos os setores do hospital 24 horas, e aí a princípio ficamos no expediente e distribuídos nos setores no expediente, me recordo [...] (E2).
A distribuição se deu por ordem de classificação, de acordo, a gente chama de antiguidade, as que tiveram uma classificação melhor poderiam escolher alguns setores, os mais antigos ficaram nas lideranças e os mais modernos foram ficando nos setores subsequentes e onde estavam restando. Eu como era lá para trás, eu não tive muita opção de escolha, eu tentei escolher um setor que era mais ou menos adequado à minha formação que é em Médico – Cirúrgica, acabei escolhendo a RPA, no Centro Cirúrgico e fiquei especificamente neste Setor de Anestesia [...] (E2).
Eu lembro que a turma foi reunida no auditório e dentro dos setores que existiam disponíveis para serem lotados, sendo utilizados como critério o da antiguidade e o segundo plano uma identificação por setor. Então, o que eu me lembro dessa época foi isso [...] (E5).
Foi feita uma reunião para a identificação da quantificação, das experiências de todos nós, e a chefia na ocasião distribuiu de acordo com as necessidades do hospital e de acordo com a experiência de cada um... Lembro que foi no centro de estudos uma reunião com toda a turma, onde foi distribuído... nós temos aqui na polícia várias unidades é... são vários setores de assistência de saúde, e foi dividido os profissionais que iam ficar em cada unidade ... temos o hospital de Niterói e aqui o Hospital Central, e aí no meu caso por morar perto e morar aqui próximo e também já ter a experiência...eu mesma escolhi ficar aqui no hospital central e fui colocada no berçário [...] (E6).
Os entrevistados, no momento da distribuição pelos setores do HCPM, teceram considerações sobre a complexidade da elaboração de critérios para tal distribuição, tendo em vista a carência expressiva de enfermeiros na unidade hospitalar:
Foi muito complexa porque não tinha efetivo... muito pequeno... Só tinha no caso eu, que era plantonista 12X60 durante o dia, e, no CTI que era composto de dez leitos que eram praticamente 11... estava em obra, enfim, mas ficou pronto rápido. Enfim, tinha 11 leitos para dois técnicos de enfermagem, duas praças e eu de enfermeira [...] (E4).
Eu considero que foi bem difícil porque não existia uma estrutura, como eu posso dizer, assim, assistencial, até porque não havia um planejamento de gestão dos setores [...] (E5).
Fomos a primeira turma... então, para nós foi uma coisa bem nova... encarar a situação que se encontrava o Hospital... sem enfermeiros. Existiam enfermeiros civis. Nós chegamos aqui para mudar a situação do hospital... organizar... até porque os enfermeiros que tinham aqui civis eram poucos. Então, eles não conseguiam dar conta de tudo. Era uma sobrecarga muito grande. Então, com nossa vinda abriu uma porta da esperança para o hospital a meu ver. Quando nós chegamos aqui nos deparamos com uma enfermeira chefe, a enfermeira [Nome], que era a enfermeira civil. No momento que nós chegamos ela que fez a redistribuição da nossa turma. Eu não me lembro muito bem quantos nós éramos, mas eu acho que nós éramos umas 57 enfermeiras para distribuir no HCPM e no HPM-NIT. Então, a missão dela foi árdua, porque redistribuir enfermeiros nos setores, e foi muito bom, assim... Ela... a divisão que ela fez por setor [...] (E8).
Sendo assim, a distribuição feita pela enfermeira civil foi percebida pelos oficiais enfermeiros como uma atividade difícil e exitosa. Essa percepção é corroborada pela enfermeira civil que realizou a distribuição:
Entrevistei um a um perguntando onde eles queriam ficar. Não lembro bem, mas acho que foi isso. Lembro que fiz uma reunião com todos, mostrando os pontos fracos do hospital e pedindo harmonia entre todos. Mas, não foi fácil, muitos queriam se insurgir (insubordinar) e ficar logo na chefia, mas tive o apoio incondicional do Doutor Emanuel, então, diretor do hospital, que me dava carta branca [...] (E9).
