Open-access O comportamento familiar pode afetar o desempenho escolar e aspirações futuras dos estudantes de raças distintas?

Can family behavior affect school performance and future aspirations of students of different race?

Resumo

Esse artigo investiga em que medida as fontes de desigualdades do desempenho escolar e de expectativas educacionais por raça/cor são resultantes de desvantagens socioeconômicas, da heterogeneidade de estilos parentais ou se advêm de fatores residuais não observáveis. As análises utilizam dados da pesquisa Fundaj que disponibiliza informações relativas à raça/cor, aspirações educacionais futuras e uma avaliação longitudinal do desempenho escolar. A estratégia de identificação utiliza o método de Propensity Score Matching. Os resultados mostram que as disparidades educacionais entre estudantes do 6º ano do ensino fundamental da rede pública do Recife, que se declaram pretos ou de outra raça/cor, persistem em termos de reprovação e expectativa de ingresso ao ensino superior, mesmo após o condicionamento em um amplo controle de observáveis, sugerindo que a fonte dessas disparidades decorre de fatores não observáveis na análise. Apesar das famílias de estudantes pretos se engajarem mais ativamente no acompanhamento escolar de seus filhos do que familiares de estudantes não-pretos, esse maior envolvimento não tem sido suficiente para neutralizar as desigualdades educacionais por raça/cor. Alunos pretos possuem taxas de reprovação maiores do que seus colegas não-pretos e menores expectativas de acesso ao ensino superior em cerca de 5 pontos percentuais, diferenças estatisticamente significantes a 5%.

Palavras-chave Desigualdades raciais; Desempenho escolar; Propensity score matching

Abstract

The study investigates the extent to which the sources of school performance inequalities and educational expectations by race / color are the result of socioeconomic disadvantages, the heterogeneity of parenting styles or whether they result from unobservable residual factors. The analyzes use data from the Fundaj (2013) research that provides information on race, future educational aspirations, and a longitudinal evaluation of the student’s school performance. The identification strategy uses the method of propensity score matching (PSM). The results show that the educational disparities between students of the 6th grade of Recife, who declare themselves to be black or of another ethnic group, persist in terms of failure and expectation of entering higher education, even after conditioning in a broad control of observables, suggesting that the source of these disparities stem from factors not observable in the analysis. Despite the fact that families of black students are more actively involved in the school monitoring of their children than families of non-black students, this greater involvement has not been enough to neutralize educational inequalities by race/color. Black students have higher failure rates than their non-black peers and lower expectations of access to higher education by about 5 percentage points, statistically significant differences at 5%.

Keywords Racial inequalities; School achievement; Propensity score matching

Introdução

No ano de 2013, no estado de Pernambuco, ocorreu uma investigação promovida pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) (2013) intitulada “Acompanhamento Longitudinal do Desempenho Escolar de Alunos da Rede Pública de Ensino Fundamental do Recife”. Os resultados dessa pesquisa revelaram algumas evidências que indicam uma disparidade no desempenho em matemática entre os alunos do 6º ano (5ª série) de escolas públicas no Recife, com base em sua autodeclaração racial. Os alunos que se autodeclararam pretos apresentaram, em média, um desempenho inferior em matemática em 5%, comparados aos estudantes de outras raças/cor, como brancos, pardos, amarelos ou indígenas, com um nível de confiança de 95%. Além disso, os dados obtidos na pesquisa da Fundaj demonstraram consistentemente que as aspirações educacionais dos estudantes autodeclarados pretos em relação à conclusão de níveis mais elevados de escolaridade foram mais desfavoráveis em comparação com os estudantes autodeclarados não pretos1.

No contexto brasileiro, existe uma correlação habitualmente observada entre as características de ser negro, pobre e proveniente de escola pública. Essa constatação reforça a existência de disparidades nos resultados educacionais desses alunos em comparação com aqueles que não se encontram nessas categorias (Osório, 2009). Botelho et al. (2015) conduziram uma análise sobre o desempenho escolar de estudantes brancos, pretos e pardos matriculados no 9º ano de escolas públicas no estado de São Paulo. Os resultados revelaram que a média das notas dos alunos brancos era superior à média das notas dos alunos pretos. Além disso, constatou-se que os estudantes cujos pais demonstravam maior envolvimento no processo educacional obtinham resultados superiores, independentemente de sua raça. Além do impacto positivo da presença familiar no processo educacional, foi observado que os alunos apresentam melhorias no desempenho acadêmico, nas notas, no comportamento e no interesse quando são incentivados pelos professores. No entanto, mesmo entre os alunos pretos e brancos que possuem níveis semelhantes de dedicação familiar e interesse nos estudos, ainda persiste a diferença nas notas obtidas (Botelho et al., 2015).

