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Saúde digital à luz da filosofia contemporânea

Salud digital a la luz de la filosofía contemporánea

Resumo

Objetivo

discutir as questões relacionadas ao conceito de saúde digital, e de que modo a área da saúde tem se associado à evolução tecnológica e aos novos paradigmas para o cuidado, à luz de alguns pensadores da Filosofia contemporânea.

Método

trata-se de um ensaio teórico-filosófico.

Resultados

Michel Foucault destacou o papel das estruturas de poder na saúde digital, alertando para o potencial de vigilância e do controle social. Por outro lado, Pierre Lévy e Mário Bunge enfatizaram a importância da tecnologia na Enfermagem, ressaltando seus benefícios e desafios na busca por soluções adequadas e éticas.

Considerações finais e implicações para a prática

a saúde digital emerge como um terreno de conflitos e possibilidades, em que os avanços tecnológicos trazem consigo tanto as potencialidades transformadoras, quanto os riscos à privacidade, à autonomia e à qualidade do cuidado. A abordagem filosófica é essencial para questionar o desenvolvimento tecnológico em saúde, especialmente na Enfermagem, de maneira ética, profunda e consciente.

Palavras-chave:
Enfermagem; Filosofia; Saúde; Tecnologias da Informação; Telemedicina

Resumen

Objetivo

discutir temas relacionados con el concepto de salud digital, y cómo el área de la salud se ha asociado con la evolución tecnológica y nuevos paradigmas para el cuidado, a la luz de algunos pensadores de la Filosofía contemporánea.

Método

se trata de un ensayo teórico-filosófico.

Resultados

Michel Foucault destacó el papel de las estructuras de poder en la salud digital, advirtiendo sobre el potencial de vigilancia y del control social. Por otro lado, Pierre Lévy y Mário Bunge destacaron la importancia de la tecnología en Enfermería, destacando sus beneficios y desafíos en la búsqueda de soluciones apropiadas y éticas.

Consideraciones finales e implicaciones para la práctica

la salud digital emerge como una tierra de conflictos y posibilidades, en la que los avances tecnológicos traen consigo tanto las potencialidades transformadoras como riesgos para la privacidad, la autonomía y la calidad de la atención. El enfoque filosófico es fundamental para cuestionar el desarrollo tecnológico en salud, especialmente en Enfermería, de manera ética, profunda y consciente.

Palabras clave:
Enfermería; Filosofía; Salud; Tecnologías de la Información; Telemedicina

Abstract

Objective

to discuss issues related to the concept of digital health, and how the area of health has been associated with technological evolution and new paradigms for care, in the light of some contemporary philosophical thinkers.

Method

this is a theoretical-philosophical essay.

Results

Michel Foucault highlighted the role of power structures in digital health, warning of the potential for surveillance and social control. On the other hand, Pierre Lévy and Mário Bunge emphasize the importance of technology in nursing, highlighting its benefits and challenges in the search for appropriate and ethical solutions.

Final considerations and implications for practice

digital health emerges as a land of conflicts and possibilities, in which technological advances bring both transformative potential and risks to privacy, autonomy, and quality of care. The philosophical approach is essential to question technological development in health, especially in nursing, in an ethical, profound, and conscious way.