Ainda no processo de distribuição, sobre a ocupação do cargo de Chefe de Enfermagem que viria a ser ocupado pelo oficial enfermeiro, em substituição à enfermeira civil, o critério de antiguidade determinaria que o primeiro colocado no estágio probatório ocupasse o cargo mais importante da equipe de enfermagem. No entanto, o primeiro colocado não fora designado. Sobre essa situação, têm-se o seguinte relato:
Teve um detalhe no final, o 01 [masculino] tirou o 1º lugar, mas o diretor [nome] não gostava dele. Então colocou ele na Central de Material Médico Hospitalar e a 02 [feminino] assumiu a chefia de enfermagem. Ele ficou inconformado [palavra substituída] mas teve que obedecer [...] (E9).
Por ocasião da distribuição dos oficiais enfermeiros, a supervisão de enfermagem da unidade era realizada por enfermeiros civis e, devido à insuficiência quantitativa de enfermeiros, os subtenentes e sargentos enfermeiros também participavam dessa atividade, conforme consta no livro de ordens e ocorrências do hospital. Uma das oficiais enfermeiras que já trabalhava na unidade como praça, antes de realizar o concurso, teceu comentários sobre a atuação dos enfermeiros civis que trabalhavam na unidade:
E aí eu não tinha muito contato direto com os enfermeiros civis, assim, supervisão, chefia de setor que no caso a [nome] era minha chefe quando eu trabalhei na pediatria como cabo especialista. As funcionárias que faziam supervisão do hospital eram bem poucas, bem restritas, a [nomes]. Então, basicamente elas passavam nos setores faziam a supervisão, os remanejamentos, algumas orientações e só. Era o que me restringia porque durante o dia eu não tinha contato com elas [...] (E1).
Conforme ressaltado pela entrevistada o número de enfermeiros civis que atuavam no hospital era muito restrito, dificultando o desempenhoe até mesmo o contato com a equipe de enfermagem. Outra entrevistada ainda refere que as poucas enfermeiras civis que estavam no HCPM, no período de inserção dos oficiais enfermeiros, encontravam dificuldades para atuar junto a equipe de Enfermagem:
E para a equipe, eles também viam a gente com uma certa reserva, porque eles já tocavam o trabalho deles da forma que eles achavam certo... E chegar a gente nova, com cabeça nova no hospital. As poucas enfermeiras civis não tinham o poder porque o hospital é militarizado, então elas não tinham o poder nas mãos, chefiavam... mas tinha ação direta nos recursos, quem vai, quem sai, quem tira, vai mudar o que na escala, não era muito isso [...] (E2).
Um oficial enfermeiro que havia sido militar (praça), também discorre sobre a equipe de enfermagem, especialmente no que se refere a escassez de recursos humanos, principalmente dos enfermeiros:
Então, era um, dois, três [enfermeiros civis] e, então, a gente contava muito com o colega que, às vezes, vinham de outro setor e ajudava a gente a fazer/resolver alguma determinada situação no setor, depois a gente ia no setor do outro e a gente ficava muito sozinho, era muito sozinho. A gente não tinha voz, entendeu? A gente não tinha voz. Então, a gente contava muito com a parceria dos colegas [...] (E1).
Outros fragmentos das entrevistas também apontam a escassez de recursos humanos existentes na unidade, enfocando a natureza do trabalho em face da grande demanda:
Assim, na época só tinham os praças... não existia o enfermeiro, então de repente a gente chega como plantonista... ai tinha uma enfermeira diarista para suprir o setor de material, mas não dava conta. Não dava conta [...] (E4).
Nós tivemos que estruturar a partir do zero praticamente. Existiam as pessoas ditas como responsáveis, mas que na verdade não tinham conhecimento técnico para isso [...] (E5).
Olha, no setor, lá não havia enfermeiros, ou melhor, havia um enfermeiro civil que trabalhava à noite [não teve contato]... Mas, eu entrei no setor sem enfermeiro, sem referências anteriores... o que tinha lá eram os auxiliares de enfermagem e o médico propriamente responsável, os médicos plantonistas [...] (E6).
