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Novo boom das commodities e a crescente participação chinesa na estrutura de comércio exterior do Brasil*

The new commodities boom and the increasing Chinese participation in Brazil’s foreign trade structure

Resumo

As relações econômicas sino-brasileiras vêm gradativamente ganhando um perfil estratégico no século XXI. Desde 2009, a China se apresenta como o maior parceiro comercial do Brasil. No período de janeiro a novembro de 2023 (MDIC), essa relação atingiu o recorde de participação no fluxo comercial total entre os dois países. Este artigo tem como objetivo analisar a estrutura econômica dessa nova etapa de relações comerciais entre Brasil e China, estabelecendo como marco temporal o novo boom das commodities e o respectivo aumento da demanda chinesa observado no início da década de 2020. Através da análise primária das estatísticas de comércio exterior do Brasil e por meio de uma pesquisa de cunho exploratório, vislumbra-se um redirecionamento das empresas e capitais chineses para o setor de commodities brasileiro. Tal fato possibilita realizar uma avaliação das externalidades positivas e negativas para a estrutura produtiva nacional.

Palavras-chave
Brasil; China; Relações econômicas sino-brasileiras; Novo boom das commodities

Abstract

The Sino-Brazilian economic relations have gradually assumed a strategic profile in the 21st century. Since 2009, China has positioned itself as Brazil’s foremost trading partner. In the period from January to November 2023 (MDIC), this relationship reached a record level of participation in the overall trade flow between the two countries. This article aims to analyze the economic structure of this new phase of commercial relations between Brazil and China, establishing the onset of the commodities boom and the subsequent increase in Chinese demand observed in the early 2020s as a temporal landmark. Through a primary analysis of Brazil’s foreign trade statistics and by means of an exploratory research approach, there is an anticipation of a reorientation of Chinese companies and capital towards the Brazilian commodities sector. This development enables an assessment of both positive and negative externalities for the national productive structure.

JEL: F02, F10, F50.

Keywords
Brazil; China; Sino-Brazilian economic relations; New commodities boom

Introdução

As relações econômicas sino-brasileiras vêm gradativamente ganhando um perfil estratégico no século XXI. Desde a sua entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, até as visitas do ex-presidente Hu Jintao à América do Sul, em 2004 e 2008, a China vem apregoando a cooperação Sul-Sul e fortalecendo as trocas inter-regionais através da assinatura de acordos de comércio, investimento e de cooperação em distintas áreas. Tal como pontuado por Vadell, Lo Brutto e Leite (2020)VADELL, Javier; LOBRUTTO, Giuseppe; LEITE, Alexandre Cesar Cunha. The Chinese South-South development cooperation: an assessment of its structural transformation. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 63, n. 2, p. 2-22, 2020. FapUNIFESP (SciELO). DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7329202000201.
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, este panorama geral vem reforçando a argumentação chinesa da cooperação no formato win-win, conforme estabelecido no primeiro policy paper para a região da América Latina e Caribe (China, 2008CHINA. China’s Policy Paper on Latin America and the Caribbean. Beijing: Official Publications, 2008.).

Desde 2009, a China se apresenta como o maior parceiro comercial brasileiro (Brasil, 2023BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Comex Stat. 2023. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home.
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), superando as parcerias históricas dos Estados Unidos e da Argentina. As relações comerciais entre Brasil e China alcançou seu recorde, em termos percentuais de participação, no período de janeiro a novembro de 2023, momento em que a China representou 30,7% nas exportações totais e 21,9% nas importações brasileiras (Brasil, 2023BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Comex Stat. 2023. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home.
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). Os investimentos chineses no Brasil seguem um padrão similar, totalizando US$ 67 bilhões no período compreendido entre 2005 a 2023, principalmente destinando à compra de matérias primas e formação de joint-ventures na aquisição de licenças de exploração ou escoamento de recursos naturais (America Enterprise Institute, 2023).

Este aumento do comércio e das relações econômicas entre os países fez com que se criasse uma tendência gravitacional da economia brasileira cada vez maior em torno da economia chinesa. No início dos anos 2000, a demanda da China desempenhou um papel importante no aumento do nível geral dos preços da maioria das commodities no começo do século XXI, elevando significativamente os termos de troca a favor do Brasil e ocasionando um inédito superávit no balanço de pagamentos (Brasil, 2023BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Comex Stat. 2023. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home.
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).

Entretanto, o fenômeno do boom das commodities desacelera após a crise financeira de 2008 e demonstra sinais mais explícitos de enfraquecimento em meados da década de 2010, revertendo-se tanto a elevação dos preços das commodities quanto os saldos positivos no balanço comercial. Não obstante, desde 2021, tal qual na etapa anterior, a alta demanda chinesa está desempenhando um papel de revalorização geral das mercadorias brasileiras de exportação, aumentando novamente os seus termos de troca e o volume da balança comercial.

Esse artigo tem como objetivo analisar a estrutura econômica dessa nova etapa de relações comerciais entre Brasil e China, principalmente a partir da hipótese central da ocorrência de um novo boom das commodities pela demanda chinesa na década de 2020. Entende-se que o somatório da demanda chinesa por produtos primários e insumos derivados de recursos naturais tem contribuído para a elevação dos preços das commodities exportadas pelo Brasil. A tendência é que tal evento gere, no curto prazo, uma reação expansiva do setor, assim como um fomento para a expansão da participação chinesa no setor produtivo de commodities. Através da análise primária das estatísticas de comércio exterior do Brasil e utilizando-se de uma pesquisa de métodos mistos baseada em estatística descritiva e método exploratório, vislumbra-se um redirecionamento das empresas e capitais chineses para o setor de commodities brasileiro. Tal fato possibilita realizar uma avaliação das externalidades positivas e negativas para a estrutura produtiva nacional.

O artigo encontra-se dividido em três seções, além desta introdução e das considerações finais. Primeiramente, julga-se necessário realizar uma revisão bibliográfica da terminologia e da cronologia do denominado boom das commodities. Num segundo momento, serão apresentados os principais dados estatísticos referentes ao período de 2001 até 2023, com a finalidade de realizar uma análise comparativa entre o boom das commodities da década de 2000 e de 2020. Na terceira e última seção, serão realizados estudos qualitativos referentes à temática, apontando que há fortes indícios de fortalecimento e aprofundamento das atividades extrativistas de baixo valor agregado, reforçando o caráter de reprimarização da economia brasileira.

1 Caracterizando o “Boom das commodities” na primeira década do século XXI

O termo commodity é comumente apresentado como uma mercadoria de origem primária, comercializada em mercados globais, que serve de insumo para atividades produtivas. Contudo, pode-se adensar essa caracterização especificando elementos que indicam tanto especificidades que dão contorno à dinâmica do mercado destas mercadorias como determinantes do comportamento dos países que atuam no mercado como ofertantes de commodities, tal qual é o caso do Brasil.

Commodities devem ser mercadorias homogêneas ou com grau de diferenciação tão reduzido que não afetariam o preço da mercadoria. Consequentemente, pressupõe-se que exista uma padronização que não sofra impactos de marca ou de quem produz a mercadoria. Sem diferenciação de marca ou de quem produz e de onde a mercadoria é produzida, entende-se que o mercado destas mercadorias pode ser unificado, permitindo a criação de um mercado global para transacionar tais produtos. Ao mencionar que tais mercadorias são majoritariamente derivadas de atividades primárias, entende-se que essas mercadorias passam por poucos processos de adição de valor, o que tende a demandar dos países produtores altos volumes de produção destinados à exportação. Commodities também tendem a ser vistas como insumos para atividades produtivas, daí se compreende a relevância destas mercadorias para o processo produtivo, especialmente quando se entende que o processo produtivo vigente é global e de múltiplas cadeias.

