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Pressupostos dialéticos acerca do socialismo e projetamento na China de hoje

Dialectical assumptions about socialism and projectment' in today’s China

Resumo

A crescente influência sobre o mundo transformou a compreensão da China em ordem do dia. Este artigo pretende enfrentar essa investigação no sentido da superação do entendimento comum que enquadra a experiência chinesa em categorias analíticas fixas, buscando configurar uma nova determinação racional em que “o conceito se manifesta no movimento real”. Por se tratar de uma vivência que se desenrola no contexto da luta anti-imperialista, admitimos que o socialismo chinês se desenvolve baseado no marxismo como ciência do poder político em oposição aos postulados do chamado “marxismo ocidental”. Propugnamos que, sem uma nova gramática cognitiva que permita pensar e conhecer o fluxo da totalidade de contrários do ser histórico, a ciência social pouco avançará na produção de teorias, conceitos e categorias que correspondam a uma visão de profundidade deste fenômeno único na história. Concluímos nosso exame da experiência chinesa a partir de duas categorias fundamentais: socialismo e projetamento.

Palavras-chave:
China; Marxismo; Dialética; Projetamento; Socialismo

Abstract

With the country’s growing influence over the world has made understanding China the order of the day. This article intends to confront this investigation in order to overcome the common understanding that frames the Chinese experience in fixed analytical categories, seeking to configure a new rational determination in which “the concept manifests itself in real movement”. Because it is an experience that unfolds in the context of the anti-imperialist struggle, we admit that Chinese socialism develops based on Marxism as a science of political power in opposition to the postulates of the so-called “Western Marxism”. We argue that, without a new cognitive grammar that allows thinking and knowing the flow of the totality of opposites of historical being, social science will make little progress in the production of theories, concepts and categories that correspond to an in-depth vision of this unique phenomenon in history. We conclude our examination of the Chinese experience from two fundamental categories: socialism and design.

JEL: O1, O2, P2.

Keywords:
China; Marxism; Political power; Projectment; Socialism

Introdução

Dispensa palavras a crescente influência exercida pela China no mundo. Ao menos 140 países têm na grande nação oriental o seu principal parceiro comercial. Não é diferente no Brasil. Em 2022 a participação chinesa nas exportações brasileiras cresceu 56% em relação ao ano de 2013 (Comex Stat/MDIC). Por isso discussões sobre a natureza da relação entre os dois países são parte fundamental do debate público e acadêmico. Sempre bom frisar que o processo de desindustrialização por qual tem passado o Brasil nas últimas décadas tem sido espelhado nas suas exportações ao país asiático. Em 2022, a soja foi responsável por 36% da pauta, seguida por minério de ferro e concentrados (20%) e petróleo bruto ou minerais betuminosos (18%).

Fica evidente que um ciclo vicioso de dependência está sendo construído na relação entre Brasil e China, o que não necessariamente implica em alienação da nossa soberania nacional, mas demanda de nossa parte uma discussão mais profunda sobre o projeto de desenvolvimento da base material da nação para a consecução das grandes tarefas internas e externas que envolvem nosso destino coletivo. O futuro das relações entre os dois países depende em grande medida da construção de uma nova maioria política no Brasil, capaz de perceber as tendências abertas pela ascensão chinesa à planificação de nosso processo de reindustrialização.

No plano internacional os chineses são responsáveis por quatro grandes iniciativas globais, sendo a primeira a Iniciativa Cinturão e Rota que completou dez anos e é responsável por investimentos, que a depender da fonte, varia de US$ 1 trilhão e US$ 1,5 trilhão, contando com a participação de cerca de 150 países envolvidos em um grande programa de conexão global abrangendo milhares projetos de infraestruturas. Esse protagonismo levou autores como Vadell e Burger (2019)VADELL, J.; SECCHES, D.; BURGER, M. De la globalización a la interconectividad: reconfiguración espacial en la iniciativa Belt & Road e implicaciones para el Sur Global. Revista Transporte y Territorio, n. 21, p. 44-67, 2019. a trabalharem com a visão de “globalização instituída pela China”. As outras iniciativas visam expor a visão chinesa de “comunidade de destino compartilhado” (Staiano, 2023STAIANO, M. F. Chinese law and its international projection building a community with a shared future for mankind. Singapore: Springer, 2023.). Os empreendimentos para “a civilização global”, para a “segurança global” e o “desenvolvimento global” expressam as ideias-força da presença no mundo da milenar civilização chinesa e exprimem as filosofias tolerantes e civilizatórias que emergiram de seus ricos vales férteis (Jabbour, 2006JABBOUR, E. Considerações gerais sobre o marxismo e a Ásia. Revista Princípios, n. 82, p. 46-50, 2006.; Mamigonian, 2008MAMIGONIAN, A. A China e o marxismo: Li Dazhao, Mao e Deng. In.: DEL ROIO, M.: (Org.). Marxismo e Oriente: quando as periferias tornam-se os centros. Marília: Ícone, 2008.).

Mas, por que conhecer a experiência de construção do socialismo chinês seria importante para o Brasil? Ora, já foi dito acima que a China já está fortemente presente em nossa economia e, em benefício dos nossos próprios interesses, não estaremos prontos para apreciar as possibilidades abertas por este projeto sem o desenvolvimento de uma teoria adequada sobre aquela formação econômico-social nova (Jabbour; Dantas; Espíndola, 2021JABBOUR, E.; DANTAS, A.; ESPÍNDOLA, C. China and market socialism: a new socioeconomic formation. International Critical Thought, Pequim, v. 11 n. 1, p. 20-36, 2021.). Não obstante, podemos atestar que além de grande déficit de big picture também estamos em completo desacordo entre as ocorrências fenomenológicas chinesas e as narrativas que se propõe a monopolizar o pensamento acerca da sua dinâmica.

Parte da impotência nas interpretações das ciências sociais brasileiras sobre a China é fruto das drásticas mudanças executadas na teoria do conhecimento, notadamente as ocorridas partir dos anos 1990. Após a queda da URSS, e ascensão da globalização neoliberal, a guerra cultural imperialista se esmerou em apoiar o resgate de antigas questões teóricas já debatidas em seus respectivos tempos históricos sob nova roupagem, reciclando como novidades um arsenal gnosiológico adequado para o novo tempo do “fim da história”. A ilusão de que uma nova fase das relações históricas e sociais estava inaugurada no mundo, completamente distinta das anteriores e tão diferente que só poderíamos chamá-la de pós-moderna (Lyotard, 2009LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.), ficou bem para naturalizar o domínio global do capital financeiro, do determinismo tecnológico e das nações do G7 sobre os demais povos que, segundo essa visão, ainda tentavam ser “modernos”.

A perda da capacidade de operar com teorias, conceitos e categorias da totalidade histórica objetiva, bem como o temor de se comprometer com a efetividade da luta de classes, conduziu os dispositivos de entendimento das ciências humanas e sociais a debilidades práticas, cedendo o palco principal para iluminopositivistas1 (1) “A transferência dos mecanismos epistêmicos de objetividade da física e de neutralidade da linguagem matemática para o saber das humanidades é o que constitui o horizonte de interpretação do cientificismo iluminopositivista” (Capovilla, 2020, p. 311). e pós-modernos, reduzindo o conjunto da teoria social ou ao formalismo matemático dos modelos e empiricismo dos dados ou a “narrativa de propósito moral” (Fernandes, 2020, p. 17FERNANDES, L. O enigma do socialismo real. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.) e “essencialismo identitário multiculturalista” (Rockhill, 2023ROCKHILL, G.; DINGQI, Z. Imperialist propaganda and the ideology of the western left intelligentsia: from anticommunism and identity politics to democratic illusions and fascism. Available at: https://monthlyreview.org/2023/12/01/imperialist-propaganda-and-the-ideology-of-the-western-left-intelligentsia/. Access: Dec. 10, 2023.
https://monthlyreview.org/2023/12/01/imp...
). Ambas as unilateralidades opõem categoricamente a liberdade individual da necessidade coletiva.

Há, em nossa compreensão, uma conexão teórica profunda, mas encoberta pela ideologia dominante, entre a incredulidade nos chamados metarrelatos científicos, políticos, éticos e estéticos, característica da atmosfera pós-moderna, e o resultado atual do desequilíbrio cognitivo caracterizado pela indiferença para com a verdade em sua dimensão objetiva, chamada de pós-verdade (Palácio, Capovilla, 2021PALÁCIO, F.; CAPOVILLA, C. Posverdad: etapa suprema de la postmodernidad. In: MANCINAS-CHÁVEZ, Rosalba; CÁRDENAS-RICA, María Luisa (Org.). Medios y comunicación en tiempos de posverdad. 1. ed. Madri: Editorial Fragua, 2021. v. 1, p. 183-203.). Argumentamos no sentido de que tanto o ambiente pós-moderno quanto as diretrizes iluminopositivistas ainda giram em torno às cisões produzidas e reproduzidas por nossas disposições discursivas desde a modernidade, em particular aquela que opõe o conhecimento à liberdade, a teoria à prática cuja grande exposição reside no edifício erguido por Immanuel Kant (Capovilla; Palácio, 2020CAPOVILLA, C; PALÁCIO, F. Visões da pandemia. As teses de Giorgio Agamben como idealizações do Ocidente. Princípios, v. 1, p. 24-59, 2020.).

