Open-access O consumo das famílias brasileiras: um olhar de gênero e raça*

The consumption of Brazilian families: a look at gender and race

Resumo

O objetivo deste trabalho é investigar o padrão de consumo das famílias brasileiras com ênfase no gênero e na raça do responsável da família. A depender do responsável pela família, gasta-se mais ou menos em determinados bens e serviços, não somente devido às preferências individuais, mas igualmente devido às percepções diversas sobre prioridades dentro da própria família. No que tange ao gênero, a literatura enfatiza que, para as mulheres, o maior peso dos gastos é no bem-estar de filhos, e, em termos de raça, há ainda uma discussão incipiente sobre gastos direcionados a questões identitárias, mas chama a atenção que grande parte dos gastos é dedicado à sobrevivência, dadas as piores condições de vida de pretos e pardos na sociedade brasileira. Para entender estas diferenças sobre o padrão de consumo de famílias cujos responsáveis são homens ou mulheres, com distintas cores/raças, este artigo analisa os determinantes das categorias de consumo das famílias separadamente para cada um destes grupos. Para tanto, foi estimado um sistema de demanda de forma simultânea para seis categorias agregadas de consumo (alimentação, habitação, transporte, saúde, educação e outras despesas). A análise foi feita com a Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2017-2018. Os resultados mostram que as mulheres gastam mais em habitação do que os homens, enquanto estes investem seus recursos mais nas despesas de transporte. Os gastos com alimentação são maiores entre os negros do que brancos, independente do sexo da pessoa de referência. Nas despesas com saúde e educação, brancos gastam mais do que negros, sendo que, com relação à saúde, mulheres brancas tendem a gastar mais do que homens. Renda, educação, idade e filhos são importantes fatores que podem explicar diferenças destes resultados.

Palavras-chave consumo das famílias; gênero; raça; Pesquisa de Orçamentos Familiares

Abstract

The objective of this study is to analyze the patterns of Brazilian household consumption based on the gender and race of the head of the household. Depending on who is responsible for the family, more or less is spent on certain goods and services, not only due to individual preferences, but also due to different perceptions about priorities within the family itself. Regarding gender, the literature emphasizes that, for women, the greatest burden of spending is on the well-being of their children, and, in terms of race, there is still an incipient discussion about spending directed to identity issues, but it draws attention that a large part of the expenses be directed towards what is necessary to survive, given the worst living conditions of black and brown people in Brazilian society. To understand these differences in the consumption pattern of families whose heads are men or women, with different colors/races, this article analyzes the determinants of family consumption categories separately for each of these groups. To do so, we estimated a simultaneous demand system for the six main aggregate consumption categories (housing, transportation, food, health, education, and other expenses). The analysis was done with the 2017-2018 Household Budget Survey, by National Statistical Bureau. Our results suggest that women spend more on housing than men, while men invest more resources in transportation expenses than women. As for consumption patterns by race, the results suggest that in food expenses, black households spend more than white, regardless of the gender of the household head. In health and education expenses, white household heads spend more than black, and, about health, white women tend to spend more than men. Income, education, age, and children are important factors that may explain differences in these results.

Keywords: Household consumption; Gender; Race; Consumer Expenditure Survey

Introdução

Um intenso processo de mudanças sociodemográficas - queda da fecundidade e mortalidade, envelhecimento populacional, relaxamento dos papéis tradicionais de gênero - tem impactado o tamanho, a organização e as preferências das famílias. Essas mudanças refletem na diversificação dos arranjos familiares, tendo-se presença cada vez mais marcante de famílias unipessoais, monoparentais, casais sem filhos e famílias reconstituídas. No bojo dessas novas tendências sociodemográficas, é importante compreender o padrão de gastos das famílias bem como as alterações que podem estar em curso.

A renda é um importante determinante no nível e padrão de consumo. É uma constatação empírica recorrente, em diversos países e em diversos momentos históricos, de que a participação das despesas com alimentação no orçamento das famílias se reduz com a elevação da renda. De fato, tal relação pode ser observada em um dado momento do tempo (dados em corte transversal) como pode ser verificada também ao longo do tempo (dados em séries temporais). Por ser uma das regularidades empíricas mais bem estabelecidas na economia, essa relação é conhecida como Lei de Engel, devido ao trabalho de Engel (1895). Assim, a representação gráfica da proporção das despesas com um item específico variando segundo a renda das famílias - alimentação, por exemplo - é chamada de “curva de Engel” e pode ser usada para ilustrar a Lei de Engel (Chai; Moneta, 2010; Houthakker, 1987).

Além da renda, é sabido que os dispêndios das famílias têm vinculação direta com o estilo de vida individual, com a composição familiar (presença de crianças, adolescentes e de idosos no domicílio), com a estrutura familiar (sexo do chefe, presença de provedores, membros dependentes, entre outros), com número de pessoas na família e com a condição financeira (Carvalho; Alves, 2010; 2012; Melo et al., 2018; Sete, Coelho, 2020). Ou seja, o padrão de dispêndio, entre outros fatores, tem relação com questões de gênero, com o ciclo de vida, renda, composição e arranjo familiar.1 A evidência empírica, todavia, apresenta uma escassez no que diz respeito à relação entre as questões que envolvem a interseccionalidade de gênero e raça do chefe de família e os padrões de consumo, sobretudo para o Brasil. O acesso distinto que as pessoas têm a bens e serviços, conforme gênero, raça e classe, fazem dessa análise relevante e pode trazer subsídios para discussão de políticas públicas e ações mais efetivas na área do consumo.

Este artigo, portanto, tem como objetivo preencher esta lacuna ao investigar o padrão de consumo das famílias brasileiras sob distintas características sociodemográficas, em especial no que diz respeito ao sexo e à raça/cor da pessoa de referência da unidade de consumo. Para tanto, são estimadas curvas de Engel para seis categorias agregadas de consumo de bens e serviços (habitação, transporte, alimentação, saúde, educação e outras despesas), que trazem informações sobre a sensibilidade das famílias frente a variações na renda, dentre outras variáveis sociodemográficas. As estimações são obtidas por meio de uma regressão por equações aparentemente não relacionadas - seemingly unrelated regression (SUR). A base de dados utilizada é a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) realizada nos anos de 2017 e 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Além desta introdução, e de uma última seção dedicada a considerações finais, este texto encontra-se dividido em mais quatro seções. A próxima seção apresenta os apontamentos da literatura sobre padrões de consumo, dando ênfase à questão de gênero. Na literatura de gênero, há um esforço mais consolidado que mostra as diferenças de gasto com orçamento familiar. Já na questão de raça, apresentam-se algumas ideias em paralelo com a literatura mais recente sobre as questões identitárias e as opressões decorrentes de classe. Existem poucos estudos na área que focam no padrão de consumo diferenciado por raça e gênero simultaneamente, logo, acredita-se que o foco que este artigo traz é uma contribuição para a literatura, importante para entender algumas questões da sociedade brasileira, que tem um histórico de desigualdades e vulnerabilidades recortadas por estes aspectos.

A segunda seção traz o marco teórico que discute as opressões cruzadas ao considerar as assimetrias de gênero, raça e classe, com vistas a fundamentar historicamente e teoricamente o que se quer mostrar, que são as diferenças do padrão de consumo considerando estes recortes de sexo e cor/raça. A terceira seção apresenta a base de dados e a metodologia, ou seja, o modelo econométrico e as variáveis utilizadas para estimar as despesas de consumo. A quarta seção apresenta os resultados descritivos e estimados. Se apresenta o padrão de consumo das famílias brasileiras a partir do cálculo de curvas de Engel e do peso de cada item de despesa na despesa total. Discutem-se também os principais resultados estimados das curvas de Engel e suas relações com a interseccionalidade de gênero e cor/raça.

