Open-access Dimensões assistenciais do trabalho do enfermeiro na atenção primária

Dimensiones asistenciales del trabajo de las enfermeras en atención primaria

Resumo

Objetivo  analisar o desenvolvimento de práticas assistenciais de enfermeiros que atuam na Atenção Primária à Saúde.

Método  estudo quantitativo e transversal, realizado com 216 enfermeiros de 97 municípios integrantes de duas Macrorregiões de Saúde do Estado de Santa Catarina, os quais responderam um questionário do tipo survey, no ano de 2019. Os dados passaram por estatística descritiva analítica e inferencial.

Resultados  entre as práticas assistenciais observou-se prevalência do acolhimento e da consulta do enfermeiro, o que fortalece a sua autonomia e a resolutividade da Atenção Primária, seguidos dos procedimentos de enfermagem. As visitas domiciliares sobressaem-se para a periodicidade de até três vezes por semana e as atividades educativas concentraram-se na periodicidade quinzenal. As atividades de educação em saúde voltam-se majoritariamente aos usuários portadores de patologias crônicas. Os enfermeiros privilegiam as abordagens assistenciais individuais, em detrimento às ações educativas em grupo.

Conclusão e implicações para a prática  há necessidade do fortalecimento da dimensão educativa, no trabalho do enfermeiro, que tangencie atividades assistenciais e gerenciais na Atenção Primária à Saúde, em especial, voltadas para grupos.

Palavras-chave:  Atenção Primária em Saúde; Atividades Educativas; Cuidados Primários em Enfermagem; Enfermeiro; Estratégia Saúde da Família

Resumen

Objetivo  analizar el desarrollo de las prácticas asistenciales de los enfermeros que actúan en Atención Primaria de la Salud.

Método  estudio cuantitativo y transversal, realizado con 216 enfermeros de 97 municipios de dos Macrorregiones de Salud del estado de Santa Catarina, que respondieron un cuestionario tipo encuesta en el año 2019. Los datos fueron sometidos a estadística descriptiva analítica e inferencial.

Resultados  entre las prácticas de atención predominaron la acogida y la consulta de Enfermería, lo que fortalece su autonomía y la capacidad resolutiva de la Atención Básica, seguida por procedimientos de Enfermería. Se destacan las visitas domiciliarias por su periodicidad de hasta tres veces por semana y las actividades educativas se concentraron en la periodicidad quincenal. Las actividades de educación para la salud están dirigidas principalmente a usuarios con patologías crónicas. Los enfermeros privilegian enfoques de atención individual en detrimento de acciones educativas grupales.

Conclusión e implicaciones para la práctica  es necesario fortalecer la dimensión educativa en el trabajo de los enfermeros, lo que repercute en las actividades de atención y gestión en Atención Primaria de la Salud, especialmente aquellas dirigidas a grupos.

Palabras-clave:  Atención primaria de salud; Actividades educativas; Atención Primaria de Enfermería. Enfermero; Estrategia Salud de la Familia

Abstract

Objective  to analyze the development of care practices of nurses working in Primary Health Care.

Method  A cross-sectional and quantitative study was carried out with 216 nurses from 97 municipalities in two Health Macroregions of the state of Santa Catarina, who answered a survey-type questionnaire in 2019. The data were submitted to analytical and inferential descriptive statistics.

Results  Among the care practices, there was a prevalence of welcoming and Nursing consultation, strengthening their autonomy and Primary Care resoluteness, followed by Nursing procedures. Home visits stand out for the periodicity of up to three times a week, and the educational activities were concentrated on fortnightly periodicity. Health education activities are mainly targeted at users with chronic pathologies. Nurses favor individual care approaches to the detriment of group educational actions.

Conclusion and implications for the practice  There is a need to strengthen the educational dimension in nurses' work, which has repercussions on care and management activities in Primary Health Care, especially those aimed at groups.