O próprio marxismo não escapou a esta tendência. Desde o período pré-Revolução Russa, em meio à barbárie provocada pela 1ª Guerra Mundial, já era visível a existência em seu interior de concepções catastrofistas, céticas e moralistas da história. O chamado Marxismo Ocidental, ao romper com o enfrentamento anticolonial, ensimesmado com as questões propriamente europeias, também recusou assumir os problemas e desafios da luta pela conquista do poder político e a independência nacionais (Losurdo, 2018, p. 179LOSURDO, D. O marxismo ocidental – como nasceu, como morreu, como pode renascer. São Paulo: Boitempo, 2018.). Daí a crítica enfática, implacável e peremptória que até hoje se faz presente nas análises do marxismo europeu à dinâmica do socialismo chinês.

Diante dos óbices compreensivos que uma nova formação econômico-social denota para as ciências humanas e sociais, os modelos epistêmicos de base iluminopositivista e pós-moderno têm-se imposto com frequência quando o assunto é a China. É comum perceber nos tópicos sobre a experiência da nação oriental grande consenso sobre a natureza de sua dinâmica que abrange escolas de pensamento tão distintas como economistas neoclássicos até marxistas ocidentais, todos concordando com a visão etapista do próprio capitalismo, que pode ser tanto de “livre-concorrência” quanto “de Estado” e seus diversos derivados, tais como “empreendedor”, “empresário”, “desenvolvimentista”, “planejador”, “vigilante” etc.

A proposta deste artigo é dar continuidade a construção teórica, conceitual e categorial que nos possibilite entregar uma interpretação alternativa e de profundidade sobre a China. De forma sintética, intentamos aqui, aproveitando de uma necessária polêmica intelectual aprofundar o que temos construído em termos de uma visão brasileira sobre o processo em curso na China – notadamente apresentando novos desenvolvimentos teóricos sobre a “Nova Economia do Projetamento”, além de uma visão mais acurada sobre o significado da categoria de socialismo2 (2) Este tipo de empreendimento intelectual, por se tratar de uma busca permanente pela fronteira do conhecimento em temas que nem sempre se relacionam (socialismo e desenvolvimento econômico; planejamento x projetamento; marxismo europeu e marxismo asiático) podem induzir a uma leitura truncada dos artigos que temos apresentado, incluindo este. Acreditamos que é parte da construção de uma coerência categorial e conceitual uma certa falta de fluidez entre os temas, limite este muito comum ao estado da arte das ciências humanas e sociais e no tratamento de fenômenos de alta complexidade como a processo histórico de constituição e desenvolvimento da República Popular da China. .

Nosso ponto fundamental é a reivindicação realista e histórica do marxismo como ciência do exercício do poder político. A nosso ver, como Losurdo (2022)LOSURDO, D. A questão comunista. São Paulo: Boitempo, 2022. destacou, é improdutivo e formalista não pensar o marxismo enquanto compreensão científica da transformação da realidade.

O marxismo e sua ressignificação no Oriente

Compreendemos que a questão fundamental aos marxistas, desde a experiência da Comuna de Paris, reside no amplo e complexo campo do exercício do poder político. É nessa atividade transformadora da realidade que se encontra causas e consequências dessa ciência. O exercício político da transformação efetiva abrange necessariamente a compreensão acurada da dinâmica do capitalismo contemporâneo, pois que é sobre e contra ele que opera esse poder. Ambos – atividade política e compreensão do capitalismo – constituem o núcleo duro do desenvolvimento teórico e conceitual do marxismo. É exatamente neste sentido que a experiência chinesa é prolífera em engendrar matérias e domínios inovadores no âmbito das ciências humanas e sociais.

A composição político-social nucleada por forças que advogam o sentido socialista – notadamente o bloco histórico formado pelo Partido Comunista da China (PCCh), incluindo seu braço armado, o Exército de Libertação Popular (ELP) e seus aliados – executa as transformações mediante novos arranjos nas relações e forças produtivas, como também no âmbito cultural e epistêmico. São os frutos desse movimento real e laborioso que possibilitam o estado da arte na construção teórica e categorial do socialismo científico atual. Nesses parâmetros, somos obrigados a recusar caracterizações do marxismo assentado no ascetismo moral sob os auspícios de “redenção daqueles que ocupam o último degrau da hierarquia social, a redenção dos pobres e dos ‘pobres de espírito’” (Losurdo, 2020, p. 116LOSURDO, D. Marx, Cristóvão Colombo e a Revolução de Outubro – Materialismo histórico e análise das revoluções. In: MORAES, J. (Org.). Losurdo: presença e permanência. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020.).

É desse exercício prático e sistemático que deriva a essência conceitual do socialismo. Faz-se expressão do domínio político da maioria da sociedade sobre as condições assimétricas de uma realidade histórica determinada pelo capitalismo, ou, dito de outro modo, é o trabalho de planejamento metódico e persistente no sentido da superação da lei do desenvolvimento desigual enquanto “lei fundamental do período de transição do capitalismo para o socialismo” (Lefebvre, 2020, p. 206LEFEBVRE, H. (1955). O pensamento de Lênin. São Paulo: Lavrapalavra, 2020.). É somente como resultante do percurso construtivo do socialismo que se engendra e se desenvolve categorias como a do “projetamento” (Rangel, [1959] p. 205), pois que implica nas condições para transformar as demandas fundamentais do desenvolvimento da sociedade em tecnologia do conceber, configurar e aplicar projetos estratégicos de interesse coletivo em detrimento do capital e do mercado. Ao elevar a desordem e o fracionamento na execução da dinâmica produtiva à condição de ciência do projetamento, a China conforma, através do poder político, o trabalho de engenheiros, economistas, cientistas e outros atores relevantes para a resolução consciente das demandas sociais, transformando-os em verdadeiros instrumentos da atividade da racionalidade social.

O “projetamento” nos remete ao próprio Marx em seu seminal texto “Fragmento sobre as máquinas” em que expõe, como ponto de chegada, o que um dia chamou de “força do saber objetivada” (Marx, 1857-1858 [2011], p. 944MARX, K. (1857-1858). Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.). Segundo Losurdo (2022, p. 139)LOSURDO, D. A questão comunista. São Paulo: Boitempo, 2022.

O prodigioso desenvolvimento contínuo de energias renováveis que não necessitem de combustíveis fósseis (limitados e altamente poluentes) demonstra mais uma vez que os avanços da tecnologia, essa ‘força do saber objetivada’ humana, identificada e celebrada por Marx, contêm um potencial efeito prodigioso de libertação, tanto no que diz respeito às relações sociais como no tocante às relações entre o homem e a natureza. Só que esse resultado está longe de ser óbvio. Na verdade, será inatingível enquanto a ‘ciência’ continuar a ser obrigada a ‘servir ao capital’

Desse modo, também compreendemos o socialismo como sistema do exercício prático do poder político na transformação da realidade, em que conceitos e categorias como “desenvolvimento desigual”, “planejamento” e “projetamento” absorvem o fluxo dos acontecimentos em constante tensão dialética para aplicação aos desafios da conjuntura. Por isso mesmo essas determinações ocupam a centralidade na investigação e exposição analítica do socialismo chinês. Substancialmente, todo esse sistema categorial são extensões da luta de classes – compreendida como luta política – assimilada teoricamente e que, em seu conjunto, buscam superar o reducionismo empírico inerente às noções de “classe x classe”.

Historicamente, após ondas de concentração e centralização do capital, fusão entre capital bancário e industrial, crescente demanda por matérias-primas e novos mercados, o capitalismo expandiu e entrou no seu período desmesurado, imperialista. Inicia-se, com isso, o curso em que as contradições centro-periferia tornar-se-iam contundentes a ponto de deslocar o centro de gravidade da revolução social e da questão nacional das metrópoles às colônias. Na Ásia este processo histórico torna-se mais violento com a irrupção das Guerras do Ópio (1839-1842), deflagrada pela Inglaterra contra a China, seguida por ondas de rebeliões camponesas, como a Taiping (1850-1864) e a dos Boxers (1899-1901). Movimentos semelhantes ocorriam nas penínsulas coreana e da Indochina. Embora extremamente violentos, colonialistas e humilhantes aos povos locais, tais conflagrações passam ao largo do horizonte de interpretação eurocêntrico. Ao mesmo tempo em que ganhos teóricos e jurídicos das liberdades individuais do liberalismo eram garantidas no centro, foram sumariamente negadas aos povos sob o jugo das potências europeias.

Marx e Engels, influenciados tanto pelas revoluções de 1848 quanto pelo surgimento dos novos esquemas de divisão social do trabalho, conjecturaram que as primeiras experiências socialistas deveriam ocorrer nos centros mais desenvolvidos do sistema. Essa conclusão circunstancial estava coerente com o campo de ação política do movimento comunista à época. Por outro lado, também devemos lembrar que dos fundadores do socialismo científico surgiram interpretações originais sobre as diferentes formas de produção e troca na periferia, notadamente a formulação acerca do modo de produção asiático, conceito fundamental à compreensão da China e do seu socialismo de mercado (Jabbour, 2012JABBOUR, E. China hoje: projeto nacional, desenvolvimento e socialismo de mercado. São Paulo: Anita Garibaldi, 2012.).