1 O papel das características sociodemográficas nos padrões de consumo: apontamentos da literatura

A evidência empírica internacional sobre consumo por gênero é bastante ampla, mas a maior parte dos estudos vem das áreas de psicologia, sociologia e do marketing (Ng; Bharti; Faust, 2020; Godin; Langlois; 2021; Ye; Bose; Peltron, 2019). Um tema em que a literatura internacional tem se debruçado está relacionado com o chamado Pink Tax (Imposto Rosa, em tradução livre). O Pink Tax é uma prática de cobrança de preços mais altos em produtos e serviços voltados às mulheres em comparação a produtos similares destinados aos homens (Manzano et al., 2018; Wef, 2022).

Dada a existência deste “imposto”, agências e órgãos governamentais de alguns países, como é o caso dos Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha, propuseram-se a levantar dados sobre o tema com o objetivo de identificar os principais determinantes deste fenômeno (Fernandez, Silva, 2023). Em um estudo para a cidade de Nova Iorque, por exemplo, com base em 35 tipos de produtos (mais de 700 itens individuais) de diferentes setores de produção, Blasio e Menin (2015) sugerem que produtos femininos custam 7% a mais do que produtos similares ofertados para os homens2.

No tema do consumo, a produção que investiga o Brasil com olhar de gênero não é tão vasta, quando se trata da perspectiva da área da economia, e mais especificamente, de estimações de sistemas de demanda ou curvas de Engel. Guardam em comum nos resultados encontrados na literatura, a constatação de existirem comportamentos distintos entre homens e mulheres no que diz respeito aos gastos (Pinheiro; Fontoura, 2007; Schlindwein; Kassouf, 2007; Carvalho; Alves, 2010, 2012; Queiroz; Coelho, 2015; Galvão; Almeida, 2018; Sette; Coelho, 2020).

Essas diferenças no padrão de consumo por sexo são observadas em análises descritivas, como mostram Pinheiro e Fontoura (2007) as famílias chefiadas por mulheres têm maior gasto em despesas de consumo, ficando em torno de 81% e na masculina 75%, o que indica proporcionalmente maior aquisição de bens e serviços essenciais para a vida cotidiana. Em linhas gerais, as autoras notam que, quando a mulher é a chefe da unidade de consumo se gasta mais com habitação, vestuário, higiene, saúde, educação, cultura e serviços pessoais, ao passo que, na chefia masculina, gasta-se mais com transporte, aumento do ativo, alimentação e outras despesas correntes.

Em relação às diferenças nos tipos de despesa por sexo, Carvalho e Alves (2010, 2012) atestam que, nas unidades de consumo que as mulheres são chefes, têm maior peso as despesas com habitação, educação, saúde, enquanto para a chefia masculina o peso com as despesas de alimentação, transporte, recreação, fumo, jogos, álcool e diversão sexual são mais elevadas. Galvão e Almeida (2018) encontram resultados convergentes com dos autores acima, mostram que mulheres têm maior gasto com alimentação dentro e fora de casa, roupa de mulher, criança, escola, cultura e recreação, doações e saúde frente aos homens. Os homens, por seu turno, têm maiores gastos em roupa de homem, transporte, habitação e aumento do ativo. As evidências não parecem ser suficientes, no entanto, para concluir qual dos chefes (homens ou mulheres) planejam os gastos de modo mais direcionado para o bem-estar familiar (Carvalho; Alves, 2012).

Importante frisar também a abordagem feita por Galvão e Almeida (2018) sobre a validade para o Brasil de um modelo unitário, no qual as famílias tomam suas decisões de modo conjunto, desconsiderando preferências individuais. Os resultados encontrados pelos autores sugerem que o modelo unitário de comportamento familiar, no qual a renda vinda do esposo ou da esposa tem o mesmo impacto nos gastos dos produtos, deveria ser aceito considerando os seguintes bens: alimentação fora de casa, gastos com crianças, cultura e recreação, fumo e álcool, habitação e doações. Considerando as preferências individuais, modelo coletivo de decisão familiar, os autores ponderam que elevações na renda da mulher teria maior impacto nos gastos com alimentação dentro de casa, vestuário feminino, saúde e gastos escolares do que aumentos da renda masculina.

Pensando especificamente no item alimentação, Carvalho e Alves (2012) encontram que, nas famílias chefiadas por homens, há um maior percentual de consumo de alimentos tempo-intensivos que na chefia feminina. Eles justificam esse achado considerando que, se o homem é o chefe, é provável que exista uma mulher cônjuge que irá se dedicar ao preparo de alimentos. Queiroz e Coelho (2015) encontram também que o consumo brasileiro de alimentos fora do domicílio tem pouca relação com o custo de oportunidade da mulher, que foi avaliado por meio dos salários. Esses autores consideram que no Brasil a inserção das mulheres no mundo do trabalho não direcionou expressivamente o consumo das famílias para fora do domicílio. Schlindwein e Kassouf (2007) acrescentam um olhar interessante ao debate ao investigar como o custo de oportunidade do tempo da mulher, mensurado a partir do número de anos de estudo, impacta na determinação dos padrões de consumo de alimentos. Os achados das autoras mostram que o custo de oportunidade do tempo da mulher aumenta a probabilidade de adquirir alimentos prontos e alimentação fora do domicílio, no contraponto reduz a probabilidade de aquisição de feijão, arroz e farinha de trigo. Ou seja, as mulheres menos escolarizadas tendem a se dedicar mais à preparação de alimentos que, em geral, são para o consumo da família.

Com relação ao Pink Tax, para o caso brasileiro, os estudos sobre o tema são incipientes, bastante recentes e com um caráter mais descritivo. Fernandez e Silva (2023), por exemplo, sugerem a existência de Pink Tax para serviços de lavanderia e salões de beleza nas cinco maiores regiões metropolitanas do Brasil. Ainda que tal estudo tenha um caráter exploratório na medida em que a metodologia utilizada tenha como base um levantamento de dados primários, os resultados encontrados sugerem preços significativamente maiores para serviços como o corte de cabelo feminino, por exemplo. As autoras sugerem que o mercado age em duas instâncias: “perpetuando o estereótipo de gênero, de acordo com o qual as mulheres são mais predispostas a gastar mais que os homens e se apropriando do mesmo em benefício próprio” (Fernandez; Silva, 2023, p. 22)3.

Não foram encontrados estudos, até onde a revisão da literatura foi capaz de alcançar, que se detiveram a padrão de consumo no Brasil pensando especificamente a questão racial e a interseccionalidade.

A experiência internacional conta com poucos estudos na temática. Charron-Chénier, Fink e Keister (2017) enfatizam a importância de analisar as disparidades nos padrões de consumo com base em fatores raciais. Tradicionalmente, essas diferenças foram frequentemente atribuídas a preferências pessoais. No entanto, análises conduzidas com dados da pesquisa amostral de despesas familiares dos Estados Unidos, referentes aos anos de 2013 e 2014 (Consumer Expenditure Surveys), revelam que as disparidades raciais no consumo persistem independentemente de outras desigualdades econômicas. Essas disparidades podem ser um elemento crucial, muitas vezes negligenciado, na perpetuação da desigualdade racial. Algumas das razões apontadas para a limitação do acesso dos afro-americanos a bens e serviços em comparação com os brancos incluem restrições no acesso ao crédito e discriminação do consumidor.