Keywords:  Primary Health Care; Educational Activities; Primary Nursing Care; Nurse; Family Health Strategy

INTRODUÇÃO

A Atenção Primária à Saúde (APS), no Brasil, também denominada Atenção Básica (AB), opera como ordenadora da Rede de Atenção à Saúde (RAS) e caracteriza-se por um “conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas que envolvem promoção, prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos, cuidados paliativos e vigilância em saúde”.1:2 Com tal configuração, a APS apresenta, entre outros, dois aspectos distintos e interdependentes: a possibilidade de organização dos sistemas de saúde e um modelo de mudança da prática clínico-assistencial dos profissionais de saúde.

A Estratégia Saúde da Família (ESF), consolidada em meados do ano 2000 no Brasil, se destaca como uma das possibilidades de organização e modelo de prática clínico-assistencial, que tem alcançado indicadores importantes, entre eles a redução da taxa de mortalidade infantil, da mortalidade por doenças cardiovasculares e das internações por causas sensíveis à APS. Dessa forma, tem como âncora os atributos da APS e dimensões da intersetorialidade, participação social e multidisciplinaridade, atreladas aos princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS), que são a integralidade, a universalidade e a equidade.2

A implantação da ESF nos municípios tem implicado no expressivo aumento do número de enfermeiros na APS, possibilitando direcionar as ações de enfermagem para as necessidades de saúde dos usuários, famílias e comunidades, mediante as mais variadas atribuições, desde o cuidado assistencial, educação em saúde até a organização gerencial das atividades.3 Nesse contexto, o enfermeiro é o profissional que conta com habilidades e competências técnicas para atender aos usuários dos serviços de saúde, em colaboração com outros profissionais da área. Seu trabalho apresenta as dimensões: assistencial, investigativa, educacional e gerencial e, com isso, é responsável e se evidencia como profissional fundamental para o acompanhamento dos usuários do SUS.4,5 Os enfermeiros que atuam na ESF utilizam diferentes tecnologias, as quais abrangem tanto a dimensão técnico-assistencial, como conhecimentos e procedimentos técnico-científicos; e também, a dimensão técnico-relacional, como interações entre os usuários e famílias e a dinâmica coletivo-social do processo de trabalho.5

O trabalho dos enfermeiros contribui para melhorar a qualidade e a efetividade dos sistemas de saúde6 e, especificamente no Brasil, para a consolidação do SUS.7 Recomenda-se que o processo de trabalho do enfermeiro na APS convirja à proposta de modelo assistencial centrado na integralidade do cuidado ao usuário e à promoção do acesso universal à saúde. De fato, o enfermeiro atuante na APS vivencia a dicotomia entre atividades gerenciais e educativas/assistenciais, pois, na grande maioria, os profissionais acabam exercendo todas essas funções, tornando-se polivalentes. Essas atividades acumuladas, constituem um limitador para as definições entre práticas gerencias e educacionais/assistenciais, pois não conferem uma ótica clara de seu processo de trabalho. Tal atuação implica nas práticas do enfermeiro, que está atrelado à equipe, ao serviço, ao planejamento e à assistência dos usuários.8 Cumpre destacar a responsabilidade do enfermeiro na gerência e assistência, pois esse profissional não deixa de corroborar com as práticas de fortalecimento do serviço, mediante ações intersetoriais, sempre buscando fortalecer a resolutividade do atendimento.9

Diante disso, este estudo tem como objetivo analisar o desenvolvimento de práticas assistenciais e educativas de enfermeiros que atuam na Atenção Primária à Saúde. Considera-se necessário esse reconhecimento para instigar reflexões acerca do papel desenvolvido pelo enfermeiro, nas diferentes dimensões de seu trabalho, por meio das práticas profissionais efetivas no cuidado das pessoas, famílias e comunidades, nas Macrorregiões estudadas.

MÉTODO

Estudo quantitativo transversal, com enfermeiros que atuam junto às equipes de Saúde da Família (eSF) de 97 (74,04%) dos 131 municípios integrantes de duas Macrorregiões de Saúde do Estado de Santa Catarina: o Grande Oeste, e o Meio Oeste. Para o cálculo amostral foi considerada a população de 440 enfermeiros que atuam nas eSF dessas Macrorregiões, utilizando a proporção de 50%, margem de erro de 5%, intervalo de confiança de 95%, sendo estimado 205 participantes.

