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Economia, complexidade e dialética

Doutorando em Economia do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp). Bolsista da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Campinas, SP, Brasil. E-mail: gustavoaggio@hotmail.com

Esta é uma resenha do mais recente livro do professor Eleutério Prado, Economia, complexidade e dialética, um conjunto bem articulado de cinco ensaios que segundo o autor, na sua introdução, "[...] pretende ser uma contribuição adicional ao estudo das bases filosóficas da ciência da mercadoria, da produção de mercadoria, da circulação de mercadoria" (Prado, 2009, p. 11). O leitor que percorrer o livro todo, ou mesmo aquele que focar em um ou outro ensaio em particular, confirmará que o autor cumpre seu objetivo, o que coloca esta obra, na minha opinião, em pé de igualdade com Economia como Ciência.11) Cf. Prado (1991). Livro originado na sua tese de livre-docência agraciada com o prêmio Haralambos Simeonidis. ( Eu gostaria, porém, de enfatizar um aspecto mais específico do livro, a saber, o seu caráter como base metodológica para novas construções teóricas em economia. Para isto, peço licença para realizar antes uma breve digressão sobre o tema da complexidade na ciência e na economia como ciência.

Em um conjunto amplo de áreas do conhecimento ocorreu e ainda vem ocorrendo um avanço e um convencimento crescente, por parte de seus próprios participantes, da necessidade de se considerar os objetos de estudo como partes de, ou mesmo como, sistemas complexos. Enquanto o enfoque sistêmico elimina a hipótese do entendimento reducionista e isolado dos objetos ou elementos, a característica de complexidade nos alerta para o fato de que estas partes não isoladas se relacionam e são restringidas pelas demais partes, assim como pelo todo sistêmico, transformando-o assim como as suas próprias relações e gerando, então, processos de retro-alimentação, expansão e contração que não podem ser reduzidos a expressões e funções lineares bem definidas - ainda que dentro do sistema ocorram regularidades, organização, estruturas e tendências que podem ser empiricamente observadas.

Concomitantemente a esta "auto-reavaliação" da ciência, temos o desenvolvimento de novas técnicas e teorias matemáticas, particularmente relacionadas aos resultados que surgem com o estabelecimento da ciência da computação, mas também relacionados à própria filosofia da matemática como, por exemplo, a consideração do teorema da incompletude de Gödel ou sobre a possibilidade de incomputabilidades. As novas técnicas e teorias, unidas ao novo entendimento científico, ainda em forma dispersa, ou seja, não unificadas dentro de uma metodologia e de heurísticas bem definidas, têm permitido novos entendimentos que não seriam possíveis dentro de um enfoque teórico reducionista.

A influência deste fenômeno do meio científico na Economia tem sido ampla, como pode ser medido pelas mais de 1500 páginas do Complexity in Economics, um compêndio não exaustivo de artigos editado por Barkley Rosser em 2004.22) Cf. Rosser (2004). ( Há, porém, um conjunto de críticas ou receios a essa nova forma de fazer ciência em economia. Em um primeiro plano, temos a ala conservadora na economia que insiste no uso exclusivo do método reducionista de pesquisa no qual o equilíbrio micro é quase que automaticamente ampliado para a estrutura macroeconômica. Temos, ainda, de outro lado, a crítica dos economistas que, talvez por prudência, assumem uma postura também conservadora frente à incorporação de métodos já difundidos em outras ciências, principalmente daquelas conhecidas como duras ou naturais. Certamente a compreensão crítica que o livro oferece possibilitará ao leitor repensar a legitimidade destas duas argumentações.