Dentre as formas de classificação das commodities, opta-se aqui por utilizar a classificação por origem. A divisão por origem parece ser mais útil ao objetivo aqui proposto de analisar os vetores de intensificação da presença chinesa na estrutura comercial brasileira. Assim, temos: (i) commodities agrícolas, como soja, milho, algodão,1 (1) Commodities agrícolas podem ser subdivididas em grupos como: grãos (soja, milho e trigo), proteínas (carnes, leite e seus derivados) e softs (açúcar, cacau, café, suco de laranja e algodão). biocombustíveis; (ii) commodities minerais, como minérios, alumínio, aço; e (iii) commodities industriais, tais como os derivados da indústria petroquímica.

O mercado de commodities responde, num primeiro momento, a pressões de oferta e demanda. A oferta é determinada, em maior intensidade, pelos fatores que influenciam a produção, períodos de safras, situação dos estoques globais e pelo comportamento da cadeia de suprimentos produtivos. Tendem ainda a afetar a oferta, eventos e condições climáticas e políticas governamentais, tal como subsídios e incentivos à setores específicos. Já do lado da demanda, fatores de origem econômica, tais como renda disponível e renda per capita, tamanho da população padrões de consumo e nível de desenvolvimento das atividades produtivas industriais tendem a influenciar seu comportamento.

Na atual conjuntura global, observa-se a constituição de cadeias produtivas integradas e/ou interdependentes, que tendem a ser afetadas por eventos de ordem geopolítica, que, por sua vez, modificam o comportamento do mercado por tais produtos. O mercado de commodities tende a ter comportamento volátil e cíclico dadas suas características e elementos constitutivos. A literatura indica ainda os riscos de dependência no que concerne ao fluxo comercial e da deterioração dos termos de troca dos países que se sustentam majoritariamente na exportação destas mercadorias (Black, 2015BLACK, C. Preços de commodities, termos de troca e crescimento econômico brasileiro nos anos 2000. Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre, v. 42, n. 3, p. 27-44, 2015.; Carneiro, 2012CARNEIRO, R. M. Commodities, choques externos e crescimento: reflexões sobre a América Latina. Cepal, 2012. (Serie Macroecnomía del Desarrollo, n. 117).; Prebisch, 1949PREBISCH, R. (1949). O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus problemas principais. In: BIELSCHOWSKY, R. (Org.). Cinquenta anos de pensamento na Cepal. Rio de Janeiro: Record, 2000. v. 1.).

O “Boom das Commodities” é um fenômeno de mercado em que se observa um aumento expressivo do preço das commodities em consequência, na maioria dos casos, de um crescimento acima do normal na demanda internacional por tais produtos. Espera-se que, durante a ocorrência de eventos como esse, haja crescimento dos investimentos nos setores que são carros-chefes do boom, alterando as preferências que determinam os investimentos. No caso do Brasil, nota-se a redução nos investimentos em culturas destinadas ao mercado doméstico, como arroz, em detrimento do aumento dos investimentos e das áreas cultivadas de soja e milho, fruto do crescimento da demanda externa por estes produtos.

Essa caracterização é particularmente relevante quando se objetiva analisar a relação existente entre Brasil e China no que concerne ao fluxo de comércio e nas suas repercussões. A primeira década do século XXI testemunhou um superciclo das commodities. Este superciclo, que a literatura denomina como boom das commodities, teve como característica predominante a elevação dos preços das commodities - iniciando com as commodities minerais agregando rapidamente as commodities agrícolas e os insumos energéticos - e o consequente crescimento das economias especializadas na produção destas mercadorias (Prates, 2007PRATES, D. M. A alta recente dos preços das commodities. Revista de Economia Política, v. 27, n. 3, p. 323-344, 2007.; World Bank Data, 2023WORLD BANK. World Development Indicators. 2023. Available at: http://datatopics.worldbank.org/world-development-indicators/.
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; World Bank, 2009WORLD BANK. Global economic prospects 2009: commodities at the crossroads. Washington, DC: World Bank, 2008.).

O Brasil esteve no grupo de países beneficiados pelo boom das commodities. O boom, iniciado em 2002 tem características de ser mais intenso (maiores elevações nos preços) e mais extenso (maior período de observância). No caso brasileiro, os grupos de commodities agrícolas, minerais (ou metálicas como sugerem alguns textos) e energéticas apresentaram substanciais elevações nos preços. Essa elevação teve uma breve interrupção em decorrência da crise do subprime em 2008 e das consequências de dois eventos climáticos (El Niño de 2004 e El Niño de 2009).2 (2) Ver Climanálise (2009). Ainda assim, os efeitos do boom das commodities puderam ser observados até meados da segunda década do século XXI.

Dentre os fatores que impulsionaram o boom e afetaram diretamente a economia brasileira, a elevação da demanda chinesa por estes produtos tem um papel predominante. O ingresso da China na OMC em 2001, associado com a elevada taxa de crescimento da economia chinesa observada desde os anos 1990, serviu de impulso para o salto observado nas exportações de commodities. As commodities minerais tiveram um papel de relevância junto com a expansão sem precedentes das commodities agrícolas, tal como observado no complexo soja-carne (Escher; Wilkinson, 2019ESCHER, F.; WILKINSON, J. A economia política do complexo Soja-Carne Brasil-China. Revista de Economia e Sociologia Rural, v. 57, n. 4, p. 656-678, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1806-9479.2019.191017.
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).

A consistente ascensão chinesa à condição de potência econômica global trouxe efeitos significativos à dinâmica política e econômica mundial. Dentre as consequências desta ascensão encontra-se o salto no fluxo de comércio entre a China e os países da América Latina (Acioly; Pinto; Cintra, 2009; Paus, 2009PAUS, E. The rise of China: implications for Latin American development. Development Policy Review, v. 27, n. 4, p. 419-456, 2009.; Jenkins, 2010JENKINS, R. China’s global expansion and Latin America. Journal of Latin American Studies, v. 42, part. 4, p. 809-837, Nov. 2010.). Na fase inicial do crescimento das relações comerciais observou-se a China em uma posição de comprador voraz de insumos produtivos, na maioria matérias-primas de origem primária. Ainda na fase inicial desta relação, a China influenciou o resultado dos balanços comerciais dos países da região.

No caso, a relação comercial entre Brasil e China apresentou saldos positivos para o Brasil, servindo de impulso para os setores mais atuantes, especialmente a produção agrícola de commodities. Segundo Cunha et al. (2011)CUNHA, A. M.; BICHARA, J. da S.; MONSUETO, S. E.; LÉLIS, M. T. C. Impactos da ascensão da China sobre a economia brasileira: comércio e convergência cíclica. Revista de Economia Contemporânea, v. 15, n. 3, p. 406-440, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1415-98482011000300002.
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, é possível observar três características presentes nas relações entre China e países da América Latina que se encaixam perfeitamente na análise do caso do Brasil, a saber: (i) o fluxo de comércio teve um crescimento mais intenso nos países produtores de commodities; (ii) predomina, na fase inicial, superávit comercial nos países produtores de commodities e (iii) observa-se a tendência de alteração na posição de superávit no balanço comercial à medida que se intensificam os fluxos comerciais e a China passa a exportar bens de maior valor adicionado para esses países.