Outro estudo nesta linha é de Zaw et al. (2017), analisando as desigualdades de gênero e raça usando como base a riqueza acumulada pelas famílias. Segundo os autores, a riqueza apresenta características substancialmente diferentes entre famílias brancas e negras nos Estados Unidos. Isso ocorre devido à exclusão das famílias negras das oportunidades de acumular riqueza, resultado de décadas de discriminação e negligência por parte do Estado. No entanto, é igualmente crucial considerar a dimensão de gênero nessa análise. Mesmo que as mulheres negras tenham experimentado avanços significativos em termos de emprego, educação e ocupação de cargos de gestão, elas ainda enfrentam consideráveis obstáculos na construção de riqueza em comparação com as mulheres brancas. Isso ocorre, em grande parte, porque as mulheres brancas também se beneficiam amplamente da transmissão de riqueza de geração para geração. Assim, o padrão de gastos de famílias chefiadas por mulheres negras carrega certamente uma marca histórica, de ausência de condições de renda e riqueza, que o diferencia do padrão de uma família chefiada por um homem branco.

Embora o foco deste texto seja avaliar como o consumo das famílias pode ser distinto a partir do sexo e raça/cor do chefe da família, é importante ponderar o que a literatura aborda em relação a padrões de consumo de acordo com composição familiar e renda.

No que se refere à constituição das famílias, os estudos apontam padrões distintos de consumo a depender das faixas etárias dos componentes da família e os arranjos estabelecidos. Há evidências de que a presença de idosos no domicílio eleva os dispêndios com saúde e habitação ao passo que ter crianças em casa influencia em maiores gastos com vestuário, higiene e educação (Pinheiro; Fontoura, 2007). Já no caso das famílias que têm adolescentes, os gastos per capita com vestuário e educação/recreação são maiores frente ao de famílias que não possuem adolescentes (Carvalho, Alves, 2012; Sette; Coelho, 2020). Para faixa etária mais avançada, Sette e Coelho (2020) observam um padrão distinto de consumo, sendo maiores os gastos per capita com saúde. Comparando arranjos familiares, os mesmos autores notam que, nos tipos monoparentais e unipessoais, aqueles chefiados por homens parecem menos atentos aos gastos com habitação, saúde e educação/recreação do que os de chefia feminina.

No que diz respeito à renda, a evidência empírica sugere que a Lei de Engel também se aplica para o Brasil (Sette; Coelho, 2020; Carvalho; Alves, 2010; 2012), ou seja, despesas com alimentação no orçamento das famílias têm trajetória decrescente à medida que se eleva a renda. Porém, vale observar que, quando se avalia alimentação fora de casa, tem-se uma relação direta entre aumentos da renda e os gastos alimentares (Queiroz; Coelho, 2015), certamente devido ao custo ainda elevado de comer fora de casa. Neste contexto e no que se relaciona às outras categorias de consumo, Galvão e Almeida (2018) mostram que, no primeiro e segundo estrato de renda, a maior despesa é alimentação; já no último nível de renda se destaca o gasto com habitação. Os mais ricos apresentam comparativamente aos mais pobres maiores gastos em setores de serviços de modo geral, ao passo que as famílias mais pobres concentram seus gastos em alimentos e produtos básicos (Carvalho et al., 2016).

Pode se inferir, a partir da literatura, que o consumo tem padrão diferente a partir de características sociodemográficas dos indivíduos e das famílias. Entender como se conformam esses padrões distintos não se limita e nem está alheio a normas e estereótipos socialmente construídos. A próxima seção se dedica, assim, a apresentar um marco teórico que auxilie na compreensão das interfaces entre consumo e normas sociais.

2 Gênero, raça e classe: vulnerabilidades cruzadas

A história das mulheres é marcada por vulnerabilidades dentro e fora dos lares, conforme a vivência de um sistema social assentado na dicotomia de poder entre os sexos - o patriarcado. O Patriarcado é uma palavra muito antiga, que mudou de sentido ao longo do tempo, e, hoje, mediante a acepção feminista é entendido como uma formação social marcada pela opressão das mulheres (Delphy, 2009). Após uma longa história de invisibilidade feminina nesse sistema, foi a emergência do movimento feminista que permitiu a denúncia e luta contra as assimetrias de gênero perenizadas no patriarcado.

As feministas, e de modo mais amplo as teóricas do gênero, chamam atenção para o fato que as sociedades patriarcais se organizam por meio de assimetria de funções sociais entre os sexos, sendo aos homens atribuídas as atividades de maior valor e prestígio social como as produtivas e as políticas, e, as mulheres atividades tidas como subsidiárias, de manutenção do lar e dos cuidados familiares.

Em conformidade com a constatação de dicotomia entre o espaço público e privado, as feministas têm teorizado sobre o modo como se organiza o trabalho entre os sexos, sendo as contradições nesse âmbito sintetizadas no conceito de divisão sexual do trabalho. Conforme Hirata e Kergoat (2007), as relações sociais de sexo configuram um modo de organização no qual os homens assumem a função de provedores; no contraponto, as mulheres exercem o papel de cuidadoras das famílias, originando um modelo tradicional de divisão sexual do trabalho. Esse modelo nos tempos modernos convive com outras formas de organização sexual do trabalho nas quais se admite a atuação das mulheres na arena pública, mas a essência do modelo permanece considerando que o cuidado é um atributo feminino.

A naturalização do cuidado como algo inerente às mulheres constrange a atuação social feminina, configurando desigualdades de gênero no mercado de trabalho4, na política e nos espaços de poder na sociedade5. Assim, é notório que estereótipos de gênero conformam a atuação de homens e mulheres, por forças de normas socialmente arraigadas.

Do que se trata esse texto, a literatura já registra padrão de consumo distinto por sexo, que parece, em alguma medida, estar em conformidade com normas de gênero que orientam comportamentos sociais distintos entre homens e mulheres. A responsabilidade pelo cuidado delimita o padrão de consumo das mulheres, sobretudo, daquelas que são responsáveis pelo domicílio. Neste artigo, a proposta é ir para além da questão de gênero e enfatizar que os papéis recortados por cor/raça também são definidores, seja para atuação dentro de espaços públicos como privados. Em um país marcado pelo racismo como o Brasil, olhar a desigualdade para além do gênero é fundamental.

É inconteste que a desigualdade de gênero se faz presente nos mais diversos espaços, mas essa não é a única desigualdade estrutural que marca as sociedades, o racismo também tem forte peso em nações com passado escravocrata. Os países emblemáticos são o EUA e o Brasil, que até hoje têm forte presença de racismo nas relações sociais. O EUA é marcado por hierarquias de sexo/raça/ classe, sendo os negros, em especial as mulheres negras, os possuidores do mais baixo status (Hooks, 1995). O Brasil é um país racialmente desigual, em especial para as mulheres negras, no acesso à educação e à renda, estando os homens brancos no topo da hierarquia social e as mulheres negras na base (Figueiredo, 2008).