Assim, se a prudência se afasta do conservadorismo e nos aproxima do rigor,33) Rigor aqui entendido com relação tanto à atenção aos limites e capacidades da metodologia utilizada quanto à relevância da análise ou do construto teórico. ( nós economistas teremos muito a ganhar com a reflexão sobre o tema. Nosso primeiro ponto para essa transição vem da observação do que dizem autores como Duncan Foley, Samuel Bowles, Axel Leijonhufvud e David Colander (apenas para citar aqueles de reconhecida erudição sobre a história do pensamento econômico) sobre as raízes de uma análise sistêmica caracterizada por elevada complexidade, por vezes abortada pela impossibilidade de tratamento formal, em autores como Adam Smith, Thomas Malthus, David Ricardo, Karl Marx, Alfred Marshall, J. M. Keynes e Friedrich A. Hayek.44) A ausência de formalização matemática não implica que as construções teóricas destes autores estejam comprometidas. Certamente a formalização matemática permitiu a generalização de um conjunto grande de ideias, mas implicou, por vezes, elevado reducionismo das teorias originais. É muito interessante, por exemplo, a especulação que Colander faz em sua comparação entre os métodos de Walras e Marshall. Segundo Colander, Marshall evitava o uso excessivo de formalização matemática em seu trabalho, ao contrário de Walras, justamente porque tinha melhor domínio da matemática do que este e compreendera que o instrumental até então disponível era insuficiente para tratar satisfatoriamente aspectos mais complexos da economia (Colander, 1995). Uma das propostas da escola pós-walrasiana, da qual Colander é um dos expoentes, é recuperar, através das novas metodologias disponíveis, vários pontos da teoria de Marshall. ( Um segundo aspecto é a observação do impacto da metáfora do funcionamento da economia capitalista em autores das ciências duras. Uma consideração sobre este impacto aparece no já clássico trabalho de Foley (2003, p. 20), mas também pode ser diretamente verificada em Nicolis e Prigogini (1977) na física ou em Mayr (2004) na biologia, (Nicolis; Prigogini, 1977 e Mayr, 2004) sem contar a contribuição dada pelos trabalhos de Herbert Simon.

Como um dos insights mais interessantes para a teoria das instituições em economia, Foley (2003, p. 13) nos informa que estruturas auto-organizadas,55) Podemos definir sinteticamente estruturas auto-organizadas como aquelas que existem e se reproduzem - mas não necessariamente se perpetuam - dadas, ao menos em parte, a existência e as relações entre as partes sistêmicas, inclusive influindo sobre estas. ( como tipos específicos de instituições, são características de sistemas que não são nem localmente estáveis nem localmente instáveis. Um exemplo de sistema localmente estável é o modelo de equilíbrio geral do tipo Arrow-Debreu, que pode ser globalmente instável ou estável. Já um exemplo de sistema localmente instável, mas globalmente estável, é o de uma câmara de ar que possui volume constante a pressão e temperatura constantes, mas que apresenta grande movimentação interna das partículas.66) Nesse caso o sistema apresenta máxima entropia. Neste trabalho Foley observa que a estrutura de uma economia capitalista não pode ser caracterizada por máxima entropia. Uma formalização de um modelo de trocas com entropia máxima pode ser observada em Foley (1994, p. 321-345). ( Foley quer nos dizer que a estrutura característica resultante da interação de agentes econômicos é de um tipo que se localiza entre os dois extremos representados por estes dois exemplos. Este tipo de instituição econômica pode ser entendido como um fenômeno emergente dentro de um sistema complexo. Como então teorizar e entender um fenômeno desta natureza na ciência e, principalmente, na economia?

No primeiro ensaio de Economia, Complexidade e Dialética, intitulado Três Concepções de Complexidade, Eleutério Prado define e evidencia inicialmente duas concepções antagônicas de complexidade e, concomitantemente, as suas particulares definições de propriedade emergente. A primeira é a concepção dedutivista, donde florescem os chamados modelos baseados em agentes. A segunda é a concepção "saltacionista", onde a propriedade emergente é um fenômeno realmente novo que, por isso mesmo, não pode ser simplesmente deduzido das partes sistêmicas que existiam originalmente. Se as duas concepções são excludentes, pode-se escolher entre uma delas ou então se fazer a pergunta da qual o autor não se esquiva: "Mas, e se ambas estiverem erradas?" (Prado, 2009, p. 31). Desse reconhecimento vem a sugestão de uma terceira concepção denominada estrutural. Nesta é considerado o fato que as partes constituintes, ou os elementos do sistema, possuem nexos externos e internos, sendo a propriedade emergente manifestação aparente da estrutura estabelecida por estes nexos. O ensaio desemboca em uma apreciação do realismo crítico visto ali como campo preocupado com a investigação também dos nexos internos dos elementos do sistema.