Keywords:
Nursing; Philosophy; Health; Information Technology; Telemedicine

INTRODUÇÃO

O conceito de saúde digital compreende um campo emergente e amplo, que envolve a aplicação de vários recursos disponíveis pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) no contexto da saúde. Abrange uma ampla gama de áreas, dentre elas, a Enfermagem, possibilitando a prática assistencial e o uso de registros eletrônicos, aplicativos, inteligência artificial, análise de Big Data e outros recursos tecnológicos.11 Ministério da Saúde (BR). Estratégia de saúde digital para o Brasil 2020-2028 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [citado 2023 jun 2]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/estrategia_saude_digital_Brasil.pdf
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Ao se ter como propósito a promoção da saúde de forma igualitária e independente de barreiras geográficas, o termo saúde digital unifica o que antes era conhecido como e-Saúde, Telemedicina, Telessaúde, Saúde Móvel ou qualquer outro termo de aplicação às TICs em saúde. Cabe salientar que, os avanços tecnológicos na área da saúde dispararam com o advento da pandemia da COVID-19, momento em que se tornou de extrema relevância a oferta de informação precisa e oportuna à população e aos profissionais da saúde, como estratégia de resolubilidade de demandas de curto, médio e longo prazo.22 Topol EJ. High-performance medicine: the convergence of human and artificial intelligence. Nat Med. 2019;25(1):44-56. http://doi.org/10.1038/s41591-018-0300-7. PMid:30617339.
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Por se tratar de ferramentas cada vez mais utilizadas no cotidiano laboral, as tecnologias digitais envolvem, principalmente, a responsabilidade do profissional de saúde em ambiente virtual, desde as questões éticas até as questões que envolvem a equidade de acesso às tecnologias, além de diversos fatores intrínsecos à profissão.33 Organización Mundial de la Salud‎. Estrategia mundial sobre salud digital 2020-2025 [Internet]. Genebra: OMS; 2021 [citado 2023 jun 5]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/344251
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Nessa perspectiva, cabe salientar que o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) no Brasil, autorizou e normatizou a teleconsulta de Enfermagem,44 Resolução nº 634, de 26 de março de 2020 (BR). Autoriza e normatiza a teleconsulta de enfermagem como forma de combate à pandemia provocada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 26 mar 2020 [citado 2023 ago 25]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/resolucao-cofen-no-0634-2020_78344.html
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bem como a telenfermagem,55 Resolução COFEN nº 717, de 27 de março de 2023 (BR). Altera o parágrafo único do art. 2º da Resolução Cofen nº 696/2022, a qual trata da atuação da Enfermagem na Saúde Digital, normatizando a Telenfermagem. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 30 mar 2023 [citado 2023 ago 25]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/resolucao-cofen-no-696-2022_99117.html
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como estratégia de combate à pandemia da COVID-19, incluindo o uso das TICs às competências da profissão. Ainda, mais recentemente, o Ministério da Saúde no Brasil, instituiu o “Programa SUS Digital”, que tem como propósito promover a transformação digital no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), ampliando o acesso da população aos serviços de saúde.66 Portaria GM/MS Nº 3.232, de 1º de março de 2024 (BR). Altera a Portaria de Consolidação GM/MS nº 5, de 28 de setembro de 2017, para instituir o Programa SUS Digital. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 4 mar 2024 [citado 2024 mar 5]. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-3.232-de-1-de-marco-de-2024-546278935
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,77 Portaria GM/MS nº 3.233, de 1º de março de 2024 (BR). Regulamenta a etapa 1: planejamento, referente ao Programa SUS Digital. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 4 mar 2024 [citado 2024 mar 5]. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-3.233-de-1-de-marco-de-2024-546282453
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Dessa forma, o princípio da equidade, tão bem estabelecido pelo SUS e, também garantido pela Constituição Brasileira de 1988,88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BR). Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 5 out 1988 [citado 2024 mar 5]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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conduz a algumas reflexões críticas e questionamentos.

No campo da Filosofia da Ciência, as discussões voltadas à saúde digital impulsionam reflexões sobre a confiabilidade, a validade e os limites do conhecimento gerado, tendo em vista a grande disponibilidade na web de informações sobre as doenças e os tratamentos, além do uso crescente da inteligência artificial para as tomadas de decisões clínicas. Ademais, cumpre ressaltar que esse avanço tecnológico impacta diretamente na relação com o corpo, com a área da saúde e com o próprio conceito de cuidado.

Frente ao exposto, este ensaio teórico-filosófico tem o intuito de discutir as questões relacionadas ao conceito de saúde digital, e de que modo a área da saúde tem se associado à evolução tecnológica e aos novos paradigmas para o cuidado, à luz de alguns pensadores da Filosofia contemporânea.

MÉTODO

Trata-se de um ensaio teórico-filosófico. Essa modalidade de estudo é caracterizada por sua natureza interpretativa e reflexiva, que propõe compreender a realidade e os fenômenos de forma qualitativa, sem classificar os resultados conforme a ciência tradicional. Além disso, esse tipo de investigação proporciona a interação entre a subjetividade e a objetividade do conteúdo explorado, baseado em percepções e experiências teóricas e práticas de domínio dos autores.99 Meneghetti FK. O que é um ensaio-teórico? Rev Adm Contemp. 2011;15(2):320-32. http://doi.org/10.1590/S1415-65552011000200010.
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,1010 Campos LL, Melo AK. Noção de família(s) no campo da saúde brasileira: ensaio teórico-reflexivo. Esc Anna Nery. 2022;26:e20210197. http://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2021-0197.
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Ao considerar os diversos formatos de ensaios, seja para fins literários, científicos ou filosóficos, este estudo propõe, ainda, abordar as questões filosóficas devido à sua natureza reflexiva e conceitual, a qual permite uma análise profunda de ideias e uma construção argumentativa e coerente sobre um determinado tema.99 Meneghetti FK. O que é um ensaio-teórico? Rev Adm Contemp. 2011;15(2):320-32. http://doi.org/10.1590/S1415-65552011000200010.
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Para o desenvolvimento deste ensaio teórico-filosófico, foram utilizadas as seguintes indagações: Os benefícios dos avanços tecnológicos, bem como da saúde digital, têm alcançado a população? Quais as potencialidades e as fragilidades éticas em torno da saúde digital? A saúde digital pode afastar as pessoas do campo político e coletivo da saúde, reduzindo-a meramente a um padrão de consultas individuais?