Focando na realidade do Brasil, existem inúmeros exemplos de uma cultura impregnada pelo preconceito racial, basta ver nos noticiários os corpos negros sendo mortos de forma brutal, os indicadores de pobreza e vulnerabilidade da população negra, as ofensas em estádios de futebol a jogadores negros, entre outras formas de desumanização dos negros em nossa sociedade. O negro no Brasil, conforme Figueiredo (2008), é associado a coisas ruins nos mais diversos aspectos como a feiura, a burrice, a sujeira, enquanto o branco fica no polo oposto com a representação da beleza, da bondade e da justiça. Portanto, como bem aponta Carneiro (2017), o conflito racial não é possível nublar no Brasil, pois ele permanece estruturando o modo de organização da vida dos brasileiros desde a abolição da escravatura. A democracia racial é uma falácia recorrentemente acessada no país para driblar o fato que a condição de vulnerabilidade do negro é influenciada pela negação de oportunidades e pela discriminação racial.

É sempre bom lembrar, como indica Ribeiro (2018), que ser racista não se limita a matar e destratar severamente uma pessoa negra. O racismo, para a autora, é um sistema opressor que se assenta na negação de direitos a um grupo. Sendo assim, não existe racismo reverso, afinal os negros não possuem poder institucional para oprimir os brancos.

Para lutar contra falácias, como democracia racial e racismo reverso, e construir uma nova identidade e percepção sobre a negritude, o movimento negro se organiza. Nas palavras de Gonzalez (1984), é no movimento negro que se tem o espaço necessário para discutir a opressão racial. A partir daí, desenvolve-se uma consciência política sobre o racismo e sobre os seus efeitos e interfaces com a exploração de classe.

Com base nessas opressões identitárias, dois movimentos sociais se destacam nas sociedades: o movimento feminista e o movimento negro. O primeiro centrado na luta das mulheres; o segundo, na dos negros. Nos primórdios, estes dois movimentos estavam separados, mas existia uma categoria que não se sentia representada em suas necessidades: as mulheres negras. Assim, aflora o feminismo negro, juntando as duas pautas de modo a dar voz a essas mulheres outrora invisibilizadas.

Conforme Collins (2017), o pensamento feminista negro apresenta o ponto de vista das mulheres negras sobre a condição feminina afro, sendo um conhecimento produzido por negras populares conforme seus papéis cotidianos de mães, professoras, músicas, pastoras. Esse movimento, para a autora, traz para o centro da análise as vivências familiares das mulheres afro-americanas e como essas famílias são afetadas pelas opressões de gênero, raça e classe. Carneiro (2017) chama atenção que ser mulher negra acrescenta contradições na luta das mulheres, e o feminismo para ser representativo das necessidades e interesses de todas as mulheres teria que ser capaz de considerar essas contradições. O feminismo negro vem cumprindo esse papel, ao conceder visibilidade a experiência da mulher negra e a distância que as separa da mulher branca sobre a qual não pesa os efeitos deletérios do racismo estrutural. Todavia, conforme Ribeiro (2018), o feminismo negro traz um arcabouço teórico e crítico para problematizar não apenas a condição das mulheres negras, mas sobretudo para refletir sobre o modelo de sociedade que se almeja.

Nessa seara, o debate da interseccionalidade - consideração do imbricamento dos diversos sistemas de opressão que comparecem na realidade - contribui para uma compreensão mais aguçada da experiência real das desigualdades. Embora só recentemente o termo interseccionalidade passe a ter projeção no debate nacional, o pensamento feminista negro desde as gerações de 70 e 80 tem dado centralidade à articulação de gênero, raça e classe para compreender as desigualdades (Rios, Sotero, 2019). A consideração da indissociabilidade das opressões estruturais já era apontada por pensadoras como Angela Davis ao fazer uma análise anticapitalista, antirracista e antissexista, mesmo antes de o conceito de interseccionalidade ter sido cunhado em 1989 por Kimberlé Crenshaw, em sua tese de doutorado (Ribeiro, 2018).

Na perspectiva de Crenshaw (2002), os fatores relacionados às identidades sociais, tais como gênero, classe, casta, etnia, raça, religião, orientação sexual fazem com que existam problemas e vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos de mulheres, ou que afetem desproporcionalmente apenas parte delas. As distintas violações de direitos humanos ficam escamoteadas quando não se leva em conta vulnerabilidades interseccionais de mulheres marginalizadas, mas também de homens marginalizados (Crenshaw, 2002). Desta forma, pensar a interseccionalidade é considerar de modo conjunto as distintas opressões que marcam a sociedade. Não se deve pensar de forma isolada gênero, raça e classe e nem hierarquizar uma dessas formas de opressão social (Ribeiro, 2018).

As evidências são muitas de que o status social, o estilo, a qualidade de vida e o padrão de consumo são influenciados pelas identidades de gênero, raça e classe, portanto, não se pode compreender as relações que se estabelecem na sociedade desconsiderando o intercruzamento dessas identidades. Na temática de consumo familiar, esses fatores identitários não deveriam ser negligenciados, pois padrão de renda, composição familiar, hábitos e preferências não são imunes em sua constituição a normas sociais, seus estereótipos e os comportamentos moldados.

Esta seção contextualizou este cenário de desigualdades cruzadas e fundamentou a importância de uma análise dos determinantes de consumo com olhar diferenciado para estes grupos.

3 Base de dados e metodologia

Para a análise do padrão de consumo brasileiro a partir da ótica da interseccionalidade, gênero e cor/raça, são utilizados os microdados da Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF - realizada nos anos de 2017 e 2018 pelo IBGE6.

A partir da POF, os gastos das famílias são obtidos e classificados em três grupos: despesas correntes; aumento do ativo; e diminuição do passivo. As despesas correntes incluem as despesas de consumo e as outras despesas correntes. Estas últimas correspondem a despesas com impostos, contribuições trabalhistas, serviços bancários (tarifas e taxas), pensões, mesadas, doações e previdência privada.

Neste artigo, o foco foi nas despesas de consumo que correspondem “às despesas realizadas pelas unidades de consumo com aquisições de bens e serviços utilizados para atender diretamente às necessidades e desejos pessoais de seus componentes no período de pesquisa” (IBGE, 2020, p. 16). O padrão de consumo das famílias será analisado a partir de seis categorias de despesas. As categorias de despesa de consumo foram escolhidas por serem as mais representativas em relação a despesa total e por também terem seus reflexos mais diretos em termos de ações e políticas públicas.

  1. Habitação: aluguel; despesas com condomínio; manutenção e pequenos reparos com habitação; eletrodomésticos etc.;

  2. Transporte: ônibus, táxi, metrô, aquisições de combustível (gasolina e álcool) para veículo próprio, aquisição de veículos e despesas com viagens esporádicas, estacionamento, pedágio, etc;

  3. Alimentação: no domicílio e aquelas realizadas e consumidas fora do domicílio;

  4. Educação: mensalidades e outras despesas escolares, curso superior, artigos escolares, uniforme escolar, e outros;

  5. Saúde: medicamentos, serviços médicos, hospitalares e odontológicos;

  6. Outras despesas agregadas: itens como higiene e cuidados pessoais, serviços pessoais, vestuário e recreação e cultura, fumo e despesas diversas7.

O padrão de consumo é analisado segundo diferenças das características individuais da pessoa de referência da família e da estrutura familiar, sempre considerando a questão da cor/raça e do sexo do chefe da família. Na Tabela 1, na próxima seção, os recortes que foram usados são apresentados.