A assistência de enfermagem no hospital estava bem prejudicada, pois o número reduzido de enfermeiros interferia no desenvolvimento das atividades a contento. Além disso, os técnicos de enfermagem quase não tinham contato com os enfermeiros civis da unidade. Tal situação ensejava que a equipe médica assumisse a responsabilidade pela equipe de enfermagem, desconhecendo o papel do enfermeiro.
Na opinião de outra entrevistada, o hospital não estava organizado de maneira adequada para prestar assistência aos clientes, antes da chegada dos oficiais enfermeiros:
Digamos assim a gente encontrar o hospital do jeito que estava. As enfermeiras que estavam trabalhando, nossas amigas na época que estavam aqui como civis elas trabalhavam assim... incansavelmente, mas, acredito eu que elas não conseguiam alcançar o objetivo, porque o hospital era muito grande, era muita coisa para fazer, muita coisa administrativa, então acho que com a nossa vinda somou muito entendeu […] (E8).
A entrevistada ressalta as dificuldades encontradas por ocasião da chegada dos oficiais enfermeiros no hospital. Torna-se evidente que o reduzido número de enfermeiros civis que atuavam na unidade dificultava sobremaneira a assistência de enfermagem, além dos aspectos estruturais destacados na entrevista da enfermeira civil. A entrevistada ainda acrescenta que:
Acho que só tinha eu e a [nome]... não lembro bem. Eu sei que eu estava na Chefia de enfermagem e a [nome] no CTI [...] (E8).
Sobre sua atuação na chefia, destaca ainda algumas dificuldades enfrentadas junto à equipe de enfermagem e à equipe médica, uma vez que percebia estratégias de manipulação da única enfermeira civil da chefia de Enfermagem.
Era um inferno por falta de pessoal. Basicamente mexer nas escalas. Os militares me boicotavam...se eu não tivesse apoio da direção não fazia nada. Os médicos mandavam determinações toda hora, tipo troca de férias e de horário; claro que eu não cumpria, pois a direção fazia o que eu queria. Eles ficavam incomodados [palavra substituída pela pesquisadora] e até me ameaçavam (E8).
Vale ressaltar que a atuação do enfermeiro em cargo de chefia de enfermagem sempre demanda muitos desafios em qualquer unidade de saúde e, em um espaço militar, torna-se mais desafiador, especialmente para um enfermeiro civil. Não obstante, depreende-se na fala da entrevistada que a condição de civil lhe dava a possibilidade de não cumprir as determinações militares. Também o apoio da direção, certamente ocupada por militares de alta patente lhe conferia certo empoderamento, ao estabelecer aliança com os militares.
A criação do Quadro de oficiais enfermeiros na PMERJ se deu em um momento em que, as Forças Armadas e uma força auxiliar, qual seja, os Bombeiros, já possuíam oficiais enfermeiros militares10. Ademais, as circunstâncias internas da unidade possuir apenas enfermeiros civis, levava a situações de conflitos. O excerto abaixo registra a percepção sobre a necessidade premente da criação de um quadro de oficiais enfermeiros;
Eu fui conquistando. No final, eu assumi a chefia sozinha. Por ocasião da chegada da turma de oficialatos, no hospital já não havia essa guerra entre o civil e o militar. Nós passamos a assumir tudo. Isso porque eles eram responsáveis, mas eles não eram enfermeiros... eles não tinham a titulação. Bateu o COREN, mas o COREN não resolvia porque era intimidado na época... uma série de situações. O diretor sabia que a gente tinha vindo e teria que ficar...era uma realidade. Então, para resolver esse impasse, começou-se a pensar e foi uma das brigas nossas da época, de fazer o curso de formação de oficiais para enfermeiros [...] (E11).