Assim, tais questionamentos aliados às leituras de alguns pensadores da Filosofia contemporânea, com destaque para Michel Foucault, Pierre Lévy, Mário Bunge e Alberto Cupani, orientaram o desenvolvimento deste ensaio teórico-filosófico, delimitando seu escopo, conforme apresentado a seguir.

RESULTADOS

Michel Foucault,1111 Aquino JG. A difusão do pensamento de Michel Foucault na educação brasileira: um itinerário bibliográfico. Rev Bras Educ. 2013;18(53):301-24. http://doi.org/10.1590/S1413-24782013000200004.
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filósofo francês do século XX, destacou-se por sua análise crítica das estruturas de poder e controle presentes nas instituições sociais. Sua obra abrange uma ampla gama de temas, incluindo a política, a sexualidade e a Psiquiatria. Embora essa abordagem promova avanços significativos em termos de diagnóstico e tratamento, também traz consigo desafios e questões que merecem atenção crítica. Foucault em suas obras convida a todos a questionar os sistemas e as relações de poder que permeiam a temática da saúde digital. Ele alertou para a existência de dispositivos disciplinares e mecanismos de controle social que operam por meio das tecnologias. Por exemplo, a coleta exacerbada de dados de saúde pode levar a uma vigilância generalizada, na qual os indivíduos são constantemente monitorados e suas ações são controladas em nome da saúde.1111 Aquino JG. A difusão do pensamento de Michel Foucault na educação brasileira: um itinerário bibliográfico. Rev Bras Educ. 2013;18(53):301-24. http://doi.org/10.1590/S1413-24782013000200004.
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,1212 Aquino JG. Foucault e a pesquisa educacional brasileira, depois de duas décadas e meia. Educ Real. 2017;43(1):45-71. http://doi.org/10.1590/2175-623661605.
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A saúde digital também pode trazer avanços significativos, mas apenas se todos estiverem atentos e engajados a questionar e a transformar as estruturas. Ademais, Foucault caracterizou o biopoder como o adestramento dos corpos, extorquindo suas forças, de modo que o corpo se torna tão mais útil, quanto mais docilizado. Dessa maneira, será possível subjugá-lo ao contingente de tecnologias e operações de que depende o funcionamento social. E denomina a biopolítica como o outro polo complementar do biopoder. A biopolítica abrange uma perspectiva mais ampla, envolvendo a governança da vida e da saúde das populações.1212 Aquino JG. Foucault e a pesquisa educacional brasileira, depois de duas décadas e meia. Educ Real. 2017;43(1):45-71. http://doi.org/10.1590/2175-623661605.
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,1313 Olivato A. Em defesa da sociedade, curso no Collège de France (1975-1976), de Michel Foucault. Plural. 2001;8:161-6. http://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2001.75756.
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Em relação ao biopoder, Foucault também incluiu o termo anátomo-política. Esse conceito foi introduzido em sua obra Vigiar e Punir para descrever uma forma específica de exercício de poder que se concentra na disciplina dos corpos e na regulação dos espaços físicos. De acordo com Foucault, a anátomo-política refere-se à organização e ao controle dos corpos individuais e coletivos em termos de sua observação, classificação e normalização.1414 Furtado RN, Camilo JAO. O conceito de biopoder no pensamento de Michel Foucault. Rev Subj. 2017;16(3):34-44. http://doi.org/10.5020/23590777.16.3.34-44.
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,1515 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. 1975.