Diante do domínio político-econômico do imperialismo, o mundo passou a viver sob os signos da guerra global e violência metódica. Essa crescente tendência de “reação em toda linha” da atual fase do capitalismo foi esmiuçada por Lênin em uma sofisticada elaboração teórica cujo teor explicativo abarca o fenômeno da 1ª Guerra Mundial. O conflito iniciado no centro do sistema não somente abriu as portas para a Revolução Russa, como também resultou, a partir do Tratado de Versalhes, na entrega dos territórios chineses ao Japão. Ambas as consequências foram fundamentais para o pouso definitivo do marxismo na China. Em 1919, enquanto Lênin fundava a 3ª Internacional com clara orientação anticolonial, o Manifesto Comunista era traduzido para o mandarim e a juventude, intelectuais e trabalhadores chineses se levantavam contra a “traição de Versalhes”. Em 1921 nasce o PCCh que edificou leitura adequada aos anseios de transformação dessa milenar civilização, alcançando por isso, após 28 anos da sua fundação, o poder político no país por meio de uma das maiores revoluções sociais da contemporaneidade. Portanto, definitivamente, o marxismo se renova ao adquirir a ressignificação no Oriente.

O marxismo proliferou na Ásia sob a liderança de PCs fundados na esteira da 3ª Internacional, aliando não somente a experiência das lutas e levantes anticoloniais, como também sob a força de uma explosão cultural e intelectual. Proletários e camponeses, como representantes da maioria da sociedade e organizados no Partido Comunista, chamaram para si a tarefa de conquistar o poder do Estado e promover a modernização que suas burguesias foram incapazes de fazer, transformando a teoria marxista em instrumento científico para descobrir as determinações próprias do desenvolvimento nacional, apresentando soluções aos seus próprios desafios. Países como a China lograram elaborar estratégias e táticas de luta condizentes com as condições nacionais. Segundo Boer (2021, p. 9)BOER, R. Socialism with Chinese characteristics. A guide for foreigners. Singapore: Springer, 2021.:

But why not simply call it socialism, rather than adding the ‘Chinese characteristics’? History is important: the desire to express this reality dates back to the Zunyi Conference of January 1935. (...). At last, they were able to enact a revolutionary approach that was sensitive to the specific conditions in China. Not long after this crucial event, Mao began to speak of China’s ‘own laws of development’ and ‘its own national characteristics’. In fact, there is ‘no such Thing as abstract Marxism, but only concrete Marxism [juti de makesizhuyi]’, by which Mao meant Marxism that is ‘applied to the concrete struggle in the concrete conditions [juti huanjing] prevailing in China, and not Marxism abstractly used’.

Na China, os elementos nacional e camponês foram incorporados ao mindset da tradição marxista. A “sinicização do marxismo” pode ser interpretada como a fusão entre vários componentes, entre eles estão: a busca incessante pelo desenvolvimento das forças produtivas e as experiências econômicas que nascem em função deste objetivo; o movimento camponês e suas tradições milenares (“cerco da cidade pelo campo”); a constante luta pela salvaguarda da soberania nacional (“rejuvenescimento nacional”) e a busca, desde Mao Zedong até Xi Jinping, pela chamada “prosperidade comum”. O marxismo vem sendo chamado a se reinventar de forma cíclica, determinado pelo movimento de se fazer realidade na transformação efetiva. A figura de Mao Zedong sintetiza a imensa contribuição da China ao próprio marxismo. Segundo Albuquerque (2023, p. 195)ALBUQUERQUE, H. Contradição, metafísica e dialética. O maoismo como produto do intercâmbio entre Oriente e Ocidente. Revista Princípios, n. 166, p. 192-207, 2023.:

(...) o marxismo chinês não é uma mera tradução em sentido usual, mas uma transposição e recriação – e isso se comprova pela maneira como Mao apreende e articula as traduções chinesas para termos tão comuns e caros à filosofia ocidental como contradição, dialética e metafísica.

Em um país caracterizado pelo objetivo familiar da prosperidade e fartura, a busca pela verdade nos fatos e a emancipação da mente se transformaram em instrumentos de luta política e ideológica por um marxismo avesso ao ascetismo. Já em Deng Xiaoping, o marxismo e o socialismo demandam validação teórica por meio do acréscimo da capacidade estatal de ampliar a base material da sociedade, aprimorar o Estado socialista e melhorar a vida do povo. Na verdade, o que Deng Xiaoping popularizou como “socialismo com características chinesas”3 (3) O conceito de “socialismo com características chinesas” pode ser encontrado em vários escritos de Mao Zedong entre as décadas de 1930 e 1940. nada mais é do que a efetivação da necessária correspondência entre a teoria universal do marxismo às condições concretas da China. É da substância lógica do materialismo contemporâneo sua realização na história.

Seria o marxismo inaugurado por Deng Xiaoping apenas uma redução do socialismo a teorias do desenvolvimento ou, por outro lado, uma poderosa arma para se descobrir as leis gerais do movimento desigual de dada formação social? Com efeito, ao atribuirmos o caráter de teoria do poder político ao marxismo estamos a defender uma visão de constante Aufhebung (supressão, suspensão) dos conceitos e categorias às necessidades da estratégia e da tática de superação dos entraves ao desenvolvimento social. O socialismo, nas formações sociais periféricas, não se resume a simples negação do capitalismo. Trata-se da apreensão do ponto mais alto daquilo que se nega, alcançando e superando o nível de desenvolvimento das forças produtivas dos países capitalistas, ultrapassando sua produtividade do trabalho, construindo uma grande máquina de valores de troca e gerar excedente suficiente para o surgimento e desenvolvimento de valores de uso.

O marxismo se ressignifica sob Mao Zedong e Deng Xiaoping diante das necessidades imediatas e estratégicas da revolução na condução do poder político. No primeiro caso, sob restrições militares causadas pela superioridade técnica e numérica do Kuomintang e, após a revolução, na manutenção do poder diante de um cenário internacional amplamente hostil. Deng Xiaoping, ao resgatar a ideia original da transição contida tanto em Marx, Engels e Lênin, quanto no próprio programa da Nova Democracia, apresentado em 1940 pelo PCCh, em grande medida recoloca o marxismo em seus termos originais, auxiliando o país a perceber e captar as oportunidades abertas pelo advento da financeirização no mundo capitalista e, de forma planificada, reposicionar a China na economia capitalista internacional, usufruindo das “vantagens do atraso”, dando novos contornos de validação teórica à lei do desenvolvimento desigual concebido por Lênin.

Atualmente, passados 74 anos da revolução e mais de quatro décadas de reformas econômicas, o marxismo é chamado a se desenvolver sob os auspícios da inauguração de uma “Nova Era” do socialismo com características chinesas lançada por Xi Jinping em 2017. Trata-se da construção de novo arcabouço teórico com vistas ao enfrentamento das novas contradições internas inerentes a um longo e profundo processo de mudança estrutural na economia, que se junta com os desafios externos causados pelo bullying tecnológico e comercial imposto pelos Estados Unidos. O marxismo torna-se ao mesmo tempo teoria e prática de nova “guerra popular prolongada” que inclui tanto a recuperação e reestruturação econômica após a crise do Covid-19 e a debacle do setor imobiliário quanto a de alcançar os EUA em matéria de infraestruturas de semicondutores – a última barreira à plena autonomia tecnológica da China.

Socialismo: libertação do pensamento e desenvolvimento das forças produtivas

Questão teórica fundamental que se impõe a quem quiser tratar adequadamente o socialismo chinês é a superação dos limites cognoscentes impostos pelos juízos do entendimento transcendental. Para nós, não é fortuito que interpretações aparentemente distintas no plano político – como liberais, marxistas ocidentais, trotskistas e pós-modernos – confluam para o mesmo entendimento acerca do socialismo chinês. Isso é possível porque os pressupostos teóricos que operam nas elaborações cognoscitivas e políticas dessas correntes estão condicionados pela separação metafísica entre o conhecer e a liberdade, o teórico e o prático, ainda fixados à lógica da identidade. Esses elementos constituem o fundamento ideológico da confluência entre essas visões acerca do socialismo na China.

Para tratar, ainda que sucintamente, desses importantes pressupostos da tradição racional ocidental, permitam-nos um pequeno prolegômeno. Tais correntes contemporâneas ainda se regulam pelas separações produzidas e reproduzidas por nossas disposições discursivas desde a modernidade, em particular a que opõe o conhecimento à liberdade. Como sabemos, foi Immanuel Kant (2001), ao conceber a meticulosa Crítica da Razão Pura, quem ergueu os pilares do universo discursivo que estabeleceu, no âmago da faculdade de julgar ou entendimento, a lógica transcendental, em que se encontram as normas para as cisões entre analítica e dialética, fundamento da separação do conhecimento com a prática.