Após a distribuição dos oficiais enfermeiros nos setores, foram iniciados novos desafios, pois a maioria dos oficiais enfermeiros era oriunda da vida civil e havia predominância do sexo feminino em um espaço misógino. Ademais, eram profissionais com pouca experiência e ainda muito jovens. Apesar de terem passado pelo estágio probatório de adaptação, a vida militar era repleta de ritos militares, os quais não estavam totalmente incorporados. Esses ritos cumpriam a função simbólica de ratificar a hierarquia, a disciplina rígida e a inquestionável obediência. Os trechos das entrevistas abaixo trazem a lume situações inerentes aos desafios acima mencionados:
A experiência que eu tive no hospital, no HCPM foi um pouco complicada porque como eu já era da unidade como cabo especialista. Houve um pouco de rejeição por parte, algumas pessoas que achavam que eu havia mudado o comportamento por ter sido Praça e ter voltado como oficial. Um pouco dessa confusão... dessa coisa de não me aceitaram muito bem. Alguns praças que tinham por aqui (sargentos e subtenentes) também não aceitaram muito bem o oficial enfermeiro. Tinha alguns sargentos e subtenentes que faziam “entre aspas” a função de oficial enfermeiro [...] (E1).
Olha, que eu me lembre também os sargentos e os subtenentes desenvolviam todas as atividades, não estavam preparados para a receber gente, e também me recordo que nem os chefes médicos dos serviços estavam preparados, na realidade eles viam a gente com reservas e, muitas vezes, misturavam os papéis... A gente é mais envolvido com a administração então, eu percebi que nós entramos, para os chefes médicos, éramos, um secretário melhorado... olha o ralo! Trocou o ralo? Olha a luz! Troca a luz! Providencia a lâmpada [...] (E2).
Prestávamos continência para todo mundo. Nós éramos enquadrados e os médicos até debochavam da gente e até riam. Se fosse hoje em dia poderia falar assim, que era um pequeno bullying. E a gente era assim, às vezes até mais cobrados. Não sei por que os médicos do Centro Cirúrgico, principalmente os anestesistas foram que eu tive contato. Eles cobravam bastante. Eles percebiam que eu estava preocupada, mas a gente era superenquadrada e, essas vezes repercutia de uma forma, às vezes, até um pouco negativa, principalmente para os praças que eram os mais antigos [...] (E3).
Foram os sargentos mais antigos, na época chamados de coordenadores de setor, eu me lembro bem dessa fase... no meu setor foi especificamente bem difícil, pois a pessoa era um sargento bastante resistente, ele não era aberto, não estava disposto a somar [...] (E5).
Quando nós chegamos, eu observei que houve uma resistência dessas pessoas, ou seja, as militares de nível médio. Eles não encaravam a gente como uma pessoa que viria colaborar para a melhora do quadro, mas sim como aquela pessoa que viria fiscalizar, uma pessoa que seria...a cobradora de tarefas. Foi assim que eu vi a nossa recepção [...] (E7).
DISCUSSÃO
A criação do Quadro de Oficiais Enfermeiros na PMERJ se deu em um período que já existia oficiais em várias forças militares do Rio de Janeiro. A Marinha do Brasil já havia criado o Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha (CAFRM), através da lei 6.807 de 07 de julho de 1980, com a entrada de 56 oficiais enfermeiras aprovadas no curso de formação em 198110.
A criação do Quadro de Oficiais no Exército com a presença de enfermeiros foi noticiada, dando destaque que a primeira turma do Curso de Formação de Oficiais (CFO) do Quadro Complementar formou-se em 1990. Decorridos dois anos, em 1992, o curso passou a incorporar o segmento feminino nas fileiras do Exército, inaugurando a primeira turma mista no Exército Brasileiro11. Vale ressaltar que o ingresso de enfermeiros nas forças auxiliares era recente, pois também em 1992, o Corpo de Bombeiros Militares do Estado do Rio de Janeiro, criou o quadro de oficiais enfermeiros, com o ingresso de oito oficiais enfermeiros, ficando a cargo do atendimento pré-hospitalar12.
Sobre o atendimento pré-hospitalar (APH) realizado por enfermeiros, trata-se de “uma prática recente no Rio de Janeiro e teve seu início em 1992, com o ingresso de oito oficiais enfermeiros no Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro. Posteriormente, em 1994, ingressaram quatro oficiais enfermeiros oriundos do concurso de 1992”12:13.