Tabela 1
Características do chefe e da estrutura familiar por sexo e cor/raça da pessoa de referência da família - (2017-2018) - Brasil

Para analisar o padrão de cada item de despesa de consumo, foram construídos gráficos que mostram as relações entre a participação da despesa de cada categoria na despesa de consumo total das famílias brasileiras e os centésimos da renda domiciliar per capita (RDPC). Foram construídas as respectivas curvas de Engel para cada item de despesa, sem considerar fatores adicionais que afetam esta relação (sem controles). Formalmente, as curvas de Engel relacionam os gastos em consumo do bem i com a renda (x), ou seja: piqi=fix, em que pi é o preço do bem i e qi é sua quantidade consumida. Estas curvas são muito utilizadas para entender o padrão de despesas de consumo.

As curvas de Engel não consideram fatores adicionais que afetam a relação das despesas de cada categoria com a despesa total. Entretanto, como é sabido que outros fatores, tais como características individuais, familiares e geográficas, podem também afetar os gastos em consumo de um bem e igualmente interferir no padrão de consumo, optou-se por também estimar as curvas de Engel, controlando para estes demais fatores.

Vale destacar que ao analisar o padrão de despesas em vários bens, também se tem que considerar que podem ocorrer substituição entre eles. Logo, o mais correto usualmente é estimar um sistema de demanda, em que as equações de demandas dos vários bens se inter-relacionam. Estas equações devem ser estimadas de forma simultânea. Neste artigo, foram estimadas curvas de Engel impondo como modelo um sistema de equações aparentemente não relacionadas (SUR). A modelagem SUR permite que os termos de erros das diferentes equações de demanda sejam relacionados. Mudanças em fatores não observados, que afetam um dos itens de demanda, podem igualmente impactar de forma simultânea nos demais. Por exemplo, uma mudança de preferências pode simultaneamente impactar nos gastos em alimentação bem como nos gastos em saúde, e, assim por diante.

A análise dos resultados econométricos será focada apenas nas cinco categorias de despesas de consumo já elencadas. Vale destacar que foi incorporado também no processo de estimação um agregado que engloba as demais despesas que não foram analisadas, para se conseguir estimar o sistema como um todo.

Desta forma, o sistema de equações a ser estimado está descrito na seguinte equação:

(1) y i f = X f β i + ε i f

em que yif representa as despesas totais per capita da família (ou unidade do consumo)8 f na categoria de despesa i. Tem-se seis categorias de despesas calculadas em termos per capita: alimentação, habitação, transporte, saúde, educação e outras despesas. As variáveis explicativas estão descritas na Tabela 1 e agrupadas na matriz X. Estas variáveis captam características familiares e da pessoa de referência da família. O vetor de parâmetros βi é estimado para cada categoria de despesa i.

Como o interesse principal deste trabalho é avaliar as diferenças existentes no padrão de consumo com relação ao sexo e a cor/raça das pessoas de referência das famílias, seguindo de perto as discussões sobre interseccionalidade, os resultados serão apresentados na próxima seção para cada um dos quatro grupos de sexo/cor considerando as variáveis mais relevantes e controlando para as demais. Vale observar que, a partir da modelagem SUR, as equações de demandas de todas as categorias de despesas foram estimadas considerando as interrelações entre os termos de erros estocásticos εif das categorias de despesas.

4 Resultados

4.1 Despesas de consumo e Curvas de Engel

A Tabela 1 revela que, a partir do recorte de sexo das pessoas de referência das famílias, quando mulheres, independentemente da cor/raça, são, em média, mais velhas e mais escolarizadas do que os homens, e quando a questão se trata de cor ou raça, tanto homens brancos quanto mulheres brancas têm, em média, mais idade e anos de estudo do que negros e negras9.

As informações relativas às famílias indicam que a presença de crianças é maior em unidades de consumo em que as pessoas de referências são da cor preta ou parda, independemente do sexo. A presença de idosos é maior em unidades de consumo em que mulheres são as responsáveis, independentemente da cor/raça. Outro dado que merece destaque é a diferença de famílias com pessoa de referência sem cônjuge, especialmente para as famílias chefiadas por mulheres negras. Em mais de 90% destas famílias, as mulheres não tem cônjuge. O fator gênero sobrepõe à raça: famílias chefiadas por homens e com conjuge são aproximadamente o dobro das que tem pessoa de referência mulher. As famílias em que os responsáveis são negros têm maior número de moradores e menor renda domiciliar per capita e, ainda, maior participação no recebimento de programas de transferências de renda condicionadas, como o Programa Bolsa Família (PBF).

Com relação à distribuição geográfica das famílias que compõem a amostra, a Tabela 1 revela que há predominância das famílias que vivem em áreas urbanas. Mais de 70% das famílias brasileiras residem nestas áreas. O Sudeste é a região com maior concentração de famílias em que as pessoas de referência são da cor branca (31,6% para homens e 30,3% para mulheres) e o Nordeste é a região com maior concentração de famílias em que as pessoas de referência são da cor preta/parda (44,6% para mulheres e 37% para homens). A Figura 1 apresenta um retrato das despesas das famílias brasileiras com o consumo das seis principais categorias especificadas anteriormente e, portanto, mostra as relações entre a participação da despesa de cada categoria e os centésimos da Renda Domiciliar Per Capita (RDPC).

Figura 1
Participação das despesas em relação às despesas de consumo total por centésimo de renda domiciliar per capita - (2017-2018) - Brasil

A habitação é a principal categoria de despesa de consumo das famílias brasileiras. A amostra analisada indica que a despesa com habitação no Brasil representa, em média, 41,1% da despesa com consumo total com bens e serviços. Há pouca variação das despesas com habitação ao longo dos centésimos da RDPC, sendo que nos primeiros décimos o gasto é um pouco mais alto (em torno de 42,5%) do que nos níveis mais altos de renda per capita (em torno de 39%).

As despesas com alimentação representam, em média, 20,5% do consumo total das famílias. No entanto, nota-se que essa participação varia substancialmente com o nível de renda. O painel ‘Alimentação’ da Figura 1 revela que a lei de Engel original se verifica para o Brasil. Ou seja, a participação das despesas com alimentação no orçamento das famílias se reduz com a elevação da renda. Para os primeiros décimos de RDPC, a participação destas despesas, em média, chega a atingir 24% das despesas de consumo total destas famílias, enquanto no décimo mais alto de renda, o percentual de gasto com alimentação atinge o patamar máximo de 17%.

A participação das despesas de transporte em relação às despesas totais de consumo fica em torno de 12,9%, em média. O painel relativo à despesa com transporte da Figura 1 mostra que a sua participação aumenta conforme a renda. Tal tendência pode ser explicada na medida em que os itens de maior peso inseridos no grupo de despesa com transporte são associados a aquisição de automóveis, viagens esporádicas, combustível, gasolina, etanol, entre outros (IBGE, 2020). O décimo de renda mais alto das famílias chega a gastar quase 18% da despesa com consumo de bens e serviços. No entanto, observa-se uma grande concentração de despesas com transporte nos percentis inferiores da renda. A concentração nestes percentis, provavelmente, se deve às despesas com transporte público (ônibus urbano e trem, por exemplo).

As participações de saúde e de educação em relação ao consumo total são, em média, de 7,5% e 2,8%, respectivamente. As despesas com saúde mostram uma tendência crescente ao longo dos percentis de renda per capita. Nos primeiro e último décimos de renda, tais despesas representam 4,5% e 8,0% do consumo total das famílias. Com relação às despesas com educação, as famílias brasileiras apresentam também uma tendência crescente, mas principalmente a partir da mediana da distribuição de RDPC. No décimo mais alto de renda, as despesas com educação das famílias chegam ao patamar de 3,8% do consumo total. O item ‘Outras Despesas’ representa um gasto médio de 11% no consumo das famílias brasileiras e o painel da Figura 1 mostra uma tendência decrescente ao longo da renda (em torno de 16% no primeiro décimo e 14% no último décimo de RDPC).