O arcabouço exposto na lógica transcendental conforma o intelecto em que os objetos são conhecidos sem qualquer recurso à intuição sensível, subdividindo-se em analítica e dialética. A analítica trata da dissecação do entendimento nos princípios e conceitos que permitem a conjunção das intuições puras de espaço e tempo com os modos inerentes à faculdade de julgar, gerando um conhecimento que passa a se referir a priori aos próprios objetos. Os conceitos e princípios precedem e determinam a experiência possível a partir da qual os juízos podem ser emitidos, estabelecendo seus limites. O conhecer não diz da realidade em si mesma, mas apenas das próprias formas do intelecto sob os quais os objetos podem ser representados, sendo apenas o resultado teórico conformado pela experiência possível, ou fenômeno, estabelecido pela gramática do próprio entendimento. Nossa faculdade de julgar, por sua atividade lógica e analítica, estabelece os limites e separações tanto das coisas reais, em si mesmas, quanto da razão pensante em sua liberdade (Kant, 2001, B XXIX). A razão não é livre para conhecer o fenômeno assim como o conhecer não é livre para pensar o noumeno. A razão cumpre papel complementar e subordinado ante as determinações da cognoscibilidade.

Quando a razão tenta deixar o papel de coadjuvante para conhecer algo de positivo, abandonando o papel de cânone para tornar-se organon, ela cai em erros e equívocos (Kant, 2001, A64). Essa pretensão cognoscente da razão seria uma ilusão metafísica que Kant chamou de dialética transcendental (Kant, 2001, A131-B170), a segunda parte da sua lógica. Ao buscar fazer valer seus direitos cognoscentes junto ao entendimento, a razão submerge em contradições, que seriam evidências da sua ilegitimidade no campo do conhecer. O entendimento impõe limites à razão, submetendo-a aos seus interesses particulares enquanto lógica da verdade, sob pena do mergulho na “ilusão dialética”. O idealismo transcendental legou uma tradição de discurso sobre a cognoscibilidade que se realiza nos marcos da separação entre entendimento e razão, resultando numa gramática teórica que implica em cisões e oposições irreconciliáveis.

Sobre a teoria do conhecimento transcendental ficamos com as palavras do Hegel (2016, p. 49)HEGEL, G. W. F. Ciência da lógica. 1. A doutrina do ser. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2016. 461p., que afirmava, ironicamente, ser “absurdo um conhecimento verdadeiro que não reconheceria [erkennte] o objeto tal como ele é”. Ora, o aparecimento da contradição no âmbito da própria lógica transcendental mostra apenas que ela é racionalmente necessária, sendo o caminho que o pensamento percorre para “suspender” (Aufheben) o saber para além dos limites da estrutura subjetiva do entendimento. Para Hegel (2016, p. 59)HEGEL, G. W. F. Ciência da lógica. 1. A doutrina do ser. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2016. 461p. “O especulativo consiste nesse dialético, tal como é aqui tomado e, por isso, na apreensão do contraposto em sua unidade ou do positivo no negativo”. A contradição é legitimada como outro da identidade que se faz presente no âmbito do conhecimento: é a “identidade da identidade e da não identidade” (Hegel, 2016, p. 76HEGEL, G. W. F. Ciência da lógica. 1. A doutrina do ser. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2016. 461p.). É exatamente na atividade da negatividade dialética que o conceito se nega enquanto abstração e subjetividade procurando manifestar seu conteúdo no movimento concreto do real.

Essas questões teóricas se revestem de enorme importância para as demandas práticas que estamos a discorrer. Nosso conhecimento – para de fato carregar esta denominação – não pode estar fora da natureza das coisas e apartado do pensar livre da racionalidade. Desse modo, por seu viés dialético, o socialismo jamais poderá se contentar com simples definições provenientes da lógica da identidade, iguais a si mesmas, abstratas e apartadas do fluxo efetivo. No escrutínio e transformação da realidade não é suficiente apresentar normatividades fixas que estariam aptas a julgar e submeter qualquer fenômeno histórico a partir de estruturas a priori. Essa incapacidade de elevar o pensamento operativo à racionalidade dialética conduz liberais e marxistas ocidentais a encarar os procedimentos de transformação da realidade em simples aplicação de check-list, arbitrando transcendentalmente sobre o que é ou não socialismo.

A ciência econômica, fora da crítica à Economia Política de Marx, é essencialmente iluminopositivista, por isso mesmo carente de dispositivos cognoscíveis para apreender elementos externos à sua legislação epistêmica, algo que tem se tornado claro na medida em que seus limites ficam expostos a cada crise financeira e na incapacidade de respostas. Isso porque a economia é uma ciência humana e social que invariavelmente deve se remeter à prática política. Um dos traços débeis da economia, seja ortodoxa ou heterodoxa, é sua ruptura com a política, com a dinâmica das classes sociais e o papel do imperialismo. Aceitar a cisão entre o econômico e o político, o teórico e o prático, espelha em grande medida a perda da influência cognoscente do pensamento de matriz dialética nos círculos acadêmicos ocidentais, o que tem colaborado com uma aproximação entre a visão de ciência particular nos modelos transcendentais e os ditos marxistas ocidentais, daí resultando na gramática teórica que implica numa realidade de oposições estanques. Nessa perspectiva, o socialismo nunca será efetivo, mas apenas uma utopia. Impera, portanto, o ceticismo subjacente à concepção da “coisa-em-si” kantiana e representações abstratas que se respaldam em noções do “fim da história”.

Isto posto, ao analisar o socialismo da China, é importante salientar pontos lógicos fundamentais traçados pelos fundadores do materialismo histórico. Determinada como a ciência do poder político, os iniciadores fundamentam que:

O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças produtivas (Marx e Engels, [1848] 1998, p. 56MARX, K.; ENGELS, E. (1848). Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.).

Podemos deduzir da citação dois níveis de análise: 1) socialismo enquanto domínio da propriedade e 2) socialismo enquanto elevação das forças produtivas. Dado o fato de as revoluções socialistas, notadamente a Russa e a Chinesa, terem ocorrido na periferia do sistema e a própria história do socialismo no século XX ser a história das sociedades que iniciaram praticamente do zero seus projetos de emancipação – uma vez que se tratavam de países destruídos ou semidestruídos por guerras –, então inexistiam ou eram incipientes tanto uma classe operária qualificada e capaz de dirigir o Estado, a produção e a distribuição de bens quanto o desenvolvimento suficiente das forças produtivas para um processo de superação do capitalismo. Isso, por si só, já possui elementos suficientemente complexos para elevar o grau do processo de conceituação dessas experiências.

Na condução da revolução e da construção socialista são formados blocos históricos, nucleados por PCs, que formam o âmago da ampla e extensa base social de apoio às transformações que se fazem necessárias. A hegemonia é obtida pelo consenso e coerção das classes, que agregam desde o proletariado urbano, camponeses, pequena-burguesia até frações da burguesia nacional. Além disso, do ponto de vista da economia, o desenvolvimento das forças produtivas, antes de ser uma tarefa historicamente colocada, tornou-se imperativo existencial diante do capitalismo imperialista militarmente hostil e da possibilidade de estrangulamento econômico via isolamento e sanções.

Marx, em sua “Crítica ao Programa de Gotha”, expõe trechos que passam despercebidos às leituras circunscritas à lógica estática do entendimento, mas que evidenciam a noção do que chamamos de “combinações” entre o velho e o novo:

Mas essas distorções são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como ela surge, depois de um longo trabalho de parto, da sociedade capitalista. O direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade. (...) Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades! (Marx, 1875 [2012], p. 28MARX, K. (1875). Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.).

A passagem acima, ao condicionar o desaparecimento do horizonte político-institucional burguês tanto ao pleno desenvolvimento das forças produtivas quanto a superação da divisão social do trabalho, expõe as vísceras do idealismo romântico que permeiam as ilusões de grande parte da esquerda ocidental. Não há imediato numa transição histórica. Para os marxistas dialéticos interessa apresentar a unidade concreta do conceito de socialismo como conclusão das mediações entre o grau de subjetividade das nossas proposições e a objetividade das circunstâncias históricas com as quais nos defrontamos e temos que responder. Trata-se de uma questão-chave para compreender que a transição teoria-prática, programa-realidade, tem que conjugar a mediação da totalidade das tarefas com a resolutividade dos fenômenos imediatos. Ou o programa socialista aparece e é executado na forma fenomênica sensível e particular de cada caso em questão – como identidade da totalidade do conceito no imanente do real – ou será apenas um simples sentimento imediato do puro pensamento abstrato. Quem tem medo de mediações, transições e conciliações não está preparado para assumir o poder político, se colocando aquém da dialética e do socialismo científico. Só forças políticas vulgares e alheias à realidade concreta fantasiam a resolução imediata de questões históricas. A Ideia só se realiza na história, o conceito no real, a teoria, na prática.

Em Marx, o socialismo já é apresentado como projeto emancipador do proletariado urbano,4 (4) O socialismo na China ainda se desenvolve de forma embrionária, mas sua população urbana saltou de 18% em 1978 para 64% em 2022 (Jabbour; Gabriele, 2022). não rural, em que se busca o fim do antagonismo de classe, mas não o fim da contradição. Depreendemos daí o processo infinito, como contínua atividade de compreensão da correlação de forças contrárias, presente enquanto universal lógico aos casos concretos, particulares, que se nos apresentam. Ao enriquecer as determinações do socialismo com os contextos históricos das formações econômicas e sociais específicas, obrigamos a teoria, os conceitos e as categorias a se locupletarem com os desafios da efetividade, passando a evidenciar não mais as estruturas fixas da identidade formal, mas a negatividade lógica imanente.