A criação do quadro de enfermeiros para a Polícia Militar do Rio de Janeiro apresentou como patente inicial a de 2º Tenente, sendo a máxima, a de major. Nesse sentido, se, por um lado, a criação de um quadro de oficiais enfermeiros na Polícia Militar simbolizava a conquista de mais um espaço para a enfermagem, por outro demarcava limites, ao conter a ascensão do enfermeiro às patentes mais elevadas na instituição militar. Tais demarcações refletem as relações de poder, derivadas de construções simbólicas tradicionais sobre a hierarquia entre os sexos, uma vez que a enfermagem constituía uma profissão com predominância feminina, sendo inserida em um ambiente militar de prevalência masculina.
É pertinente ressaltar que, já no período de estágio de adaptação, a turma pioneira de enfermeiros iniciou sua trajetória de curso com patente inferior a dos demais integrantes da turma, o que representa o tratamento desigual ao grupo de enfermeiros. Cabe notar que, apesar de possuírem formação superior específica, como as demais categorias do quadro de saúde, os enfermeiros não foram reconhecidos com a mesma patente. A desigualdade abrangia não apenas o aspecto hierárquico militar, mas estendia-se a outros fatores como a remuneração, dentre outras distinções. Esse tratamento diferenciado de patentes demarcou inegável discriminação entre os grupos do Curso de Formação de Oficiais.
Assim, a própria distribuição por categorias profissionais distintas podem-se apresentar como uma forma de poder simbólico, onde a maioria dos oficiais enfermeiros inicialmente não conseguiram compreender essa diferenciação, como uma forma de obter o controle do grupo, através do poder exercido. Essa incompreensão é cabal no sentido de evidenciar o poder simbólico, uma vez que tais demarcações de poder não são reconhecidas e estão transfiguradas e legitimadas por outras formas de poder13.
Ao se inserirem no espaço hospitalar como oficial enfermeiro da PMERJ, perceberam que precisariam empreender estratégias, no sentido de obterem reconhecimento profissional e prosseguirem na carreira militar, em um espaço inédito para a enfermagem, em especial, no Rio de Janeiro. Os ganhos simbólicos advindos da aprovação e classificação no estágio de formação de oficiais foram a chancela inicial para a primeira demarcação de espaços de poder no cenário de atuação profissional.
As estratégias para incorporação do capital militar pelo grupo se deram de forma rigorosa, de modo a propiciar a inculcação da hierarquia e disciplina, trazendo a reboque um sentimento de pertença e devoção aos valores da corporação. Isso porque a incorporação desse capital específico, por meio de disciplina do corpo e sujeição às normas e regulamentos militares, sob a representação de que seu cumprimento inescapável faz com que os militares se sintam pessoas fora do comum, distintas das demais11.
No ano de 1995, o HCPM recebeu 42 oficiais enfermeiros, integrantes da primeira turma de oficiais enfermeiros com a patente de 2° TEN PM Enfermeiro, os quais passariam a fazer parte de seu efetivo. A equipe de Enfermagem que integrava o hospital no período, era constituída de três enfermeiros civis, pois os demais haviam solicitado exoneração, por terem sido aprovados em outros concursos. Além disso, quatro enfermeiros civis que já atuavam no hospital foram aprovados no concurso para oficiais enfermeiros.
Quanto à distribuição dos oficiais enfermeiros no HCPM, foram obedecidos os critérios de antiguidade e de experiência ou afinidade com o serviço. Não obstante, as designações nos dos cinco primeiros colocados foram efetuadas pelo então diretor do HCPM. Isso porque, historicamente, o processo de distribuição dos enfermeiros militares é pautado em dois aspectos principais: a classificação hierárquica e a escolha. Quanto melhor a posição ocupada, melhor é a chance de atendimento da opção desejada de lotação4-11, pois é um processo meritocrático, portanto, há diferenciação entre os primeiros e os últimos, criando distanciamento entre o tudo e o nada14.
Ademais, cumpre esclarecer que, na estrutura da Polícia Militar, a hierarquia constitui um dos pilares da corporação, conforme estabelecido pela Lei 443 de 01 de julho 1981: “a hierarquia policial militar é a ordenação da autoridade em níveis diferentes, dentro da estrutura da Polícia Militar. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou de uma mesma graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade”15:2. Nesse sentido, a ocupação de graus hierárquicos distintos influencia no acatamento de ordens e diretrizes, devendo ser respeitada essa autoridade de comando quanto maior for o grau hierárquico.