A Tabela 2 mostra de forma mais detalhada as médias das despesas para as seis categorias agregadas de consumo segundo o sexo e a cor/raça do responsável das famílias brasileiras. Nas despesas com relação à habitação e ao transporte, nota-se claramente que há uma distinção de gênero no padrão de consumo da unidade domiciliar, independentemente da cor da pessoa de referência. Com relação à habitação, unidades de consumo chefiadas por mulheres gastam mais do que as chefiadas por homens. Nas unidades onde as mulheres brancas são as responsáveis, por exemplo, despendem-se, em média, 44% da despesa total de consumo com habitação, enquanto naquelas chefiadas por homens brancos, em média, gasta-se 40%. Com relação ao transporte, o percentual de gasto é maior para as unidades de consumo chefiadas por homens do que mulheres. Nas unidades de consumo cujos os homens brancos são referência, o gasto nesta categoria é de aproximadamente 16%. Por outro lado, para as que são chefiadas por mulheres negras, este percentual não é mais do que 9% da despesa total. A Tabela 2 revela ainda que as diferenças entre as despesas com alimentação são ditadas principalmente pela cor/raça do responsável da família, independentemente do sexo da pessoa de referência. As despesas com alimentação em domicílios chefiados por responsáveis da cor preta ou parda representam, em média, 22% das despesas com consumo total. Com relação à saúde e educação, nas unidades de consumo onde as pessoas de referência são brancas gasta-se mais do que nas unidades cujas as pessoas de referência são negras, independentemente do sexo da pessoa de referência. Com relação à saúde, especificamente, as unidades de consumo chefiadas por mulheres brancas (8,76%) tendem a gastar mais do que as chefiadas por homens brancos (8,05%).

Tabela 2
Participação das despesas em relação ao consumo total (Shares) - (2017-2018) - Brasil

A Figura 2 mostra como as despesas com o consumo das seis principais categorias de despesa variam de acordo com a renda segundo as características do sexo e cor/raça da pessoa de referência da família. Com relação ao item ‘Habitação’, as unidades de consumo chefiadas por mulheres gastam mais do que as chefiadas por homens em boa parte da distribuição da renda per capita, independentemente da cor/raça do chefe do domicílio. A exceção se encontra no segundo quarto da distribuição de renda, em que as despesas com habitação das unidades de consumo chefiadas por mulheres pretas ou pardas são menores do que os gastos com habitação das unidades de consumo chefiadas por homens brancos.

Figura 2
Participação das despesas em relação às despesas de consumo total por centésimo de renda domiciliar per capita e por sexo e cor/raça da pessoa de referência da família - (2017-2018) - Brasil

Por sua vez, o painel ‘Transportes’ da Figura 2 revela que, em média, nas unidades de consumo onde os homens são a referência gasta-se mais quando são as mulheres a referência. Isto ocorre ao longo da distribuição de renda, independentemente da cor/raça da pessoa de referência. Com alimentação, há uma tendência de redução ao longo da renda per capita para os quatro grupos analisados, sendo que os grupos em que a pessoa de referência é preta ou parda tendem a apresentar uma despesa maior do que os outros grupos. E, com saúde e educação, nota-se uma tendência de ascendência ao longo dos centésimos de renda per capita, com variações entre os grupos nas despesas de cada item.

4.2 Sistema de equações de demanda

O sistema de equações de demanda para as seis categorias de despesas é estimado separadamente para cada um dos quatro grupos considerando a interseccionalidade da pessoa de referência (homens e mulheres, brancos ou negros). Lembrando que a variável de interesse é a demanda da unidade de consumo e foram utilizados os controles no nível das famílias e com base nas características das pessoas de referência. Neste sentido, toda a análise realizada dos resultados sempre se refere aos efeitos sobre a demanda total da unidade de consumo e não da pessoa de referência específica. Aqui o que se está olhando basicamente é se o tipo da pessoa de referência (gênero ou raça) pode interferir de forma diferenciada nos padrões de consumo das famílias.

Os resultados das estimações das principais categorias de despesas para os quatro grupos demográficos são apresentadas no final desta seção nas Tabelas 3, 4, 5 e 6 e são discutidos a seguir10.

Tabela 3
Estimação das categorias de despesas segundo os grupos de sexo e cor da pessoa de referência
Tabela 4
Estimação das categorias de despesas segundo os grupos de sexo e cor da pessoa de referência
Tabela 5
Estimação das categorias de despesas segundo os grupos de sexo e cor da pessoa de referência
Tabela 6
Estimação das categorias de despesas segundo os grupos de sexo e cor da pessoa de referência
Tabela 7
Estimação das categorias de despesas segundo os grupos de sexo e cor da pessoa de referência

Com relação às características individuais da pessoa de referência, o padrão de consumo muda com a idade, mas de forma significativa apenas para as despesas com educação, transporte, saúde e habitação. Os efeitos são positivos e atingem um pico para depois decrescer em educação, transporte e habitação. Ou seja, as despesas em consumo crescem à medida que a idade das pessoas de referência aumenta, decrescendo após atingir um máximo. No caso da educação, este efeito é mais forte em magnitude para as unidades de consumo cujos chefes são homens brancos e sem significância para as unidades de consumo onde as chefes são mulheres brancas. No caso das despesas com habitação, o efeito segue esta direção de forma significativa apenas para as unidades de consumo com chefes homens pretos/pardos e é invertido para as chefes mulheres brancas. As unidades de consumo chefiadas por mulheres brancas que envelhecem gastam menos em termos per capita em habitação até um determinado patamar mínimo.

No que diz respeito aos gastos com transporte, os efeitos são positivos até um determinado ponto e depois decrescem, mas sobretudo para aquelas unidades chefiadas por homens. Nas unidades de consumo com pessoas de referência homens, à medida que estes se tornam mais velhos, gasta-se mais com transporte comparativamente às unidades de consumo com chefes homens mais novos. Isto não acontece para as unidades de consumo chefiadas por mulheres. Já os gastos em saúde são crescentes com a idade, coerente com a associação com o envelhecimento e aumento da demanda de produtos e serviços de saúde. Há mais gastos com remédios, planos de saúde e médicos. Este efeito é mais forte nas unidades de consumo chefiadas por homens e mulheres brancos do que as chefiadas por homens e mulheres pretos ou pardos.

Quanto ao total de anos de estudos da pessoa de referência, nota-se que para todos os gastos o efeito é positivo. Quanto maior a escolaridade da pessoa de referência, maiores são os gastos em consumo, contudo de forma mais intensa na categoria de despesas em habitação. Em sequência, tem-se um maior aumento nas seguintes despesas da unidade de consumo: transporte, alimentação, educação e saúde. Todos os coeficientes são significativos e positivos para todos os grupos, contudo, maiores em magnitude, primeiro para as unidades de consumo chefiadas por homens brancos e depois para as chefiadas por mulheres brancas, homens negros e mulheres negras. Este resultado sugere que as unidades de consumo chefiadas pelos grupos usualmente com melhores condições sociais, ou seja, homens brancos e depois mulheres brancas, e, com mais escolaridade, gastam mais, por possivelmente terem mais chances de se inserir no mercado de trabalho, e consequentemente conseguirem ter mais recursos para despesas maiores no domicílio com habitação, transporte (deslocamentos casa-trabalho), alimentação fora de casa etc. Já nas unidades de consumo chefiadas pelos grupos mais vulneráveis, como homens negros e mulheres negras, mesmo os mais escolarizados, o padrão de despesas é inferior. Esses achados corroboram o que aponta o debate teórico sobre experiências distintas devido ao imbricamento de vulnerabilidade conforme fatores identitários interseccionados, neste caso gênero e raça.