Essa forma de poder opera por meio de instituições como prisões, hospitais, escolas e outras instituições disciplinares, que estabelecem regras, regulamentos e técnicas específicas para moldar e disciplinar os corpos. E, busca controlar e regular o comportamento e a aparência dos indivíduos, criando normas e categorias de normalidade e anormalidade. Ela estabelece padrões de conduta, corpos ideais e modelos de comportamento que os indivíduos são incentivados a seguir. Por meio da vigilância constante e da observação detalhada, as instituições disciplinares buscam moldar e treinar os corpos para se adequarem a essas normas estabelecidas.1313 Olivato A. Em defesa da sociedade, curso no Collège de France (1975-1976), de Michel Foucault. Plural. 2001;8:161-6. http://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2001.75756.
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,1414 Furtado RN, Camilo JAO. O conceito de biopoder no pensamento de Michel Foucault. Rev Subj. 2017;16(3):34-44. http://doi.org/10.5020/23590777.16.3.34-44.
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Pierre Lévy1616 Lévy P. O que é virtual? Rio de Janeiro: Editora 34; 1996.,1717 Pimenta FJP. O conceito de virtualização de Pierre Lévy e sua aplicação em hipermídia. Lumina [Internet]. 2001; [citado 2024 mar 5];4(1):85-96. Disponível em: https://www.ufjf.br/facom/files/2013/03/R6-Francisco.pdf
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argumentou que a virtualização, ou seja, o movimento de passagem do atual para o virtual, amplia a variabilidade dos novos meios de comunicação, em termos de tempo e espaço. A consideração do virtual como matriz criativa surgiu no exemplo apresentado pelo filósofo, a seguir, onde ele compara o virtual às atuais características do teletrabalho:

Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam, eles se tornam “não-presentes”, se desterritorializa. Uma espécie de desengate os separa do espaço físico ou geográfico ordinários e da temporalidade do relógio e do calendário. É verdade que não são totalmente independentes do espaço-tempo de referência, uma vez que devem sempre se inserir em suportes físicos e se atualizar aqui ou alhures, agora ou mais tarde. No entanto, a virtualização lhes fez tomar a tangente. 16:21

No contexto da saúde digital, o exercício da Enfermagem, assim como o de outras profissões, encontra-se cada vez mais alinhado ao uso de tecnologias. Em 2020, em face da pandemia e das inúmeras barreiras impostas pela COVID-19, foi aprovada a realização de consultas de Enfermagem à distância pelo COFEN no Brasil, em suas Resoluções nº 634/2020 e nº 696/202244 Resolução nº 634, de 26 de março de 2020 (BR). Autoriza e normatiza a teleconsulta de enfermagem como forma de combate à pandemia provocada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 26 mar 2020 [citado 2023 ago 25]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/resolucao-cofen-no-0634-2020_78344.html
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,55 Resolução COFEN nº 717, de 27 de março de 2023 (BR). Altera o parágrafo único do art. 2º da Resolução Cofen nº 696/2022, a qual trata da atuação da Enfermagem na Saúde Digital, normatizando a Telenfermagem. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 30 mar 2023 [citado 2023 ago 25]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/resolucao-cofen-no-696-2022_99117.html
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que normatizou a prática da teleconsulta de Enfermagem e a Telenfermagem. Tal prática se mostrou resolutiva para as diferentes áreas no país e sua efetivação requer adequações tanto do enfermeiro, quanto do paciente, que perpassam a infraestrutura e a conectividade.

Contudo, cumpre salientar que, no contexto da prática profissional, a tecnologia não se resume, conforme Bunge,1818 Bunge M. Philosophy of science and technology: parte II: life science, social science and technology. Dordrecht: Reidel; 1985. à utilização do conhecimento científico, mas implica na busca de um conhecimento específico. Em outros termos, Cupani1919 Cupani A. Filosofia da tecnologia: um convite. 3ª ed. Florianópolis: Editora da UFSC; 2016.,2020 Cupani AA. tecnologia como problema filosófico: três enfoques. Sci Stud. 2004;2(4):493-518. http://doi.org/10.1590/S1678-31662004000400003.
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salientou que não existe tecnologia quando o homem se limita a aplicar um saber-fazer e nem quando se nega a busca por seu aperfeiçoamento, uma vez que tais condutas representam a de um mero técnico contemporâneo, e não do tecnólogo.

A tecnologia, na perspectiva de Bunge,1818 Bunge M. Philosophy of science and technology: parte II: life science, social science and technology. Dordrecht: Reidel; 1985. tem um valor significativo, pois se a técnica encarna a ação racional endereçada a garantir seu próprio sucesso, a tecnologia pode ser vista como a concretização da ação plenamente racional, onde os problemas práticos humanos, tenham uma solução adequada que se fundamente na ciência e na tecnologia. Mas não significa que esse filósofo acredite que a tecnologia seja ou tenha sido sempre benéfica, uma vez que o avanço tecnológico tem causado inúmeros problemas, a exemplo de invenções vistas como positivas, e que acarretam consequências negativas em determinadas circunstâncias.

Ademais, ao considerar os resultados deste ensaio, na Figura 1 destacam-se alguns desafios enfrentados pela Ciência da Enfermagem, e que, posteriormente, serão discutidos.

Figura 1
Desafios à Ciência da Enfermagem em meio à evolução da saúde digital.