A intensificação das relações comerciais entre Brasil e China está inserida no processo de intenso crescimento econômico chinês iniciado nos anos 1980 e intensificado a partir dos resultados da política de abertura promovida pelo governo chinês nos anos 1990. As reformas implementadas desde o final dos anos 1970 e mais visíveis em termos de consequências econômicas nos anos 1990 tornaram a China em um enorme sorvedouro de recursos naturais e insumos produtivos (Leite, 2011LEITE, Alexandre César Cunha. O projeto de desenvolvimento econômico chinês - 1978-2008: a singularidade de seus fatores políticos e econômicos. 2011. Tese (Doutorado em Ciências Sociais)-Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.; Cepal, 2011COMISSAO ECONOMICA PARA A AMERICA LATINA E O CARIBE (CEPAL). La Republica Popular China y America Latina y el Caribe. Hacia una nueva fase en el vinculo economico y comercial. Santiago de Chile: Cepal, Jun. 2011b. Disponível em: http://eclac.org.cl. Acesso em: out. 2011.
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; Devlin; Estevadeordal; Rodriguez, 2011). A demanda chinesa por recursos naturais, insumos produtivos e matérias-primas tornou compulsória a busca chinesa por fornecimento destes bens. Tal situação levou à intensificação do fluxo de comércio com países produtores de commodities, colocando o Brasil, à época, em condição favorável no mercado global de commodities.

Os dados corroboram a afirmação de que o Brasil testemunhou uma melhoria nas vendas externas. No período compreendido entre os anos 2003 a 2008, as exportações do Brasil passaram de U$ 72 bilhões para U$ 197 bilhões. No mesmo período a taxa de crescimento do PIB foi de aproximadamente 4,8%. As mercadorias que contribuíram para o crescimento das exportações seguem a tradição dos setores mais relevantes na pauta exportadora: metais não-preciosos, soja e petróleo e gás, tendo a China como principal destino.

The most immediate consequence of growing Chinese demand for natural resources has been rising prices for a host of critical commodities. The widely followed Commodity Research Bureau (CRB) Index comprises nineteen publicly traded commodities, including oil, natural gas, copper, nickel, sugar, and wheat, and is a useful, if crude, indicator of worldwide commodity prices. Between January 30, 2002, and July 2, 2008, the index nearly quadrupled. Crude oil prices rose eightfold over the period. Copper prices began their steep ascent in 2003 and ultimately rose to twenty times their original level. Wheat prices stayed relatively steady through 2007, but by the middle of 2008 they too had risen by a factor of four or more (Economy; Levi, 2014ECONOMY, Elizabeth C.; LEVI, Michael. By all means necessary: how China’s resource quest is changing the world. New York: Oxford University Press, 2014., p. 24).

A literatura que tratou do tema é vasta. Dentre os principais debates e conclusões, figuram com frequência a preocupação com a dependência da demanda externa, com o reduzido valor adicionado dos bens produzidos e exportados e com a ocorrência de um processo simultâneo de reprimarização e de desindustrialização (Almeida; Pires; Leite, 2022ALMEIDA, Lucas Milanez; PIRES, Pedro; LEITE, Alexandre Cesar Cunha Leite. Relações comerciais com a China e a desindustrialização brasileira entre 2000 e 2014: um estudo baseado na análise inter-regional do insumo-produto. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), n. 63, maio/ago. 2022.). Outro risco levantado na literatura é que o comércio entre Brasil e China tende a ser interindustrial, o que indica que o Brasil tem se especializado como fornecedor de produtos intensivos em recursos naturais, reforçando a possibilidade de deterioração dos termos de troca com países cuja pauta exportadora é composta de produtos industrializados e de maior valor adicionado (Cunha et al., 2011CUNHA, A. M.; BICHARA, J. da S.; MONSUETO, S. E.; LÉLIS, M. T. C. Impactos da ascensão da China sobre a economia brasileira: comércio e convergência cíclica. Revista de Economia Contemporânea, v. 15, n. 3, p. 406-440, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1415-98482011000300002.
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).

A crise de 2008 afetou integralmente a economia global bem como o fluxo de comércio entre os países. Contudo, apesar do Brasil não ter sido uma exceção, a queda no preço das commodities não foi suficiente para fazer com que o índice de preços das commodities retornasse aos níveis de 2001-2002 (gráficos na próxima seção). O motivo para que a queda não fosse sentida em demasia pelo Brasil: a manutenção das compras por parte da China. A China, como todos os demais países, sofreu com a crise de 2008, mas em intensidade bem menor frente ao que foi observado pelos países de economias industriais avançadas. Ao manter sua demanda por bens primários e recursos naturais, a China pouco alterou seu volume de compras, mantendo, em parte, o estímulo ao setor produtor de commodities brasileiro. Os dados (expostos na seção 3) indicam que em 2009 os preços das commodities já apresentavam recuperação.

Apesar da manutenção da histórica relação comercial de exportação de bens com baixo valor agregado, a alta demanda chinesa desempenhou um papel de valorização geral para a maioria das mercadorias brasileiras durante o período, aumentando significativamente os termos de troca em favor da América do Sul em geral (Ray; Gallagher, 2017RAY, Rebeca; GALLAGHER, Kevin. China-Latin America Economic Bulletin. GEGI Discussion Paper, 2017.). Com exceção do Uruguai, todos os demais países sul-americanos assistiram a uma melhoria dos termos de intercâmbio até 2008, com uma breve elevação em 2010/2011 em alguns casos e, a partir de 2012, uma tendência de queda flagrante, que coincide com o declínio da economia chinesa, impactando os valores de bens de exportação sul-americanos.

Concomitantemente, tal fato ocasionou um inédito superávit regional no balanço de pagamentos, em grande medida por conta da elevação do preço dos recursos primários devido ao aumento da demanda chinesa e ao denominado boom das commodities. Ainda que esse fenômeno tenha desacelerado após a crise financeira global de 2008 (Vadell, 2011VADELL, Javier. Rumo ao século chinês? A relação Estados Unidos-China pós 11/09. Carta Internacional, Belo Horizonte, v. 6, n. 2, p.97-111, jul./dez. 2011.) e demonstrado sinais mais explícitos de enfraquecimento em meados da década de 2010 (revertendo-se tanto a elevação dos preços das commodities quanto os termos de troca), a década de 2020 vem apresentando um novo cenário de elevação e intensificação das relações comerciais sino-brasileiras pautadas em bens primários, o que enseja uma análise comparativa entre o início dos anos 2000 e 2020.