Como critério de inclusão foi definido que os enfermeiros deveriam atuar na eSF do município por, no mínimo, um ano, considerando esse período importante para apreensão de seu processo de trabalho. Como critério de exclusão considerou-se: enfermeiros que durante o período da coleta de dados estavam em licença ou afastados do serviço por qualquer motivo. Mediante convite a todos os profissionais que se encaixavam nos critérios de pesquisa, o estudo contou com a participação de 216 (49%) enfermeiros.

A coleta de dados foi realizada no período de maio a agosto de 2019, por meio de um questionário do tipo survey, estruturado no Google Forms®, que foi encaminhado por e-mail aos enfermeiros em parceria com a Associação Brasileira de Enfermagem - Seção Santa Catarina (ABEn/SC) e as Gerências Regionais da Saúde. No conteúdo do e-mail foi anexado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo que o acesso e resposta ao survey formalizava o aceite em participar de modo voluntário na pesquisa. O instrumento possui cerca de 30 questões fechadas, que abordam as práticas do enfermeiro em todas as dimensões de seu trabalho na APS. Este estudo apresenta e discute parte dos resultados.

Em busca de identificar uma tendência entre as práticas desenvolvidas pelos enfermeiros que participaram da pesquisa, foi elaborado um escore de periodicidade para as atividades assistenciais (n=201) e educativas coletivas/grupais (n=78). Para o escore das atividades assistenciais foram consideradas as cinco questões que envolviam a frequência de realização de: consulta do enfermeiro; acolhimento; visita domiciliar; procedimento em domicílio; procedimento na UBS. Para o escore das atividades educativas foram consideradas as seis questões que envolviam as atividades coletivas/grupos com as temáticas: patologias crônicas, desenvolvimento (gestantes, puericultura, adolescentes, entre outros), saúde do trabalhador, saúde mental, drogas lícitas, grupo de familiares.

As respostas possíveis de frequência dessas questões eram: todos os dias (valor=4), três vezes por semana (valor=3), quinzenalmente (valor=2) e esporadicamente (valor=1) e não realiza (valor=0). Aqueles participantes que responderam não realizar alguma das atividades (valor =0) não foram incluídos no cálculo dos escores. O escore das atividades assistenciais poderia variar de 5 a 20, e obteve média de 15,21 (desvio padrão 2,92), demonstrando uma média mais próxima do limite superior. O coeficiente de alfa de cronbach desse conjunto de questões foi de 0,64. Já o escore das atividades educativas coletivas/grupais poderia variar de 6 a 24 pontos, obteve média de 12,51 (desvio padrão 5,43), e alfa de cronbach de 0,87.

Para os dois conjuntos de atividades, os valores para cada questão foram somados e, posteriormente, divididos em uma escala de cinco classes (baseado na amplitude possível de variação da mesma): “muito alto”, “alto”, “médio”, “baixo” e “muito baixo”.

A análise dos dados foi realizada com o auxílio do software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 21.0. Os achados foram expressos em números absolutos, frequência absoluta e relativa, intervalo interquartil, média e desvio padrão.

O estudo respeitou os aspectos éticos preconizados pelas Resoluções nº 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovado em Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (parecer nº 2.380.748/2017).

RESULTADOS

As variáveis sociodemográficas dos 216 enfermeiros participantes do estudo apresentaram média de idade de 36 anos (desvio padrão de 7,06); 94% (n=203) de indivíduos do sexo feminino; 80,6% (n=174) tinham especialização no campo da saúde coletiva; o tempo de atuação na APS teve mediana de 8,5 anos (intervalo interquartil: 4-13); e a mediana do tempo de trabalho na eSF atual foi de 4,5 anos (intervalo interquartil: 2-9).

A Tabela 1 apresenta variáveis e periodicidade das práticas assistenciais desenvolvidas pelos enfermeiros.

Tabela 1
Periodicidade da realização de atividades assistenciais pelo enfermeiro na APS nas Macrorregiões Grande Oeste e Meio Oeste de SC, 2019.

A Tabela 2 e a Figura 1 se voltam à análise dos tipos de grupos de educação em saúde realizados e a sua respectiva frequência.