Com isso, alargamos a compreensão do socialismo a um horizonte de eventos em que coabitam e se combinam diferentes formas pretéritas e contemporâneas de produção e circulação de mercadorias em seu interior, lidando, necessariamente, com manifestações de ordem não-socializantes, como, por exemplo, o “fetiche da mercadoria”. Assim como não se vai abolir imediatamente a instituição estatal, também não se decretará o fim do fetichismo capitalista. São tarefas históricas do pensamento e da ação. Ora, segundo Engels (1883 [2020], p. 99):

O pensamento teórico de cada época e, portanto, também o da nossa é um produto histórico que, em diferentes épocas, assume formas muito diferentes e, desse modo, conteúdos muitos diferentes. A ciência do pensar é, portanto, como qualquer outra, uma ciência histórica, a ciência do desenvolvimento histórico do pensamento humano. E isso é importante também para a aplicação prática do pensamento em campos empíricos. Pois, em primeiro lugar, a teoria das leis do pensamento de modo nenhum é uma “verdade eterna” estabelecida de uma vez por todas, como imagina o entendimento filistino quando ouve a palavra “lógica”.

Quando deparados com o fenômeno chinês, setores do marxismo ocidental, liberais e esquerdistas em geral desconsideram elementos-chave na compreensão da revolução socialista naquele país. Característico daquele processo foram o surgimento das manufaturas em meio a crises no centro do sistema, mas que logo eram suprimidas pela reação colonial ou mesmo a intervenção estrangeira direta, como na ingerência política, militar e econômica do Japão na China na década de 1930. Foi neste tipo de formação social que o socialismo foi chamado a intervir e, por óbvio, que a China contemporânea ainda convive com os traços dessa formação histórica. A instauração do poder socialista e a planificação econômica se dão nos marcos da legislação do desenvolvimento desigual – daí a falsa polêmica posta no debate entre “plano” x “mercado” –, a persistência da lei do valor, embora subordinada à propriedade pública, comporta ao mesmo tempo, diversas formas de propriedade, obedecendo a determinações econômicas objetivas e níveis de subjetividade cultural relacionadas a diversos modos de produção, oriundos de distintas épocas, mas que convivem no mesmo período histórico da construção do socialismo5 (5) Para Marx, a identidade do nosso tempo presente é resultado de combinações entre “camadas de diferentes idades” (1881 [2002], p. 17). .

O aprendizado com o implacável cerco promovido à experiência russa pelo imperialismo desde a intervenção estrangeira de 1918 e o consequente bloqueio que durou até a debacle em 1991. Embora nessas condições e em curto espaço de tempo a URSS produziu tipologias de catching-up muito diferente daquelas promovidas pelos latecomers asiáticos. Mesmo sob cerco mortal, os feitos obtidos pela experiência soviética – a derrota imposta ao nazismo, a vanguarda na corrida espacial e a inclusão das questões colonial e social na agenda do debate público – influenciou decisivamente a China, levada a implantar a sua própria forma de “modelo soviético” que nada mais era do que uma dinâmica de acumulação de países em “Estado de exceção”. Tratava-sede formações econômico-sociais de orientação socialista, mas que não devem e não podem ser vistas como as únicas, pois os limites dos “modelos” foram se tornando claros tanto na URSS quanto na China.

O caso chinês era ainda mais dramático dada sua condição tanto de país superpopuloso quanto de “mais pobre do mundo” em 1949. Segundo (Dunford, 2023, p. 2):

According to reports from The Conference Board, in 1952, at the start of the post-war era, China was the poorest of 110 countries (though there were no data for Yugoslavia and former Soviet Republics), with a GDP per capita in 2021 international dollars, converted using purchasing power parities (PPP), of US$233.8. Next came Myanmar (US$427.9) and Mozambique (US$553.1). India was ninth poorest (US$884.9).

Compreender a experiência socialista na China é necessário, além da caracterização acerca do exercício do poder político pelo bloco social comprometido com as transformações estratégicas e capitaneado pelo Partido Comunista – “a supremacia política do proletariado sob a burguesia” –, também reconhecer o papel central da planificação econômica e da propriedade pública frente às demais formas de propriedade – “centralizar os instrumentos de produção nas mãos do Estado proletário para aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças produtivas”. Esses são eixos fundamentais de qualquer análise sobre o socialismo contemporâneo.

Aqui, mais uma vez, a vitalidade lógica dessa compreensão depende da capacidade de inteligirmos sobre as relações entre o universal e o particular, mais precisamente, do universal no particular. Devemos levar em consideração, como materialistas históricos e, portanto, realistas no âmbito cognoscente, que a experiência particular é o horizonte sob o qual o universal socialista precisa ser efetivado, concretizando sua unidade na diversidade e possibilitando uma totalidade de contrários. Deste modo, enriquecemos a teoria e a deixamos viva na cultura do nosso tempo. A tomada do todo em deferência da parte é o oposto dos postulados que partem de definições peremptórias e abstratas do que seja o socialismo. Embora tais definições se arroguem no direito de mensurar o socialismo em qualquer tempo e lugar, julgando o ser e o não-ser da questão, na realidade terminam por coagir a diversidade existencial das particularidades em uma abstração universalista, mergulhando a riqueza da multiplicidade dos processos históricos no mar homogêneo da intangibilidade formalista. Qualquer manutenção da imutabilidade é um verdadeiro filtro idealista, visto que modelos a priori constrangem o valor cognoscente dos fenômenos sociais e históricos. Rejeitamos, pois, essas demarcações metafísicas.

Ao determinar o socialismo como relação entre poder político de novo tipo e o rápido desenvolvimento das forças produtivas, a China demandou respostas à insuficiente sofisticação da sua economia monetária e da sua inserção na economia globalizada. Diferente da experiência da URSS, aproveitou a crescente internacionalização dos fatores de crescimento econômico, já no final da década de 1970, como forma de criar as próprias condições para um ciclo estável de reprodução ampliada (Longway, 2023). O Estado socialista engendrou as formações de núcleos produtivos e financeiros públicos capazes de criar moeda suficiente para alavancar seus projetos estratégicos, tendo como contrapartida a criação incessante de valores de troca e valores de uso. Acrescente-se a isso a transformação da planificação do comércio exterior em bem público, estruturado e de Estado (Jabbour; Dantas, 2017, p. 794JABBOUR, E.; DANTAS, A. The political economy of reforms and the present Chinese transition. Brazilian Journal of Political Economy, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 789-807, 2017.), constituindo-se, juntamente com os outros elementos acima elencados, em importantes aportes na teoria a partir de casos concretos, conformando novas características fundamentais ao socialismo contemporâneo.

É central ao projeto emancipador do socialismo a edificação das condições para que a produtividade do trabalho ultrapasse a dos países capitalistas centrais. Aqui reside a sagacidade histórica do movimento comunista. Todo o pragmatismo das forças sociais deve estar envolvido na construção da estratégia de inserção internacional focada em alcançar “o mais rapidamente possível, o total das forças produtivas” dos países capitalistas centrais em matéria de desenvolvimento tecnológico. Foi utilizando deste processo – em meio a uma intensa contrarrevolução internacional na década de 1990 – que a China se tornou receptora privilegiada de milhares de unidades produtivas que migraram do centro para a periferia em busca de mercado, mão-de-obra qualificada e menores custos de produção, a partir da financeirização das suas matrizes. Os chineses aproveitaram essa oportunidade única de forma estratégica, com baixo perfil nas relações internacionais e mitigando o máximo possível tentativas externas de desestabilização internas.

O desenvolvimento incessante das forças produtivas enquanto elemento da construção do socialismo é uma questão da prática revolucionária que pressupõe o relacionar constante do fenômeno particular com a totalidade contraditória das determinações históricas, encontrando, em cada caso concreto, o elo que conduz à finalidade universal. Conforme exprime Marx na tese segunda à Feuerbach, “é na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade” (Marx, 1845 [1982], p. 69MARX, K. (1845). Teses sobre Feuerbach. Lisboa: Avante, 1982.). Quer dizer que embora seja desejável a eliminação completa do capital privado como condição de arranque à elevação das forças produtivas, isso não necessariamente precisa acontecer imediatamente, como nos demonstra o caso do socialismo chinês. A práxis, neste caso, se opõe tanto ao dogmatismo quanto ao ceticismo, na mesma medida em que o desejado por nós não será obtido ipsis litteris, assim como essa adequação ao possível não quer dizer que não possamos construir o socialismo sobre os fenômenos históricos. A práxis, critério de verdade do socialismo científico, é justamente essa atividade de mediação, correspondência entre teoria-prática no caso particular, sendo, portanto, uma determinação lógico-filosófica à sustentação do socialismo enquanto desenvolvimento incessante das forças produtivas. Estamos, portanto, na seara em que se exige a “libertação do pensamento”. Segundo Deng (1980 [1995], p. 311DENG, X. To build socialism we must first develop the productive forces. In: DENG, X. Selected works. Beijing: Foreign Language Press, 1995.):

Not liberating thought is out of the question, even to the extent of including the question of what socialism is also requires the liberation of thought. If the economy remains stagnant for a long period of time, it cannot be called socialism. If the people’s living standards remain at a very low level for a long period of time, it cannot be called socialism.