2 Análise comparativa das relações comerciais sino-brasileiras

Conforme salientado no tópico anterior, as relações econômicas sino-brasileiras vêm se intensificando desde 2001, ratificadas pelas visitas de Estado ao longo das décadas de 2000 e 2010, e que ensejaram a assinatura de acordos de comércio, investimento e de cooperação em distintas áreas (Vadell; Ramos; Neves, 2016VADELL, Javier; RAMOS, Leonardo; NEVES, Pedro. As implicações internacionais do modelo chinês de desenvolvimento do Sul Global: Consenso Asiático como network power. In: LIMA, Marcos Costa (Org.). Perspectivas Asiáticas. Rio de Janeiro: Folio Digital, 2016. p. 67-90.; Leite; Ramos, 2016LEITE, Alexandre Cesar Cunha; RAMOS, Lohana Gabriela Simões de Oliveira. Investimentos chineses na América do Sul: um desenho das preferências de destino e setores. In: LIMA, Marcos Costa (Org.). Perspectivas asiáticas. Rio de Janeiro: Folio Digital, 2016. p. 165-192.). Por conseguinte, a China vem apregoando a cooperação Sul-Sul e preparando terreno para o fortalecimento das trocas inter-regionais, migrando da quase ausência para a posição principal nas relações econômicas com o Brasil em pouco mais de uma década (Vadell; Neves, 2018VADELL, Javier; NEVES, Pedro. O Brasil e a China na atualidade: perspectivas sobre o aprofundamento da cooperação desigual a partir do comércio, dos investimentos e do crédito. In: VADELL, Javier (Org.). A expansão econômica e geopolítica da China no século XXI. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2018. cap. 7, p. 205-234.).

Ainda que num momento posterior ao primeiro boom das commodities, a parceria estratégica entre a China e o Brasil se intensificou a partir de 2013 com a ascensão de Xi Jinping à presidência chinesa. Os dois países tiveram intercâmbios em altos níveis e em vários campos. Em março e setembro de 2013, o presidente Xi Jinping e a ex-presidente Dilma Rousseff realizaram reuniões bilaterais durante a Quinta Reunião de Líderes do BRICS e a Cúpula do G20 em São Petersburgo. Em novembro desse mesmo ano, o vice-presidente brasileiro Michel Temer fez uma visita oficial à China, se reunindo com o presidente Xi Jinping e copresidindo com o vice-premiê, Wang Yang, a terceira reunião da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), a principal plataforma de diálogo com a China. Desde então, as relações sino-brasileiras vêm mantendo coordenação em organizações internacionais e mecanismos multilaterais, incluindo Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial do Comércio (OMC), G20, e BRICS.

Durante a década passada, no contexto da superação da crise de 2008/09, o Brasil e a China construíram um arcabouço institucional que o País não possui com nenhum outro parceiro com graus mais elevados de proximidade cultural ou confiança mútua, à exceção dos sócios no Mercosul. Refiro-me ao Plano de Ação Conjunta Brasil-China adotado em 2010, ao Plano Decenal de Cooperação assinado em 2012, ao Plano de Ação Conjunta 2015-2021, entre outros documentos. Tendo como proposição-chave a revitalização e o fortalecimento da Cosban (Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação), criada em 2004, o Brasil fez um amplo exercício de identificação de interesses específicos na sua relação com a China, independentemente do êxito parcial na sua implementação ao longo do tempo ou do mérito de iniciativas pontuais (Rosito, 2020ROSITO, Tatiana. O Plano Decenal Brasil-China 2022-2031: oportunidade de preparação e realinhamento. Carta Brasil-China. Conselho Empresarial Brasil-China. Rio de Janeiro, p. 4-9. abr. 2020., p. 4).

Segundo o Anuário de Comércio Exterior Brasileiro 2020, a fraca demanda externa decorrente da recessão econômica nos principais parceiros comerciais do Brasil afetou o desempenho do seu comércio exterior, em que as exportações e as importações de bens tiveram uma queda de 5,4% e 14,6% em valor, respectivamente, se comparado ao ano de 2019. Entretanto, o volume exportado pelo país cresceu 1% neste período, devido principalmente à célere recuperação econômica da China, possibilitando um superávit de mais de 50 bilhões de dólares em 2020 (Brasil, 2020BRASIL. Ministério da Economia. Anuário de Comércio Exterior Brasileiro 2020. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/produtividade-e-comercio-exterior/pt-br/assuntos/comercio-exterior/publicacoes-secex/anuario/arquivos/anuario-comex-2020.pdf.
https://www.gov.br/produtividade-e-comer...
).

No Gráfico 1, visualizamos o fluxo de exportações e importações brasileiras com a China de 2001 a 2023. O aumento mais considerável das exportações brasileiras foi visualizado na década de 2000 (entre os anos de 2001 e 2009), com um acréscimo de 1.004%, em comparação a 106% de elevação na década de 2010 (entre os anos de 2010 e 2019). Entre 2001 e 2023, as exportações brasileiras subiram em 4.917%, chegando ao valor recorde de US$ R$ 95,38 bilhões em 2023, e totalizando US$ R$ 866,38 bilhões no século XXI (Brasil, 2023BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Comex Stat. 2023. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home.
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). No que se refere às importações brasileiras com origem na China durante o mesmo período, durante a década de 2000 teve-se uma elevação de 1.105% e, na década de 2010, de 41%, com um aumento total de 3.578% entre 2001 e 2023. O valor máximo das importações brasileiras foi realizado no ano de 2022, de US$ R$ 60,74 bilhões, enquanto o valor agregado durante os últimos vinte anos totalizou US$ R$ 582,39 bilhões (Brasil, 2023BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Comex Stat. 2023. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home.
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).

Gráfico 1
Exportações e importações entre Brasil e China entre 2001-2023 (bilhões de dólares)

As relações comerciais entre China e Brasil cresceram significativamente ao longo da década de 2000 e 2010. De acordo com o Gráfico 2, o saldo total do comércio saiu de US$ R$ 3,2 bilhões em 2001 para US$ R$ 143,93 bilhões em 2023, um aumento de 4.368% em pouco mais de vinte anos (Brasil, 2023BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Comex Stat. 2023. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home.
http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home...
).

Gráfico 2
Total do fluxo comercial entre Brasil e China entre 2001-2023

Na continuação, é possível notar no Gráfico 3 dois períodos de elevação quantitativa na dinâmica comparativa da relações comerciais sino-brasileiras. O primeiro período corresponde ao denominado boom das commodities, basicamente entre 2003 e 2013, em que o volume total do comércio bilateral sai de US$6,6 bilhões para US$83,34 bilhões, uma elevação de 1.148,81% e um superávit acumulado na balança comercial brasileira de US$38,14 bilhões. O segundo período abarca um “segundo boom das commodities”, de meados 2017 até 2023, cujo volume total de comércio bilateral salta de US$75,04 bilhões para US$143,93 bilhões, um aumento de 91,81% e um superávit acumulado na balança comercial brasileira de US$224,81 bilhões. Também é importante ressaltar que o primeiro boom das commodities apresentou um número expressivo em termos de variação percentual do volume total do comércio bilateral, enquanto que a característica principal do segundo boom das commodities se concentra numa elevação percentual substantiva do superávit acumulado na balança comercial brasileira (Brasil, 2023BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Comex Stat. 2023. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home.
http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home...
).

Gráfico 3
Dinâmica comparativa das relações sino-brasileiras no primeiro boom das commodities (2003/2013) e no segundo boom das commodities (2017/2023)

Um padrão equivalente pode ser observado no que se refere aos preços das commodities no mercado internacional ao longo do período. Conforme pode ser observado no Gráfico 4, o primeiro ciclo de boom das commodities teve seu pico no segundo semestre de 2008, com um índice de preço de 200,81. Já o segundo ciclo de boom das commodities apresenta uma alta ainda mais significativa no segundo semestre de 2022, com um índice de preço de 229,45 (IMF, 2023INTERNATIONAL MONETARY FUND (IMF). IMF Primary Commodity Prices. 2023. Available at: https://www.imf.org/en/Research/commodity-prices.
https://www.imf.org/en/Research/commodit...
).