O realismo crítico retorna como tema no segundo ensaio, Dialética e Realismo Crítico. Neste, o autor contrapõe o realismo crítico de Roy Bhaskar à dialética hegeliana e marxiana, evidenciando os limites de aproximação entre as duas correntes. Um fato que merece destaque é que este capítulo configura grande oportunidade para economistas que são influenciados pelo trabalho de Tony Lawson de estabelecerem bases de entendimento sobre o trabalho original de Bhaskar, além de ser um grande esforço de realizar a comparação de duas escolas de pensamento reconhecidamente polêmicas. Embora o livro todo seja caracterizado por uma escrita vigorosa, o leitor certamente encontrará alguma resistência no avançar da leitura. Nestes aspectos, em estilo, a escrita lembra muito os trabalhos de Maria da Conceição Tavares, nos quais cada parágrafo contém uma tese nova, muito bem explicada e que deve ser de alguma forma rigorosamente apreendida, coletada e posicionada para que se chegue junto do autor às conclusões. Este ensaio o é assim em especial.

O terceiro ensaio, Abstração Mercantil e Teoria Neoclássica, configura-se como um verdadeiro teste metodológico para conferir se a teoria neoclássica pode ou não ser definida como uma teoria vulgar, na peculiar terminologia de Marx. O caminho da gênese da teoria neoclássica é percorrido com ênfase na questão e na crítica da concepção do conceito de utilidade e na solução que esta teoria apresentou para a troca, a saber como resultante da força de vontade de indivíduos independentes maximizando aquela variável obscura. A partir da leitura deste ensaio, acredito, o leitor terá em mente uma exposição rigorosa sobre o conceito de economia vulgar. Seria interessante verificar quais outras escolas de pensamento também se encaixam neste conceito.

Os dois ensaios finais, Dialética e evolucionismo e Da ordem natural à ordem moral, focam criticamente em diferentes aspectos da teoria de Hayek. No primeiro examina-se a teoria evolucionista deste autor como aquela que evidencia resultados de um processo cego (ou parcialmente cego). O evolucionismo econômico e social assim concebido serviria como argumento para Hayek assumir a premissa conservadora segundo a qual uma tentativa de transformação do sistema via racionalização seria infrutífera e desaconselhada. Em contraposição, mostra-se que a dialética se propõe intimamente relacionada à práxis humana. Encerra o livro ensaio que explicita a transmutação do liberalismo, passando de uma interpretação política otimista para uma visão política pessimista. Eleutério Prado evidencia uma contradição marcante na atual encarnação da ideologia liberal ao observar que a visão política pessimista dos liberais os transformou em entes políticos muito atuantes. Ao constatarem que os mercados configuram a instância máxima para o estabelecimento da ordem espontânea, os liberais não se furtaram do ofício de moldar o Estado como o viabilizador da existência de livres mercados.

A contraposição da ordem espontânea de Hayek ao projeto (design) institucional não é novidade nesta literatura.77) Uma apresentação pode ser encontrada em Bowles (2004). A novidade em Economia, complexidade e dialética é a exposição das raízes filosóficas que embasam os diferentes entendimentos ontológicos da sociedade. Uma visão alternativa e complementar pode ser encontrada no fundamental artigo de K. Vela Velupillai (2007), no qual é defendida a hipótese de que a impossibilidade a que faz referência o título não implica a ideia de uma ciência conformista.

