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Contribuição à crítica de O capital no século XXI

A contribution to the critique to Capital in the Twenty-First Century

Resumo

O presente artigo tem por objetivo analisar a crítica que Thomas Piketty dirige a Marx em O capital no século XXI. Após uma exposição de suas principais teses e uma sumarização das críticas já realizadas por autores marxistas, avaliamos seus cinco principais argumentos: o de que a teoria marxiana se pauta na hipótese implícita de crescimento nulo da produtividade no longo prazo; o de que Marx construiu sua teoria para justificar as conclusões políticas apresentadas no Manifesto do Partido Comunista; o de que as constatações empíricas contradizem suas previsões; o de que Marx não soube utilizar dados estatísticos de forma adequada; e o de que o autor não explicou sobre o funcionamento de uma sociedade comunista. A conclusão obtida é que as críticas de Piketty são inadequadas em todas as suas proposições.

Palavras-chave
Thomas Piketty (1971-); Princípio da Acumulação Infinita; Apocalipse Marxista

Abstract

This article aims to evaluate the critique that Thomas Piketty addresses to Marx in his book Capital in the Twenty-First Century. After an exposition of his main theses and a summary of the criticisms already made by Marxist authors, we evaluate his five main arguments: that Marx’s theory relies on the implicit hypothesis of zero productivity growth over the long run; that Marx constructed his theory to justify the political conclusions presented in The Communist Manifesto; that the empirical data contradicts his predictions; that Marx did not know how to use statistical data properly; and that the author did not explain the functioning of a communist society. The conclusion reached is that Piketty’s criticisms are inadequate in all their propositions.

Keywords
Thomas Piketty (1971-); Principle of Infinite Accumulation; Marxist Apocalypse

Introdução

O economista francês Thomas Piketty alcançou uma projeção internacional sem paralelo após o estrondoso sucesso da publicação de O capital no século XXI. Fazendo um diálogo entre pensadores das mais diversas vertentes do pensamento econômico e regando o debate sobre a desigualdade de renda e riqueza com uma extensa gama de dados sobre um significativo conjunto de países, o livro de Piketty constitui uma alternativa ao pensamento progressista que almeja criticar o capitalismo sem optar pela via revolucionária.

Piketty conclui que o mercado é o grande responsável pela ampliação das desigualdades na sociedade moderna, a despeito de afirmar existirem fontes de convergência, como a difusão do conhecimento e a capacidade de atuação estatal. A solução, portanto, não precisa ser tão drástica quanto uma revolução comunista e pode se dar dentro das instituições democráticas de um Estado de direito: a adoção de um imposto de renda progressivo.

Algo que se destaca com esse argumento é a tentativa de invalidar uma perspectiva mais radical do debate, como a marxista. Afinal, diante de suas conclusões, o marxismo se mostra como a opção daqueles que escolhem “[…] discursos anticapitalistas convencionais e preguiçosos, que parecem às vezes ignorar o fracasso histórico fundamental do comunismo e que se recusam a se render aos argumentos intelectuais que permitiriam deixar a retórica gasta para trás […]” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 37).

Embora muitas críticas tenham sido direcionadas à obra de Piketty, o tratamento que dispensou a Marx ainda nos parece não ter sido tratado com a profundidade necessária. Com o intuito de colaborar para preencher essa lacuna, condensamos no presente artigo a investida que Piketty desfere sobre o pensador alemão, o que nos permitiu esmiuçar suas origens e desconstruir seus argumentos. Para atingir tal objetivo, o presente artigo se divide em três partes: primeiro, sumarizamos as principais proposições presentes na obra de Piketty; em seguida, apresentamos um olhar sobre as respostas marxistas dadas em O capital no século XXI a fim de evidenciar as tarefas que ainda restam em aberto; em um terceiro momento, incrementamos a crítica marxista com nossas reflexões sobre as afirmações de Piketty a respeito do pensamento de Karl Marx.

1 As “leis fundamentais do capitalismo” de Piketty

O objetivo de Piketty em O capital no século XXI é o de estudar o comportamento de longo prazo da evolução da renda e da riqueza (ou do patrimônio) utilizando uma série de dados tão extensa quanto possível. Com isso, busca investigar “quais lições podemos tirar disso para o século XXI” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 9). A despeito de se fundamentar em um arcabouço teórico que só pode ser definido como “neoclássico”, o autor propõe levar sua pesquisa adiante fazendo uma diferenciação das pessoas tanto pela magnitude de suas rendas e patrimônios quanto pela natureza (qualitativa) de suas rendas. Embora seja impossível dizer que se trate de uma análise baseada no conceito de classes sociais, Piketty divide a sociedade em dois grupos: os proprietários e os não proprietários (proletários?). Consequentemente, separa também a renda da sociedade em duas: a renda que deriva dessa propriedade e a renda que provém do trabalho.

A compreensão do modo como realiza essa divisão é nevrálgico porque ela influencia o significado de todas as variáveis envolvidas em seu modelo, começando por sua definição de “capital”. Vejamos:

[…] o capital é definido como o conjunto de ativos não humanos que podem ser adquiridos, vendidos e comprados em algum mercado. Assim, o capital compreende, especificamente, o conjunto formado pelo capital imobiliário (imóveis, casas), utilizado para moradia, e pelo capital financeiro e profissional (edifícios e infraestrutura, equipamentos, máquinas, patentes etc.), usado pelas empresas e pela administração pública

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 51-52).

Uma vez que Piketty inclui nessa definição praticamente qualquer coisa que pode ser acumulada e vendida1 1 Afinal, “inclui todo tipo de riqueza que, pressupõe-se, pode pertencer a indivíduos (ou a grupos de indivíduos), além de também poder ser transmitida, comprada ou vendida, de modo permanente, em algum mercado” (Piketty, 2014b, p. 52). – motivo pelo qual trata as palavras “capital”, “riqueza” e “patrimônio” como sinônimos –, aquilo que entende como “renda do capital” acaba se tornando algo muito particular – pois acaba sendo, enfim, toda a renda da sociedade, exceto os salários. Esclarecidas essas definições fundamentais, vejamos as duas leis fundamentais do capitalismo que ele utiliza em sua análise.

Do ponto de vista agregado, a taxa de remuneração do capital total de uma sociedade (r) é uma relação entre a soma daquela “renda do capital” (P) e do montante de “patrimônio” existente (K), de modo que temos:

r = P / K (1)

Alternativamente, podemos apresentar a renda do capital como resultado da aplicação de sua taxa ao montante de riqueza:

P = r × K

Dividindo ambos os termos da equação pela renda total da sociedade (Y), e tomando 𝛼 = 𝑃/𝑌 e 𝛽 = 𝐾/𝑌, temos:

α = r × β (2)

Essa é a “primeira lei fundamental do capitalismo” de Piketty, uma identidade contábil que evidencia que: a) para um dado nível de taxa de rendimento (𝑟), quanto maior for o capital em proporção à renda da sociedade (𝛽), maior será a parcela da renda que é apropriada pelos proprietários (𝛼); ou b) para um dado nível de estoque de capital em proporção à renda (𝛽), quanto maior for a taxa de remuneração do capital (𝑟), maior será a parcela da renda que é apropriada pelos capitalistas (𝛼).

No entanto, por ser uma identidade contábil, a equação 2 nada nos diz sobre a relação de causa e efeito que existe entre essas variáveis. A despeito disso, Piketty ressalta que, devido à hipótese da produtividade marginal decrescente, há uma relação inversa entre a taxa de remuneração e o estoque de capital. Desse modo, quando a relação capital/renda (𝛽) aumenta, a taxa de remuneração (𝑟) diminui.

A “segunda lei fundamental do capitalismo” nos mostra a determinação da relação capital/renda (𝛽) no longo prazo. Para encontrarmos o 𝛽 de equilíbrio no longo prazo, precisamos determinar a condição para que sua variação anual (Δ𝛽) seja nula:

Δ β = β 0 β 1 = K 0 Y 0 K 1 Y 1 = 0

Essa condição é dada por:

K 0 Y 0 = K 1 Y 1 K 0 Y 0 = K 0 + Δ K Y 0 + Δ Y

Realizando algumas transformações e tomando por g a taxa de crescimento da renda (Δ𝑌/𝑌) e por a taxa de poupança (equivalente à taxa de investimento, Δ𝐾/𝑌)2 2 É preciso observar também que esse conceito de poupança e investimento para Piketty não encontra paralelo no pensamento econômico. Se capital é qualquer coisa que possa ser vendida e acumulada, a poupança é a parcela da renda da sociedade que vai ser direcionada para a aquisição de qualquer coisa que não será consumida imediatamente. , temos:

K 0 Y 0 = Δ K Δ Y = s Y 0 g Y 0 = s g

Assim, a relação capital/renda de equilíbrio no longo prazo (isto é, o valor de 𝛽 que não será alterado enquanto os níveis de poupança e crescimento permanecerem estáveis nos níveis s e g respectivamente), é equivalente a3 3 Infelizmente, Piketty utiliza a mesma notação para representar a relação capital/renda no curto e no longo prazo, o que gera um pouco de confusão. É preciso ressaltar que o ( ) da equação 2 é um conceito distinto do ( ) da equação 3. :

β = s / g (3)

A equação 3, que consiste na “segunda lei fundamental do capitalismo”, “[…] representa o estado de equilíbrio para o qual tende uma economia que poupa s e cresce g, sem que esse estado de equilíbrio seja jamais perfeitamente alcançado” (Piketty 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 167).

A partir dessas duas leis fundamentais apresentadas por Piketty, à medida que a taxa de rendimento do capital (𝑟) seja superior à taxa de crescimento da renda nacional (𝑔), a desigualdade de renda tenderá a se ampliar porque a renda do capital (𝑃) aumentará mais do que a renda proveniente do trabalho (𝑌 − 𝑃). Essa constatação é questionável quando o autor observa que é basicamente uma regra para as economias capitalistas desenvolvidas.

Embora reconheça que as forças automáticas do mercado levam a uma tendência histórica de ampliação da desigualdade de renda (e que ela só tende a aumentar), Piketty compreende que o mecanismo dos preços e a iniciativa privada são princípios que trazem maior eficiência e maior liberdade aos indivíduos. Assim, propõem uma solução fácil para um problema complexo: basta a ação estatal reduzir artificialmente essa taxa de rendimento do capital (𝑟) por meio de um imposto de renda progressivo para que ela se mantenha menor que a taxa de crescimento da renda (𝑔).

2 As críticas marxistas ao O capital no século XXI

Aquela que ainda é considerada a obra máxima de Thomas Piketty foi publicada originalmente em francês em 2013 e repercutiu mundialmente por meio da tradução inglesa em 2014. Desde então, muitos marxistas se dispuseram a contra-argumentar tanto a teoria do economista francês quanto seus comentários acerca do pensamento marxiano. Em 2016, Marques e Leite fizeram uma excelente síntese das críticas realizadas até então e concluíram que,

de modo geral, as críticas dos comentadores de O capital no século XXI podem ser divididas basicamente em três frentes: falta de um referencial teórico consolidado, claro e consistente; confusão conceitual entre capital e riqueza e suas taxas de retorno; e problemas nos dados usados

(Marques; Leite, 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Marcel Guedes. Notas críticas sobre O capital no século XXI de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4, p. 684-703, dez. 2016., p. 700-701).

A maestria com a qual realizaram esse trabalho nos faz questionar a relevância de uma atualização de seu texto4 4 Outro interessante exercício nesse sentido foi realizado por Pimentel (2017). . No entanto, o fato de sempre surgirem novas contribuições talvez torne esse exercício útil para quem esteja entrando em contato com o debate pela primeira vez. De todo modo, acreditamos que ainda seja válida a divisão das críticas sobre Piketty nessas três frentes, a despeito das duas primeiras merecerem uma complementação. Vejamos.