Estudos têm evidenciado que as disparidades educacionais na infância podem ter repercussões nas desigualdades salariais ao longo dos anos. Card e Krueger (1992) realizaram uma pesquisa que demonstrou que, nas décadas de 1960 e 1970, os homens afro-americanos experimentaram um aumento significativo em direção à igualdade de renda em relação aos homens brancos. Durante esse período, a diferença salarial entre esses dois grupos diminuiu de 40% em 1960 para 25% em 1980. O estudo revelou que cerca de 20% desse estreitamento na lacuna de rendimentos entre negros e brancos entre 1960 e 1980 pode ser explicado pela melhoria na qualidade relativa das escolas frequentadas por jovens negros (Card; Krueger, 1992).

Em seu estudo utilizando dados do National Longitudinal Survey of Youth, Neal e Johnson (1996) constataram que a pontuação obtida no Armed Forces Qualification Test era capaz de explicar completamente a diferença salarial entre mulheres jovens brancas e negras, e uma parte significativa da diferença salarial entre homens jovens brancos e negros. Segundo os autores, a disparidade salarial entre os jovens de hoje é resultado de uma defasagem de habilidades, que pode ser atribuída, pelo menos em parte, a diferenças observáveis no ambiente familiar e escolar das crianças brancas e negras. Com base nesse debate que ressalta a importância da escola e da família na perpetuação das desigualdades educacionais, o objetivo deste estudo é investigar em que medida as fontes das disparidades no desempenho escolar e nas expectativas educacionais, com relação à raça/etnia, são resultado de desvantagens socioeconômicas, da heterogeneidade dos estilos parentais ou de fatores residuais não observáveis.

Para alcançar esse objetivo, são utilizados dados provenientes da pesquisa Fundaj (2013), que fornece informações sobre raça/etnia, desempenho acadêmico e aspirações educacionais futuras. Um aspecto relevante dessa base de dados é que os estudantes incluídos na pesquisa foram submetidos a duas avaliações de matemática, uma no início e outra no final do ano letivo. Essa abordagem longitudinal do desempenho escolar permite o controle de heterogeneidades pré-existentes entre os alunos, o que ajuda a minimizar possíveis vieses decorrentes de variáveis omitidas. A metodologia adotada para investigar as fontes das desigualdades educacionais com base na raça/etnia é o método de Pareamento em Escores de Propensão (Propensity Score Matching – PSM). Diversos algoritmos de pareamento são aplicados, juntamente com o uso do estimador ponderado de probabilidade inversa duplamente robusto (Inverse Probability Weighted Regression Adjustment Estimator – IPWRA). A robustez dos resultados é avaliada por meio de testes de balanceamento e de testes placebo, que visam identificar a presença de variáveis endógenas não observáveis.

Além desta introdução, o artigo está estruturado em mais quatro seções adicionais. A próxima seção oferece uma breve revisão da literatura relevante sobre o tema em questão. A seção 3 descreve a base de dados utilizada e apresenta algumas estatísticas descritivas. A quarta seção descreve a estratégia empírica adotada no estudo. Na seção 5, são apresentados os resultados da análise econométrica, juntamente com os testes de robustez realizados. Por fim, na última seção, são apresentadas as considerações finais do estudo.

1 Revisão da literatura

Existe uma vasta literatura que documenta a existência de desigualdades educacionais com base na raça/etnia, e os estudos geralmente apresentam três perspectivas distintas para explicar as origens dessas disparidades. A primeira perspectiva argumenta que as diferenças raciais no contexto familiar, como o nível de escolaridade, emprego e renda dos pais, desempenham um papel importante nas desigualdades educacionais entre estudantes de diferentes raças (Brooke; Soares, 2008; Brooks-Gunn et al., 2003; Fryer; Levitt, 2006; Kim et al., 2013; Riani et al., 2012). De acordo com Alves et al. (2016), quanto mais elevado o nível socioeconômico das famílias dos estudantes da rede pública do ensino fundamental, maior é a estimativa da média de proficiência dos alunos na Prova Brasil. Além disso, os alunos pardos e pretos apresentam um desempenho inferior em relação aos alunos brancos, sendo que a diferença é particularmente acentuada para os pretos. Também se observa que as alunas apresentam um desempenho inferior em Matemática em comparação aos alunos.