Gráfico 4
Índices de preços de commodities entre 2003 e 2023 (2016 = 100, incluem índices de preços de combustíveis e não combustíveis)

Ao levar em consideração tanto a dinâmica das relações comerciais (X+M) sino-brasileiras (Brasil, 2023BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Comex Stat. 2023. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home.
http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home...
) quanto dos preços internacionais das commodities entre 2003 e 2023 (IMF, 2023INTERNATIONAL MONETARY FUND (IMF). IMF Primary Commodity Prices. 2023. Available at: https://www.imf.org/en/Research/commodity-prices.
https://www.imf.org/en/Research/commodit...
), visualiza-se dois ciclos de boom das commodities com particularidades convergentes, conforme pode ser observado no Gráfico 5, a partir de um duplo movimento de ascensão (fase expansiva do ciclo de commodities) e descenso (fase regressiva do ciclo de commodities).

Gráfico 5
Relações Comerciais sino-brasileiras e índice de preços das commodities (2003-2023)

Adicionalmente, vale ressaltar que a China é o principal parceiro comercial do Brasil, tanto em exportação quanto em importação - tendo ultrapassado os Estados Unidos em 2009 e 2012, respectivamente (Rodrigues; Jabbour, 2023RODRIGUES, Bernardo Salgado; JABBOUR, Elias. A iniciativa cinturão e Rota e as implicações geoeconômicas para o Brasil sob a perspectiva da nova economia do projetamento e da geoeconomia híbrida. In: CARVALHO, Evandro Menezes de; VERAS, Daniel; STEENHAGEN, Pedro (Org.). A China e a iniciativa Cinturão e Rota. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2023. p. 93-142.). Já o Brasil ocupou a oitava posição na década de 2010 no ranking dos principais parceiros comerciais da China com uma tendência de crescimento, haja vista que a complementaridade econômica e o potencial de negócios entre ambos são evidentes (Rodrigues; Jabbour, 2023RODRIGUES, Bernardo Salgado; JABBOUR, Elias. A iniciativa cinturão e Rota e as implicações geoeconômicas para o Brasil sob a perspectiva da nova economia do projetamento e da geoeconomia híbrida. In: CARVALHO, Evandro Menezes de; VERAS, Daniel; STEENHAGEN, Pedro (Org.). A China e a iniciativa Cinturão e Rota. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2023. p. 93-142.).

Outro fator relevante é que o gigante asiático vem aumentando consideravelmente seus investimentos externos diretos (IEDs)3 (3) O investimento de capital estrangeiro pode ser direto, quando aplicado na criação de novas empresas ou na participação acionária em empresas já existentes; e indireto, quando assume a forma de empréstimos e financiamentos a longo prazo. A expectativa de lucros dos investimentos diretos privados no exterior decorre de fatores como: 1) maiores facilidades fiscais e/ou legislativas do que se conseguiria no próprio país; 2) expectativa de variações cambiais favoráveis 3) ou por temor a mudanças políticas ou fiscais no país de origem. O investimento governamental, por sua vez, é realizado geralmente por razões políticas, diplomáticas ou militares, independentemente de possíveis rendimentos econômicos, mas pode ter a função de equilibrar, em longo prazo, o balanço de pagamentos do país de origem. Para o país receptor, o investimento estrangeiro pode ser um meio de estimular o crescimento econômico quando o nível de poupança interna for insuficiente para atender às necessidades potenciais de investimento, embora isso geralmente acentue o grau de dependência econômica e política do país anfitrião em relação aos países exportadores de capital (Sandroni, 2008, p. 436-437). no Brasil, principalmente a partir da sinergia entre a demanda chinesa e a oferta brasileira. A definição clássica de investimento externo direto segundo a OCDE (2017OCDE Statistics, Paris, 2017. Available at: http://www.oecd.org/corporate/mne/statistics.htm.
http://www.oecd.org/corporate/mne/statis...
, p. 17) é: investimento feito por um ator residente em um país A (investidor direto) com o objetivo de estabelecer um “interesse duradouro” em uma empresa fixada em um país B. A motivação desse interesse duradouro em criar uma “relação estratégica de longo prazo” é garantir um grau de influência na gerência da empresa no país B, expresso pelo controle de pelo menos 10% do poder de voto nos processos de tomada de decisão.

Krugman e Obstfeld (1999KRUGMAN, Paul R.; OBSTFELD, Maurice. Economia internacional: teoria e política. São Paulo: Makron Books, 1999., p. 172) entendem investimento estrangeiro direto como os fluxos internacionais de capitais pelos quais uma empresa em um país cria ou expande uma filial em outro. A característica distintiva do investimento estrangeiro direto é que ele envolve não só uma transferência de recursos, mas também a aquisição do controle. Isto é, a filial não tem apenas a obrigação financeira com a empresa matriz; ela é parte da mesma estrutura organizacional. Na visão de Chesnais (1996)CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã Editora, 1996., a análise do IED passa a ser significativa quando se consideram as dimensões qualitativas do IED, destacadas a partir de uma lógica intertemporal que não se reduz a uma transação pontual, de liquidez imediata. Assim, “implica transferências de direitos patrimoniais e, portanto, de poder econômico” (Chesnais, 1996CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã Editora, 1996., p. 54), que abrange um “componente estratégico evidente na decisão de investimento da companhia” (Chesnais, 1996CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã Editora, 1996., p. 55).

Nesse sentido, os IEDs surgem como um importante motor para alcançar novos mercados, novas tecnologias e recursos naturais estratégicos, e, no caso chinês, são possibilitados “pela grande disponibilidade de divisas do país, pela necessidade de adquirir ativos essenciais, entre eles os recursos naturais, e pelas políticas de incentivos às Empresas de Propriedade do Estado (EPEs), como a intitulada ‘Atuação Global’” (Santos; Milan, 2014SANTOS, Leandro Teixeira dos; MILAN, Marcelo. Determinantes dos Investimentos Diretos Externos Chineses: aspectos econômicos e geopolíticos. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 36, n. 2, p. 457-486, jul./dez. 2014., p. 458). Complementarmente, os IEDs também possuem um papel de aprimorar as práticas das empresas chinesas a partir do aprendizado com conglomerados líderes (Gallagher, 2016GALLAGHER, Kevin. The China triangle: Latin America’s China boom and the fate of the Washington Consensus. New York: Oxford University Press, 2016.) em determinados setores no exterior, tendo como exemplo as tecnologias pioneiras em extração de petróleo em águas profundas realizadas pela Petrobras.

No Brasil, pode-se dizer que os IEDs chineses possuem as seguintes características: orientação de longo prazo e segurança dos recursos; estabelecimento de empresas chinesas com pouca ou nenhuma transferência de tecnologia para o país; ausência de condicionalidades políticas; carência de promoção de uma agenda específica; e obras de infraestrutura, que trazem a obrigatoriedade de assinatura de empresas do país asiático (Slipak, 2014SLIPAK, Ariel. América Latina y China: ¿cooperación Sur-Sur o ‘Consenso de Beijing’? Nueva Sociedad, n. 250, p. 102-113, 2014.: Svampa; Slipak, 2015SVAMPA, Maristella; SLIPAK, Ariel. China en América Latina: del Consenso de los Commodities al Consenso de Beijing. Revista Ensambles, v. 2, n. 3, p. 34-63, 2015.). Portanto, esses fluxos destinam-se à compra de matérias-primas, formação de joint ventures para aquisição de licenças para exploração de recursos naturais, fusões e aquisições de ativos por meio de grandes grupos estatais (Ray; Gallagher, 2017RAY, Rebeca; GALLAGHER, Kevin. China-Latin America Economic Bulletin. GEGI Discussion Paper, 2017.) e, nos casos de obras de infraestrutura, para o desempenho de empresas transnacionais e estatais chinesas na construção de corredores de exportação para facilitar o escoamento mais eficiente dos recursos naturais.