No primeiro aspecto, Marques e Leite enfatizam que a “inexistência de uma fundamentação teórica clara gera problemas tanto para a aceitação daquilo que Piketty chama de ‘leis gerais do capitalismo’[quanto] para a validação de seu esforço em realizar estimativas de longuíssimo prazo para a desigualdade expressa por ” (Marques; Leite, 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Marcel Guedes. Notas críticas sobre O capital no século XXI de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4, p. 684-703, dez. 2016., p. 701). Nesse sentido, destacam a argumentação de Husson (2014)HUSSON, Michel. Le capital au XXIe siecle. Richesse des données, pauvreté de la theorie. Contretemps, 20145 5 “Conforme se pode depreender de Husson, ao formalizar a primeira ‘lei’ por em vez de , Piketty retira dela todo conteúdo social e histórico existente nos conflitos entre capital e trabalho presentes nas relações sociais de produção […]” (Marques; Leite, 2016, p. 701). e Varoufakis (2014)VAROUFAKIS, Yanis. Egalitarianism’s latest foe: a critical review of Thomas Piketty’s Capital in the Twenty-Frist Century. Real-World Economics Review, n. 69, p. 18-35, Oct. 2014.6 6 Além de considerar uma mera tautologia a representação da “primeira lei fundamental do capitalismo” de Piketty, na qual a variável se apresenta como um fator exógeno destituido de seu determinante histórico e político, Varoufakis pondera que, “apesar de se basear em pressupostos neoclássicos, Piketty ignora que [eles] são inaceitáveis por serem incoerentes com a realidade histórica, e que exigiriam axiomas indefensáveis, mas necessários para ‘fechar seu modelo’” (Marques; Leite, 2016, p. 701). , às quais podemos acrescentar também as críticas dirigidas por Moseley (2015)MOSELEY, Fred. Piketty and marginal productivity theory: a superficial application of an incoherent theory. International Journal of Political Economy, v. 44, n. 2, p. 105-120, 2015. e Duménil e Lévy (2016)DUMÉNIL, G.; LÉVY, D. Thomas Piketty’s historical macroeconomics: a critical analysis. Review of Political Economy, v. 28, n. 2, p. 220-232, 2016..

Voltando-se para a explicação presente no sexto capítulo da obra de Piketty – sobre a ampliação da participação do “capital” na renda total das principais economias capitalistas –, Fred Moseley (2015)MOSELEY, Fred. Piketty and marginal productivity theory: a superficial application of an incoherent theory. International Journal of Political Economy, v. 44, n. 2, p. 105-120, 2015. criticou a teoria da produtividade marginal e a forma de sua aplicação por Piketty. Ao avaliar uma explicação heterodoxa para esse fenômeno, o autor conclui:

[…] the profit and wage shares of income are not determined by technology (marginal products, diminishing returns, elasticity of substitution), but are instead determined by the balance of power and the class conflict between capitalists and workers. If the wage share is to be increased in the years ahead, then the working class and its allies will have to organize better and exert more economic and political power in this ongoing class conflict with capitalists over wages and the distribution of income

(Moseley, 2015MOSELEY, Fred. Piketty and marginal productivity theory: a superficial application of an incoherent theory. International Journal of Political Economy, v. 44, n. 2, p. 105-120, 2015., p. 117).

Por sua vez, Duménil e Lévy (2016)DUMÉNIL, G.; LÉVY, D. Thomas Piketty’s historical macroeconomics: a critical analysis. Review of Political Economy, v. 28, n. 2, p. 220-232, 2016. fazem uma avaliação nesse aspecto que muito se parece com a argumentação de Husson (2014)HUSSON, Michel. Le capital au XXIe siecle. Richesse des données, pauvreté de la theorie. Contretemps, 2014, sugerindo que, ao apresentar sua “primeira lei fundamental do capitalismo” como 𝛼 = 𝑟 × 𝛽 ao invés de 𝑟 = 𝛼/𝛽, Piketty acaba por tentar transformar em uma “lei” aquilo que seria apenas a fórmula do cálculo da taxa de lucro (𝑟).Ainda, ao avaliarem a “segunda lei fundamental do capitalismo” (𝛽 = 𝑠/𝑔), os autores pontuam que ela define uma trajetória de crescimento assintótico, o que é incompatível com amplas variações nas variáveis s e g – fato observável na realidade empírica. Por fim, Duménil e Lévy também demonstram empiricamente a dificuldade de se reproduzir os resultados sugeridos por Piketty quando se leva em conta essas críticas.

A segunda frente de crítica indicada por Marques e Leite tem a mais alta importância e está replicada em quase todos os críticos de Piketty, sobretudo quanto à definição de “capital” apresentada pelo autor. Marques e Leite afirmam:

Ao optar por não diferenciar capital de riqueza, Piketty ignora que capital gera lucro, enquanto certos tipos de riqueza, em especial patrimônio, são estéreis, pois não se transformam em capital. Além disso, alguns tipos de riqueza, considerados por ele, sofrem oscilações em seus valores de mercado em certos momentos do tempo, o que não permite a existência de uma medida simplificada de capital. Assim, torna-se difícil interpretar a taxa de retorno do capital em uma perspectiva de longo prazo, pois ora pode estar subestimada e ora superestimada

(Marques; Leite 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Marcel Guedes. Notas críticas sobre O capital no século XXI de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4, p. 684-703, dez. 2016., p. 701).

Muitas contribuições marxistas mostram como essa definição de capital está por trás da estabilidade da taxa de “lucro” na teoria de Piketty, entre as quais podemos citar Husson (2014)HUSSON, Michel. Le capital au XXIe siecle. Richesse des données, pauvreté de la theorie. Contretemps, 2014, Maito (2014)MAITO, Esteban Ezequiel. Piketty versus Piketty. El Capital en el Siglo XXI y la tendencia descendente de la tasa de ganancia. Revista de Economía Crítica, v. 18, 2014. e Cipolla e Aquino (2018)CIPOLLA, F. P.; AQUINO, D. C. de. Das Kapital versus Le Capital: a teoria marxista da distribuição da renda. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA POLÍTICA, 23, Niterói, 2018. Anais...7 7 <Trecho suprimido para preservar o anonimato>. . Este último trabalho apresenta essa problemática em termos muito similares ao que fez posteriormente Anwar Shaikh (2017)SHAIKH, A. Income distribution, econophysics and Piketty. Review of Political Economy, v. 29, n.1, p. 18-29, 2017.. Em sua análise, Cipolla e Aquino consideraram dois distintos níveis de análise da distribuição de renda:

[…] a divisão primária da renda, que se dá entre salários de trabalhadores produtivos e mais-valia; e a divisão secundária da renda, que se dá quando a mais-valia é dividida entre os diversos tipos de capitais (industrial, comercial, bancário etc.), os trabalhadores improdutivos e o Estado. […]

(Cipolla; Aquino, 2018CIPOLLA, F. P.; AQUINO, D. C. de. Das Kapital versus Le Capital: a teoria marxista da distribuição da renda. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA POLÍTICA, 23, Niterói, 2018. Anais..., p. 16).

A partir disso, uma análise empírica dos dados dos Estados Unidos e do Brasil os levam à conclusão de que “[…] a teoria de que a concentração de renda emana de não tem respaldo na teoria de Marx” (Cipolla; Aquino 2018CIPOLLA, F. P.; AQUINO, D. C. de. Das Kapital versus Le Capital: a teoria marxista da distribuição da renda. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA POLÍTICA, 23, Niterói, 2018. Anais..., p. 16).

Já Shaikh, ao criticar essa concepção de capital de Piketty, observa:

[…] All major economic traditions recognize that the distinction between labor and property income is premised on three distinct sets of forces. The direct relation between workers and their employers gives rise to the primary division of the aggregate net product into wages (and salaries) and business net operating surplus. After taxes, the further division of the income flows into dividends, rents, interest and royalties creates a flow of property incomes. Upon this rests a tertiary circulation consisting of deductions due to taxes on labor and property incomes, and additions due to state payments of unemployment insurance and transfer payments to recipients of labor and property income[…]

(Shaikh, 2017SHAIKH, A. Income distribution, econophysics and Piketty. Review of Political Economy, v. 29, n.1, p. 18-29, 2017., p. 27).

Em análise empírica aplicada aos Estados Unidos a partir dessa premissa, o economista paquistanês concluiu que a relação 𝑟 > 𝑔 não é a que determina a ampliação da desigualdade, mas a dinâmica histórica da luta de classes e a ampliação da financeirização.

Ainda sobre a definição de “capital” de Piketty, quase a totalidade dos críticos marxistas ressaltam que sua incompatibilidade com as categorias marxistas – tanto por não incluir a parcela circulante do capital quanto por levar em conta outros elementos que não funcionam propriamente como capital – deveria impedi-lo de usá-la como base (e sem qualquer tipo de mediação) para uma crítica ao pensador alemão8 8 O mesmo princípio pode ser aplicado para sua definição de poupança e de propensão a poupar (S). Poderíamos dizer que, essa poupança seria o equivalente, em Marx, da parcela do lucro que se converte em novo capital. Isso implicaria que a variação do produto anual (g?) deveria conter os elementos materiais do capital constante (tanto fixo quanto circulante) e variável. Além de implicar que a magnitude desse “s” é distinta entre Piketty e Marx, essa abordagem gera significantes implicações para a dinâmica do crescimento. Cf. Shaikh (1991). . Entretanto, mesmo reconhecendo a diferença fundamental nessa categoria, Piketty insiste em transitar livremente entre a abordagem neoclássica e a marxista9 9 Devemos observar que é o próprio Piketty que realiza essa constante transição entre pensamentos que utilizam categorias homônimas, mas de conteúdos distintos. Essa prática torna a contestação de suas afirmações deveras complicada: afinal, ao abandonarmos suas definições não estamos respondendo efetivamente aos seus argumentos. Por isso, na seção seguinte, optamos por uma via dupla: tanto mostrando que seus argumentos não procedem se preservamos as categorias marxistas quanto mostrando também que suas críticas não procedem mesmo quando partimos de suas próprias categorias. .

Como podemos ver, as críticas às teses de Piketty são sólidas e carecem de uma resposta satisfatória por parte dele. Resta ainda considerar os comentários que os marxistas direcionaram não a sua teoria, mas às críticas feitas por ele ao pensamento de Karl Marx – como nos propomos a fazer no presente artigo. Nessa seara, merecem destaque os trabalhos de Maito (2014)MAITO, Esteban Ezequiel. Piketty versus Piketty. El Capital en el Siglo XXI y la tendencia descendente de la tasa de ganancia. Revista de Economía Crítica, v. 18, 2014., Roberts (2015)ROBERTS, Michael. Thomas Piketty and the Search for r. Historical Materialism, v. 23, n. 1, p. 86-105, 2015. e Mateo (2017)MATEO, J. P. ¿Falsificación académica o errores de interpretación? Las afirmaciones de Piketty sobre Marx. Revista de economía crítica, n. 23, p. 26-42, 2017..

Com uma interessante abordagem provocativa, Esteban Maito (2014)MAITO, Esteban Ezequiel. Piketty versus Piketty. El Capital en el Siglo XXI y la tendencia descendente de la tasa de ganancia. Revista de Economía Crítica, v. 18, 2014. focou-se exclusivamente na crítica à tendência decrescente da taxa de lucro. Em seu artigo intitulado “Piketty versus Piketty”, Maito questiona a inadequação de se aplicar um conceito de “capital” distinto ao de Marx para avaliar sua teoria. Trabalhando com os dados que o próprio Piketty apresenta para os casos da Alemanha e do Reino Unido – uma vez que são os únicos que cobrem um período de longo prazo com um nível de desagregação adequado –, mas ajustando-os para expressarem adequadamente as categorias adotadas por Marx, Maito conclui que eles confirmam empiricamente a existência de uma tendência decrescente da taxa de lucro no longo prazo.