Nos Estados Unidos, a literatura apresenta evidências de que as crianças provenientes de famílias de baixa renda, pertencentes aos grupos raciais negros e hispânicos, de lares onde se fala espanhol e com mães que possuem níveis educacionais baixos apresentam, em média, um desempenho acadêmico inferior em comparação com crianças provenientes de famílias com um ambiente mais favorável (Halle et al., 2009). Spenner et al. (2005) realizaram um estudo que investigou as disparidades em várias dimensões entre brancos e negros em diferentes estágios da vida escolar. Os autores descobriram que grande parte da diferença no desempenho entre brancos e negros surge logo no primeiro semestre da faculdade. Embora variáveis como background familiar, envolvimento dos pais, habilidades inatas do estudante, habilidades adquiridas ao longo da educação pré-universitária e outros fatores possam explicar uma parcela significativa do desempenho do estudante, a maior parte dessa diferença permanece sem explicação. Os autores destacam que intervenções precoces são um mecanismo importante para eliminar essas disparidades raciais em estágios posteriores da vida escolar.

Fryer e Levit (2004) utilizam o conjunto de dados do Early Childhood Longitudinal Study com uma amostra de mais de 20 mil crianças que entram no jardim de infância em 1998 para mostrar que o gap de pontuação entre estudantes negros e brancos desaparece quando os autores controlam por um número pequeno de covariadas. Os autores demonstram que os estudantes negros nos dois primeiros anos de escola perdem espaço quando comparado com os colegas de outras raças e as evidências sugerem que essa diferença pode ser influenciada pela qualidade das escolas.

Uma segunda abordagem enfatiza a importância do estilo de educação parental (parenting), incluindo todo conjunto de atividades que os pais dedicam aos filhos, tais como orientações nas atividades escolares, acompanhamento e suporte emocional de suas crianças (Brooks-Gunn; Markman, 2005). Yeung e Pfeiffer (2009) examinam como o ambiente doméstico influencia as lacunas de desempenho entre crianças negras e brancas em diferentes estágios do desenvolvimento etário. Os autores mostram que as disparidades podem ser explicadas pelas características da família, o contexto socioeconômico da família e pela habilidade cognitiva da mãe, porém, tais variáveis afetam uma proporção cada vez menor à medida que a criança vai avançando na escola. O principal desafio é que a defasagem nas habilidades cognitivas precoces são obstáculos no desenvolvimento cumulativo para crianças negras ao longo do tempo. Para os autores, a família possui grande importância nos anos iniciais para quebrar o hiato intergeracional entre branco e negros.

Phillips et al. (1998) investigam como o estilo parental, a educação e renda dos pais contribuem para o hiato de test scores entre crianças de 5 e 6 anos de idade. Os autores utilizam dados provenientes do Longitudinal Survey of Youth e do Infant Health and Development Program. Para isso, diversos indicadores são levados em consideração, como, por exemplo; escolaridade dos avós, indicadores do ambiente familiar, peso ao nascer das crianças, práticas parentais, entre outros. Os pesquisadores encontram evidências que o ambiente familiar possui significativa influência sobre as habilidades cognitivas.

Em uma pesquisa realizada em escolas de Minas Gerais, Rezende e Candian (2012) concluem que a participação das famílias em atividades escolares do dia a dia, como reuniões de pais e mestres, conselhos escolares, entre outros, contribui para criar um ambiente educacional mais acolhedor para os estudantes. No entanto, eles observam que o envolvimento dos pais por si só não é suficiente para garantir o desempenho escolar dos alunos, sendo que o nível de escolaridade das mães desempenha um papel fundamental nesse processo. Os autores demonstram que existe uma correlação positiva entre o nível de escolaridade das mães e o desempenho acadêmico de seus filhos, mas não identificam uma relação estatisticamente significativa entre o nível de escolaridade dos pais e o desempenho escolar dos estudantes.

Por fim, outros fatores não facilmente mensuráveis, tais como discriminação racial, esforço ou motivação pessoal também podem operar na geração de desigualdades educacionais por raça. Diversos estudos dedicados ao tema das desigualdades salariais atribuem a existência de hiatos por raça/cor às características não observáveis (Anwar et al., 2012; Betrand; Mullainathan, 2004; Cacciamali et al., 2009; Carneiro et al., 2003; Goldin; Rouse, 2000; Hirata, 2014; List, 2004). O estudo de Charles e Guryan (2008) revela que um quarto do hiato racial entre negros e brancos é devido ao preconceito. Os autores identificam que os salários dos negros variam negativamente com o preconceito, trazendo consequência não triviais para o bem-estar dos negros. Há ainda uma literatura crescente demonstrando que diferenças raciais/étnicas entre professores e alunos podem ser um dos mecanismos de transmissão de desigualdades educacionais por meio de visões tendenciosas, informações limitadas ou crenças incorretas (Anderson; Fryer; Holt, 2006; Carvalho, 2005; Hart, 2020; Hoxby; Turner, 2013; Merolla; Jackson, 2019)