Na ocupação do comando da enfermagem do hospital, em substituição à enfermeira civil, a substituição do primeiro colocado pela segunda colocada, certamente, trouxe implicações importantes, pois a classificação baseada no aproveitamento do curso evidencia um ato de ordenação, onde foi instituída uma diferença social, consagrando a competência e assegurando a distinção social. Tal reordenação também evidenciou o poder do diretor no tocante a indicação da chefia de enfermagem militar, pois, não acatou o critério classificatório para a referida função. Certamente, a enfermeira civil e, então, chefe, foi ouvida e teve o apoio do diretor nas suas decisões. Não obstante, a autoridade da enfermeira foi concedida por aquele detentor da violência simbólica legítima.
O 1° colocado foi deslocado para área administrativa, na Central de Material Médico Hospitalar, até então chefiada por um Sargento da unidade. Tal fato causou estranheza na maioria, principalmente no oficial nº 01, o primeiro colocado na classificação que, inclusive, já havia, época, informado ao grupo de oficiais que assumiria o comando da enfermagem do HCPM, em face da sua classificação. Sobre a não confirmação da ocupação de seu nome no cargo, consta que o mesmo tentou argumentar junto ao diretor, porém não logrou êxito4.
A designação do oficial nº 2, em substituição do nº 1 pode ser explicada em virtude de apresentar um volume de capital social e cultural, os quais foram considerados importantes pelo diretor do hospital, tendo estes parentes militares de alta patente16. Esse tipo de capital é transmitido através das redes de relações familiares, tornando-se elemento de diferenciação principal. Esse elemento pode ser considerado um dos fatores de maior influência, o que vai ao encontro das características do oficial selecionado, pois vinda de família de militar, talvez tivesse os requisitos de capital político, adicionados as demais formas de capitais que acumulava.
Com a chegada dos oficiais enfermeiros, houve a distribuição nos vários setores do hospital, ensejando mudanças na organização da enfermagem, com reflexos na assistência aos enfermos, pois as atividades desenvolvidas pelos enfermeiros civis e profissionais de nível médio (subtenente e Sargento) passaram a ser desenvolvidas pelos oficiais enfermeiros. Estes passaram a atuar e direcionar não somente a assistência de enfermagem, mas também os aspectos administrativos dos setores, aos quais foram designados. Nesse sentido, constatam-se várias mudanças na constituição e na atuação da equipe de Enfermagem no HCPM.
A atuação dos enfermeiros civis em diversos setores do HCPM, desde 1982, foi muito importante. O enfretamento de várias dificuldades, especialmente de poder decisório no campo de atuação é destacado pela enfermeira civil entrevistada e pelos militares que atuaram anteriormente no hospital, na qualidade de enfermeira civil.
Várias mudanças relativas à distribuição da equipe de enfermagem ocorreram no período, com destaque para a transferência, por ocasião da chegada dos oficiais enfermeiros, da enfermeira civil, então Chefe de Enfermagem do HCPM, para o Setor de Treinamento e Ensino (setor de assessoria da Seção de Enfermagem), o que significou para ela a perda do poder decisório sobre as questões ligadas à Enfermagem.
Sobre essa transferência, não foi encontrado registro, entretanto documentos internos do setor e relatórios, com assinatura dessa enfermeira, permitiram comprovar sua atuação no setor, desde a assunção da Oficial Enfermeira à Chefia de Enfermagem do HCPM, em 1995. Tal transferência evidencia a menos valia de seu capital profissional em um hospital militar, após a chegada de enfermeiros portadores de capital militar institucionalizado pelas suas patentes.
No caso do HCPM não houve resistências explícitas, certamente pelo número pequeno de enfermeiras civis. As poucas enfermeiras civis optaram por fazer alianças com os oficiais enfermeiros, aceitando a nova ordem estabelecida como natural em um espaço militar. Acrescenta-se o fato de o chefe de enfermagem ter sido substituída por uma oficial enfermeira que já havia sido enfermeira civil na instituição.