Michael Roberts (2015)ROBERTS, Michael. Thomas Piketty and the Search for r. Historical Materialism, v. 23, n. 1, p. 86-105, 2015. propõe uma leitura da obra de Piketty centrada na contraposição entre a visão de um r crescente (ou constante, no mínimo) e a tese marxiana da tendência da queda dele, mas diferente. Roberts cita quase todas as críticas que Piketty direciona a Marx (Roberts, 2015ROBERTS, Michael. Thomas Piketty and the Search for r. Historical Materialism, v. 23, n. 1, p. 86-105, 2015., p. 89-90), mas, pelo fato da maioria delas ser obviamente equivocada, centra sua resposta na falta de compreensão de Piketty sobre os próprios aspectos teóricos da obra de Marx10 10 “Piketty argues that Marx’s r falls because in his model of capitalism there is ‘an infinite accumulation of capital’ and ‘as ever more increasing quantities of capital lead inexorably to a falling rate of profit (i.e. return on capital) and eventually to their own downfall, while growth in net income (g) falls to zero’. Here Piketty imposes a marginal productivity theory of capital accumulation on Marx; abundance of capital leads to its diminishing returns. Actually, Marx rejected this scarcity theory. For Marx, the movement in r is to be found not in infinite accumulation but in the rise in value of the means of production relative to the value of labour power” (Roberts, 2015, p. 99). , sobre a incompatibilidade do conceito de capital e, portanto, da taxa de retorno sobre esse capital (r). Como consequência, resgata a contribuição de Maito (2014)MAITO, Esteban Ezequiel. Piketty versus Piketty. El Capital en el Siglo XXI y la tendencia descendente de la tasa de ganancia. Revista de Economía Crítica, v. 18, 2014. para reconhecer a tendência declinante do r de Marx11 11 Há uma breve passagem na qual Roberts também responde à suposta análise “anedótica” de Marx, afirmando: “[…] well, actually, studies show that the rate of surplus-value in some economies has been close to or equal to 100%” (Roberts, 2015, p. 100). .

A resposta mais completa dada nesse sentido é a de Juan Pablo Mateo (2017)MATEO, J. P. ¿Falsificación académica o errores de interpretación? Las afirmaciones de Piketty sobre Marx. Revista de economía crítica, n. 23, p. 26-42, 2017., no artigo intitulado “¿Falsificación académica o errores de interpretación?: las afirmaciones de Piketty sobre Marx”. A resposta de Mateo critica a leitura mecanicista feita por Piketty dos textos de Marx, demonstra o equívoco da crítica à tendência decrescente da taxa de lucro, e evidencia a improcedência de se tributar os seguintes corolários a sua teoria: a inevitabilidade da revolução comunista; a ausência tanto de progresso técnico quanto de elevação da produtividade; e o estancamento dos salários reais. Assim, conclui ponderando: “Las falacias de Piketty tienen consecuencias graves debido a la cantidad de gente interesada en la economía y la desigualdad que de buena fe habrá leído en este libro afirmaciones sobre Marx carentes del mínimo rigor académico” (Mateo, 2017MATEO, J. P. ¿Falsificación académica o errores de interpretación? Las afirmaciones de Piketty sobre Marx. Revista de economía crítica, n. 23, p. 26-42, 2017., p. 40).

A contribuição de Mateo para a desconstrução da crítica pikettyana é muito satisfatória, tanto do ponto de vista teórico quanto empírico. Mas, acreditamos que pode ser complementada em duas questões fundamentais: primeiro, é preciso ampliar a extensão de sua resposta, abarcando todas as referências que Piketty faz de Marx em O capital no século XXI; segundo, é preciso não só mostrar a improcedência das afirmações de Piketty, mas também as distorções que as originam, desconstruindo seus argumentos retóricos.

3 Contribuição à crítica marxista

Podemos sumarizara visão de Piketty sobre o pensamento marxiano da seguinte forma: tomado pelo calor dos acontecimentos, Marx previu no Manifesto comunista a derrocada apocalíptica do capitalismo; posteriormente, para justificar essa conclusão, elaborou a tese da redução progressiva da taxa de lucro, conceito central de sua teoria; essa tese afirma que a ampliação infinita da acumulação de capital levaria os capitalistas a se auto aniquilarem (como resultado dos conflitos advindos da queda da taxa de lucro) ou a serem aniquilados pela classe trabalhadora (caso tentassem frear a queda da taxa de lucro com uma redução contínua dos salários); a solução sugerida por Marx, e aplicada pela União Soviética, seria a supressão da propriedade privada e do mercado; apesar de resolver o problema, essa saída totalitária gera necessariamente desastres humanos, uma vez que descarta o mercado como mecanismo de coordenação econômica.

Partindo desse entendimento, Piketty (2014b, p. 17)PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b. aponta os equívocos de Marx, que podemos dividir em cinco tópicos: 1) as teses de Marx repousam na equivocada hipótese implícita de ausência de progresso técnico; 2) Marx elaborou suas conclusões antes de criar suas teorias; 3) as previsões de Marx sobre a queda dos salários e da taxa de lucro não se concretizaram; 4) a obra de Marx tem sérios problemas com relação à avaliação das evidências empíricas; 5) o autor não explicou adequadamente o funcionamento de sua proposta alternativa ao capitalismo. A seguir, analisaremos cada uma dessas cinco objeções, apresentando a crítica de Piketty e nossa contraposição a ela.

3.1 A hipótese de crescimento nulo da produtividade

Avaliaremos primeiro a afirmação de que “[…] Marx rejeitou as hipóteses de que o progresso tecnológico pudesse ser duradouro e de que a produtividade fosse capaz de crescer de modo contínuo […]” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 17).Efetivamente, são duas as hipóteses que Piketty imputa ao pensador alemão: a de que tanto o crescimento da produtividade quanto o crescimento da população devem ser nulos no longo prazo12 12 Isso é evidente na seguinte passagem do penúltimo capítulo: “[…] Marx, que supõe implicitamente um crescimento nulo tanto para a população como para a produtividade […]” (Piketty, 2014b, p. 549). Contudo, na maioria das vezes, ela aparece apenas como a “[…] hipótese de crescimento nulo da produtividade no longo prazo […]” (Piketty, 2014b, p. 33), ou ainda (tacitamente), como ausência de crescimento econômico e de difusão do conhecimento (Piketty, 2014b, 9, 219). .Vejamos exatamente como o autor faz para alcançá-las.

Esse entendimento resulta de sua tentativa de compreender a lei da queda tendencial da taxa de lucro. Piketty explica essa tese de Marx a partir de seu próprio modelo. Uma vez que s e g determinam β(equação 3), e β determina r e α (equação 2), ele faz o seguinte caminho para simular o pensamento de Marx: se sua tese é que a taxa de lucro (𝑟)13 13 O leitor atento deverá indagar que a variável de Piketty não é equivalente à taxa de lucro de Marx. Tanto nós quanto Piketty sabemos disso. Contundo, isso não o impede de misturar esses dois conceitos: “a taxa de remuneração do capital [isto é: ] é um conceito central em inúmeras teorias econômicas, sobretudo na análise marxista, com sua tese de redução progressiva da taxa de lucro […]” (Piketty, 2014b, p. 58). cai continuamente, isso implica que a relação capital/renda (β) de curto prazo sobe continuamente. Logo, o β de longo prazo tende ao infinito, o que só seria compatível com uma poupança positiva (𝑠 > 0) e uma taxa de crescimento zero (𝑔 = 0). E mais, como a taxa de crescimento se decompõe na elevação da produtividade e no crescimento populacional, a tese de Marx repousa na hipótese implícita de crescimento nulo dessas duas variáveis. Nas palavras de Piketty (2014b, p. 223, grifo nosso)PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b.:

[…] Uma forma logicamente coerente de interpretar sua proposta [da queda da taxa de lucro e daquilo que Piketty chama de “princípio da acumulação infinita”] é considerar a lei dinâmica 𝛽 = 𝑠/𝑔 no caso particular em que a taxa de crescimento é nula, ou ao menos muito próxima de zero. […] No caso em que não há qualquer crescimento estrutural e a taxa de crescimento g é rigorosamente nula, chega-se a uma contradição lógica muito próxima da que Marx descreveu. A partir do momento em que a taxa de poupança s é positiva, […] a relação capital/renda aumenta de forma indefinida. De modo mais geral, se a taxa g é baixa e se aproxima de zero, a relação capital/renda de longo prazo, 𝛽 = 𝑠/𝑔, tende ao infinito. E, com uma relação capital/renda𝛽 infinitamente elevada, o rendimento do capital r deve necessariamente se reduzir mais e mais até chegar perto de zero, o que fará com que a participação do capital 𝛼 = 𝑟 × 𝛽 devore a totalidade da renda nacional.

Ainda sublinha:

Relembremos que mede a taxa de crescimento estrutural de longo prazo, ou seja, a soma da taxa de crescimento da produtividade e da taxa de crescimento da população […] Hoje, sabe-se que apenas o crescimento da produtividade permite um crescimento estrutural de longo prazo. No entanto, […] isso não era evidente na época de Marx

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 223).

E ressalta: “a noção de crescimento permanente e duradouro da população no longo prazo não era clara e, para falar a verdade, nos confunde até hoje, daí a hipótese geralmente admitir uma estabilidade da população mundial” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 583, nota 31). Essa crítica de Piketty consiste em uma falácia, pois embora esteja aparentemente refutando o pensamento marxiano, o autor está refutando um argumento criado por ele mesmo.

Vejamos a forma como a lei da queda tendencial da taxa de lucro é apresentada em O capital, começando pelo resgate da equação sobre a determinação da taxa de lucro (𝑙′) (Marx, 2017MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro terceiro – o processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017., p. 75), que consiste na relação entre o mais-valor absorvido pela classe capitalista (m) e o capital adiantado por ela – que se divide em capital constante (c) e capital variável (v)14 14 Capital constante consiste na parcela do capital destinada a adquirir os meios de produção necessários para o processo de acumulação (máquinas, matérias-primas e matérias auxiliares etc.). Capital variável representa a parcela do capital dispendida para a contratação da força de trabalho. Cf. Marx (2013, cap. 6). :

l = m c + v

Essa equação é similar à equação 1, reapresentada conforme as categorias marxianas15 15 Se ignorarmos, como faz Piketty, a distinção entre a taxa de lucro de Marx e sua taxa de remuneração do capital. . Se dividirmos o numerador e o denominador do termo direito da equação pelo capital variável, teremos:

l = m v 1 + c v (4)

A equação 4mostra que a taxa de lucro será tão maior quanto maior for a taxa de mais-valor (𝑚/𝑣)16 16 A taxa de mais-valor também é equivalente ao que se chama de taxa de exploração. É ela que determina a massa de lucro (mais-valor) que será apropriada pela classe capitalista a partir da quantidade de capital dispendido para a contratação de força de trabalho (capital variável). e quanto menor for aquilo que Marx denomina de composição orgânica do capital (𝑐/𝑣)17 17 Talvez seja interessante aclarar o leitor sobre a visão marxiana acerca da composição do capital. Para Marx, a composição do capital pode ser vista tanto sob o aspecto do valor (isto é, a repartição do capital em suas parcelas constante e variável) quanto sob o aspecto material (ou seja, a relação entre a massa dos meios de produção e a quantidade de trabalho que a mesma requer). “[…] Chamo a primeira de composição de valor e a segunda, de composição técnica do capital. Entre ambas existe uma estreita correlação. Para expressá-la, chamo a composição de valor do capital, porquanto é determinada pela composição técnica do capital e reflete suas modificações, de composição orgânica do capital” (Marx, 2013, p. 689). , e vice-versa. Para compreender a tendência dessa taxa de lucro no decorrer do tempo temos de avaliar as conclusões de Marx sobre as mudanças na própria composição orgânica do capital, algo que está intimamente relacionado com sua visão acerca da dinâmica do progresso técnico quando o processo de produção está sob o domínio do capital.