Ao analisar os valores de IEDs da China no Brasil de meados da década de 2000 até 2023, disponíveis no China Global Investment Tracker (American Enterprise Institute, 2023AMERICAN ENTERPRISE INSTITUTE. China Global Investment Tracker. 2023. Available at: https://www.aei.org/china-global-investment-tracker/.
https://www.aei.org/china-global-investm...
), percebe-se um aumento exponencial a partir de 2010, saindo de um valor agregado de US$ 3,41 bilhões na década de 2000 para US$ 62,97 bilhões. Conforme consta no Gráfico 6, ainda que o início da década de 2020 tenha demonstrado um arrefecimento em comparação ao período anterior (US$ 10,3 bilhões), os valores ainda são amplamente significativos quando comparados com outros países da América Latina, por exemplo.

Gráfico 6
Evolução do investimento estrangeiro direto da China no Brasil de 2005 a 2023 (bilhões de US$)

Ao longo de todo o período, o valor total de investimentos externos diretos totalizou US$ 76,68 bilhões, uma média de US$ 4 bilhões por ano entre 2005 e 2023. Adicionalmente, destacam-se os anos de 2010 e 2016 como os de maior investimento, com US$ 13,88 bilhões e US$ 14,01 bilhões, respectivamente. Se considerarmos o aumento do investimento acumulado entre as décadas de 2000 (US$ 3,4 bilhões) e 2010 (US$ 62,97 bilhões), o acréscimo é de 1.474%, enquanto que se visualizarmos o ano de início da série de investimentos (2005) com o ano de maior investimento (2016), o incremento chega a 1.991% (American Enterprise Institute, 2023AMERICAN ENTERPRISE INSTITUTE. China Global Investment Tracker. 2023. Available at: https://www.aei.org/china-global-investment-tracker/.
https://www.aei.org/china-global-investm...
).

É interessante notar que existem diferentes subperíodos nos fluxos de expansão e contração do IDE chinês na periodização analisada, com aumentos e rebaixas consideráveis de um ano para outro. Uma possível explicação para tal fato consiste em coevoluções em paralelo às transformações nas estratégias internas e externas de desenvolvimento da China. No âmbito latino-americano, os China’s Policy Paper on Latin America and the Caribbean de 2008 e 2016 se apresentam como os documentos oficiais das estratégias chinesas para a região, principalmente através do aprofundamento do desenvolvimento em comércio, investimento e finanças (China, 2008CHINA. China’s Policy Paper on Latin America and the Caribbean. Beijing: Official Publications, 2008.; 2016CHINA. China’s Policy Paper on Latin America and the Caribbean. Beijing: Official Publications, 2016.). Deste modo, a visualização das diferentes fases do IDE trariam diferentes oportunidades e desafios à América Latina e ao Brasil.

Gallagher (2016GALLAGHER, Kevin. The China triangle: Latin America’s China boom and the fate of the Washington Consensus. New York: Oxford University Press, 2016., p. 73) aponta os principais motivos para esse direcionamento dos IEDs chineses para a América Latina e, em especial, para o Brasil:

Why is China providing so much finance to Latin American governments relative to other parts of the world? Latin America provides a perfect match for China’s go out strategy. Latin America is a source of key commodities that China needs at its present stage of development, and is a destination for many of China’s foreign companies wishing to expand and become major global players in those same commodities. Thus, China’s policy banks provide finance to the companies to go to Latin America to set up operations. Latin America has a major infrastructure gap, however, which is proving to cause bottlenecks in getting prized commodities to Asian markets. That leaves yet another match: the CDB and CHEXIM can provide finance for major infrastructure projects, and have many companies that are fit to do the job.

Outra variável chave de análise consiste na diplomacia ativa entre os dois países, principalmente em acordos bilaterais e multilaterais. Na esfera bilateral, para além da instauração da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC) e da Câmara Brasil-China (CCIBC), o Plano Decenal de Cooperação possui como finalidade aprofundar a execução do Plano de Ação Conjunta. Elaborado pelos líderes dos dois países em 2011, tem como objetivo promover as áreas prioritárias e os projetos-chave durante o período de 2012 a 2021. Assim, ao elevar o nível da cooperação e da complementaridade existente entre os dois países, o foco da atuação estaria concentrado nas seguintes áreas: ciência, tecnologia, inovação e cooperação espacial; minas, energia, infraestrutura e transportes; investimentos e cooperação industrial e financeira; cooperação econômica e comercial; cooperação cultural, educacional e intercâmbio entre os povos (Brasil, 2012BRASIL. Plano Decenal de Cooperação entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Popular da China. 2012. Disponível em: https://www.gov.br/aeb/pt-br/programa-espacial-brasileiro/cooperacao-internacional/documentos-china/acordochina2012.pdf.
https://www.gov.br/aeb/pt-br/programa-es...
).

Atualmente, ambos os lados têm iniciado discussões para aprimorar a estrutura da Cosban e revisar o Plano Decenal de Cooperação (2012-2021), a fim de preparar um novo documento para orientar as relações bilaterais no período entre 2022 e 2031. Neste sentido, seria fundamental para o Brasil identificar demandas específicas nas relações que pudessem contribuir diretamente para a diversificação das suas exportações e para o aumento da sua produtividade econômica, visualizando o peso crescente da Ásia e da China nos fluxos de comércio, investimentos e tecnologia mundiais, principalmente com o escopo de desenvolver parcerias de longo prazo com alto valor estratégico (Rosito, 2020ROSITO, Tatiana. O Plano Decenal Brasil-China 2022-2031: oportunidade de preparação e realinhamento. Carta Brasil-China. Conselho Empresarial Brasil-China. Rio de Janeiro, p. 4-9. abr. 2020.).

3 Novo boom das commodities: bônus ou ônus

Ainda que as relações sino-brasileiras tenham apresentado um aumento exponencial nos últimos 20 anos, as exportações brasileiras para a China vêm demonstrando uma concentração de matérias-primas e commodities agrícolas tanto no primeiro quanto no segundo ciclo de commodities. Tal fato intensifica a reprimarização da sua economia e o estabelecimento de rendimentos decrescentes de escala na sua estrutura produtiva.

Embora as exportações primárias tenham contribuído para melhorar a situação fiscal brasileira - permitindo aumentar os investimentos sociais, evitando o endividamento e/ou pagando dívidas pré-existentes e possibilitando a criação de reservas cambiais -, igualmente aumentaram a dependência à evolução dos preços das commodities, uma vulnerabilidade fiscal associada à fragilidade comercial típica dos exportadores de bens primários e importadores de bens de maior valor agregado, como pode ser observado nas Figuras 1 e 2 abaixo.