Tabela 2
Periodicidade da realização de grupos pelos enfermeiros segundo a natureza na APS das Macrorregiões Grande Oeste e Meio Oeste de SC, 2019.
Figura 1
Periodicidade com que os enfermeiros realizam os diferentes tipos de grupos educativos na APS das macrorregiões Grande Oeste e Meio Oeste de SC, 2019. (n=216).

A Tabela 3 e a Figura 2 classificam o escore de periodicidade do desenvolvimento das atividades assistenciais.

Tabela 3
Periodicidade dos escores das atividades assistenciais e atividades educativas coletivas/grupais na APS pelos enfermeiros das Macrorregiões Grande Oeste e Meio Oeste de SC, 2019.
Figura 2
Escore de periodicidade com que os enfermeiros desenvolvem atividades assistenciais e grupos de educação em saúde na APS das macrorregiões Grande Oeste e Meio Oeste de SC, 2019.

DISCUSSÃO

Na caracterização dos participantes dessa pesquisa, observa-se que a maioria dos profissionais entrevistados são mulheres, com prevalência na faixa etária de 36 anos. Pesquisadores10 afirmam que a Enfermagem é uma das carreiras nas quais o arcabouço profissional é majoritariamente desenvolvido pelo sexo feminino, pois as mulheres foram reconhecidas como pioneiras e protagonistas na criação e sistematização da profissão, inspiradas por Florence Nightingale, precursora desta categoria.

Quanto à formação das enfermeiras atuantes em APS, evidencia-se nesse estudo que a maioria conta com especialização no campo da saúde coletiva e, ao encontro da afirmação11 de que quanto mais experiência em sua área de atuação, aliada à especialização, terá maior facilidade no desempenho de suas atribuições. Isso ocorre, inclusive, ao colaborar com a equipe e a gestão, uma vez que a equipe depende de um líder que garanta a melhoria do processo de trabalho.

No que tange ao tempo médio de atuação em APS, observa-se que a maioria dos participantes estavam, em média, 8,5 anos, e na ESF 4,5 anos. O vínculo longitudinal e efetivo entre profissionais das eSF e população potencializa o cuidado na APS, reconhecido como atributo essencial, permeado por outros atributos, como primeiro contato, atendimento integral e coordenação do cuidado.12

A promoção da saúde, juntamente com a prevenção de doenças e o cuidado clínico, mantêm-se no Brasil como as três tarefas ou missões principais das equipes de APS/ESF, em seu cotidiano. Nessa direção, a enfermagem tem papel fundamental: (1) no cuidado clínico (Consulta do Enfermeiro) e coordenação deste cuidado; (2) na prevenção de doenças, sobretudo por meio de ações educativas e orientação à população; (3) na promoção da saúde, que permeia as anteriores, com ações específicas, com caráter mais participativo, por vezes coletivo, empoderador e politizante.13 Nesse sentido, os achados coadunam com a importância de os enfermeiros e equipes dedicarem mais tempo às atividades de promoção da saúde para grupos específicos, mais centrados no adoecimento crônico.14 Nas Macrorregiões estudadas, as eSF têm se dedicado às práticas grupais no âmbito da APS, especialmente voltadas à saúde mental.

Pode se observar nesse estudo, no que tange à Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) e o Processo de Enfermagem, que os enfermeiros realizam a consulta na APS, colaborando para a efetividade e resolutividade do serviço. Ao executar a SAE, o enfermeiro estabelece a organização do processo de trabalho, voltado para as demandas que emergem, não direcionando o usuário às suas práticas profissionais somente, mas sim, a todos os membros da equipe de enfermagem, com respaldo na lei do exercício profissional.15 No território Brasileiro, a Lei do Exercício Profissional da Enfermagem nº 7.498/8616 e o seu Decreto de regulamentação nº 94.406/8717 descrevem como atividade privativa do enfermeiro a realização da consulta, que inclui a solicitação de exames e a possibilidade de realizar a prescrição de alguns medicamentos, desde que isso esteja contemplado em protocolos institucionais. Também, na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB),18 se atribui ao enfermeiro, nas atribuições específicas de seu processo de trabalho, a realização de consulta, procedimentos, solicitação de exames complementares, prescrição de medicações de acordo com protocolos, diretrizes clínicas e terapêuticas ou outras normativas, observadas as disposições legais da profissão. Sobre a Consulta do Enfermeiro, cumpre destacar que, na Macrorregião Oeste, pela presença de Universidades com cursos de enfermagem, inclusive stricto sensu, há uma maior adesão à esta prática, pelas ações de integração ensino-serviço.