DISCUSSÃO

As discussões filosóficas e sociológicas podem fornecer ferramentas para a conscientização de que algumas decisões políticas e inovações estão vinculadas aos conhecimentos teóricos já bem estabelecidos (como disciplina, biopoder e biopolítica, por exemplo), e que a discussão e o conhecimento são possibilidades de compreensão, análise, resistência, e até mesmo de libertação deste tipo de dominação social (se assim considerado for). No entanto, as críticas direcionadas à saúde digital promovem um questionamento sobre as potencialidades deste fenômeno, que surge como uma inovação e oportunidade de evolução às ciências, com foco no cuidado aos seres humanos. Ademais, a saúde digital fomenta o progresso da assistência à saúde de forma abrangente à população, mesmo que ainda necessite de aprimoramento e investimentos.

A tecnologia é parte notória do mundo contemporâneo, além de possuir implicações distintas na vida das pessoas. No âmbito da Enfermagem, acredita-se que a saúde digital tem sido uma ferramenta cada vez mais difundida, em razão dos avanços tecnológicos que transformam os métodos de cuidado e a relação entre os profissionais de saúde e os pacientes.

Dentro do paradigma filosófico de Michel Foucault, as repercussões da saúde digital na Enfermagem podem ser analisadas mais uma vez através da lente do poder disciplinar e do biopoder, pois nesse contexto, os enfermeiros enfrentam o desafio de equilibrar o uso das tecnologias digitais para melhorar os cuidados de saúde com a proteção da privacidade e da autonomia dos pacientes em todas as esferas de atendimento.

Em todos os pontos da rede de atenção à saúde, são os enfermeiros que atuam na educação de pacientes e familiares para o uso das tecnologias, bem como realizam as explicações necessárias para que diferentes grupos sociais possam acessar e utilizar efetivamente as ferramentas digitais de saúde. Ao mesmo tempo, a Enfermagem participa, juntamente com profissionais de outras áreas, do desenvolvimento de políticas e práticas que garantam uma abordagem ética e centrada no paciente no uso da saúde digital. Por meio de diversas práticas, os enfermeiros desempenham um papel significativo na facilitação da telemedicina e telemonitoramento, envolvendo-se em consultas virtuais, monitoramento remoto dos pacientes e o fornecimento de orientação por meio de plataformas digitais. Além disso, sua participação ativa na gestão de registros eletrônicos de saúde garante a integridade e a segurança dos dados, bem como a coordenação eficaz dos cuidados.

A partir deste ponto de análise, a saúde digital pode reforçar as desigualdades existentes no acesso aos serviços de saúde? Todos os pacientes têm acesso ao uso das tecnologias em saúde? Observa-se que aqueles que não têm acesso aos dispositivos digitais ou que possuem habilidades limitadas de tecnologia são excluídos dos benefícios que ela oferece. Isso evidencia uma forma de divisão social, na qual o acesso à saúde e ao bem-estar é determinado pela capacidade de se adaptar às demandas da era digital.2121 Rodrigues MA, Hercules ABS, Gnatta JR, Coelho JC, Mota ANB, Pierin AMG, et al. Teleconsulta como prática avançada de enfermagem na pandemia de Covid-19 à luz de Roy e Chick-Meleis. Rev Esc Enferm. 2022;56(spe):e20210438. http://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2021-0438pt

No caso do Brasil, por exemplo, o uso de tecnologias digitais desenvolvidas pelo Ministério da Saúde vem sendo reconhecido pela facilidade e resolubilidade de várias demandas, uma vez que essas tecnologias constituem um banco seguro de informações que possibilitam o acesso aos prontuários de pacientes, favorecendo o atendimento. Contudo, o avanço da saúde digital dependerá da realidade de cada país, uma vez que dificuldades de acesso à Internet, acompanhadas pela falta de investimentos em educação continuada podem comprometer a produtividade dos serviços de saúde e, consequentemente, impactar a qualidade da assistência à clientela.2222 Almeida EWS, Godoy S, Silva IR, Dias OV, Marchi-Alves LM, Ventura CAA et al. Saúde digital e enfermagem: ferramenta de comunicação na Estratégia Saúde da Família. Acta Paul Enferm. 2022;35:eAPE02086. http://doi.org/10.37689/acta-ape/2022AO020866.
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Como medida para melhorar o fluxo geral de atendimento aos pacientes no sistema de saúde, faz-se necessária a adoção de soluções digitais, representadas por plataformas on-line. Tais ferramentas possuem um claro potencial de benefícios, a saber: auxílio aos pacientes no acompanhamento de suas consultas e/ou exames, redução das taxas de não comparecimento nos atendimentos, diminuição do tempo gasto pelo pessoal durante a marcação de consultas e manutenção de registros de saúde de forma acessível e compartilhada, favorecendo aos prestadores de cuidados a obtenção de informações sobre os pacientes, como os resultados de análises laboratoriais e relatórios de exames de imagem.2323 Tanbeer SK, Sykes ER. MyHealthPortal: a web-based e-Healthcare web portal for out-of-hospital patient care. Digit Health. 2021;7:2055207621989194. http://doi.org/10.1177/2055207621989194. PMid:33717498.
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Outros pontos interessantes de consideração, ainda corroborados pelos trabalhos de Foucault11-12-13-14, estão relacionados à intervenção excessiva promovida pela saúde digital e ao decréscimo de participação do indivíduo no planejamento de seu cuidado, pois há uma ênfase na coleta de dados e no uso de algoritmos para o diagnóstico e no tratamento, de modo que se reduz a complexidade da experiência humana à mera mensuração biométrica. Nesse contexto, a subjetividade e a diversidade dos indivíduos podem ser simplificadas e reduzidas às categorias padronizadas, o que coloca em risco a autonomia e a singularidade de cada pessoa.