Essa reclassificação consiste em uma espécie de violência simbólica, uma que vez a aceitação de uma nova ordem como sendo legítima, resulta de um processo de ocultação e dissimulação do arbitrário, que conta com a cumplicidade dos destinatários da dominação. Isso porque o poder simbólico que traz embutido a violência simbólica “só se exerce se for reconhecido”, quer dizer, ignorado como arbitrário13:14.
As instituições militares seguem rigorosa disciplina e inquestionável hierarquia, as quais podem gerar certos conflitos na vida civil. Conforme exposto acima, as dificuldades de relacionamento de o enfermeiro civil conseguir atuar em uma instituição militar podem levar ao comprometimento das relações de trabalho, interferindo na assistência.
O discurso da enfermeira civil revelou as dificuldades de lidar com um número reduzido de enfermeiros para dar conta das demandas do hospital e as dificuldades inerentes a sua condição de enfermeira civil em um hospital militar cujos oficiais enfermeiros recém-chegados deveriam assumir as funções de chefia. Para contornar tal situação, a chefe de enfermagem contou com o apoio do diretor do hospital que lhe deu autoridade para comandar o grupo e dar as diretrizes nesse período de transição.
Sendo chefe de enfermagem, como enfermeira civil, sua atuação estava ancorada no apoio da direção do hospital. Todo chefe de enfermagem das unidades militares só consegue atuar e desenvolver seu trabalho quando obtém o apoio do diretor. No ambiente militar, essa função constitui um cargo de confiança, calcado nos critérios de classificação e capital político angariado. O volume de capital social, enquanto recursos possuidores por uma pessoa, constituem um elemento importante, que permite condição de poder e reconhecimento de determinado grupo social17.
CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA
A inserção da primeira turma de oficiais enfermeiros da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro teve sua distribuição no HCPM baseado majoritariamente nos critérios de classificação hierárquica, exceto o cargo de chefe de enfermagem, uma vez que o primeiro colocado não foi confirmado no cargo máximo da equipe de enfermagem do hospital. Em seu lugar, assumiu a segunda colocada, por determinação do diretor do hospital. O primeiro colocado foi designado para a Central de Material Médico-Hospitalar.
A enfermeira chefe após sua substituição no cargo de chefe de enfermagem, foi remanejada para um setor de treinamento e ensino do hospital, considerado à época, um setor de assessoria da Seção de Enfermagem. O processo de distribuição dos demais oficiais enfermeiros nos setores do hospital foi realizado com êxito, na percepção dos oficiais, pela então enfermeira chefe.
Certamente, a ocupação de espaços de poder, representado pelas chefias dos setores assumidas pelos oficiais enfermeiros foi determinada pelo capital incorporado no estágio probatório de formação, o qual foi institucionalizado pela patente. Ademais, a prévia prática profissional no hospital, de alguns oficiais, na condição de civil ou praça facilitou a incorporação do capital militar, cujo volume e peso são importantes em um espaço militar. Não obstante, o capital profissional angariado no curso de graduação e atualizado tanto no processo de formação de oficial enfermeiro como na prática profissional no cotidiano do trabalho no HCPM, embora com menor peso, foi importante para agregar valor ao capital militar desses enfermeiros e, consequentemente, assumirem os espaços de poder no hospital.
O estudo teve como limitação a impossibilidade de entrevistar duas, das três enfermeiras civis que atuavam no hospital, por ocasião da chegada dos oficiais enfermeiros, em face de suas condições de saúde.
À guisa de considerações finais, o estudo viabilizou a construção de uma versão histórica balizada por documentos sobre a distribuição dos oficiais enfermeiros no Hospital Central da Polícia Militar, contemplando as estratégias de lutas para a ocupação dos espaços de poder sendo necessários, portanto, novos estudos sobre as repercussões dessas ocupações para a visibilidade da enfermagem militar.
REFERÊNCIAS
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Editado por
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EDITOR ASSOCIADO
Cristina Rosa Soares Lavareda Baixinho https://orcid.org/0000-0001-7417-1732
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EDITOR CIENTÍFICO
Marcelle Miranda da Silva https://orcid.org/0000-0003-4872-7252
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Jun 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
09 Fev 2021 -
Aceito
28 Abr 2021