Outra atividade com ênfase foi a prática do acolhimento por parte do enfermeiro na APS, o que possibilita uma escuta qualificada, que implica práticas de acesso avançado e resolutividade na APS. O objetivo do acolhimento emerge das discussões acerca da reorganização da assistência, destacando esse método como apoiador na qualificação do SUS, pois corrobora com as necessidades do usuário, ao permitir acesso a um cuidado ampliado e integral, com base em suas necessidades.19 Os enfermeiros são profissionais que se destacam no mercado de trabalho por contarem com habilidades quanto à compreensão e interpretação das necessidades humanas, em todas as dimensões.20 Na práxis da ESF, o papel do enfermeiro como acolhedor reforça a relação entre profissional e usuário, ao atrelar os saberes da prática aos empíricos, elencando necessidades da população. Nessa direção o acolhimento é considerado uma tecnologia relacional do enfermeiro na APS e é importante manter essa ferramenta no processo de trabalho das equipes.21

Como práticas que se destacam nesse estudo, estão também o desenvolvimento de atividade em grupos na APS, para fomentar práticas de promoção de saúde, incentivando melhores hábitos individuais e coletivos. Como discutido, um dos objetivos da APS é a promoção da saúde, que aponta para a qualidade de vida, redução de vulnerabilidades e riscos associados a determinação social da saúde,22 o que torna possível ao profissional agir sobre o estilo de vida e, em alguma medida, no ambiente local. Cumpre destacar, contudo, que as condições de trabalho, renda e educação formal são elementos que demandam políticas públicas mais abrangentes.13,19

No contexto das práticas de educação, podemos observar a disparidade entre atividades assistenciais e educativas, em que as primeiras são mais presentes. Isso, novamente, chama a atenção na organização do trabalho do enfermeiro. A dimensão educativa de seu trabalho4,5 pode estar presente nas demais, que são a assistencial e a gerencial. A educação em saúde é compreendida como estratégia construtora de conhecimentos e tem operado na promoção da saúde, em todos os níveis, pois permite a adesão de determinado tema pela população-alvo, com possível mudança de comportamento. Trata-se de um conjunto de saberes, voltados a práxis e que corrobora para o processo de autonomia individual e coletiva, com envolvimento de profissionais e gestores, a fim de atender as necessidades locoregionais. Esses saberes também corroboram à qualidade de vida da população.23 Sendo assim, o que nos parece mais viável, é que o enfermeiro assuma a dimensão clínica/assistencial de seu trabalho, com foco na Consulta do Enfermeiro qualificada, tendo como prática tangencial nessas consultas a educação para a saúde. Esta pode (e deve) permear outros processos, como as atividades em grupo, as visitas domiciliares, etc.

Nesse contexto, é interessante mencionar e refletir sobre as melhores práticas de enfermagem, cuja discussão no Brasil emerge, com o propósito de fortalecimento da APS, e, consequentemente do SUS. O conceito de “melhor prática” aponta para aquela técnica ou metodologia ancorada em confiabilidade, experiência ou investigação e que comprove resultado efetivo. Essa metodologia requer conhecimento e prática funcional em contextos específicos, com vistas à resultados esperados, podendo ser replicado em outros contextos. Para sintetizar, a melhor prática é composta pela tríade da investigação, experiência e confiabilidade.24

Uma das possibilidades da aplicabilidade das melhores práticas está centrada na Enfermagem de Prática Avançada, contudo, no contexto brasileiro, não é reconhecida a legislação ou mesmo a formação do Enfermeiro de Práticas Avançadas. Em realidades internacionais, essa modalidade inclui um cuidado clínico mais acurado, desde a avaliação e diagnóstico, até a prescrição de medicamentos, considerando a devida regulamentação estabelecida pelo Conselho Federal de Enfermagem, pelos órgãos governamentais e nos diversos cenários de prática.13,25