Em tese, as tecnologias digitais em saúde deveriam ser fontes estratégicas de empoderamento para os pacientes, tendo em vista o fortalecimento da autonomia. Os indivíduos que fazem uso de aplicativos, por exemplo, posicionam-se em prol da preservação de sua saúde quando acessam as informações importantes e assumem a responsabilidade pelo monitoramento de suas condições clínicas. Em contrapartida, os aplicativos dispõem de informações capazes de influenciar o poder de decisão dos pacientes quanto à escolha dos cuidados à sua saúde. Desse modo, é a partir da interação de usuários com os aplicativos que se estabelecem as novas relações de saber-poder, as quais disciplinam corpos e comportamentos individuais.2424 Modolo L, Carvalho S, Dias T. Questões da saúde digital para o SUS: a “saúde móvel” e a automação algorítmica do saber-poder da medicina. Saude Soc. 2023;32(3):e220245pt. http://doi.org/10.1590/s0104-12902023220245en.
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Entende-se que saúde digital modifica tanto as práticas, quanto as relações que se constroem durante o cuidado prestado, não sendo percebida como substituta do atendimento presencial. Em serviços de atenção primária, por exemplo, o contato presencial é imprescindível para que as intervenções digitais possam ser concretizadas.2525 Lindberg J, Bhatt R, Ferm A. Older people and rural eHealth: perceptions of caring relations and their effects on engagement in digital primary health care. Scand J Caring Sci. 2021;35(4):1322-31. http://doi.org/10.1111/scs.12953. PMid:33448031.
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Sobre a teleconsulta, salienta-se que sua implementação requer planejamento, sendo fundamental a elaboração de indicadores clínicos voltados à segurança dos pacientes, a avaliação do custo-efetividade, a construção de bases legais e jurídicas e à análise do impacto orçamentário. Contudo, apesar de a teleconsulta trazer potencialidades no âmbito da saúde digital, cumpre ressaltar que ela pode servir em certas situações, mas sempre será diferente da consulta presencial, especialmente nos casos de limitação de acesso à tecnologia digital, ou na dificuldade do usuário de operar o recurso tecnológico existente,2626 Oliveira AB, Tokarski CCR, Japiassu FKAG, Silva JCQ. Desafios do avanço da Telemedicina e seus aspectos éticos: revisão integrativa. Com Ciências Saúde [Internet]. 2020; [citado 2024 mar 5];31(1):55-63. Disponível em: https://revistaccs.escs.edu.br/index.php/comunicacaoemcienciasdasaude/article/view/566
https://revistaccs.escs.edu.br/index.php...
prejudicando o estabelecimento de uma relação sólida e efetiva entre o profissional e a pessoa que está sendo cuidada.