Primeiro, é preciso compreender que o progresso técnico e o desenvolvimento da ciência podem se subordinar aos interesses da classe capitalista a partir do momento em que se instaura aquilo que Marx denomina de subsunção real do trabalho ao capital. Essa subsunção real, que é um resultado da disputa entre capital-trabalho, consiste no fato do trabalhador perder o domínio sobre as determinações do processo de produção. Assim, este processo de produção deixa de ser realizado nos moldes do antigo modo de produção e passa a adquirir características tipicamente capitalistas, com o uso extensivo e intensivo da maquinaria e a aplicação utilitarista da ciência18 18 Cf. Marx (2013, caps. 12 e 13). .

Esse fenômeno abre a possibilidade para que a classe capitalista adeque o processo de produção aos seus próprios interesses – isto é, uma apropriação crescente do lucro. Para atingir esse objetivo, cada capitalista busca a ampliação da força produtiva do trabalho sob seu domínio, ou seja, a produção de uma maior quantidade de valores de uso para cada parcela de trabalho. Como consequência, seus produtos passam a conter individualmente uma quantidade de trabalho cada vez menor, de modo que esta divergirá da quantidade de horas socialmente necessárias para a produção da referida mercadoria. Assim, “[…] o valor individual dessa mercadoria se encontra, agora, abaixo de seu valor social, isto é, ela custa menos tempo de trabalho do que a grande quantidade do mesmo artigo produzida em condições sociais médias” (Marx, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013., p. 391).

Como resultado, o proprietário do capital obterá uma quantidade maior de valor do que o valor individual das mercadorias que lança no mercado, visto que “[…] o valor efetivo de uma mercadoria não é seu valor individual, mas seu valor social, isto é, ele não é medido pelo tempo de trabalho que ela de fato custa ao produtor em cada caso singular, mas pelo tempo de trabalho socialmente requerido para sua produção” (Marx, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013., p. 392). Duas questões fundamentais derivam desse fenômeno: primeiro, uma vez que a grandeza do valor das mercadorias é determinada pela média do tempo de trabalho despendido pela sociedade, aqueles que gastam menos tempo do que a média acabam por absorver as horas de trabalho realizadas por aqueles que despenderam mais tempo – de modo que o lucro extra do capitalista que impulsiona as forças produtivas é obtido às custas da redução do lucro dos demais; segundo, com a difusão da tecnologia e do novo nível de produtividade do trabalho, essa diferença entre valor individual e social da mercadoria desaparece e, com ela, a fonte do lucro extra.

Nesse sentido, é a disputa concorrencial entre os capitalistas em busca do lucro extra que os leva a buscar continuamente a ampliação da produtividade do trabalho. Afinal, não basta inovar, é preciso se manter continuamente à frente de seus concorrentes. Por sua vez, essa contínua elevação da produtividade do trabalho se expressa em uma massa maior de meios de produção que cada trabalhador manipula no decorrer do processo produtivo. A utilização de equipamentos que incorporam mais tecnologia (e que, portanto, são mais caros) é causa dessa elevação da produtividade, como pelo fato de que o uso de mais matérias-primas e matérias auxiliares é consequência da produção de um maior número de mercadorias por um mesmo trabalhador.

Isso implica que a parcela variável do capital (𝑣) se reduz em relação à parcela constante (𝑐)19 19 Isso não significa uma redução absoluta de , mas apenas uma redução em relação a . . Analisando o efeito desse processo sobre a equação 4, chegamos à seguinte conclusão:

[…] Com a queda progressiva do capital variável em relação ao capital constante, a produção capitalista gera uma composição orgânica cada vez mais alta do capital total, que tem como consequência imediata o fato de que a taxa de mais-valor, mantendo-se constante e inclusive aumentando o grau da exploração, se expressa numa taxa geral de lucro sempre decrescente […]

(Marx, 2017MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro terceiro – o processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017., p. 250).

O raciocínio de Marx é exatamente oposto ao apresentado por Piketty: a lei da tendência decrescente da taxa de lucro é uma consequência da contínua elevação da produtividade.

Contudo, ainda devemos averiguar se é válida a aplicação da segunda hipótese que Piketty atribui a Marx: a de que a taxa de crescimento da população é nula. Nesse ponto, é importante observar um equívoco no próprio modelo de Piketty. Mesmo considerando-se o pressuposto pikettyano de uma trajetória de crescimento balanceado – i.e., uma trajetória na qual as variáveis endógenas (𝐾 e 𝑌) crescem sempre a uma mesma taxa (𝑠 e 𝑔) – a relação capital/renda de longo prazo (𝛽 da equação 3) não precisa tender ao infinito para que a relação capital/renda de curto prazo (𝛽 da equação 2) aumente por um período histórico considerável. Para isso, basta que a razão entre poupança (𝑠) e crescimento (𝑔) seja significativamente superior à relação entre capital (𝐾) e renda (𝑌) inicial.

Apenas para exemplificar, uma sociedade partindo de uma relação capital/renda igual a unidade e que apresente taxas estáveis de poupança e crescimento nos patamares de 12% e 1% respectivamente – portanto, apresentando um 𝛽 de longo prazo de 12 – levaria 170 anos para acumular um 𝛽 = 10, mais de 240 anos para atingir o patamar 𝛽 = 11, e mais de 700 anos para alcançar um patamar próximo do equilíbrio (𝛽 ≈ 12)20 20 Conforme o modelo de Piketty, quando o de longo prazo é superior ao de curto prazo, este último apresenta uma trajetória de crescimento assintótico, isto é, um crescimento contínuo a partir do qual o estado de equilíbrio nunca será perfeitamente alcançado. .

Em outras palavras, a afirmação de Piketty de que um crescimento contínuo de 𝛽 requer uma taxa de crescimento da renda nula é incorreta. Além disso, é preciso considerar que Marx não defende que haverá uma “queda inexorável” ou “redução progressiva” da taxa de lucro em todos os anos (Marques; Leite 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Marcel Guedes. Notas críticas sobre O capital no século XXI de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4, p. 684-703, dez. 2016., p. 698). Afirma: “esse decréscimo aparece não nessa forma absoluta, mas, antes, tendendo a uma queda progressiva” (Marx, 2017MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro terceiro – o processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017., p. 250-251, grifo nosso).

Por fim, resta comentar a tentativa de Piketty em reforçar sua interpretação ao argumentar que “a ideia de que Marx tinha em mente um modelo desse tipo – um modelo baseado na acumulação infinita de capital – é confirmada pelos diversos exemplos que ele menciona de balanços de empresas industriais caracterizadas pelo uso muito intensivo do capital […]”(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 224). Após resgatar apenas um exemplo hipotético dado por Marx, que, de acordo com os cálculos do próprio Piketty, apresentaria um 𝛽 > 1021 21 Esse exemplo é abordado no capítulo 6 (Piketty, 2014b, p. 224) e “detalhado” no anexo técnico (Piketty, 2014a, p. 54-55). , assevera: “esse tipo de relação capital/renda tem algo de assustador: basta que a taxa de rendimento do capital seja de 5% para que a participação dos lucros supere a metade da produção”.

Contudo, os exemplos presentes em O capital mostram que Marx não faz nenhuma referência a um 𝛽cujo valor seja próximo a 10. Inclusive, no trecho citado por Piketty, a relação capital/renda deve girar entre 2 e 4(Marx 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013., 295)22 22 Vejamos os cálculos. O valor de 10.000 fusos (incluindo a maquinaria preparatória e a máquina a vapor) é £10.000,00. Marx não indica o preço do edifício da fábrica, mas podemos obtê-lo capitalizando o aluguel anual de £300,00 à taxa de 5% ao ano (adequada aos termos de Piketty), de modo que obtemos £6.000,00. Portanto, a soma do capital fixo seria £16.000,00. Sobre o capital circulante (cujo custo semanal é de £352,47), é razoável supor que o capitalista mantenha reservas monetárias e em mercadorias para manter a fábrica funcionando por 3 meses (totalizando £4.229,60). Estendendo o mesmo prazo para o capital variável (totalizando £624,00 para 3 meses), temos um capital total de £20.853,60. Podemos supor também a existência de reservas monetárias no montante de 10% desse capital a título de fundo de seguro da produção, levando-nos a um montante de £22.938,96. Como o valor novo produzido pelos trabalhadores somam £133,02 por semana (dos quais £52,00 equivalem aos salários adiantados e £81,02 são apropriados como lucro), temos uma renda/produto anual de £6.935,97. Assim, temos . Calculamos esse valor para levando em conta a categoria marxiana de “capital”. É preciso lembrar que, na definição de Piketty, a parcela circulante do capital constante e o capital variável não deveriam ser levados em consideração. Nesses termos, teríamos . .É impossível saber ao certo a origem do deslize de Piketty nesses cálculos, pois ele não os mostra em lugar algum. A explicação mais detalhada apresentada é a seguinte:

[…] as contas sugerem […] uma relação 𝐾/𝑌 em torno de 10 e uma participação do capital em torno de 50%, ou até mais alta (o que corresponde a uma relação lucros/salários, ou “grau de exploração” de acordo com a terminologia de Marx, de cerca de 100% ou até mais). Com base nos outros exemplos de fábricas mencionados no mesmo capítulo e em outras partes do livro, podemos concluir que esse é o tipo de ordem de magnitude que Marx tinha em mente para o capitalismo industrial daquela época

(Piketty, 2014aPIKETTY, Thomas. Anexo técnico de O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014a., p. 54).

Entretanto, analisando essa citação em paralelo à passagem abaixo, parece que Piketty não está se referindo exatamente à relação capital/renda encontrada por Marx, mas à taxa de exploração:

[…] Em Salário, preço e lucro (1865), Marx apresenta também o exemplo do balanço de uma fábrica intensiva em capital em que os lucros alcançavam 50% do valor adicionado (tanto quanto os salários). Mesmo que ele não o diga explicitamente, esse é o tipo de distribuição global que ele parecia ter em mente para uma economia industrial

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 583, nota 33).

Isso nos sugere que, talvez, ele tenha realizado um raciocínio inverso: uma taxa de mais-valor de 100% implica em um 𝛼 = 𝑃/𝑌 = 50%. Assim, se a remuneração do capital r for de 5%, pela equação 2, teremos um 𝛽 = 10.

Efetivamente, a maioria dos exemplos dados por Marx pauta-se em uma taxa de exploração de 100%. Mas, a taxa de lucro no exemplo dado por Marx gira em torno de 18% e 19% (muito superior à taxa de 5% suposta por Piketty23 23 Mais uma vez, ainda deve-se ter em conta a distinção entre taxa de lucro em Marx e taxa de remuneração do capital em Piketty. ). Além disso, no capítulo que Marx trata da formação da taxa geral de lucro (Marx 2017MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro terceiro – o processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017., cap. 9), ele utiliza exemplos nos quais a taxa gira em torno de 20% (ou até mais). Pela equação 2, uma taxa de lucro de 20% acompanhada de uma taxa de mais-valor de 100% implica em uma relação capital/renda de 𝛽 = 2,5.

3.2 As conclusões precipitadas

Para Piketty, o “princípio da acumulação infinita” que Marx apresenta em O capital resulta da necessidade de justificar suas previsões apocalípticas presentes no Manifesto do Partido Comunista. Essa necessidade o teria deixado em uma frágil situação, como indica seu crítico:

[…] Certamente Marx […] sofreu as consequências de decidir expor suas conclusões em 1848 antes de realizar as pesquisas necessárias para justificá-las. Escreveu tomado por grande fervor político, o que muitas vezes o levou a se precipitar e a defender argumentos mal embasados, dos quais ficou refém […]

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 17).