Entretanto, o que se observa, é que a realização de práticas clínicas, com base em evidências e guidelines ou protocolos, mesmo não sendo totalmente uma prática regulamentada no Brasil, já causou discussões sobre a práxis da enfermagem, principalmente na APS. Isso porque, de um lado, defende-se que a função de práticas avançadas implementada na América Latina poderia fazer a diferença no acesso e resolutividade do cuidado aos usuários dos serviços públicos de saúde.26 De outro lado, ainda que favoreçam um aumento na autonomia do enfermeiro, assumir práticas avançadas para alguns, implicaria em maior sobrecarga desses profissionais; além de, no Brasil, haver uma precariedade na formação e outras situações desestimulantes para essa adequação.13 De acordo com o Conselho Internacional de Enfermeiros (CIE), a Enfermagem de Práticas Avançadas demanda conhecimento especializado, capacidade de tomar decisões complexas e competências clínicas para um exercício ampliado da profissão, incluindo habilidades como a liderança organizacional. Por isso, se recomenda o mestrado no preparo dos profissionais para atuar nessa modalidade.27,28

Embora não tenha sido o objeto deste estudo, sabe-se que os enfermeiros da APS se envolvem de forma preponderante nas coordenações e na administração de serviços de saúde, ao encontro da dimensão gerencial de seu trabalho. Isso tem impactado negativamente na prestação de cuidado pelo enfermeiro da APS no Brasil, diante as diferentes demandas de trabalho.29

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

No contexto da APS em estudo, podemos observar o fortalecimento das ações de educação em saúde como uma prática implementada, com pouco mais de um terço dos profissionais desenvolvendo ações dessa natureza, contribuindo com as atividades assistenciais e gerenciais.

No que tange ao processo de trabalho do enfermeiro, este encontra-se no contexto da APS ainda marcadamente influenciado pelo modelo biomédico, com ações centradas no atendimento clínico e pouco preventivo ou promotor da saúde, e a unidade de saúde é o local privilegiado de suas práticas. Essa característica vai de encontro ao que se espera, em relação ao modelo assistencial integral e o cuidado ao usuário voltado à promoção do acesso universal à saúde. Contudo, um dos limites do estudo está na abordagem exclusivamente quantitativa do tema, sendo relevante estudos qualitativos que observem de forma longitudinal as práticas profissionais do enfermeiro.

Quanto à autonomia do enfermeiro, esta tem sido facilitada pelo respaldo legal para a consulta e outras ações, contudo, o profissional ainda precisa refletir sobre a sua pró atividade e a organização do processo de trabalho, utilizando do método de partilha de atribuições para a reorganização do serviço no qual está inserido e aqui referido, que é a APS.

Outro quesito importante é a sensibilização da gestão e demais membros da equipe para o fortalecimento da educação em saúde, cuja dimensão interprofissional é inevitável. Na prevenção de doenças e na promoção da saúde, mesmo durante a prática clínica e nas ações grupais, a educação é tangencial e reflete resultados a curto, médio e longo prazos, individual e coletivamente.

O presente trabalho cumpriu com seus objetivos, evidenciando quais são as práticas profissionais dos enfermeiros da região pesquisada, ainda bastante centradas na assistência, mas gradativamente evoluindo para a prática clínica, representada pela Consulta do Enfermeiro. Notou-se que as práticas educativas permeiam todas as suas ações, com ênfase nas atividades grupais e acolhimento aos usuários. Todavia, há ainda algumas ressalvas a serem consideradas por parte do processo de trabalho, como a Enfermagem de Prática Avançada não ser reconhecida pela legislação brasileira, o receio de sobrecarga profissional se isto for implementado, e necessidade de melhor qualificação profissional.

AGRADECIMENTOS

À Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e ABEn-SC, pela colaboração com bolsas para estudantes e contato com os municípios, respectivamente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2022
  • Aceito
    13 Set 2023
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