Na perspectiva de Pierre Lévy,1616 Lévy P. O que é virtual? Rio de Janeiro: Editora 34; 1996. o virtual se opõe ao atual na medida em que tende a atualizar-se, sem chegar a uma concretização efetiva. Esse pensador afirmou, ainda, que a diferença entre o virtual e o possível se dá na medida em que este último já estaria constituído, estando somente em estado latente, pronto a se transformar no real, não possuindo, assim, a criatividade do virtual. Uma crítica direcionada a Lévy, quando estabeleceu a teoria da “não-presença” relacionada ao meio virtual, é que esse filósofo é conduzido a posturas limitadas, como no caso da pergunta “onde ocorre a conversação telefônica?”, pois é óbvio que nas linhas, embora tudo seja transparente para o usuário; ou quando considera as comunidades “virtuais” não-presentes, uma vez que na realidade todos estão presentes, apesar de distribuídos em múltiplos espaços sociais.1717 Pimenta FJP. O conceito de virtualização de Pierre Lévy e sua aplicação em hipermídia. Lumina [Internet]. 2001; [citado 2024 mar 5];4(1):85-96. Disponível em: https://www.ufjf.br/facom/files/2013/03/R6-Francisco.pdf
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A partir disso, entende-se que no aparato estatal, na contemporaneidade, há ações para a regulamentação da vida, e a Medicina é um fator importante para que isto ocorra. Ademais há concepções de que a vida é objeto do campo político, que está focado, também, no controle dos corpos de forma individual e coletiva. Isso se tornou nítido a partir do século XVIII, com as transformações dos mecanismos de poder, operando sobre o direito e o poder na morte da população.1414 Furtado RN, Camilo JAO. O conceito de biopoder no pensamento de Michel Foucault. Rev Subj. 2017;16(3):34-44. http://doi.org/10.5020/23590777.16.3.34-44.
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Se a saúde digital se refere à utilização de tecnologias digitais, como aplicativos e sistemas de monitoramento remoto, especialmente direcionados para promover a saúde, o bem-estar e o cuidado em saúde, possui um potencial para coletar e analisar as grandes quantidades de dados sobre os corpos e a vida das pessoas, oferecendo novas possibilidades de monitoramento e intervenção na saúde. Ao considerar que algumas populações estão permanentemente expostas aos riscos evitáveis, são excluídas do mundo político e estão constantemente com seus direitos cerceados, é possível inferir que a saúde digital sustenta outra lógica de biopoder, ou a lógica é a mesma? O modus operandi atua de outro modo, mas conceitualmente, permanece a mesma perspectiva de biopoder e biopolítica. Ou seja, a saúde digital pode ser vista como uma expressão do biopoder, pois envolve a coleta e o controle de informações sobre os corpos e a saúde das pessoas.1414 Furtado RN, Camilo JAO. O conceito de biopoder no pensamento de Michel Foucault. Rev Subj. 2017;16(3):34-44. http://doi.org/10.5020/23590777.16.3.34-44.
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15 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. 1975.

16 Lévy P. O que é virtual? Rio de Janeiro: Editora 34; 1996.

17 Pimenta FJP. O conceito de virtualização de Pierre Lévy e sua aplicação em hipermídia. Lumina [Internet]. 2001; [citado 2024 mar 5];4(1):85-96. Disponível em: https://www.ufjf.br/facom/files/2013/03/R6-Francisco.pdf
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18 Bunge M. Philosophy of science and technology: parte II: life science, social science and technology. Dordrecht: Reidel; 1985.
-1919 Cupani A. Filosofia da tecnologia: um convite. 3ª ed. Florianópolis: Editora da UFSC; 2016.

Assim, os dados gerados pelas tecnologias digitais de saúde podem ser utilizados para traçar perfis, classificar e normalizar os indivíduos com base em critérios de saúde. Isso pode levar à criação de categorias de normalidade e anormalidade, com implicações para a autonomia individual e a privacidade.1919 Cupani A. Filosofia da tecnologia: um convite. 3ª ed. Florianópolis: Editora da UFSC; 2016.,2020 Cupani AA. tecnologia como problema filosófico: três enfoques. Sci Stud. 2004;2(4):493-518. http://doi.org/10.1590/S1678-31662004000400003.
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Mas, será que a saúde digital pode oferecer espaços de empoderamento para os indivíduos, permitindo-lhes monitorar e gerenciar sua própria saúde de maneira mais autônoma, fornecendo acesso às informações sobre a saúde, ferramentas de autoavaliação, suporte e atendimento on-line?

No tocante aos desafios éticos que envolvem a participação da Enfermagem na saúde digital, um deles remete à centralidade do paciente no processo assistencial, conferindo-lhe o gerenciamento de seu autocuidado em saúde.2727 Lapão LV. A Enfermagem do Futuro: combinando Saúde Digital e a Liderança do Enfermeiro. Rev Latino-Am. Enfermagem. 2020;28:e3338. http://doi.org/10.1590/1518-8345.0000.3338.
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Outros desafios éticos correspondem à coleta, ao armazenamento e ao uso de dados sobre a saúde, os quais exigem uma reflexão cuidadosa sobre a privacidade, a segurança e o consentimento informado dos indivíduos. Além disso, é necessário evitar a criação de assimetrias de acesso às tecnologias digitais de saúde, a fim de que elas não sejam restritas apenas a certos grupos privilegiados.