Essa passagem sugere uma postura anticientífica por parte de Marx, que, ao tentar criar uma teoria para justificar um posicionamento político a priori, teria comprometido o alicerce de seu pensamento. Esse argumento se pauta em uma afirmação falsa: afinal, no Manifesto do Partido Comunista – texto escrito por Marx e Engels – não há nenhuma alusão ao que Piketty denomina de “apocalipse marxista”. Vejamos.

Piketty inicia a sugestão de que Marx teria antecipado suas conclusões resgatando as seguintes passagens do Manifesto:

[…] Em 1848, às vésperas da Primavera dos Povos, ele já havia publicado o Manifesto comunista, texto curto e eficaz que se inicia com a célebre frase “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo” e termina com a não menos célebre previsão revolucionária: “O desenvolvimento da indústria moderna, portanto, enfraquece o próprio terreno em que a burguesia assentou a produção e a apropriação de seus produtos. Assim, a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”. Nas duas décadas seguintes, Marx se dedicou a escrever o volumoso tratado que justificaria essas conclusões e proporia a primeira análise científica do capitalismo e de seu colapso […]

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 16, grifo nosso).

Posteriormente, retoma-a com uma pequena alteração:

Para Marx, o mecanismo central por meio do qual a “burguesia produz sua própria cova” correspondia ao que na Introdução chamamos de “princípio da acumulação infinita”: os capitalistas acumulam quantidades de capital cada vez mais significativas, o que conduz a uma queda inexorável da taxa de lucro (ou seja, da taxa de rendimento do capital) e causa suas próprias perdas[…]

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 223, grifo nosso).

Após a explicação do “princípio da acumulação infinita” – sobre o qual nos detivemos na seção precedente –, Piketty apresenta o que chama de “apocalipse marxista”:

[…] É o crescimento permanente da produtividade e da população que permite equilibrar a adição contínua de novas unidades de capital […]. Na falta disso, os capitalistas cavam suas próprias covas: ou se aniquilam ao tentar lutar desesperadamente contra a queda da taxa de rendimento […] ou forçam a mão de obra a aceitar uma parcela cada vez menor da renda nacional, o que resulta na revolução proletária e na expropriação generalizada. Em qualquer caso, o capitalismo está fadado a padecer devido a suas próprias contradições internas

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 224, grifo nosso).

Piketty altera de modo sutil a citação de Marx – substituindo o termo “coveiro” por “cova” –, sugerindo que ela faz referência a um mecanismo econômico automático: a queda da taxa de lucro levaria de modo inexorável ao fim do capitalismo. No entanto, esse não é o sentido da passagem do Manifesto do Partido Comunista citado por Piketty, o que pode ser percebido analisando a parte precedente do parágrafo que integra:

A condição essencial da existência e do domínio da classe burguesa é a concentração da riqueza nas mãos particulares, a formação e o crescimento do capital; a condição de existência do capital é o trabalho assalariado. Este baseia-se exclusivamente na concorrência dos trabalhadores entre si. O progresso da indústria, cujo agente involuntário e sem resistência é a própria burguesia, provoca a substituição do isolamento dos operários, resultante de sua competição, por sua união revolucionária mediante associação […]

(Marx; Engels, 1987MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cartas filosóficas e o Manifesto Comunista de 1848. São Paulo: Moraes, 1987., p. 116).

Logo, quando o texto prossegue com a frase citada por Piketty, afirmando que “o desenvolvimento da indústria moderna enfraquece o terreno…”, não está sendo feita nenhuma referência à tendência decrescente da taxa de lucro, mas ao fato de a grande indústria substituir o isolamento do proletariado por sua associação. Por isso que a burguesia produz seus próprios coveiros, isto é, constitui e fortalece a classe à qual se opõe.

Não se trata de uma previsão sobre um evento futuro apocalíptico, mas de uma leitura sobre um fenômeno que já havia iniciado e estava em curso há algum tempo. Em 1848, o proletariado já era uma força política reconhecida e temida pelas classes dominantes, e o manifesto escrito por Marx e Engels consiste em uma ode sobre seu surgimento e uma conclamação para sua união. Desse modo, não há no Manifesto do Partido Comunista nenhuma previsão econômica que precisasse ser justificada.

Além disso, é preciso ressaltar a inadequação em estabelecer uma relação direta entre o texto do Manifesto do Partido Comunista e O capital, obras escritas com propósitos distintos e em períodos diferentes da vida de Marx. Sobre esse aspecto, é interessante avaliar as recentes descobertas sobre a evolução dos manuscritos de Marx que tem surgido com a produção da Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), assim como os debates que ela tem fomentado24 24 Nesse aspecto, cf. Musto (2020) e Heinrich (2016). .

3.3 As previsões frustradas

O fato das previsões de Marx não terem se realizado seria, para Piketty, a comprovação da falha de seu pensamento. Analisemos duas afirmações do autor nesse sentido. A primeira refere-se ao comportamento dos salários e à melhoria do poder de compra da classe trabalhadora que se seguiu à morte de Marx:

A profecia sombria de Marx não chegou mais perto de se concretizar do que a de Ricardo. A partir do último terço do século XIX, os salários enfim começaram a aumentar: a melhora do poder de compra dos trabalhadores se disseminou, o que mudou radicalmente a situação, ainda que a desigualdade extrema tenha persistido e, em certos aspectos, crescido até a Primeira Guerra Mundial […]

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 17).

Ou seja, logo após a publicação do livro 1 de O capital, o nível dos salários teria seguido um trajeto contrário às previsões de Marx. A visão de Piketty sobre o comportamento dos salários na teoria marxiana deriva da extrapolação equivocada de suas duas equações para o caso em que a taxa de crescimento é nula. Nela, a participação dos salários na renda da sociedade reduziria progressivamente como consequência da elevação da participação dos lucros na renda (𝛼).

Além de não haver menção a uma tendência decrescente dos salários em Marx, devemos ressaltar que tampouco isso pode ser deduzido de sua lei da queda tendencial da taxa de lucro. Nos termos de Piketty, como a queda da taxa de remuneração do capital (𝑟) é consequência da elevação da relação capital/renda (𝛽) – por conta do pressuposto da produtividade marginal decrescente –, o efeito da dinâmica do “princípio da acumulação infinita” sobre a parcela da renda apropriada pela classe capitalista (𝛼) dependerá da elasticidade de substituição entre trabalho e capital, como o próprio autor afirma:

[…] Se a elasticidade [de substituição entre trabalho e capital] estiver entre zero e um, um aumento da relação capital/renda 𝛽 levará a uma queda da produtividade marginal do capital tão forte que a participação do capital 𝛼 = 𝑟 × 𝛽 diminui […]. Se a elasticidade for maior do que um, então um aumento da relação capital/renda 𝛽 leva a uma queda limitada da produtividade marginal do capital, de modo que a participação do capital 𝛼 = 𝑟 × 𝛽 aumenta […] (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 213).

Portanto, o raciocínio de Piketty só seria verdadeiro se assumirmos o pressuposto de que a elasticidade de substituição entre trabalho e capital permanecerá sempre superior a um. Contudo, os dados do próprio autor sugerem que esse pressuposto não foi atendido no período entre 1870 e 1910, tanto na França quanto no Reino Unido – i.e., no próprio período indicado por Piketty na citação anterior25 25 Partindo das tabelas suplementares TS6.1 e TS6.2 (Piketty, 2014a), é possível verificar que a variação da relação capital/renda (β) é acompanhada por uma variação no sentido contrário, tanto da taxa de rendimento (r) quanto da participação dos lucros na renda (α). .

Ainda, mesmo uma redução da participação dos salários na renda nacional (i.e., uma elevação de 𝛼) não implica em redução do nível real de salários se for contrabalanceada por uma elevação da produtividade do trabalho. Nesse ponto, o processo de ampliação relativa do mais-valor é elucidativo26 26 Cf. Marx (2013, cap. 10). : Marx nos esclarece que a ampliação da produtividade do trabalho, ao pressionar para baixo os preços relativos das mercadorias que compõem a cesta de consumo dos trabalhadores, permite aliar uma elevação real dos salários com uma ampliação da taxa de exploração. Em outras palavras, os ganhos decorrentes de uma elevação da produtividade do trabalho podem ser distribuídos entre trabalhadores e capitalistas de modo a reduzir a participação dos salários na renda. Segundo Marx,

com o aumento da força produtiva do trabalho, o preço da força de trabalho [o salário nominal] poderia cair continuamente, acompanhado de um crescimento simultâneo e contínuo da massa dos meios de subsistência do trabalhador [o salário real]. Relativamente, porém, isto é, comparado com o mais-valor, o valor da força de trabalho diminuiria continuamente, ampliando, assim, o abismo entre as condições de vida do trabalhador e as do capitalista

(Marx, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013., p. 590, grifo nosso).

Ou seja, Marx afirma que um crescimento da desigualdade pode ser associado a um aumento dos salários – exatamente como o relatado por Piketty. Por outro lado, é preciso deixar claro que essa afirmação de Marx não implica em que a queda dos salários nominais será sempre acompanhada de uma queda em nível igual ou maior do valor das mercadorias que compõem a cesta de consumo dos trabalhadores. Esse caso é relevante, sobretudo, quando a ampliação do exército industrial de reserva – uma consequência do modo de produção capitalista, como veremos na seção 3.4.2 – pressiona os salários da parte ocupada da força de trabalho para patamares inferiores ao seu valor.

A segunda contestação fática retoma o debate sobre a lei da tendência decrescente da taxa de lucro, o que Piketty (2014b, p. 58)PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b. afirma ser “[…] uma previsão histórica que se revelou bastante equivocada […]”. Piketty não apresenta nenhum dado que dê suporte a sua crítica, dando a entender que se trata de um fato de conhecimento geral – a despeito da ampla gama de estudos empíricos que corroboram a tese de Marx27 27 Por exemplo, cf. Maito (2013). Vale ressaltar também que na análise empírica deve ser levado em consideração que se trata de uma tendência de queda que deve ser observada ao longo do tempo, e não de um movimento descendente que deve ocorrer inexoravelmente ano após ano. . Por outro lado, no decorrer de sua obra, suas pesquisas apresentam uma taxa de remuneração (𝑟) com um comportamento de grande estabilidade, tanto para o mundo em geral como para os casos particulares da França e Reino Unido.

Aqui, é preciso ressaltar mais uma vez que a comparação empírica entre a “taxa de remuneração do capital” (𝑟) de Piketty e a “taxa de lucro”(𝑙′) da análise marxista não é adequada28 28 O próprio Piketty demonstra-se ciente desta distinção quando afirma: “[…] a taxa de remuneração do capital mensura aquilo que ele rende ao longo de um ano, qualquer que seja a forma jurídica da receita (lucros, aluguéis, dividendos, juros, royalties, ganhos de capital etc.), e se expressa como uma porcentagem do capital investido. Trata-se, portanto, de uma noção mais abrangente do que o conceito de ‘taxa de lucro’ e bem mais ampla do que ‘taxa de juros’, ainda que leve ambas em conta” (Piketty, 2014b, p. 58). . A distinção efetivamente repousa no tratamento dado ao termo “capital”. Para Marx, “capital” significa uma relação social de produção na qual há uma autovalorização do valor (𝐷 − 𝑀 − 𝐷’). Embora “capital” não seja uma mera soma de dinheiro, uma soma de dinheiro é “capital” se for adiantada com o intuito de se obter mais dinheiro por meio de um processo de produção de mercadorias. Assim, poderíamos denotar como “capital” toda a riqueza material (monetária ou não) que se empenha na produção (ou melhor, no processo de valorização). Isso incluiria, em um dado momento, a soma de todo o capital fixo e circulante, além de todos os recursos monetários entesourados em fundos que se relacionam diretamente com a produção capitalista29 29 Como o fundo de amortização e o fundo de seguro da produção. .