2 Dados

O presente artigo utiliza dados proveniente de uma pesquisa realizada pela Fundaj com uma amostra representativa de alunos do 6º ano de escolas públicas (municipais e estaduais) do Ensino Fundamental (EF) da cidade do Recife (PE). Intitulada “Acompanhamento Longitudinal do Desempenho Escolar de Alunos da Rede Pública de Ensino Fundamental do Recife”, a amostra2 dessa pesquisa é composta por 4.191 alunos, 3.670 pais ou responsáveis, 120 diretores e 131 professores de 120 escolas espacialmente distribuídas pelas 18 microrregiões da cidade do Recife (Fundaj, 2013)3. Após a exclusão de observações com informações inadequadas ou missing, a amostra final utilizada nas estimações desse estudo é constituída por 3.616 alunos. A Figura 1 mostra a distribuição espacial das escolas selecionadas pela Fundaj e sugere uma dispersão geográfica das escolas participantes da pesquisa.

Figura 1
Escolas selecionadas pela Fundaj

A referida pesquisa avaliou o desempenho do aluno a partir de duas provas de matemática, elaboradas pela Fundaj e aplicadas nos meses de março e novembro, o que corresponde aproximadamente ao início e final do ano letivo de 2013, respectivamente. Para obter dados relevantes, foram aplicados questionários aos estudantes, seus pais ou responsáveis, professores e diretores das escolas. Esses questionários coletaram uma variedade de informações sobre as escolas, sua interação com a comunidade, os hábitos familiares e individuais dos estudantes, bem como aspectos do comportamento educacional de cada aluno.

A Tabela 1 apresenta as estatísticas descritivas dos alunos pretos e não-pretos para as variáveis incluídas nos modelos estimados neste artigo, as quais incluem características individuais e familiares, esforço do aluno, estilo parental (parenting) e características da escola. A distribuição racial dos estudantes pesquisados, em termos de autodeclaração, dá-se seguinte forma: 18,77% brancos, 12,1% pretos, 61,88% pardos, 1,76% amarelos, 1,76% indígenas e 3,7% não declararam sua raça ou cor. As variáveis dependentes selecionadas em nossas análises para desempenho acadêmico são: as notas de Matemática ao final do ano letivo e a incidência de reprovação. Para análise das desigualdades raciais em termos de aspirações educacionais, estão sendo utilizadas duas variáveis dependentes: a primeira é a percepção do aluno a respeito de suas chances de concluir o Ensino Médio e a segunda a respeito de suas chances de ingresso ao Ensino Superior.

Tabela 1
Estatísticas descritivas de estudantes pretos e não pretos

A comparação entre os grupos revela algumas diferenças estatisticamente significantes entre estudantes pretos e não-pretos que merecem comentários. De acordo com os dados da Tabela 1, estudantes que se declaram pretos têm menor autoestima em termos de sua aparência física, relatam maior incidência de bullying, porém percebem-se mais populares. Além disso, têm pais relativamente menos escolarizados e mais divorciados ou separados. Resultados semelhantes foram igualmente documentados por Menezes-Fiho (2007), Arias et al. (2004), Collins e Margo (2006) e Neal (2006), os quais argumentam que as defasagens educacionais por raça se devem, em parte, ao histórico socioeconômico das famílias negras, que tendem a ser mais pobres e menos escolarizadas.

Em relação às variáveis de acompanhamento familiar, os dados da Tabela 1 mostram que os pais ou responsáveis por alunos pretos costumam ser mais atuantes do que pais de alunos não-pretos, possivelmente esse maior engajamento representa uma tentativa de reparação por parte desses tutores em relação às defasagens educacionais de seus filhos. Pais de alunos pretos participam com maior frequência do conselho escolar e ajudam mais os seus filhos com a lição de casa. Essas evidências também são validadas pelos dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) para todo o país. Usando microdados da Prova Brasil de 2013, encontramos que os estudantes do 5º ano do EF que se autodeclaram pretos têm pais relativamente mais envolvidos na rotina escolar dos seus filhos: os percentuais de pais de alunos pretos que vão sempre às reuniões, que ajudam com a lição e que conversam com seus filhos sobre a escola são de 63%, 96% e 85%, respectivamente; enquanto para os pais de colegas não-pretos são de 58%, 95% e 83%. Diferenças com significância estatística de pelo menos 1%.

Ainda em relação à Tabela 1, os dados revelam algumas evidências iniciais das desigualdades educacionais por raça/cor em termos de reprovação, conhecimento acumulado na disciplina de Matemática (nota inicial)4 e expectativa quanto ao ingresso na faculdade. Observam-se diferenças estatisticamente significantes entre estudantes pretos e não pretos, as quais são sistematicamente mais desvantajosas para o primeiro grupo. Nesse contexto, cabe compreender de que forma a etnia ou raça/cor de determinado aluno estaria impactando seu desempenho escolar. Não faz sentido que a diferença de desempenho educacional seja decorrente do fato de um aluno ter determinada cor de pele ou etnia, ou seja, que a capacidade cognitiva de um aluno esteja baseada em sua raça. Mas o fato de pertencer a uma minoria racial5 e conviver em um contexto de discriminação, esse sim, pode impactar diretamente em seu desempenho escolar e perspectivas futuras.