Deng Xiaoping toca em um ponto fulcral, essencial ao marxismo: a libertação do pensamento! Essa capacidade operativa de lidar com novas situações colocadas pela história, desprovido de fórmulas prontas e acabadas, mas que progridem pelo princípio lógico de que a negatividade é igualmente positiva e o que se contradiz não se dispersa na trivialidade. É essa compreensão que diferencia o pensamento vivo do Marxismo do formalismo liberal e das suas extensões ao marxismo ocidental. Esse aspecto, a nosso ver, é algo maior que uma simples opção metodológica. Trata-se, antes, de uma exigência do desenvolver e do inovar marxista na construção de novas ideias. Libertar o pensamento é o oposto do “dever ser” transcendental e de “check-lists” abstratos que acompanham as visões idealistas sobre o que seja o socialismo. Se podemos determinar a dialética como a “lógica geral do movimento”, “a ciência das relações”, então a libertação do pensamento é a própria dialética.

A “Nova Economia do Projetamento” (NEDP) como instrumento do poder político

O tema acerca da “Nova Economia do Projetamento” (NEDP) versa, sumariamente, sobre a correspondência entre os novos desenvolvimentos ocorridos no âmbito da economia chinesa - sobretudo as inovações demonstradas na reação à crise financeira de 2008 e à Covid-196 (6) Já existe acúmulo razoável sobre a “Nova Economia do Projetamento”, destacamos: Jabbour, Dantas, Espíndola e Vellozo (2023); Jabbour e Moreira (2023); Boa Nova, Cambuhy e Jabbour (2023); Jabbour e Gabriele (2021); Jabbour e Dantas (2020). – e a interpretação brasileira sobre esses fenômenos. Concerne, a princípio, a adequação do aparato teórico sugerido pelo pensador nacional Ignacio Rangel aos processos históricos de transformações produtivas. Em certa medida, também é uma resposta científica tanto à domesticação intelectual por qual passa significativa parcela das ciências sociais brasileiras quanto das análises acadêmicas acerca da dinâmica socioeconômica e política da República Popular da China.

A cientificidade configurada pelos mecanismos transcendentais demarca suas formulações epistêmicas sobre o que seja ou não conhecimento relevante prescrevendo delimitações de objetos, regras fixas de identidade, distinções absolutas entre análise e síntese, rígidas classificações dos saberes e definições peremptórias como únicos produtos legítimos da experiência possível da ciência, designando o que se chama de “evidências” e que circunscreve nossa capacidade judicante. Por óbvio que esses elementos tenham importância em dado momento do processo coletivo do saber, mas desde Kant que esse modo de cognsocibilidade se quer único. Isso tem consequências. Há nesse modo de fundamentar e fazer ciência, como já mostramos acima, uma profunda cisão e conflito entre teoria e prática.

Ao chamar atenção para o poder do pensamento a partir da liberdade da razão, queremos, na esteira da dialética do materialismo histórico, derrogar os limites que submetem a totalidade do saber humano aos ditames específicos da legislação cientificista do entendimento, criando as condições para cessar a subordinação escravizadora do conhecimento à divisão do trabalho manual do intelectual. Se, em um primeiro momento histórico, fez imprescindível separar, classificar, definir, delimitar e particularizar o que é e o que não é conhecimento, estabelecendo uma identidade formal que tenha eficácia e validade para qualquer tempo e espaço, agora, as agudas transformações da realidade e do conhecer científico estão a exigir uma sabedoria que relacione, expanda e processe a cognoscibilidade, levando em consideração as múltiplas formações práticas das sociedades na história. Significa, por conseguinte, dissolver os limites que nos é imposto pela atual legislação epistêmica, rejeitando seus critérios exclusivos de “evidência científica”, elevando o saber à livre atividade da racionalidade, conectando as cisões e separações oriundas da identidade formal e estabelecendo a contradição como conteúdo heurístico imprescindível para o conhecimento concreto das formações econômicas e sociais. Ao se admitir que a atividade do pensamento racional é livre e concreta, subscreve-se que essa autonomia também pode ser exercida para conhecer cientificamente.

É nessa esfera da cognoscibilidade que opera a lógica do conteúdo em que sujeito e objeto encontram sua unidade de opostos. O produto desta laboração são teorias, ideias, conceitos e categorias que contém a negatividade em sua positividade, pois que esse é o propelente que o faz avançar, sendo, ao mesmo tempo, pensamento e conhecimento da realidade.7 (7) Ao comentar a Ciência da Lógica do Hegel, Lênin escreveu: “não é correto que as formas do pensamento sejam apenas meios para uso. Também não é correto que elas sejam formas exteriores, formas que estejam apenas sobre o conteúdo e não sejam o próprio conteúdo” (1989, p. 96). A dinâmica de transformação da realidade, inteligível como totalidade de contrários, exige de nós o constante trabalho de criação de novas ideias e teorias plenas de conteúdo, práticas, tendo sempre a mente aberta para tratar dos grandes problemas da humanidade, seus desafios históricos. A rigor, com muito mais propriedade podemos chamar a qualidade desse pensamento de ciência, pois que histórico e, portanto, universal-concreto.

Ponto importante para a superação do formalismo que limita nossa criatividade científica no enfrentamento dos problemas que a história nos reserva pode ser visto na abordagem acerca da propriedade dos meios de produção na China. É um tema chave para o estabelecimento da relação entre a ciência do socialismo com o projetamento. Expliquemos melhor. Como já exposto, o socialismo se relaciona com a elevação das forças produtivas e, como poder político estabelecido, pela transformação essencial da propriedade em domínio público dos meios estratégicos da produção e da finança. O poder político assenta-se em formas específicas de propriedade cujo centro, sob o socialismo, mira o desenvolvimento ininterrupto das forças produtivas, desencadeando o surgimento de novas relações de produção. O oposto é falso.

Temos, no caso específico do sistema chinês, um Estado que está submetido – mas não fundido – à essência de classe não-burguesa do poder político socialista, mas que pode e deve assumir (em relação à propriedade, conforme a finalidade de expansão e desenvolvimento das forças produtivas) diversas formas e atributos consoantes as vicissitudes históricas da sua implantação. Vejam: é a substância socialista – sua essência de classe – que determina os predicados e os modos da propriedade conforme a finalidade do constante aperfeiçoamento da produção e não o contrário.

Recentemente, nessa direção estratégica, a ação do governo da China estabeleceu renovada progressão do Estado sobre o setor privado, contendo-o em alguns setores-chave da economia, notadamente nas áreas de educação e construção que foram chamadas por Xi Jinping de “expansão desordenada do capital”. Isso se deu de forma mais acelerada após a crise financeira de 2008, caracterizando movimento de transformação do setor público de crescimento de extensivo para desenvolvimento em profundidade. “The state advances, the private sector retreats” é uma caracterização dessa original fase de inovações do setor público no país, gerando, a nosso ver, novas formas históricas de propriedade. Um exemplo concreto está na elevação da participação acionária de empresas estatais em empresas privadas:

The number of private owners with direct investments from the state almost tripled between 2000 and 2019, and the number of private owners indirectly connected to the state via investments from private owners with state connections increased 50-fold. The increase in the registration capital share of the two groups of state connected private owners accounts for almost all the 20 percentage point increase in the share of private owners between 2000 and 2019 (Bai et al., 2021, p. 2BAI, Chong En; CHANG-TAI, Hsieh; SONG, Zheng Michael; WANG, Xin. The rise of state-connected private owners in China. Dec. 2020. (NBER Working Paper, n. 28.170).).

A questão que nos interessa é demonstrar que a criatividade na construção do socialismo exige uma racionalidade científica aberta, dialética, que busque na negatividade, no outro que deveria ser excluído, a execução positiva do conhecimento e da transformação. É essa razão que emerge na China através da NEDP. Neste programa de estudos é metodologicamente necessário expor a história do conceito, isto é, mostrar-lhe as origens e de como chegou até aqui. O projetamento é fruto primário do amplo movimento de renovação da ciência econômica, em particular a que reagia à teoria de preços dos economistas marginalistas, baseada na “porta da empresa para dentro” e excluindo a dinâmica da sociedade. A própria atividade da realidade capitalista impôs, por um lado, a expansão da separação entre gestão e propriedade e, por outro, a crescente luta e presença política dos trabalhadores no cenário político. Segundo Rangel (1959 [2005], p. 386-387)RANGEL, I. (1959). Elementos de economia do projetamento. In: RANGEL, I. Obras reunidas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.:

(...). A chave deste movimento de renovação está na observação de que o salário discrepa da utilidade marginal do trabalho. Isto implica a necessidade de novos estudos para determinar a verdadeira utilidade marginal social do trabalho a saber, do que ganharia a economia pelo aumento do número de trabalhadores o que, uma vez feito, induzindo à revisão dos preços dos fatores, impõe a reconsideração de todo o cálculo econômico da firma. Em última instância, a matéria que aqui nos ocupa – a economia do projetamento – nasceu desta descoberta. Isto implica dizer que o melhor emprego de fatores para a firma não era necessariamente o melhor emprego desses fatores para a sociedade.