Como já adiantamos na seção 1, Piketty utiliza o termo “capital” como sinônimo de “riqueza” ou “patrimônio”, englobando aí tanto elementos materiais quanto imateriais (patentes, derivativos financeiros etc.) – independentemente se estão ou não relacionados com o processo de produção, e excluindo sua parcela circulante. Em suas palavras: “[…] definiremos ‘riqueza nacional’ ou ‘capital nacional’ como o valor total, a preços de mercado, de tudo que os residentes e o governo de um país possuem num determinado momento e que possa ser comprado e vendido em algum mercado […]” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 54).

Uma vez que a lei da tendência decrescente da taxa de lucro de Marx refere-se unicamente aos rendimentos do capital em termos do capital adiantado no processo de produção, não faz sentido contrastá-la com a relação entre os rendimentos do capital (ou melhor, dos rendimentos do patrimônio) e toda a riqueza existente na sociedade. A título de ilustração, reproduzimos aqui o contraste dos valores calculados por Maito (2014)MAITO, Esteban Ezequiel. Piketty versus Piketty. El Capital en el Siglo XXI y la tendencia descendente de la tasa de ganancia. Revista de Economía Crítica, v. 18, 2014. da taxa de lucro a partir das categorias marxistas e os apresentados por Piketty para o Reino Unido (Gráfico 1).

Gráfico 1
Taxa de lucro e taxa de rendimento do capital, Reino Unido (1855-2009)

O que leva a taxa de rendimento (𝑟) a se comportar de modo tão distinto da taxa de lucro (𝑙′) no Gráfico 1 é a mudança no longo prazo no perfil da composição do “capital” de Piketty: a participação das habitações e outros ativos não produtivos – extremamente significativa no século XIX e início do século XX – decaiu com o crescimento dos estoques de máquinas e construções não residenciais. Desse modo, como sugere Maito (2014, p. 26), é bem provável que a taxa de rendimento de Piketty continue a apresentar uma tendência decrescente similar ao previsto por Marx – como ocorre desde a década de 1960.

3.4 O uso inadequado das estatísticas

Piketty tributa os “equívocos” de Marx na elaboração de suas previsões ao modo pelo qualeste utilizou os dados estatísticos. O autor resume suas objeções do seguinte modo: “[…] Marx tentou, às vezes, mobilizar da melhor forma possível as fontes estatísticas de seu tempo […], mas o fez, na maioria das ocasiões, levado por impressões, sem estabelecer relações claras entre seus argumentos teóricos e os fatos empíricos que observava” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 564, nota 8). Essa passagem contém três argumentos: a) efetivamente, Marx não tentou mobilizar da melhor forma possível as estatísticas de seu tempo (i.e., fez isso “às vezes”); b) suas análises são normalmente anedóticas, ou seja, levam em consideração apenas uma parcela caricata de um todo (“levado por impressões”) para fazer generalizações sobre esse mesmo todo; e c) o autor falhou em estabelecer relações entre os argumentos teóricos e os dados utilizados. Vejamos, a seguir, os dois momentos nos quais Piketty detalha suas objeções.

3.4.1 O cálculo da taxa de mais-valor

Como já expusemos na seção 3.1, Piketty acredita que Marx tenha se espantado com a relação capital/renda elevada que encontrou no balanço de algumas empresas industriais. Sobre essa constatação de Marx, seu crítico questiona o uso anedótico das estatísticas:

[…] Marx conserva uma abordagem mais anedótica e pouco sistemática das estatísticas disponíveis. Em particular, ele não procura saber se a forte intensidade de capital que acredita ter descoberto nas contas de algumas fábricas é representativa da economia britânica, nem mesmo se caracteriza algum setor em especial; ele apenas reuniu algumas dezenas de balanços de empresas

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 224-225).

Para entendermos a crítica de Piketty é preciso esclarecer mais uma vez que este confunde a taxa de mais-valor com o grau da intensidade do capital. Influenciado por sua “primeira lei fundamental do capitalismo” (equação 2), e supondo que a taxa de rendimento 𝑟 sempre gira em torno de 5%, o autor acredita que uma taxa de mais-valor de 100% implica em uma relação capital/renda 𝛽 = 10.

Logo, a crítica de Piketty não se refere à intensidade do capital descoberta por Marx, mas à magnitude da taxa de mais-valor (ou da taxa de exploração) apontada por este (normalmente, em torno de 100%). Assim, segundo o economista francês, o que levou Marx a encontrar uma taxa de exploração tão elevada foi o seu tratamento anedótico da estatística: o autor alemão teria avaliado a situação de algumas fábricas e extrapolado aquele nível de exploração para todo o Reino Unido.

A crítica se pauta em uma descontextualização do exemplo dado por Marx, dando a entender que este busca um objetivo distinto daquele ao qual realmente se propõe quando apresenta os dados criticados por Piketty. No parágrafo anterior ao exemplo citado por Piketty, Marx escreve:

O método do cálculo da taxa de mais-valor pode, portanto, ser resumido da seguinte forma: […] basta realizar […] o cálculo da relação do mais-valor com o capital variável: . Por simples que seja esse método, parece-nos recomendável exercitar o leitor na aplicação de seus princípios, por meio de alguns exemplos

(Marx, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013., p. 294-295).

Em seguida, apresenta dois exemplos de cálculo da taxa de mais-valor: o de uma indústria de fiação, da qual obtém uma taxa de mais-valor de 153,85%30 30 Na primeira edição de O capital, o primeiro exemplo levou o autor a uma taxa de mais-valor de 85,71%. ; e de uma plantação de trigo, na qual observa uma taxa de 101,43%. Ao final, assevera em uma nota: “os cálculos aqui apresentados servem apenas como ilustração […]” (Marx, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013., p. 296, nota 31a). Esses dois exemplos tiveram o intuito apenas de exemplificar o seu método de cálculo e não constituem uma argumentação estatística.

3.4.2 A ilustração da lei geral da acumulação capitalista

Piketty também faz objeções com relação ao uso dos instrumentais estatísticos por parte de Marx em sua ilustraçãoda lei geral da acumulação capitalista. Em suma, sua crítica sugere que as previsões apresentadas em O capitalsobre a ampliação das desigualdades no capitalismo (derivados do “princípio da acumulação infinita” e da tese do “apocalipse marxista”) foram enviesadas pela ausência de dados adequados – o que teria ocorrido por três motivos.

Primeiro, Piketty indica que Marx não teria levantado as informações suficientes para estabelecer uma relação entre sua análise estatística e seus argumentos teóricos. Explica:

[…] Ele pretendia mostrar que o desenvolvimento intensivo do capital é caracterizado por uma explosão dos lucros e um aumento potencial da concentração do capital. Escreveu, por exemplo, que os lucros industriais (assim como a remuneração da terra) aumentaram em torno de 40-50% entre 1853 e 1864, enquanto que a população teve um aumento de apenas 12%. No entanto, ele não tentou estimar os níveis e a evolução da massa salarial, da produção nem da renda nacional, e, como consequência, não tratou da questão da divisão capital-trabalho nem da relação capital/renda […]

(Piketty, 2014aPIKETTY, Thomas. Anexo técnico de O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014a., p. 53-54).

Segundo. Piketty afirma que Marx ignorou uma ampla fonte de dados concernentes às estimativas da riqueza e renda nacional do Reino Unido. Detalha:

[…] Marx não faz qualquer referência às tentativas de estimar o estoque de capital nacional que se multiplicaram no Reino Unido desde o início do século XVIII e que foram aprimoradas desde o início do século XIX, dos trabalhos de Colquhoun nos anos 1800-1810 aos de Giffen nos anos 1870-1880 […]

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 225).

No anexo técnico, retoma essa mesma colocação:

Em particular, não tentou ligar as estatísticas fiscais às estimativas do capital nacional e da renda nacional, que haviam se multiplicado no Reino Unido desde o início do século XVIII (Petty, King) e no século XIX (Colquhoun), e que Giffen logo sistematizaria nas décadas de 1860-1880 (seu trabalho não é citado por Marx)

(Piketty, 2014aPIKETTY, Thomas. Anexo técnico de O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014a., p. 54).

Terceiro, Piketty sugere que a análise de Marx foi, mais uma vez, anedótica – i.e., ele teria observado um determinado comportamento de aumento da concentração de lucros e de riqueza em um pequeno conjunto de dados, e extrapolado para um universo mais amplo31 31 “[…] Ele […] apresentou algumas informações sobre um possível aumento da concentração de lucros e de riqueza, mas apenas com base em casos isolados [relativement anecdotique no original em francês]” (Piketty, 2014a, p. 54). . Uma nota de rodapé do anexo técnico de O capital no século XXI traz dois exemplos desse uso anedótico dos dados:

[…] Ele apresenta […] uma tabela de estatísticas fiscais que nos permite conhecer a evolução dos lucros por categoria, e especifica que os níveis mais elevados tiveram um aumento maior do que os outros entre 1864 e 1865. […] Mas é óbvio que a evolução dos lucros industriais ao longo de dois anos não permite tirar conclusões gerais sobre a evolução de longo prazo da distribuição da riqueza

(Piketty, 2014aPIKETTY, Thomas. Anexo técnico de O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014a., p. 54, nota 25).

E também:

[…] Marx […] observa […] que, de acordo com as estatísticas de heranças publicadas pela administração britânica desde o início do século XIX, todos os ativos financeiros herdados ficaram abaixo de 1 milhão de libras entre 1815 e 1825, e quatro heranças excederam esse montante entre 1856 e 1859. Mais uma vez, trata-se de um fato interessante, mas não o bastante, e Marx não tentou explorá-lo […]

(Piketty, 2014aPIKETTY, Thomas. Anexo técnico de O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014a., p. 54, nota 25).

Vamos agora, ponderar cada um dos três motivos indicados acima. Em primeiro lugar, precisamos esclarecer no que consiste a lei geral da acumulação capitalista de Marx e o que exatamente ele pretende demonstrar com seus exemplos estatísticos. No capítulo que trata da referida lei, Marx (2013, p. 689)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. se propõe a investigar “[…] a influência que o aumento do capital exerce sobre o destino da classe trabalhadora […]”. Seu objetivo é o de contestar a tese dominante entre os economistas da época de que o ciclo econômico é determinado pela mútua relação entre o nível dos salários e o número absoluto da população trabalhadora, cujo corolário é de que níveis baixos de salários são frutos de um crescimento populacional superior à acumulação de capital32 32 De acordo com essa tese, a acumulação de capital impulsiona os salários para cima; uma elevação dos salários estimula a reprodução acelerada da classe trabalhadora; uma população trabalhadora maior pressiona os salários para baixo, que, por sua vez, gera o duplo efeito de dizimar a população trabalhadora e ampliar a acumulação de capital, determinando o reinício do ciclo econômico (Marx, 2013, p. 713). .Em sua análise, o autor conclui que não é a população que cresce demais, mas é a contínua elevação da produtividade e a consequente ampliação da composição orgânica do capital que tornam a população sempre supérflua em relação às necessidades da acumulação capitalista. Partindo disso que conclui sua lei geral da acumulação capitalista: “quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior será o exército industrial de reserva […]”33 33 O exército industrial de reserva consiste em uma parcela da população economicamente ativa que está sempre pronta para participar do processo de produção capitalista. Essa categoria é mais ampla do que a população desempregada, pois deve levar em consideração outros segmentos, como o desemprego oculto pelo trabalho precário. .

Esses eram os argumentos que Marx queria demonstrar com sua ilustração estatística. Para tanto, o autor mostra que a intensificação da acumulação de capital foi acompanhada por uma redução da taxa de crescimento populacional, sem que isso se convertesse em uma elevação proporcional dos salários – contrariando a tese dominante entre os economistas da época. Sua exposição estatística é suficiente para comprovar esse argumento.