3 Estratégia empírica

Suponha uma equação genérica para estimação do efeito da raça sobre algum outcome educacional de interesse do estudante i numa escola S, Yi,s:

Y i , s = α + β R i , s + Σ k = 1 K ϕ k A i , s k + Σ l = 1 L γ l P i , s l + Σ m = 1 M ψ m E i , s m + θ i , s ( w ) + ε i , s θ i , s ( w ) = Σ n = 1 N λ n w i , s n (1)

Em que Ri é uma variável dummy que assume o valor 1 quando o estudante se declara de cor preta e 0 quando se percebe de outra raça ou cor, incluindo branca, parda, amarela e indígena. O componente θi(w) introduz a heterogeneidade exógena que captura as diferenças observáveis entre os indivíduos. Exemplos seriam o background familiar e algumas características individuais do estudante, tais como sexo, idade e outros aspectos relativos à sua autoestima6. O vetor Ai é composto por variáveis que capturam o grau de dedicação escolar do aluno nas atividades escolares, e o vetor Pi consiste de variáveis indicativas do estilo parental ou parenting, especificamente no que tange ao grau de acompanhamento escolar desses pais ou responsáveis. No vetor Ei se encontram as variáveis que buscam capturar a qualidade da escola, o qual é composto pela nota média da escola na prova aplicada ao final do ano e por uma dummy igual a 1 quando o professor do aluno i tem licenciatura em matemática. A descrição dessas variáveis se encontra na Tabela 1 apresentada anteriormente.

O coeficiente β captura o efeito da raça sobre algum resultado educacional e será estimado por pareamento em escores de propensão. No caso aqui investigado, o “tratamento” será a raça/cor do aluno, o grupo de tratados (R = 1) consiste de indivíduos de cor preta e o grupo de controle (R = 0) de estudantes de outra raça ou cor. O estimador PSM fornece o efeito médio de um tratamento sobre uma população tratada (Average Treatment Effect on the Treated – ATT) e pode ser definido como:

β A T T = E β i R = 1 , p X i = E Y i ( 1 ) Y i ( 0 ) R = 1 , p X i (2)

Onde p(x) é o escore de propensão, usualmente estimado por modelos logit, o qual denota a probabilidade de ser tratado, Pr(R = 1|X), condicional ao vetor X = (A, P, E, w) que consiste das variáveis de esforço do aluno, parenting e demais observáveis. O termo Yi(1) é o outcome do aluno de cor preta e Yi(0) é o outcome potencial desse mesmo aluno caso ele fosse de outro segmento étnico-racial. Como não é possível observar ao mesmo tempo Yi(1) e Yi(0), já que o indivíduo se declara com uma única raça ou cor, o PSM busca construir um grupo de controle (não pretos) semelhante ao grupo de tratamento (pretos) em termos de determinadas características observáveis do vetor X.

A estimação de βATT por PSM exige que dois pressupostos fundamentais sejam atendidos. O primeiro deles é a condição de ignorabilidade ou não confundimento, a qual requer que, ao se controlar por um vetor de variáveis observáveis X, o resultado potencial na ausência do tratamento Y(0) seja ortogonal a R, ou seja, o tratamento não é capaz de mudar os valores Y. O segundo pressuposto, o da sobreposição, demanda que as informações disponíveis no vetor X para cada indivíduo tratado encontrem correspondência no grupo de controle. Para construir o contrafactual dos indivíduos tratados, diversos algoritmos de pareamento serão testados7, entre eles o de vizinho mais próximo (com e sem reposição), Kernel, IPW e IPWRA.

4 Resultados

Os dados anteriormente apresentados demonstram que há diferenças de média por estilo parental e background familiar (escolaridade pais, casado) entre estudantes pretos e não pretos (Tabela 1). Essas estruturas sociais, por sua vez, podem estar contribuindo para as desigualdades educacionais por raça/cor. Com o intuito de identificar as fontes dessas desigualdades, estimativas de PSM são operacionalizadas. A estratégia é acrescentar de forma gradual as variáveis de controle para identificar o papel de cada estrutura social testada (atributos individuais do estudante, background familiar e acompanhamento familiar) e checar se as disparidades escolares ainda persistem.