Empreendimento não trivial, mas garantidamente estimulante, a leitura do livro inteiro permite o acesso panorâmico a uma interpretação crítica de um conjunto de temas da atual discussão metodológica que não podem ser evitados facilmente por quem trabalha com teoria econômica. Do comportamento sistêmico ao realismo crítico e ao evolucionismo de Hayek, tão em voga na teoria econômica institucionalista mais recente, o leitor é levado sempre a refletir sobre questões cruciais. Como o livro é constituído por ensaios, pode-se, ainda, lê-los em separado, constituindo fonte para pesquisas mais específicas. Para uma primeira aproximação ao tema, por exemplo, sugiro a leitura do primeiro capítulo em especial, não só para economistas, mas para qualquer pesquisador ou interessado na filosofia da ciência.

Observações finais sobre a editoração: parece-me acertada a escolha por notas de rodapé ao invés de notas ao fim de cada ensaio ou, ainda, somente ao final do livro. A bibliografia unificada também auxiliou a leitura e consulta. Entretanto, a presença de um índice analítico seria de extrema ajuda para releituras e consultas ao livro.

Resenha de: Prado, Eleutério F. S. Economia, complexidade e dialética. São Paulo: Plêiade, 2009.

(

  • BOWLES, S. Microeconomics: behavior, institutions, and evolution. New York: Princeton University Press. 2004.
  • COLANDER, D. Marshallian general equilibrium analysis. Eastern Economic Journal, v. 21, n. 3, p. 281-293, 1995.
  • FOLEY, D. K. A statistical equilibrium theory of markets. Journal of Economic Theory, v. 62, p. 321-345, 1994.
  • ________. Unholy trinity - Labor, capital, and land in the new economy. London: Routledge, 2003.
  • MAYR, E. Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica. Trad. de M. Leite. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • NICOLIS, G.; PRIGOGINI, I. Self-organization in nonequilibrium systems: from dissipative structures to order through fluctuations. New York: Wiley, 1977.
  • PRADO, E. F. S. Economia como ciência. São Paulo: IPE/USP, 1991.
  • ROSSER, B. (Ed.). Complexity in economics. Northampton: Edward Elgar, 2004. v. 1, 2 e 3.
  • VELUPILLAI, K. V. The impossibility of an effective theory of policy in a complex economy. In: SALZANO, M.; COLANDER, D. (Ed.). Complexity hints for economic policy. Milan: Springer, 2007.
  • Economia, complexidade e dialética

    Gustavo de Oliveira Aggio
  • 1
    ) Cf. Prado (1991). Livro originado na sua tese de livre-docência agraciada com o prêmio Haralambos Simeonidis.
    (
  • 2
    ) Cf. Rosser (2004).
    (
  • 3
    ) Rigor aqui entendido com relação tanto à atenção aos limites e capacidades da metodologia utilizada quanto à relevância da análise ou do construto teórico.
    (
  • 4
    ) A ausência de formalização matemática não implica que as construções teóricas destes autores estejam comprometidas. Certamente a formalização matemática permitiu a generalização de um conjunto grande de ideias, mas implicou, por vezes, elevado reducionismo das teorias originais. É muito interessante, por exemplo, a especulação que Colander faz em sua comparação entre os métodos de Walras e Marshall. Segundo Colander, Marshall evitava o uso excessivo de formalização matemática em seu trabalho, ao contrário de Walras, justamente porque tinha melhor domínio da matemática do que este e compreendera que o instrumental até então disponível era insuficiente para tratar satisfatoriamente aspectos mais complexos da economia (Colander, 1995). Uma das propostas da escola pós-walrasiana, da qual Colander é um dos expoentes, é recuperar, através das novas metodologias disponíveis, vários pontos da teoria de Marshall.
    (
  • 5
    ) Podemos definir sinteticamente estruturas auto-organizadas como aquelas que existem e se reproduzem - mas não necessariamente se perpetuam - dadas, ao menos em parte, a existência e as relações entre as partes sistêmicas, inclusive influindo sobre estas.
    (
  • 6
    ) Nesse caso o sistema apresenta máxima entropia. Neste trabalho Foley observa que a estrutura de uma economia capitalista não pode ser caracterizada por máxima entropia. Uma formalização de um modelo de trocas com entropia máxima pode ser observada em Foley (1994, p. 321-345).
    (
  • 7
    ) Uma apresentação pode ser encontrada em Bowles (2004).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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