No tocante às características geográficas, domicílios localizados na área rural possuem um menor padrão de gastos, sobretudo em habitação, alimentação (somente para domicílios chefiados por homens brancos é significativo) e educação. O resultado é coerente tendo em vista que os gastos nestes quesitos nas áreas urbanas são maiores independente do grupo. Já para a categoria de despesas com transporte, o efeito é positivo, possivelmente devido às maiores distâncias na área rural. Para aqueles que precisam se deslocar, as despesas com transporte são maiores que na área urbana onde há opções de transporte público e distâncias menores.

Com relação às regiões, observa-se que o padrão de consumo é mais alto nas regiões mais desenvolvidas - Sul e Sudeste. A região Norte é a que tem o padrão de consumo mais baixo. Sobressaem-se as despesas em habitação na região Sudeste e educação no Sudeste e no Centro-Oeste. Também se destaca que as diferenças entre os grupos são maiores entre as unidades de consumo chefiadas por homens e mulheres brancas sobretudo no Sudeste e nas despesas principais, de habitação, saúde e educação.

Para as características familiares, a comparação é feita para uma família sem idoso e sem criança (arranjo familiar de referência). Nota-se que para os arranjos familiares com idosos, os gastos com saúde são mais altos em relação ao arranjo familiar de referência, e as diferenças em magnitude são grandes entre arranjos chefiados por homens e mulheres brancos comparativamente aos chefiados por homens e mulheres pretos e pardos. Já com relação aos gastos com educação, os arranjos familiares com crianças e sem idosos são os que apresentam maiores despesas comparativamente ao arranjo de referência. Estas são maiores em magnitude para as unidades de consumo chefiadas por mulheres brancas, seguidas das chefiadas por homens brancos e depois, mulheres pretas e pardas. Ou seja, dois resultados importantes, as famílias com crianças têm, como esperado, maiores gastos com educação, mas sobretudo aquelas que têm como pessoa de referência mulheres. As que têm pessoas de referência mulheres brancas gastam mais em educação que as que têm os homens brancos como referência. Nas unidades de consumo com mulheres pretas e pardas como pessoas de referência, gasta-se também mais em educação que as que têm homens pretos e pardos como referência. Estes resultados sinalizam para um padrão de consumo conforme o estereótipo de gênero de mulher cuidadora. As famílias com idosos com ou sem crianças, por sua vez, gastam menos em educação comparativamente ao arranjo de referência. Mesmo que tenham crianças nestes arranjos familiares, a alocação de gastos por outras categorias de despesas faz com que a parcela em educação seja menor comparativamente a um outro arranjo familiar que só tenha crianças.

No que tange ao efeito da renda sobre as despesas de consumo, todos os coeficientes estimados foram significativos e positivos para todas as categorias de despesa e grupos. Também se verifica que o efeito da renda sobre as despesas com alimentação é maior em magnitude para os grupos mais vulneráveis conforme o racismo estrutural, ou seja, os domicílios chefiados por homens e mulheres pretos e pardos do que para homens e mulheres brancas. Em relação aos gastos com alimentação, o efeito da renda segue a literatura, onde o efeito de um aumento da renda sobre as despesas com alimentação é mais sensível para as famílias usualmente mais pobres. No caso deste estudo, as famílias chefiadas por homens e/ou mulheres pretos e pardos11.

Para as demais categorias de despesas, sempre a renda tem um efeito positivo, mas o único resultado que se destaca é com relação aos gastos em saúde. Para as chefes mulheres, independentemente da cor/raça, o efeito renda sobre os gastos em saúde são maiores do que o efeito para os homens. Isto pode indicar uma maior preocupação das mulheres com a saúde comparativamente aos homens, seguindo comportamento socialmente esperado de mulher ser mais atenta aos cuidados. Na categoria educação, as despesas das unidades de consumo chefiadas por mulheres aumentam mais com a renda do que nos domicílios chefiados por homens brancos apenas, mas não para os domicílios chefiados por homens pretos e pardos, onde o efeito foi maior.

Em resumo, os resultados apresentados confirmam que o padrão de consumo das famílias difere não somente no que tange às características familiares e geográficas, mas sobretudo considerando a interseccionalidade em termos de sexo e raça/cor dos chefes. Dependendo da categoria de consumo, os efeitos são mais fortes e mais significativos. Este resultado mostra que a vulnerabilidade fruto da interseccionalidade de fatores identitários pode estar influenciando o bem-estar em termos de consumo das famílias.

As evidências sugerem que as unidades de consumo com chefes negros, em especial mulheres negras, tem um nível de consumo mais baixo que dos chefiados por brancos e que algumas despesas tem um peso maior no orçamento desse grupo, devendo os formuladores de políticas públicas terem atenção a esse fato. Pode-se, por exemplo, nas propostas de reforma tributária pensar alívio de carga tributária para esses grupos de despesa que vem onerando os socialmente mais vulneráveis. As pistas estão dadas de que padrão de consumo não é neutro do ponto de vista de gênero e raça e de sua interseccionalidade.

Considerações finais

A literatura tem se debruçado a compreender o padrão de consumo das famílias brasileiras e as mudanças em curso no bojo das novas tendências demográficas e sociais. Este trabalho, a fim de possibilitar o avanço da literatura e de proposições de políticas públicas mais aderentes às necessidades da população, focou na análise interseccional - cruzamento de gênero e raça.

Os achados apontam um padrão diferenciado de consumo conforme o sexo e raça/cor das pessoas de referência das unidades de consumo. De forma geral, os resultados mostram diferenças de gênero no padrão de consumo das famílias com relação às despesas com habitação e transporte, independentemente da cor ou raça da pessoa de referência. Com relação à habitação, as unidades de consumo chefiadas por mulheres gastam mais do que as chefiadas por homens. Com relação ao transporte, ocorre o contrário, nas unidades de consumo chefiadas por homens gasta-se mais. Quanto aos padrões de consumo por raça, os resultados sugerem que nas despesas com alimentação, nas unidades de consumo cujos chefes são negros gasta-se mais do que quando os chefes são brancos, independentemente do sexo da pessoa de referência. Nas despesas com saúde e educação, isto se inverte. São as unidades de consumo chefiadas por brancos que gastam mais. Olhando para o sexo e especificamente para gastos em saúde, são as unidades de consumo chefiadas por mulheres brancas que tendem a gastar mais neste quesito.

Alguns resultados da estimação econométrica mostram de forma mais detalhada os fatores que explicam tais distinções. Destaca-se que para os gastos em saúde, o envelhecimento parece atingir de forma diferente o grupo de homens e mulheres brancos do grupo de homens e mulheres negros, sendo que para os brancos o envelhecimento parece vir acompanhado de maiores despesas com saúde na unidade domiciliar. Outro dado importante diz respeito à importância da escolaridade para maiores gastos em diferentes categorias de despesas. Para transporte, saúde, alimentação e educação, um chefe de família mais escolarizado induz maiores gastos do domicílio nestes quesitos. Contudo, a interseccionalidade mostra que o efeito é diferenciado segundo a cor/raça e o sexo do chefe de família. Os efeitos são sempre maiores para o grupo de unidades de consumo com pessoas de referência homens e mulheres brancas comparativamente aos homens e mulheres negras. Em termos geográficos, identifica-se que morar na área rural parece ser menos custoso sobretudo para os chefes de família que são homens negros ou mulheres negras.