A Tabela 2 traz esses resultados tanto para os métodos de PSM-Kernel e IPWRA, quanto para as estimativas ordinary least square (OLS). Os demais algoritmos de pareamento são reportados no Apêndice do artigo, mas as estimativas não diferem substancialmente entre eles (Tabela A1). Três especificações distintas foram testadas (coluna 1 a 3). A especificação 1, com menor conjunto de variáveis de controle, faz o emparelhamento dos alunos pretos e não pretos em termos de suas características individuais (sexo, idade, autoestima etc.), do seu grau de dedicação escolar (tarefas, frequência de estudo e nota inicial) e das características da escola (nota média da escola e proporção de professores licenciados em Matemática). Esse exercício demonstra que, mesmo tornando os estudantes comparáveis nesses atributos observáveis, as desigualdades educacionais persistem desfavoráveis aos estudantes pretos, em termos de reprovação e expectativa de ingresso ao ensino superior. Em seguida, acrescenta-se à especificação 2 as características de pais ou responsáveis e, embora os dois grupos se tornem similares em um conjunto mais amplo de variáveis, as diferenças educacionais não desaparecem. Por fim, na especificação mais completa (coluna 3), as variáveis de acompanhamento familiar são incluídas, mas ainda assim as desigualdades persistem, ou seja, mesmo que os alunos pretos e não-pretos venham de backgrounds familiares semelhantes, com estilos parentais equivalentes, os estudantes pretos continuam a apresentar maior reprovação e baixa expectativa de ingresso ao ensino superior, quando comparados aos alunos não-pretos. Em média, estudantes que se autodeclaram pretos possuem taxas de reprovação maiores do que seus colegas não-pretos em aproximadamente 5 pontos percentuais (p.p.), significante a 5% (coluna 3). No que diz respeito ao ingresso ao ensino superior, os educandos pretos possuem menores expectativas de acesso do que seus pares de outra raça/cor em cerca de 4 p.p, com significância estatística de 5%.

Cabe destacar que as estimativas são robustas à inclusão de variáveis adicionais, tendo em vista que a magnitude dos coeficientes é relativamente estável entre as três especificações adotadas. As estimativas de OLS embora se aproximem bastante daquelas obtidas via PSM, em geral tendem a apresentar coeficientes menores. Por fim, verifica-se que, em qualquer das especificações adotadas, não há diferença estatisticamente significante entre os estudantes pretos e não pretos para a nota de matemática e o desejo de concluir o Ensino Médio.

Tabela 2
Efeito médio de tratamento entre grupos de alunos pretos e não pretos

As evidências apresentadas nesse estudo revelam que, apesar das famílias de estudantes pretos se engajarem mais ativamente no acompanhamento escolar de seus filhos do que familiares de estudantes não-pretos, esse maior envolvimento não tem sido suficiente para neutralizar as desigualdades educacionais por raça/cor. De fato, os resultados mostram que as disparidades educacionais raciais entre os estudantes de 6º ano de EF na cidade do Recife, não desaparecerem mesmo após o controle de características da escola, do indivíduo e de sua família, logo, estão sendo dirigidas por outros aspectos não observados na nossa análise. Nessa linha de argumentação, diversos estudos também encontram que as desigualdades educacionais por raça decorrem de fatores não facilmente observáveis ou mensuráveis, possivelmente decorrentes de preconceitos e discriminação institucional.

Carvalho (2005), em pesquisa junto às turmas de 1ª a 4ª séries de uma escola pública da cidade de São Paulo, conclui que o fato de a desigualdade de desempenho escolar entre brancos e negros ser maior quando se usa a classificação das professoras em lugar da auto-classificação do aluno, decorre tanto de as professoras clarearem crianças de melhor desempenho quanto de avaliarem com maior rigor crianças que se percebem como negras. Usando dado do Saeb, Soares e Alves (2003) mostram que, mesmo após o controle socioeconômico, persistem diferenças de desempenho escolar entre os alunos por raça/cor. A diferença entre alunos brancos e pardos é menor e sofre menos impacto dos fatores considerados, comparativamente à diferença entre brancos e pretos que é bem maior. Os autores argumentam que a identificação das origens de tais disparidades se deve a fatores não observáveis, não medidos no estudo, e levantam a hipótese de que os discentes pretos provavelmente não usufruem das práticas escolares da mesma forma que seus pares brancos, por apresentarem defasagens iniciais decorrentes de discriminação.