Em segundo lugar, precisamos avaliar as fontes de dados utilizadas por Marx. Para evidenciar o ritmo da acumulação de capital, o autor usou um extensivo conjunto de exemplos sobre o crescimento industrial inglês34 34 Além dos dados apresentados no próprio capítulo no qual expõe a lei geral da acumulação capitalista, Marx também faz referência aos exemplos que constam na seção IV de O capital. e do aumento da massa de lucros a partir de relatórios oficiais a respeito dos impostos sobre a renda; a taxa de crescimento populacional foi obtida a partir do censo oficial; e o nível de salários reais foi inferido por meio da análise da evolução do padrão de vida da classe trabalhadora – obtido, entre outras fontes, de relatórios parlamentares britânicos como cita o próprio Piketty (2014b, p. 224).

Com relação ao uso de dados sistematizados sobre o crescimento da acumulação e a evolução da massa salarial das fontes sugeridas por Piketty, é bom lembrar que Marx escreveu o livro 1 de O capital entre1863e 1866, e que buscou ilustrar a lei geral da acumulação capitalista para os 20 anos recentes (i.e., para o período entre 1846 e 1866). Nesse momento, Marx tinha à disposição as estimativas da renda nacional do Reino Unido para os anos de 1812, 1822, 1831, 1841 e 184635 35 Todas essas estimativas foram realizadas por distintos autores e com distintas metodologias. Outras estimativas disponíveis nesse período se resumiam a expressões quantitativas de um conjunto de opiniões gerais (Deane, 1956; 1957). . Além da impossibilidade de extrair desses dados a informação sobre a massa de salários apropriada pelos trabalhadores assalariados, é preciso observar que o período disponível (1812 a 1846) não abarcava o período que Marx desejava analisar (1846 a 1866). No que tange às estimativas elaboradas por Robert Giffen abrangendo os anos de 1865 e 1875, é preciso observar que elas vieram a público pela primeira vez em 1878, onze anos após a publicação do livro 1 de O capital.

Em terceiro lugar, os dados apresentados por Giffen não tinham por objetivo o de inferir um comportamento de longo prazo para a distribuição da riqueza, mas o de descrever a concentração e centralização do capital que acompanhou a intensificação da acumulação no período analisado (1846 a 1866)36 36 Após a análise da acumulação de capital para o período de 1846 a 1866, Marx (2013, p. 725) acrescenta: “a acumulação do capital veio acompanhada de sua concentração e centralização […]”. Em seguida, passa a apresentar os dados que ilustram essa concentração e centralização. . Para tanto, Marx buscou nos relatórios fiscais do Reino Unido dados sobre a concentração fundiária (para o período de 1851 a 1861), a evolução dos impostos sobre herança (1815 a 1859) e a distribuição do lucro industrial tributável por faixa de renda (1863 e 1864). Não se trata de uma escolha arbitrária de dados anedóticos, mas da análise de dados disponíveis à época e suficientes para explicar seu argumento.

O próprio Piketty afirma que a obtenção de dados detalhados sobre a concentração de renda e riqueza dessa época é difícil ainda hoje. Após observar que a parcela da riqueza em mãos dos 10% mais ricos do Reino Unido se elevou de 82,9% para 87,1% entre 1810 e 1879, enquanto para os 1% mais ricos ela variou de 54,9% para 61,1%, o autor afirma: “[…] as fontes britânicas são imperfeitas, sobretudo para o século XIX, mas as ordens de grandeza são bastante claras: a concentração de riqueza era extremamente forte no Reino Unido no século XIX e não manifestava nenhuma tendência de baixa até 1914 – pelo contrário […]”. Isto é, as evidências avaliadas pelo próprio Piketty apontam que a análise de Marx estava correta.

3.5 O comunismo

Por fim, Piketty demonstra sua inquietação com ausência de um detalhamento mais amplo sobre o funcionamento de uma sociedade alternativa ao capitalismo:

[Marx] não se debruçou sobre a espinhosa questão de como uma sociedade em que o capital privado foi abolido reorganizaria os seus sistemas político e econômico – problema bastante complexo, como mostram os dramáticos experimentos totalitários dos regimes que levaram a sério a expropriação

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 17).

Uma descrição mais completa desse “problema complexo” é exposta na seguinte passagem:

A solução sugerida por Karl Marx […] e posta em prática pela União Soviética no século XX, é […] abolir a propriedade privada de todos os meios de produção, tanto das terras como dos imóveis e do capital industrial, financeiro e de negócios […]. O problema, infelizmente para as populações atingidas por essas experimentações totalitárias, é que a propriedade privada e a economia de mercado não têm apenas a função de permitir que os detentores do capital dominem os que trabalham para eles. Essas instituições desempenham também um papel útil para coordenar as ações de milhões de indivíduos, e não é fácil ficar sem elas. Os desastres humanos causados pela planificação centralizada ilustram de maneira clara esse problema

(Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 517-518).

Piketty pretende passar ao leitor três ideias distintas: a) o totalitarismo é uma necessidade da propriedade coletiva dos meios de produção; b) a supressão do mercado leva necessariamente a desastres humanos, pois esse seria o mecanismo insuperável de coordenação econômica; e c) a culpa de todos esses desastres repousa em Marx, por ele não ter indicado como deveria funcionar uma sociedade comunista.

Os dois primeiros argumentos carregam um juízo de valor do autor e não se pautam em comprovações fáticas. Eles buscam vincular a oposição entre totalitarismo e democracia com a oposição entre comunismo e capitalismo. Podemos contestar essa associação feita por Piketty por meio das seguintes observações: primeiro, há exemplos históricos de gestão democrática de propriedade coletiva dos meios de produção que contestam a visão de Piketty como as inúmeras cooperativas de trabalhadores presentes tanto nas economias capitalistas quanto socialistas; segundo, o totalitarismo não é exclusividade das experiências socialistas, como comprovam as ditaduras capitalistas que dominaram quase a totalidade do território latino-americano durante a década de 1970; por fim, a insuperável capacidade de coordenação econômica dos mercados é um fator altamente contestável diante dos desastres humanos diários que sofrem as populações atingidas pelas experiências do livre mercado, como é atestado pelo número de pessoas que morrem de fome diariamente como consequência da incapacidade de acessar o mercado de alimentos.

O terceiro argumento de Piketty apresenta um duplo equívoco: não cabe a Marx qualquer mérito ou demérito de qualquer experiência de planificação econômica, do mesmo modo que não lhe cabia elaborar modelos de funcionamento de sociedades do futuro. A inexistência de um detalhamento sobre a organização do sistema político e econômico comunista não é um equívoco do autor, mas o resultado de sua concepção materialista da história. Inclusive, era exatamente pelo idealismo do excesso de detalhamento que Marx e Engels criticaram os socialistas utópicos que os precederam, os quais construíram, na teoria, novos sistemas sociais. “Esses novos sistemas sociais”, pondera Engels (1988, p. 35)ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. 9. ed. São Paulo: Global, 1988., “nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos fossem, mais tinham que degenerar em puras fantasias”.

Podemos depreender dessa passagem que, de acordo com a perspectiva de Marx e Engels, os fracassos das experiências do socialismo utópico fundamentavam-se no fato de que, ao focar nos modelos idealizados de sociedade, esses pensadores deixavam de lado o principal: buscar compreender, por meio da crítica à sociedade instituída, o processo concreto de construção de um novo mundo. Provavelmente por isso que Marx tenha voltado seus esforços para compreensão crítica do funcionamento do modo de produção capitalista como um meio de contribuir para a construção de uma sociedade comunista.

Conclusão

O presente artigo teve por objetivo avaliar as críticas dirigidas a Karl Marx por Thomas Piketty em O capital no século XXI. Para tanto, apresentamos, de modo sumário, a principal tese contida em seu livro, seguida de uma síntese das principais críticas que recebeu por parte dos autores marxistas. Verificamos, com isso, que sua teoria já recebeu robustas críticas, mas as respostas das afirmações que faz sobre Marx ainda carecem de uma complementação.

Realizamos essa tarefa em um terceiro momento, agrupando suas críticas sobre o pensador alemão em torno de cinco argumentos: 1) a teoria marxiana se pauta na hipótese implícita de crescimento nulo da produtividade no longo prazo; 2) Marx construiu sua teoria para justificar as conclusões políticas apresentadas no Manifesto do Partido Comunista; 3) as constatações empíricas contradizem suas previsões no que tange ao comportamento no longo prazo dos salários reais e da taxa de lucro; 4) Marx não soube utilizar dados estatísticos de forma adequada tanto para estimar a taxa de mais-valor quanto para estudar a tendência da concentração de renda no capitalismo; e 5) o autor não explicou nada sobre o funcionamento de uma sociedade comunista. Podemos resumir a conclusão que alcançamos sobre cada ponto da seguinte forma:

  1. Não é verdade que a teoria marxiana se pauta na hipótese implícita do crescimento nulo da produtividade no longo prazo. Piketty só consegue sugerir isso pois faz uma leitura de Marx a partir de seu próprio modelo.

  2. Não existe nenhuma previsão de um “apocalipse marxista” no Manifesto do Partido Comunista. Para afirmar isso, Piketty distorce uma passagem desse texto no qual Marx e Engels tratam do surgimento e da articulação da classe trabalhadora.

  3. Em primeiro lugar, Marx não fez uma previsão sobre a queda dos salários reais, como afirma Piketty. Em segundo lugar, a previsão sobre a queda da taxa de lucro tem sido constatada por vários trabalhos empíricos.

  4. Com relação à taxa de mais-valor, Piketty não avalia a base estatística analisada por Marx, mas um exemplo de como se calcula essa taxa; além de que o patamar apontado em O capital ser compatível com o que nos diz os dados mais atualizados. No que diz respeito à ilustração estatística da lei geral da acumulação capitalista, Piketty distorce o objetivo da análise de Marx e sugere fontes inadequadas (tanto por não estarem disponíveis na época quanto por não abarcarem o período estudado por Marx).

    5) Marx nunca se propôs a explicar sobre o funcionamento de uma sociedade comunista e nem essa poderia ser sua tarefa, de acordo com uma perspectiva teórica fundada no materialismo histórico.

A conclusão geral a que chegamos é que a teoria proposta por Piketty em seu livro tem significativos problemas e a crítica que ele dirige a Marx é inadequada em todas as suas afirmações. Essa constatação é desconcertante diante do tamanho sucesso de sua obra.