Com relação aos gastos com educação, os arranjos familiares com crianças e sem idosos são os que têm as maiores despesas comparativamente aos arranjos sem idosos e crianças. Estes gastos são maiores em magnitude para famílias chefiadas por mulheres brancas, seguidas dos homens brancos e depois por mulheres negras. Ou seja, as famílias com crianças têm, como esperado, maiores gastos com educação, mas, sobretudo aquelas que são chefiadas por mulheres.

Em relação à questão de gênero, aventa-se que o padrão diferenciado de consumo vincula-se as normas sociais que atribuem a mulheres e homens papéis sociais peculiares, com a primeiras tendo suas funções vinculadas as responsabilidades domésticas e de cuidados e os segundos com a vida pública e provisão material. No que tange a questão racial, o padrão de consumo diferenciado guarda relação com a maior vulnerabilidade econômica e social que os negros experimentam em uma sociedade racista como a brasileira e uma tendência recente de valorização da cultura afro. Ao se cruzar sexo e raça/cor, percebe-se que a sobreposição de vulnerabilidades por fatores identitários dão o tom de um padrão de consumo diferenciado.

Os resultados encontrados nesta pesquisa são um importante passo para a compreensão das diferenças entre hábitos de consumo no Brasil, e mostram-se um instrumento poderoso no auxílio da formulação e aperfeiçoamento de avaliação de políticas públicas direcionadas à tributação sobre o consumo e aos efeitos de programas de transferência de renda às famílias de baixa renda. Mediante a maior crise sanitária do último século, compreender o padrão de consumo das famílias brasileiras pode ser um subsídio na proposição de políticas públicas mais eficazes na promoção de uma sociedade mais justa e com maior igualdade de gênero e raça.

Vale destacar que a análise do recorte gênero e raça sobre os padrões de consumo das famílias é uma agenda em construção, muito promissora para o futuro de pesquisas que centram sua preocupação em questões identitárias e a importância de sua compreensão de forma sistemática na realidade. Este artigo se insere neste campo e constitui uma contribuição inicial para este olhar, tendo em vista a relevância de políticas públicas mais aderentes ao enfrentamento das vulnerabilidades decorrentes de questões estruturais e históricas do Brasil.

  • JEL: D12, J15, J16.
  • (1)
    Com relação a referências da evidência internacional sobre os determinantes de consumo de forma geral, os estudos de Angus Deaton são bastante abrangentes e contemplam áreas que tratam de sistemas demanda de consumo, variações intertemporais de consumo e a relação entre consumo e pobreza para países em desenvolvimento, em especial os seguintes trabalhos Deaton e Muellbauer (1980); Deaton (1992) e Deaton (1997). Para uma análise mais específica em relação à composição familiar e consumo, ver Browning e Chiappori (2014, cap. 2). Blundell, Pashardes e Weber (1993) também mostram uma análise extensiva sobre padrões de consumo (sistemas de demanda) com base em microdados.
  • (2)
    Estas disparidades de preços com base no gênero estão presentes em vários setores, mas um setor em que tal encargo fica bem explícito é o de higiene e cuidados pessoais. Ver também os estudos de Harvard Law Review (1996) e Duesterhaus (2011) para o caso da California e cidades do sudoeste dos Estados Unidos, respectivamente.
  • (3)
    Para uma análise do Pink Tax para o caso brasileiro fora do campo da Economia, ver Umerara (2020) e Telles (2021) que analisam o encargo do ponto de vista do campo da Administração e do Direito, respectivamente.
  • (4)
    No mercado de trabalho, a maior presença feminina na força de trabalho não conseguiu reverter ainda os menores salários, o maior desemprego, a maior informalidade do trabalho, e as mais restritas proteções trabalhistas e previdenciárias (Guedes; Araújo, 2011; Pinheiro et al., 2016; Biroli, 2018; Passos, 2018).
  • (5)
    Na política e espaços de poder, a presença feminina ainda é bem dispare da masculina, dificultando a vocalização das demandas femininas nas diversas instâncias de representação social (Biroli, 2018; Romero; Kerstentzky, 2015; Melo; Thomé, 2018).
  • (6)
    A POF é uma pesquisa realizada com um intervalo temporal de ao menos cinco anos, que fornece informações sobre a composição dos orçamentos domésticos das famílias, a partir da investigação e mensuração de estruturas de consumo, dos gastos e dos rendimentos, segundo as características dos domicílios e das pessoas. A amostra da POF 2017-2018 foi concebida segundo o conceito de amostra mestra do Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares - SIPD, que o IBGE adota para todas as pesquisas domiciliares por amostragem. A amostra mestra investiga todos os estratos socioeconômicos da população definidos na amostra mestra ao longo do ano da pesquisa (IBGE, 2020). Na amostra da POF atual foram investigados 1900 municípios, equivalendo a 5504 setores censitários, com resultados por nível geográfico para o Brasil, Grandes Regiões e todas as Unidades da Federação (UF), áreas urbanas dos municípios das capitais e de algumas regiões metropolitanas. A POF 2017-2018 cobriu um período de doze meses, entre julho de 2017 e julho de 2018, tendo como data de referência 15 de janeiro de 2018, quando o salário-mínimo (SM) era de R$ 954,00. A amostra da POF 2017-2018 abarcou 57.920 domicílios - 58.039 unidades de consumo ou famílias -, com 178.369 residentes, o que representa aproximadamente 69.017.704 de famílias brasileiras. Segundo a POF (IBGE, 2021), “a Unidade de Consumo é a unidade básica de investigação e análise dos orçamentos”. Portanto, neste trabalho, o termo “família” será considerado equivalente à unidade de consumo.
  • (7)
    Para uma análise mais detalhada da composição de cada categoria de despesa de consumo ver IBGE (2019).
  • (8)
    Por simplificação, foi considerado que cada unidade de consumo será tratada como uma unidade domiciliar.
  • (9)
    Neste trabalho, na definição de cor ou raça, seguiu-se a classificação adotada pelo IBGE, sendo usado os termos ‘negro’ e ‘negra’ ou ‘preto e pardo’ e ‘preta e parda’ como equivalentes.
  • (10)
    Optou-se por não analisar a categoria “outras despesas agregadas” que engloba um grupo muito heterogêneo de itens de consumo. Importante também ressaltar que foi priorizada a análise dos coeficientes significativos a pelo menos a 10% e que se diferenciam entre os grupos.
  • (11)
    O estudo recente de Costa et al. (2023) faz uma análise específica de dados de consumo alimentar por raça/cor da pele. Os resultados do estudo revelam que pretos e pardos corresponderam à categoria com maior consumo de alimentos in natura e minimamente processados. Os autores argumentam que, apesar de as categorias de raça/cor preta, parda e indígena apresentarem consumo convergente ao que é recomendado pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, estas evidências podem estar associadas a condições socioeconômicas e demográficas.

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  • EDITOR RESPONSÁVEL PELA AVALIAÇÃO Carolina Troncoso Baltar

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2023
  • Aceito
    15 Fev 2024
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