4.1 Qualidade do matching e testes de placebo

A seguir, apresentamos a qualidade dos modelos estimados a partir da hipótese de suporte comum e da qualidade do matching. A primeira é verificada por meio de análise gráfica, enquanto a qualidade é analisada com base nas distribuições das covariadas entre os grupos de tratamento e controle. A boa aderência do pareamento pode ser notada ao observar a distribuição do escore de propensão8 (Figura 2) após o pareamento para os outcomes escolares. A Figura 3 apresenta a distribuição do escore de propensão para as variáveis relacionada às aspirações educacionais futuras. Os resultados para o método de PSM-Kernel com a especificação mais completa (coluna 3) da Tabela A1, ou seja, a especificação com o maior conjunto de variáveis de controle, são apresentados nas Figuras 2 e 3. Esses resultados foram obtidos utilizando o algoritmo do vizinho mais próximo sem reposição e estimados por meio do modelo logit.

Figura 2
Densidade de Kernel do escore de propensão após pareamento dos estudantes para os outcomes escolares
Figura 3
Densidade de Kernel do escore de propensão após pareamento dos estudantes para as aspirações educacionais

Além de checar a distribuição dos scores de propensão, é importante fazer análise das condições de balanceamento. A Tabela 3 mostra as médias das variáveis nos grupos de tratamento e controle. Após o pareamento, para todas as covariadas não foi possível rejeitar a hipótese nula de igualdade de médias entre grupos e, portanto, tem-se um pareamento com um bom balanceamento nas variáveis observáveis.

Tabela 3
Diferença de médias entre os tratados e controle antes e depois do pareamento

Um dos requisitos necessários para o PSM é a hipótese ignorabilidade (conditional independence assumption9), ou seja, o vetor de variáveis observáveis contém todas as informações sobre o resultado potencial na ausência do tratamento. O efeito placebo é utilizado para testar esta suposição. Para isso, selecionamos todas as variáveis usadas na estimação do propensity score, porém com uma nova variável dependente que assumimos ser ortogonal ao tratamento. Caso exista alguma variável omitida correlacionada com o tratamento, deve-se esperar que o coeficiente estimado da raça do estudante seja estatisticamente diferente de zero, caso contrário a hipótese de ignorabilidade é assegurada.

Testamos dois modelos para estimar o efeito placebo. No primeiro modelo utilizamos o tipo de Instituição de Ensino Superior (IES) que o professor estudou (dummy igual a 1 se estudou em IES pública), uma vez que esta variável é independente à raça do estudante. O segundo modelo utiliza a idade do diretor da unidade escolar como variável dependente. A Tabela 4 revela os resultados das regressões placebo. Note que não foi possível rejeitar a hipótese nula de que as médias entre alunos pretos e não-pretos são iguais, sugerindo que não restam variáveis omitidas que estejam relacionadas com o tratamento.

Tabela 4
Efeito placebo – PSM

5 Considerações finais

Esse estudo investiga em que medida as fontes de desigualdades do desempenho escolar e de expectativas educacionais por raça/cor são resultantes de desvantagens socioeconômicas, da heterogeneidade de estilos parentais ou se advêm de fatores residuais não observáveis. As análises utilizam dados da pesquisa Fundaj (2013), junto a uma amostra de estudantes do 6º ano do EF da rede pública do Recife, a qual disponibiliza informações relativas a raça/cor, aspirações educacionais futuras e uma avaliação longitudinal do desempenho escolar do aluno que fornece às nossas especificações um excelente controle para diferenças individuais pré-existentes.

Estimativas do Propensity Score Matching e do estimador IPWRA demonstram que quando os grupos de tratamento (estudantes que se declaram pretos) e de controle (alunos que se percebem de outra raça ou cor) são emparelhados condicionando-se a um amplo conjunto de controles – incluindo variáveis do background familiar, qualidade da escola, esforço individual e estilo parental – as desigualdades educacionais por raça ainda persistem desfavoráveis aos estudantes pretos. Em média, alunos que se autodeclaram pretos possuem taxas de reprovação maiores do que seus colegas não-pretos em aproximadamente 5 p.p., e menores expectativas de acesso ao ensino superior do que seus pares de outra raça/cor em cerca de 4 p.p, diferenças estatisticamente significantes a 5%.

As evidências aqui apresentadas revelam que, apesar das famílias de estudantes pretos se engajarem mais ativamente no acompanhamento escolar de seus filhos do que familiares de estudantes não-pretos, esse maior envolvimento não tem sido suficiente para neutralizar as desigualdades educacionais por raça/cor. Os resultados obtidos sugerem que as fontes dessas desigualdades não decorrem exclusivamente de eventuais diferenças individuais, de background familiar, da heterogeneidade de estilos parentais ou da qualidade da escola. Mesmo tornando grupos de tratamento e controle equiparáveis em termos dessas estruturas, as disparidades escolares entre pretos e não-pretos permanecem e, portanto, estão sendo dirigidas por outros aspectos não observados na nossa análise, tais como discriminação, visões tendenciosas, informações limitadas ou crenças incorretas. Essa conclusão nos leva a refletir sobre a importância da implementação de políticas públicas afirmativas, voltadas para redução das defasagens educacionais por raça, ainda na educação básica.