Ocorrências da efetividade histórica como a Revolução Russa e as inovações institucionais dela derivadas produziram nova atitude teórica no sentido de encontrar termo a esta contradição. O surgimento da macroeconomia, em Keynes, foi a tentativa de tratar dessa separação. A emergência da planificação e do papel do Estado na estabilização dos ciclos econômicos passam a entrar na ordem do dia. Juntamente com a Revolução Russa também são partes fundantes da ciência do projetamento o consenso keynesiano e o surgimento do capital financeiro. Logo, a construção da URSS e o papel do Estado na reconstrução europeia são duas faces históricas do que convencionamos dizer, a partir de agora, de “antigo projetamento”.

O “antigo projetamento” trazia consigo preocupações que foram se ampliando ao longo do tempo, principalmente, como já dito, as relacionadas à tensão entre a chamada “contabilidade da firma” e a “contabilidade social”. Em outras palavras, procurava mediar a conexão entre microeconomia e macroeconomia. Para superar essa clássica disjunção exclusiva, apoiado em fecunda dialética, Ignacio Rangel (1959 [2005], p. 362,)RANGEL, I. (1959). Elementos de economia do projetamento. In: RANGEL, I. Obras reunidas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. sentenciou: “o projetamento é, ao mesmo tempo, macro e microeconomia; é teoria e prática; é apreciação do geral no particular, do concreto no abstrato e verificação do abstrato no concreto”. O conceito do “antigo projetamento” surge na época de ascensão das relações entre macro e microeconomia no âmbito da Europa Ocidental e das economias socialistas – levando ao surgimento das “sociedades de bem-estar social” em ambos os lados da cortina de ferro. Configurou-se a ideia fundamental de que toda economia está voltada à produção de valores de uso, porém, sempre sob circunstâncias determinadas pelas finalidades históricas do ser humano.

Entretanto, a contrarrevolução monetarista, a retomada da hegemonia estadunidense desde Reagan, a crise pela qual as economias socialistas passaram sofrer pari passu com a decadência do fordismo e a proscrição de projetos nacionais na periferia do sistema, feriram de morte o “antigo projetamento”, praticamente jogando-o no esquecimento. No contexto do neoliberalismo a cisão voltou a se amplia, pois que dá primazia as políticas orientadas ao lado da oferta, produzindo, no caso dos EUA, concentração de renda em grandes proporções nas últimas quatro décadas. Por outro lado, por vias diferentes das verificadas no mundo capitalista, essa mesma cisão também afetou as primeiras experiências socialistas.

O que se seguiu foi um imenso retrocesso em todos os campos da atividade humana e os ganhos civilizatórios e científicos da relação entre microeconomia e macroeconomia foram relativizados em nome do trabalho alienado pelo capital. As cisões e constante tensão entre entendimento e razão, com a primazia do primeiro, foram fundamentais para a fixação no âmbito da ciência econômica de forte variante do irracionalismo filosófico, transformando a financeirização em padrão dominante de acumulação do capital e preponderante no debate público. Entretanto, a partir de 1978, com o surgimento e o desenvolvimento de novas classes de formações econômico-sociais na China, restabeleceu-se as condições para o ressurgimento da ciência do projetamento em patamar mais elevado e sofisticado.

Novos contornos da planificação econômica têm se desenvolvido na China e o projetamento ressurge enquanto Nova Economia do Projetamento (NEDP). Existem vários parâmetros pelos quais podemos explorar esse novo campo de análise, alguns já investigados anteriormente (Jabbour; Dantas; Espíndola; Velozzo, 2023JABBOUR, E.; DANTAS, A.; ESPÍNDOLA, Carlos; VELLOZO, J. The (new) projectment economy as a higher stage of development of the Chinese market socialist economy. Journal of Contemporary Asia, v. 53, n. 5, 2023.; Jabbour; Moreira, 2023JABBOUR, E.; MOREIRA, U. From the national system of technological innovation to the “New Projectment Economy” in China. Brazilian Journal of Political Economy, v. 43, n. 3, p. 543-563, 2023.), outros ainda a serem estudados. Aqui, daremos especial atenção à centralidade da questão da propriedade na conformação da NEP que surge na China.

Ao escolhermos a questão da propriedade como dimensão prioritária, nos remetemos diretamente à solução do que Rangel chamaria de “contabilidade da firma” na China. Vejamos. A completa reforma do sistema empresarial estatal do país, na segunda parte da década de 1990, propiciou o surgimento dos Grandes Conglomerados Empresariais Estatais (GCEE)8 (8) O que chamamos de conglomerados empresariais na China, em tese, pouco tem de diferente com o que a história demosntrou ter existido em países de capitalismo tardio, caracterizados por uma precoce fusão entre banco e indústria. Segundo Braga (1996, p. 95): “Esses capitais (centralizados) organizam-se efetivamente de diferentes formas no espaço e no tempo histórico. Presentemente manifestam-se nos Estados Unidos na forma da grande empresa industrial moderna com sua estrutura multidivisional; na Alemanha, via conglomerados, nos quais reina a fusão orgânica entre banco e indústria; e no Japão, por meio dos Keiretsu, em que a articulação de organizações financeiras e não financeiras constitui grupos empresariais enquanto verdadeiros “subsistemas” econômico-financeiros (Braga, 1996, p. 95).” O caso chinês se diferencia não somente por se tratar de uma forma particular e histórica de propriedade, mas pelo papel crescente do Partido Comunista sobre as decisões empresariais. pari passu ao desenvolvimento de um amplo sistema financeiro de longo prazo, profundo e capilarizado. Essa moderna economia de produção que emerge na China contemporânea dota o país de capacidade de criação de moeda para as GCEE e geração imediata de contrapartidas sob a forma de valores de uso. Assim se explica, em parte, a irrupção de novas linhas de trens de alta velocidade – construção de 42.000 km de novas linhas em pouco mais de 20 anos.9 (9) Na verdade, esse paradigma dos trens de alta velocidade é apenas um retrato do crescente papel que as políticas industriais têm desempenhado no país. Jovens, porém, sofisticados autores brasileiros têm-se destacado em decifrar as novas determinações deste processo. Sobre isto ler, Diegues e Roselino (2023) e Diegues, Pellegrini e Noronha (2022). Esse é um ponto.

Um novo tipo de propriedade pública orientada ao mercado e pronta para servir de ponta de lança do projeto nacional chinês, “para dentro” e “para fora”, foi constituída a partir da gigantesca inserção da nação oriental como parte da economia capitalista global. Tais condicionantes conferiu singularidade tanto ao sistema econômico chinês (“economia socialista de mercado”) quanto ao “projetamento novo” que estava e emergir. Segundo Jabbour e Dantas (2021, p. 296)JABBOUR, E.; DANTAS, A. Ignacio Rangel na China e a nova economia do projetamento. Economia e Sociedade, v. 30, n. 2, p. 287-310, 2021.:

As reformas nas empresas estatais aceleraram-se diante de constrangimentos macroeconômicos criados pelo então primeiro-ministro do país, Zhu Rongji, a partir de um ciclo de inovações institucionais iniciadas em 1994. Estava chegando ao fim o ambiente caracterizado pelo Soft Budget Constraint.

O fim da atmosfera de Soft Budget Constraint dava termo a um grande problema microeconômico típico do ambiente empresarial do chamado “modelo soviético”. Um modelo empresarial baseado em uma contabilidade da firma também voltado à solução do problema da contabilidade social. Porém, o fim do Soft Budget Constraint na China trouxe o custo dos fatores tomado em demasia pelo preço de mercado com resultados sociais nada desejáveis. Segundo Boer (2021, p. 40)BOER, R. Socialism with Chinese characteristics. A guide for foreigners. Singapore: Springer, 2021.:

New problems, new contradictions arose, which are much studied and well-known: decline inworking conditions and absence of social security and health care; the gap between the Communist Party and the people, leading to corruption and loss of trust and thus legitimacy; environmental pollution; a rising gap between rich and poor. In other words, new contradictions had arisen between the forces and relations of production, requiring new solutions.

O mais recente desenvolvimento da NEDP apareceu no 19º Congresso Nacional do PCCh (2017). O poder político agiu no sentido de mudar o núcleo da “contradição principal” que afeta o país hoje e que tem relação direta com os desafios relacionados tanto à distribuição quanto a “contabilidade da firma” que se refira diretamente à “contabilidade social”. Segundo Cai e Zhang, (2022, p. 38)CAI, F.; ZHANG, X. Constructing political economy with Chinese characteristics. Singapore: Springer, 2021.

China’s overall productive forces have been significantly improved from the supply perspective. As a result, China`s production capacity has led the world in many áreas, and its backwardness of social production has been fundamentally reversed. However, the more significant problems are that its development is inadequate overall and unbalenced between parts of the country and society. It`s development is also behind some global economic powerhouses to some extent, and the structural problems is evident. These have turned into significant constraints while meeting people`s growing needs for a better life.