Figura 1
Visão geral dos produtos exportados - Destino: China (Jan./Nov. 2023)

Figura 2
Visão geral dos produtos importados - Origem: China (Jan./Nov. 2023)

Quando os preços dos produtos primários começaram a declinar, a partir de 2012, o Brasil passou a sofrer um revés considerável em sua economia nacional. Neste cenário, a estrutura produtiva brasileira tende a tornar-se menos complexa e produtivamente sofisticada com a perda relativa do peso da indústria. Tal constatação é corroborada pelos dados do Banco Mundial que apontam para uma menor contribuição do setor manufatureiro tanto para o PIB quanto para um menor volume de bens industriais em suas exportações (World Development Indicators, 2023).

No caso dos investimentos estrangeiros diretos, apesar dos benefícios econômicos que estes trazem para a economia brasileira em áreas sensíveis no curto-prazo, não se observa uma tendência no desenvolvimento das capacidades industriais ou atividades intensivas em conhecimento tecnológico, reforçando barreiras econômicas e políticas ao desenvolvimento de médio e longo prazo. Desta forma, o direcionamento das empresas chinesas para o setor de commodities aprofunda a dependência das atividades extrativistas de baixo valor agregado e reforça o caráter reprimarizador das economias regionais. Além disso, em termos de investimentos em infraestrutura em portos, estradas, ferrovias, seria positivo para o Brasil diminuir custos, reduzir gargalos logísticos e aprimorar a competitividade; no entanto, a estrutura dos projetos é totalmente voltada para o favorecimento do desenvolvimento chinês, e não para o fortalecimento interno e integrado, facilitando a consecução de corredores de exportação, em vez de corredores de integração nacional.

Consequentemente, o principal interesse dos IEDs chineses no Brasil encontra-se voltado para a energia, segundo pode ser constatado no Gráfico 7. Do total acumulado de US$ 76,68 bilhões entre 2005 e 2023, a concentração no setor de energia foi de 74,5%, dos quais a maioria foi para o segmento de petróleo em acordos realizados no período. As ações de outras áreas de atuação das empresas chinesas no continente foram: 7,0% em transportes; 7,0% em mineração; 4,3% na agricultura, e 2,2% em finanças (American Enterprise Institute, 2023AMERICAN ENTERPRISE INSTITUTE. China Global Investment Tracker. 2023. Available at: https://www.aei.org/china-global-investment-tracker/.
https://www.aei.org/china-global-investm...
).

Gráfico 7
Distribuição do investimento estrangeiro direto da China no Brasil de 2005 a 2020 (bilhões de US$)

Uma vez que as possibilidades de desenvolvimento econômico estão fortemente ligadas à transformação radical de estruturas produtivas para superar gargalos e rigidez do subdesenvolvimento (Furtado, 1970FURTADO, Celso. Formação econômica da América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Lia, Editora S.A., 1970., 1996FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.), o processo de industrialização é imperativo na promoção da produtividade sustentada, com a ulterior mudança para uma estrutura produtiva complexificada tecnologicamente. Pecequilo (2013)PECEQUILO, Cristina Soreanu. A América do Sul como espaço geopolítico e geoeconômico: o Brasil, os Estados Unidos e a China. Carta Internacional, Belo Horizonte, v. 8, n. 2, p. 100-115, jul./dez. 2013. resume de forma didática alguns desses ônus da Geoeconomia Híbrida:

destacam-se os fenômenos da desindustrialização (que tem como outro lado da moeda a reprimarização da economia e seu foco na produção de commodities), a relativização do setor de serviços, a saturação de mercados e desequilíbrios comerciais e produtivos. Assim, pode-se observar um cenário de aumento de desemprego interno, perda de competitividade em setores industrializados, déficits comerciais e baixo investimento em ciência e tecnologia. No caso da reprimarização é importante também mencionar a mudança na pauta de produtos gerada pelo direcionamento da produção ao mercado chinês, resultando na elevação dos preços internos de determinados bens: por exemplo, países como o Brasil têm elevado a produção de soja, visando o mercado chinês, em detrimento de bens da sua cesta básica, como feijão e mesmo arroz e trigo (Pecequilo, 2013PECEQUILO, Cristina Soreanu. A América do Sul como espaço geopolítico e geoeconômico: o Brasil, os Estados Unidos e a China. Carta Internacional, Belo Horizonte, v. 8, n. 2, p. 100-115, jul./dez. 2013., p. 110).

De acordo com Gala (2017)GALA, Paulo. Complexidade econômica: uma nova perspectiva para entender a antiga questão da riqueza das nações. Rio de Janeiro: Contraponto; Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2017., uma medição viável seria através do estudo de estruturas e produtos de mercado revelados por dados comerciais globais, utilizando-se o chamado Índice de Complexidade Econômica4 (4) A complexidade tecnológica e produtiva caminha lado a lado com a conectividade (correlação fortemente positiva) e o progresso. O inverso também é verdadeiro: a capacidade de extrair e exportar produtos primários de baixa complexidade possui baixa conectividade e ubiquidade. (ICE ou ECI, em inglês). Com ele, é possível medir o conhecimento e a diversificação produtiva incorporada nas diferentes estruturas produtivas nacionais, mapeando temporariamente as rotas dos países em direção à recuperação (alcançando ou reduzindo o hiato em relação às grandes potências industriais) ou a reprimarização das matrizes de suas economias (Hausmann et al., 2023HAUSMANN, Ricardo et al. The atlas of economic complexity: mapping paths to prosperity. Cambridge: The MIT Press, 2023. Available at: http://atlas.cid.harvard.edu/.
http://atlas.cid.harvard.edu/...
).

O Brasil é o 70º país mais complexo no ranking do Índice de Complexidade Econômica (ICE). Em comparação com a década anterior, a economia do Brasil tornou-se menos complexa, piorando 23 posições no ranking do ICE. O agravamento da complexidade do Brasil tem sido impulsionado pela falta de diversificação das exportações (Hausmann et al., 2023HAUSMANN, Ricardo et al. The atlas of economic complexity: mapping paths to prosperity. Cambridge: The MIT Press, 2023. Available at: http://atlas.cid.harvard.edu/.
http://atlas.cid.harvard.edu/...
). Conforme pode ser analisado na Figura 3, é possível verificar como o Brasil vem sofrendo uma alta deterioração em seus índices de complexidade, denotando a hegemonia assumida pelos bens primários em seus padrões de exportação e estruturas produtivas.

Figura 3
Distribuição do investimento estrangeiro direto da China no Brasil de 2005 a 2020 (bilhões de US$)

Obviamente, esse processo de desindustrialização é complexo, relacionado a múltiplos fatores e não se limitando apenas ao Brasil (Almeida; Pires; Leite, 2022ALMEIDA, Lucas Milanez; PIRES, Pedro; LEITE, Alexandre Cesar Cunha Leite. Relações comerciais com a China e a desindustrialização brasileira entre 2000 e 2014: um estudo baseado na análise inter-regional do insumo-produto. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), n. 63, maio/ago. 2022.; Kim; Lee, 2014KIM, Chong-Sup; LEE, Seungho. Different paths of deindustrialization: Latin American and Southeast Asian Countries from a comparative perspective. Journal of International and Area Studies, v. 21, n. 2, p. 65-81, 2014.); no entanto, merece ênfase porque constitui um caso de desindustrialização prematura de uma nação que perdeu o momento de transformação estrutural no setor secundário antes mesmo de atingir níveis de renda e sofisticação produtiva das potências avançadas (Rodrik, 2016RODRIK, Dani. Premature deindustrialization. Journal of Economic Growth, v. 21, n. 1, p. 1-33, 2016.; Castillo; Martins Neto, 2016CASTILLO, Mario; MARTINS NETO, Antonio. Premature deindustrialization in Latin America. Digital Repository Economic Commission for Latin American and the Caribbean, 2016. (Serie Desarrollo Productivo, n. 205).).