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    De acordo com a classificação do IBGE, a população negra no Brasil compreende as populações de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas. Nesse artigo o foco das análises será entre os educandos que se autodeclaram de raça/cor preta e os que se declaram de outra raça/cor. No Brasil, há um importante debate sobre o colorismo e a miscigenação em que muitos dos pardos não se sentem negros e não são tão afetados negativamente como os pretos (Gonzales, 1983; Munanga, 2019; Sodré, 1999).
  • 2
    O desenho da referida pesquisa é de uma amostra estratificada em três estratos: nº de matrículas da unidade escolar no 6º ano do ensino fundamental, nota média da escola na Prova Brasil e Regiões Político-Administrativas da cidade do Recife. Para construção dos estratos amostrais, foram utilizados algoritmos iterativos propostos por Lavallée e Hidiroglou (1988). O universo de referência para a construção da amostra provém das bases de dados do Censo Escolar de 2006 (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006), juntamente com as notas de Matemática oriunda da Prova Brasil de 2005 (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2005). A população-alvo da pesquisa compreendeu 28.983 estudantes do 6º ano matriculados em 148 escolas da rede pública de ensino localizadas em seis regiões políticos-administrativas da cidade do Recife. Do universo de escolas avaliadas foram excluídas escolas com menos de dez participantes no 6º ano, as escolas rurais e escolas destinadas ao atendimento exclusivo de estudantes de comunidades indígenas. Além disso, foram excluídas as escolas com informações incompletas necessárias para construção dos estratos amostrais. Disponível em: https://www.gov.br/fundaj/pt-br/destaques/observa-fundaj-itens/publicacoes-e-notas-tecnicas/banco-de-dados-da-dipes-1/acompanhamento-longitudinal-do-desempenho-escolar-de-alunos-da-rede-publica-de-ensino-fundamental-do-recife-2013. Acesso em: 6 out. 2023.
  • 3
    Cada Região Político-Administrativa da cidade do Recife é dividida em três microrregiões visando à definição das intervenções municipais em nível local e articulação com a população e composta por um ou mais dos 94 bairros estabelecidos pelo Decreto Municipal nº 14.452, de 26 de outubro de 1988, para levantamento de informações para o IBGE e para o Sistema de Informações e Planejamento do Recife. As 18 microrregiões correspondem à divisão das regiões político-administrativas, que foi idealizada em 1995 pela Secretaria de Políticas Sociais, para organizar as reuniões do Orçamento Participativo inicialmente limitadas às associações e aos seus representantes (Recife, 2005).
  • 4
    A nota do estudante na prova de Matemática no início do ano letivo pode ser interpretada como o seu conhecimento acumulado nessa disciplina antes de ingressar no 6º ano do ensino fundamental. A prova inicial foi aplicada em março, portanto, antes de os alunos serem expostos à maior parte do conteúdo do 6º ano do EF.
  • 5
    Aqui o termo “minoria” está sendo utilizado para designar indivíduos susceptíveis a serem discriminados racialmente, não havendo necessariamente conexão com o tamanho populacional do grupo em questão.
  • 6
    Essas características incluem a percepção do aluno sobre sua aparência física, popularidade e personalidade e o relato de já ter sofrido bullying. O estudo de Oliveira et al. (2018) utiliza os dados da pesquisa da Fundação Joaquim Nabuco realizada em 2013 para identificar o impacto do bullying no desempenho escolar dos estudantes. Os autores aplicam o método de propensity score matching e encontram evidências de que o bullying afeta negativamente o desempenho dos estudantes. As evidências da pesquisa sugerem que as habilidades socioemocionais podem ajudar os jovens a enfrentar o bullying e suas consequências. Dessa forma, para construção do modelo empírico, é levado em consideração como variável de controle o fato de o estudante ter a percepção de ter sofrido bullying ou não.
  • 7
    O método de PSM emparelha os indivíduos com menor valor de p^Xjp^Xi. Assim, ao se identificar os M pares mais próximos, é possível calcular o análogo amostral do indivíduo i caso ele não fosse tratado, como: Y^l(1)=Yi e Y^l(0)=1MΣjYj.
  • 8
    A distribuição do score de propensão é criada a partir do método do vizinho mais próximo com reposição.
  • 9
    Yi(1),Yi(0)TiXi é também conhecida como seleção nas observáveis.
  • JEL: I24, C21.

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Apêndice

Tabela A1
Efeito médio de tratamento entre grupos de alunos pretos e não pretos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2022
  • Aceito
    24 Ago 2023
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