Para Foucault,1111 Aquino JG. A difusão do pensamento de Michel Foucault na educação brasileira: um itinerário bibliográfico. Rev Bras Educ. 2013;18(53):301-24. http://doi.org/10.1590/S1413-24782013000200004.
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12 Aquino JG. Foucault e a pesquisa educacional brasileira, depois de duas décadas e meia. Educ Real. 2017;43(1):45-71. http://doi.org/10.1590/2175-623661605.
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-1313 Olivato A. Em defesa da sociedade, curso no Collège de France (1975-1976), de Michel Foucault. Plural. 2001;8:161-6. http://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2001.75756.
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é necessário questionar as formas pelas quais a saúde digital está sendo implementada e garantir que ela esteja alinhada aos valores éticos e ao respeito à privacidade individual. A promoção de um diálogo crítico entre os profissionais de saúde, desenvolvedores de tecnologia e sociedade é fundamental, a fim de buscar soluções que minimizem os riscos e maximizem os benefícios da saúde digital. Ademais, a abordagem foucaultiana defende que a saúde digital não é um fenômeno neutro, mas sim permeado por relações de poder. Dessa forma, torna-se imperativo um olhar crítico e reflexivo para compreender, até que ponto as tecnologias digitais moldam a experiência de saúde dos indivíduos e quais as suas implicações na autonomia e liberdade humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA PRÁTICA

Este ensaio teórico-filosófico possibilitou discutir questões relacionadas ao conceito de saúde digital e o modo que a área da saúde tem se associado à evolução tecnológica e aos novos paradigmas para o cuidado, à luz de alguns pensadores da Filosofia contemporânea. Nessa perspectiva, o campo da saúde digital mostra-se um terreno complexo e multifacetado, em que a interseção entre a tecnologia, saúde e Filosofia se manifesta de maneira evidente. Além disso, a expansão das TICs na área da saúde, inserindo-se na prática de Enfermagem, trouxe consigo uma série de desafios éticos, políticos e conceituais que merecem uma análise crítica, abrangente e profunda.

Há que se considerar se a saúde digital reforça ou não a responsabilização do usuário, que deverá aprender a manipular as tecnologias a fim de que seu cuidado se efetive, o que, por um lado, coloca mais um obstáculo a isso. A perspectiva de Michel Foucault destaca a presença de relações de poder subjacentes à saúde digital. A coleta massiva de dados, a vigilância constante e a possibilidade de padronização dos indivíduos levantam questões sobre a privacidade, a autonomia e a liberdade. Foucault convida a todos a resistir a essas estruturas de poder, questionando a implementação da saúde digital e promovendo um diálogo crítico entre os profissionais de saúde, tecnólogos e sociedade em geral. A análise do biopoder e da biopolítica à luz de Foucault, permite entender como as tecnologias digitais de saúde se encaixam nas estratégias de controle e governança da vida e da saúde das populações. A saúde digital, sob essa perspectiva, pode tanto reforçar a normatização, quanto proporcionar espaços de empoderamento individual.

Em contraste, as visões de Alberto Cupani, Mário Bunge e Pierre Lévy abrem espaço para uma compreensão mais pragmática e utilitária da saúde digital. A incorporação de tecnologias na prática de Enfermagem e no ensino a distância pode trazer vantagens evidentes, mas também desafios consideráveis, especialmente em relação à qualidade do cuidado, à adaptação dos profissionais, dos pacientes e à manutenção de uma relação interpessoal significativa.

Portanto, a saúde digital emerge como um terreno de conflitos e possibilidades, onde os avanços tecnológicos trazem consigo tanto as potencialidades transformadoras quanto os riscos à privacidade, à autonomia e à qualidade do cuidado. A abordagem filosófica é fundamental para lançar luz sobre esses aspectos, e convida a questionar, refletir e moldar o curso desse desenvolvimento tecnológico e suas implicações para a prática, de maneira ética e consciente. A busca pelo equilíbrio entre os benefícios e os desafios da saúde digital é crucial para garantir uma evolução que respeite os princípios fundamentais da saúde, da igualdade e da dignidade humana. Esta reflexão tem como limitações o escopo de filósofos contemporâneos para a análise do tema. No entanto, delimita com clareza a contribuição dos que se propuseram a utilizá-la.

  • Financiamento

    A publicação deste trabalho foi realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado Santa Catarina (FAPESC) – Nº 2023TR000939.

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Editado por

Editor associado

Cristina Lavareda Baixinho https://orcid.org/0000-0001-7417-1732

Editor científico

Marcelle Miranda da Silva https://orcid.org/0000-0003-4872-7252

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2024
  • Aceito
    07 Jul 2024
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