Em síntese, visualiza-se que o novo boom das commodities vem impulsionando a participação chinesa na estrutura produtiva e de comércio exterior do Brasil. Iniciado em 2017, vem apresentado características similares ao primeiro boom das commodities. Evidencia-se que a presença chinesa vem modificando o mapa geoeconômico da América do Sul, e que, apesar dos benefícios oriundos dessa crescente participação, assevera-se um impacto negativo sobre a estrutura produtiva de países como o Brasil. Tal ponto tende a agravar a concentração da pauta exportadora em produtos primários, reforçando a especialização regressiva - o que perpetua a fatídica doença holandesa5 (5) A doença holandesa seria uma falha do mercado que gera externalidades negativas aos outros setores da economia, principalmente, aos de bens e serviços, impedindo que estes se desenvolvam. Desse modo, como o preço das commodities é orientado pelo mercado internacional, a abundância dos recursos naturais gera vantagens comparativas para o país que os possui, levando-o a se especializar na produção de petróleo, por exemplo, e a não investir em outros setores da economia, como a indústria. - e acentuando a trajetória desindustrializante.

Considerações finais

Este artigo buscou realizar uma análise da atual estrutura econômica das relações comerciais sino-brasileiras tomando como vetor de partida o novo boom de commodities iniciado na década de 2020. Os dados apresentados permitem uma comparação entre o boom das commodities da década de 2000 e o evento iniciado no começo da década de 2020, avaliando tanto o volume de comércio bilateral quanto os preços internacionais dos bens primários. Os dados indicam que tanto no evento dos anos 2000 quanto neste analisado do início dos anos 2020 que os preços das commodities são influenciados pelo aumento da demanda chinesa. Entretanto, em termos qualitativos, é possível observar o aprofundamento das atividades extrativistas de baixo valor agregado pelo lado brasileiro, reforçando o caráter de ausência de complexidade econômica da sua economia. Ainda, a partir do impulso gerado pela melhoria dos preços das commodities, produtores destes setores direcionam seus investimentos para elevação da produção destinada a atender a demanda externa, no caso avaliado aqui, demanda externa de origem chinesa.

Conclui-se que tanto o boom das commodities dos anos 2000 quanto este iniciado na década de 2020 não contribuíram (ou contribuem) para o rompimento das estruturas históricas de subdesenvolvimento do comércio internacional do Brasil. O novo boom das commodities possibilita uma cooperação paradoxal para o Brasil, ao contribuir para os superávits comerciais e alavancar os investimentos/financiamentos em áreas deficitárias. Mas, em contrapartida, tanto o superávit quanto a expansão dos investimentos parecem insuficientes para garantir trajetórias de desenvolvimento de médio-longo prazo, acarretando uma série de desafios estruturais, como a especialização regressiva, a ausência de sofisticação produtiva e de complexidade econômica, a dependência de demanda externa, a reprimarização, a desindustrialização, a ausência de ganhos dinâmicos e de produção de bens de alto valor agregado.

Por parte da China, vale ressaltar que não há imposição de condicionalidades políticas e econômicas, possibilitando uma elevação da área de atuação e persuasão do Brasil. Essa postura chinesa para realização de transações internacionais tem se mostrado bastante atrativa, e não só para o Brasil.

Assim, as relações entre Brasil e China, no campo do comércio internacional, podem ser vistas como uma oportunidade no que concerne à estímulo ao crescimento econômico. Crescimento esse fomentado pelo fluxo de comércio crescente de produtos de origem extrativa, insumos e matérias primas de base agrícola e recursos energéticos. De fato, o saldo positivo no balanço comercial e os preços das commodities tendem a gerar um impacto positivo no setor e, consequentemente, nos investimentos. Ao longo do texto foram indicados elementos que ilustram a tendência de crescimento do setor e das exportações. Porém, alertou-se para problemas como a desindustrialização, a dependência e o desequilíbrio da produção direcionada ao mercado doméstico.

Por outro lado, a partir de um projeto nacional de desenvolvimento brasileiro, as relações com a China, especialmente no nível comercial, ainda não se apresentaram como um instrumento que assegurasse melhoria da estrutura produtiva, de crescimento econômico sustentado que possa assegurar a redução das desigualdades e a sustentabilidade ambiental. Consequentemente, torna-se imprescindível analisar a estratégia chinesa nas relações com o Brasil e como essa relação se desenvolve. Ainda, é fundamental compreender como o Brasil se insere nesse processo, ensejando estudos complexos e sistematizados sobre o tema, que auxilie na compreensão dos possíveis efeitos positivos e negativos que o novo boom das commodities pode proporcionar para o desenvolvimento brasileiro na segunda década do século XXI.

  • (1)
    Commodities agrícolas podem ser subdivididas em grupos como: grãos (soja, milho e trigo), proteínas (carnes, leite e seus derivados) e softs (açúcar, cacau, café, suco de laranja e algodão).
  • (2)
    Ver Climanálise (2009)CLIMANÁLISE: Boletim de Monitoramento e Análise Climática. Cachoeira Paulista, SP: CPTEC/INPE, v. 24, n. 1-6, 2009. Disponível em: http://climanalise.cptec.inpe.br/~rclimanl/boletim/. Acesso em: 26 jan. 2010.
    http://climanalise.cptec.inpe.br/~rclima...
    .
  • (3)
    O investimento de capital estrangeiro pode ser direto, quando aplicado na criação de novas empresas ou na participação acionária em empresas já existentes; e indireto, quando assume a forma de empréstimos e financiamentos a longo prazo. A expectativa de lucros dos investimentos diretos privados no exterior decorre de fatores como: 1) maiores facilidades fiscais e/ou legislativas do que se conseguiria no próprio país; 2) expectativa de variações cambiais favoráveis 3) ou por temor a mudanças políticas ou fiscais no país de origem. O investimento governamental, por sua vez, é realizado geralmente por razões políticas, diplomáticas ou militares, independentemente de possíveis rendimentos econômicos, mas pode ter a função de equilibrar, em longo prazo, o balanço de pagamentos do país de origem. Para o país receptor, o investimento estrangeiro pode ser um meio de estimular o crescimento econômico quando o nível de poupança interna for insuficiente para atender às necessidades potenciais de investimento, embora isso geralmente acentue o grau de dependência econômica e política do país anfitrião em relação aos países exportadores de capital (Sandroni, 2008SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2008., p. 436-437).
  • (4)
    A complexidade tecnológica e produtiva caminha lado a lado com a conectividade (correlação fortemente positiva) e o progresso. O inverso também é verdadeiro: a capacidade de extrair e exportar produtos primários de baixa complexidade possui baixa conectividade e ubiquidade.
  • (5)
    A doença holandesa seria uma falha do mercado que gera externalidades negativas aos outros setores da economia, principalmente, aos de bens e serviços, impedindo que estes se desenvolvam. Desse modo, como o preço das commodities é orientado pelo mercado internacional, a abundância dos recursos naturais gera vantagens comparativas para o país que os possui, levando-o a se especializar na produção de petróleo, por exemplo, e a não investir em outros setores da economia, como a indústria.

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EDITOR RESPONSÁVEL PELA AVALIAÇÃO Carolina Troncoso Baltar

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Jan 2024
  • Aceito
    13 Maio 2024
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