  • 1
    Afinal, “inclui todo tipo de riqueza que, pressupõe-se, pode pertencer a indivíduos (ou a grupos de indivíduos), além de também poder ser transmitida, comprada ou vendida, de modo permanente, em algum mercado” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 52).
  • 2
    É preciso observar também que esse conceito de poupança e investimento para Piketty não encontra paralelo no pensamento econômico. Se capital é qualquer coisa que possa ser vendida e acumulada, a poupança é a parcela da renda da sociedade que vai ser direcionada para a aquisição de qualquer coisa que não será consumida imediatamente.
  • 3
    Infelizmente, Piketty utiliza a mesma notação para representar a relação capital/renda no curto e no longo prazo, o que gera um pouco de confusão. É preciso ressaltar que o ( ) da equação 2 é um conceito distinto do ( ) da equação 3.
  • 4
    Outro interessante exercício nesse sentido foi realizado por Pimentel (2017)PIMENTEL, G. Revisão da literatura crítica ao livro O capital no século XXI, de Thomas Piketty. Monografia (Graduação em Ciências Econômicas)–Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.p. 53..
  • 5
    “Conforme se pode depreender de Husson, ao formalizar a primeira ‘lei’ por em vez de , Piketty retira dela todo conteúdo social e histórico existente nos conflitos entre capital e trabalho presentes nas relações sociais de produção […]” (Marques; Leite, 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Marcel Guedes. Notas críticas sobre O capital no século XXI de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4, p. 684-703, dez. 2016., p. 701).
  • 6
    Além de considerar uma mera tautologia a representação da “primeira lei fundamental do capitalismo” de Piketty, na qual a variável se apresenta como um fator exógeno destituido de seu determinante histórico e político, Varoufakis pondera que, “apesar de se basear em pressupostos neoclássicos, Piketty ignora que [eles] são inaceitáveis por serem incoerentes com a realidade histórica, e que exigiriam axiomas indefensáveis, mas necessários para ‘fechar seu modelo’” (Marques; Leite, 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Marcel Guedes. Notas críticas sobre O capital no século XXI de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4, p. 684-703, dez. 2016., p. 701).
  • 7
    <Trecho suprimido para preservar o anonimato>.
  • 8
    O mesmo princípio pode ser aplicado para sua definição de poupança e de propensão a poupar (S). Poderíamos dizer que, essa poupança seria o equivalente, em Marx, da parcela do lucro que se converte em novo capital. Isso implicaria que a variação do produto anual (g?) deveria conter os elementos materiais do capital constante (tanto fixo quanto circulante) e variável. Além de implicar que a magnitude desse “s” é distinta entre Piketty e Marx, essa abordagem gera significantes implicações para a dinâmica do crescimento. Cf. Shaikh (1991)SHAIKH, A. Wandering around the warranted path: dynamic nonlinear solutions to the Harrodian Knife-Edge. In: NELL, E.; SEMMLER, W. (Org.). Kaldor and mainstream economics: confrontation or convergence. London: Macmillan, 1991..
  • 9
    Devemos observar que é o próprio Piketty que realiza essa constante transição entre pensamentos que utilizam categorias homônimas, mas de conteúdos distintos. Essa prática torna a contestação de suas afirmações deveras complicada: afinal, ao abandonarmos suas definições não estamos respondendo efetivamente aos seus argumentos. Por isso, na seção seguinte, optamos por uma via dupla: tanto mostrando que seus argumentos não procedem se preservamos as categorias marxistas quanto mostrando também que suas críticas não procedem mesmo quando partimos de suas próprias categorias.
  • 10
    Piketty argues that Marx’s r falls because in his model of capitalism there is ‘an infinite accumulation of capital’ and ‘as ever more increasing quantities of capital lead inexorably to a falling rate of profit (i.e. return on capital) and eventually to their own downfall, while growth in net income (g) falls to zero’. Here Piketty imposes a marginal productivity theory of capital accumulation on Marx; abundance of capital leads to its diminishing returns. Actually, Marx rejected this scarcity theory. For Marx, the movement in r is to be found not in infinite accumulation but in the rise in value of the means of production relative to the value of labour power” (Roberts, 2015ROBERTS, Michael. Thomas Piketty and the Search for r. Historical Materialism, v. 23, n. 1, p. 86-105, 2015., p. 99).
  • 11
    Há uma breve passagem na qual Roberts também responde à suposta análise “anedótica” de Marx, afirmando: “[…] well, actually, studies show that the rate of surplus-value in some economies has been close to or equal to 100%” (Roberts, 2015ROBERTS, Michael. Thomas Piketty and the Search for r. Historical Materialism, v. 23, n. 1, p. 86-105, 2015., p. 100).
  • 12
    Isso é evidente na seguinte passagem do penúltimo capítulo: “[…] Marx, que supõe implicitamente um crescimento nulo tanto para a população como para a produtividade […]” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 549). Contudo, na maioria das vezes, ela aparece apenas como a “[…] hipótese de crescimento nulo da produtividade no longo prazo […]” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 33), ou ainda (tacitamente), como ausência de crescimento econômico e de difusão do conhecimento (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., 9, 219).
  • 13
    O leitor atento deverá indagar que a variável de Piketty não é equivalente à taxa de lucro de Marx. Tanto nós quanto Piketty sabemos disso. Contundo, isso não o impede de misturar esses dois conceitos: “a taxa de remuneração do capital [isto é: ] é um conceito central em inúmeras teorias econômicas, sobretudo na análise marxista, com sua tese de redução progressiva da taxa de lucro […]” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 58).
  • 14
    Capital constante consiste na parcela do capital destinada a adquirir os meios de produção necessários para o processo de acumulação (máquinas, matérias-primas e matérias auxiliares etc.). Capital variável representa a parcela do capital dispendida para a contratação da força de trabalho. Cf. Marx (2013, cap. 6)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013..
  • 15
    Se ignorarmos, como faz Piketty, a distinção entre a taxa de lucro de Marx e sua taxa de remuneração do capital.
  • 16
    A taxa de mais-valor também é equivalente ao que se chama de taxa de exploração. É ela que determina a massa de lucro (mais-valor) que será apropriada pela classe capitalista a partir da quantidade de capital dispendido para a contratação de força de trabalho (capital variável).
  • 17
    Talvez seja interessante aclarar o leitor sobre a visão marxiana acerca da composição do capital. Para Marx, a composição do capital pode ser vista tanto sob o aspecto do valor (isto é, a repartição do capital em suas parcelas constante e variável) quanto sob o aspecto material (ou seja, a relação entre a massa dos meios de produção e a quantidade de trabalho que a mesma requer). “[…] Chamo a primeira de composição de valor e a segunda, de composição técnica do capital. Entre ambas existe uma estreita correlação. Para expressá-la, chamo a composição de valor do capital, porquanto é determinada pela composição técnica do capital e reflete suas modificações, de composição orgânica do capital” (Marx, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013., p. 689).
  • 18
    Cf. Marx (2013, caps. 12 e 13)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013..
  • 19
    Isso não significa uma redução absoluta de , mas apenas uma redução em relação a .
  • 20
    Conforme o modelo de Piketty, quando o de longo prazo é superior ao de curto prazo, este último apresenta uma trajetória de crescimento assintótico, isto é, um crescimento contínuo a partir do qual o estado de equilíbrio nunca será perfeitamente alcançado.
  • 21
    Esse exemplo é abordado no capítulo 6 (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 224) e “detalhado” no anexo técnico (Piketty, 2014aPIKETTY, Thomas. Anexo técnico de O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014a., p. 54-55).
  • 22
    Vejamos os cálculos. O valor de 10.000 fusos (incluindo a maquinaria preparatória e a máquina a vapor) é £10.000,00. Marx não indica o preço do edifício da fábrica, mas podemos obtê-lo capitalizando o aluguel anual de £300,00 à taxa de 5% ao ano (adequada aos termos de Piketty), de modo que obtemos £6.000,00. Portanto, a soma do capital fixo seria £16.000,00. Sobre o capital circulante (cujo custo semanal é de £352,47), é razoável supor que o capitalista mantenha reservas monetárias e em mercadorias para manter a fábrica funcionando por 3 meses (totalizando £4.229,60). Estendendo o mesmo prazo para o capital variável (totalizando £624,00 para 3 meses), temos um capital total de £20.853,60. Podemos supor também a existência de reservas monetárias no montante de 10% desse capital a título de fundo de seguro da produção, levando-nos a um montante de £22.938,96. Como o valor novo produzido pelos trabalhadores somam £133,02 por semana (dos quais £52,00 equivalem aos salários adiantados e £81,02 são apropriados como lucro), temos uma renda/produto anual de £6.935,97. Assim, temos . Calculamos esse valor para levando em conta a categoria marxiana de “capital”. É preciso lembrar que, na definição de Piketty, a parcela circulante do capital constante e o capital variável não deveriam ser levados em consideração. Nesses termos, teríamos .
  • 23
    Mais uma vez, ainda deve-se ter em conta a distinção entre taxa de lucro em Marx e taxa de remuneração do capital em Piketty.
  • 24
    Nesse aspecto, cf. Musto (2020)MUSTO, Marcello. New profiles of Marx after the Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA2). Contemporary Sociology, v. 49, n. 5, p. 407-419, 2020. e Heinrich (2016)HEINRICH, Michael. ‘Capital’ after MEGA: discontinuities, interruptions, and new beginnings. Crisis and Critique, v. 3, n. 3, p. 92-138, 2016..
  • 25
    Partindo das tabelas suplementares TS6.1 e TS6.2 (Piketty, 2014aPIKETTY, Thomas. Anexo técnico de O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014a.), é possível verificar que a variação da relação capital/renda (β) é acompanhada por uma variação no sentido contrário, tanto da taxa de rendimento (r) quanto da participação dos lucros na renda (α).
  • 26
    Cf. Marx (2013, cap. 10)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013..
  • 27
    Por exemplo, cf. Maito (2013)MAITO, Esteban Ezequiel. La transitoriedad histórica del capital. Razón y Revolución, Buenos Aires, v. 26, p. 129-159, Oct. 2013.. Vale ressaltar também que na análise empírica deve ser levado em consideração que se trata de uma tendência de queda que deve ser observada ao longo do tempo, e não de um movimento descendente que deve ocorrer inexoravelmente ano após ano.
  • 28
    O próprio Piketty demonstra-se ciente desta distinção quando afirma: “[…] a taxa de remuneração do capital mensura aquilo que ele rende ao longo de um ano, qualquer que seja a forma jurídica da receita (lucros, aluguéis, dividendos, juros, royalties, ganhos de capital etc.), e se expressa como uma porcentagem do capital investido. Trata-se, portanto, de uma noção mais abrangente do que o conceito de ‘taxa de lucro’ e bem mais ampla do que ‘taxa de juros’, ainda que leve ambas em conta” (Piketty, 2014bPIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014b., p. 58).
  • 29
    Como o fundo de amortização e o fundo de seguro da produção.
  • 30
    Na primeira edição de O capital, o primeiro exemplo levou o autor a uma taxa de mais-valor de 85,71%.
  • 31
    “[…] Ele […] apresentou algumas informações sobre um possível aumento da concentração de lucros e de riqueza, mas apenas com base em casos isolados [relativement anecdotique no original em francês]” (Piketty, 2014aPIKETTY, Thomas. Anexo técnico de O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014a., p. 54).
  • 32
    De acordo com essa tese, a acumulação de capital impulsiona os salários para cima; uma elevação dos salários estimula a reprodução acelerada da classe trabalhadora; uma população trabalhadora maior pressiona os salários para baixo, que, por sua vez, gera o duplo efeito de dizimar a população trabalhadora e ampliar a acumulação de capital, determinando o reinício do ciclo econômico (Marx, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013., p. 713).
  • 33
    O exército industrial de reserva consiste em uma parcela da população economicamente ativa que está sempre pronta para participar do processo de produção capitalista. Essa categoria é mais ampla do que a população desempregada, pois deve levar em consideração outros segmentos, como o desemprego oculto pelo trabalho precário.
  • 34
    Além dos dados apresentados no próprio capítulo no qual expõe a lei geral da acumulação capitalista, Marx também faz referência aos exemplos que constam na seção IV de O capital.
  • 35
    Todas essas estimativas foram realizadas por distintos autores e com distintas metodologias. Outras estimativas disponíveis nesse período se resumiam a expressões quantitativas de um conjunto de opiniões gerais (Deane, 1956DEANE, Phyllis. Contemporary estimates of national income in the first half of the nineteenth century. The Economic History Review, v. 8, n. 3, p. 339-354, Apr. 1956.; 1957DEANE, Phyllis. Contemporary estimates of national income in the second half of the nineteenth century. The Economic History Review, v. 9, n. 3, p. 451-461, 1957.).
  • 36
    Após a análise da acumulação de capital para o período de 1846 a 1866, Marx (2013, p. 725)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. acrescenta: “a acumulação do capital veio acompanhada de sua concentração e centralização […]”. Em seguida, passa a apresentar os dados que ilustram essa concentração e centralização.
  • JEL: B14, B22, B41.

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  • DEANE, Phyllis. Contemporary estimates of national income in the second half of the nineteenth century. The Economic History Review, v. 9, n. 3, p. 451-461, 1957.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2020
  • Aceito
    07 Out 2022
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