É neste contexto que devemos observar a outra ponta explicativa do surgimento do “projetamento novo”. A decisão estratégica tomada desde o 11º Plano Quinquenal (2006-2010) de recriar um sistema nacional de inovação tecnológica (SNTI) cujo ecossistema é composto pelas GCEEs, conglomerados privados, sistema financeiro público e universidades, foi responsável pelo surgimento de revoluções tecnológicas disruptivas como o 5G, o Big Data e a Inteligência Artificial. Para nós, existe uma relação direta entre tais inovações e o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica e, por conseguinte, da NEDP.

Ao lado desse processo, também podemos apontar a ascensão da moderna contabilidade social no planejamento de fundo do Estado chinês. Nesse último caso, percebemos que tal deliberação, essencialmente socialista, já estava implícita nas campanhas políticas de massa do “combate à corrupção”, do controle sob a “expansão desordenada do capital” e principalmente com a imensa campanha para “eliminação da pobreza extrema” lançada em 2013 e que alcançou enormes êxitos em 2020. Também cabe destacar a incrível capacidade de mobilização no enfrentamento da Covid-19, entre os anos de 2019 e 2021. Estudo lançado pelo Instituto Tricontinental (2021) atesta o seguinte:

While income is the primary deciding factor, housing, education, and health are also taken into consideration when listing a ‘poverty-stricken household’. Village committees, township governments, and the villagers themselves are mobilised to assess the status of each household. Public democratic appraisal meetings, for example, are held to facilitate discussions among community members about each family’s situation and whether they should be removed from or added to the poverty registration list. This on-the-ground process was paired with the creation of an advanced information and management system, touching on all parts of the poverty alleviation process across the country. Big data is used to monitor the situation of each of the nearly 100 million individuals, facilitate information flow between governmental departments, and identify important poverty trends and causes. Mobilising the people and gaining public support are at the heart of the effort to carry out this work.

A dialética entre as contabilidades da firma e a social, bem como o modo que um país com 1,4 bilhão de habitantes está conduzindo essa relação, deve nos remeter a quais propriedades políticas e institucionais corresponde a NEDP e as diferenças entre o “antigo” e o “novo” projetamento. Essa é uma questão fundamental no debate sobre o futuro e as possibilidades do socialismo científico ante o niilismo e o irracionalismo vigentes no modo de vida ocidental.

Com isso queremos destacar que não é suficiente apenas apontar as contradições da sociedade chinesa como condição peremptória de um pretenso rumo capitalista do país, tal qual conjectura amplos setores esquerdistas e idealistas. O poder político pressupõe dialeticamente que o processo de desenvolvimento salta de um ponto de desequilíbrio a outro. A China nos mostra, sob o socialismo, que o enfrentar das contradições é o novo procedimento lógico do sistema, construindo mediações necessárias, dissolvendo cisões absolutas, em um constante processo de reformas sistêmicas, se se quiser edificar uma sociedade de novo tipo, superior a que o domínio do capital propiciou até aqui, principalmente em nações periféricas. No caso da China não há retorno às condições pré-1978. Os empecilhos que apareceram no caminho do desenvolvimento só podem ser superados com mais desenvolvimento. As contradições, as negatividades necessárias, são o motor que faz avançar o aprimoramento conceitual e a otimização política do socialismo.

Rangel utilizava o termo “razão”, em tons aristotélicos, como denominador comum entre as duas categorias fundamentais do projetamento – as categorias de custo e benefício. O termo razão perpassa todo edifício teórico e prático do projetamento “antigo” e “novo”. Entre os dois, quando menos a 3ª Revolução Industrial e uma possível 4º Revolução Industrial e tecnológica em marcha. Assim como esses desafios impuseram adversidades à antiga URSS, inclusive sendo fator da sua derrocada, também coloca à China duras questões existenciais, incluindo o cerco tecnológico exercido pelos EUA. Temos insistido (Jabbour; Moreira, 2023JABBOUR, E.; MOREIRA, U. From the national system of technological innovation to the “New Projectment Economy” in China. Brazilian Journal of Political Economy, v. 43, n. 3, p. 543-563, 2023.) que a planificação favorece o surgimento de um sistema nacional de CT&I que não sirva somente aos desígnios da elevação da produtividade do trabalho, mas também de instrumento a serviço da ascensão de formas gnoseológicas superiores, qualitativas, da relação humanidade-natureza.

Esse processo de incorporação de inovações tecnológicas disruptivas ao acervo do sistema de planificação do Estado propicia sua efetuação junto aos setores econômicos, resultando na criação de 12 milhões de empregos urbanos por ano e abertura de possibilidades a catching-up e leapfrogs tecnológicos, desse modo, se constitui um ciclo virtuoso que avança na medida em que eleva o papel da ciência na sociedade chinesa, valorando o conhecimento ao patamar jamais visto em outras sociedades. Isso é particularmente importante, principalmente em tempos de aprofundamento do obscurantismo na política e na sociedade ocidentais. Sobre esse fato, Nicholas Welch (2023) em recente artigo acerca do crescente estatuto da ciência na sociedade chinesa, nos indica o seguinte:

Xi Jinping`s push for a national science sysem i salso the fruit of an ideology that transforms science into a grand narrative of human history and ascribes disproportionate value to scientific achivements in the evaluation of national power. (...). As Chinese philosopher Yang Guorong 杨国荣 observes, science has been elevated from a mere technique to Dao 道 – the heavenly Way to harmony and justice – in the long march of China’s modernization. This culture of scientism is playing an ever-important role as Xi Jinping demands greater international prestige for the country today.

Nos últimos dez anos (2013-2022) o índice de urbanização da China saiu de 52% para 64% (World Bank Data, 2023WORLD BANK DATA. Urban population. Available at: https://data.worldbank.org/indicator/SP.URB.TOTL.IN.ZS?locations=CN. Access: Oct. 10, 2023.
https://data.worldbank.org/indicator/SP....
), significando que ao menos 150 milhões de pessoas saíram do campo para a cidade em um curtíssimo espaço de tempo. Esse fenômeno ocorreu na China sem que as profundas assimetrias vistas no Brasil e na Índia (como a vasta favelização das periferias urbanas) sejam observados. A nosso ver, esse processo demanda elevado grau de utilização da inteligência coletiva acumulada que ainda não conseguimos aferir. São nestes pontos citados acima que o projetamento deixa de ser ancilar ao planejamento para se tornar estágio superior de planificação e, mesmo, da própria economia socialista de mercado, como apontamos recentemente (Jabbour; Dantas; Espíndola; Velozzo, 2023JABBOUR, E.; DANTAS, A.; ESPÍNDOLA, Carlos; VELLOZO, J. The (new) projectment economy as a higher stage of development of the Chinese market socialist economy. Journal of Contemporary Asia, v. 53, n. 5, 2023.).

Nesse estágio superior, chegamos ao papel da razão enquanto mediação entre o custo e o benefício. Buscamos compreender, a partir da história chinesa, as propriedades e modos através dos quais o socialismo tem emergido ante a experiência desses profundos desafios. As contradições criadas em décadas de crescimento ininterrupto provocam as mediações do projetamento como resposta sistemática a essas questões. A NEDP também pode ser vista como governança baseada no exercício da razão – liderança política comprometida com a totalidade sistemática dos desafios a serem enfrentados na consecução dos objetivos nacionais do desenvolvimento, prosperidade e bem comuns socialistas. Uma espécie de Science-Led Government que confere ao socialismo com características chinesas forma histórica especial na transformação da razão em instrumento de governo. Sem dúvida a engenharia social mais avançada de nossa época a serviço dos desafios nacionais e da prosperidade comum.

Conclusões iniciais

O desafio posto ao chamado Ocidente é tanto civilizatório quanto intelectual, pois enquanto a China encara as contradições da transição ao socialismo, do desenvolvimento econômico nacional e da “prosperidade comum” (tendo um claro sentido de expansão e crescimento rumo a nova e superior sociabilidade), nós enfrentamos o declínio sistêmico do capitalismo neoliberal, o obscurantismo filosófico, o relativismo ético e estético, a ascensão do neofascismo e a destruição ambiental, o que tem provocado mal-estar generalizado e realçado um futuro niilista para os povos dessa região do globo - e com repercussões gerais.

Compreender as exigências do projetamento em nossa época a partir da experiência chinesa tem o intuito de buscar superar o grande gap teórico que a ciência social ocidental, particularmente na periferia do sistema, não está conseguindo preencher. Seja pelo volume ou pela intensidade, o processo de desenvolvimento chinês é o maior e multifacetado desafio às ciências humanas e sociais de nossa época. O socialismo chinês está a instigar nossa capacidade criativa para estabelecer novos marcos teóricos, categoriais e conceituais, superando os impasses colocados pela legislação epistêmica iluminopositivista, pela anomia pós-moderna e pelos preceitos céticos do marxismo ocidental.

A China obriga o cientista social brasileiro a se desafiar para interpretar de forma realista o processo de desenvolvimento do nosso maior parceiro comercial. Nossa contribuição tem sido demonstrar que emerge e se desenvolve nova formação econômico-social e nova dinâmica de acumulação - mais racional e eficaz - naquela região do globo e que, para melhor compreendê-la, devemos lançar mão das contribuições do economista brasileiro Ignacio Rangel sobre o projetamento. Este, por sua vez, nos fornece arcabouço singular para elucidar e aplicar a ciência econômica ao atual período de transição histórica do capitalismo ao socialismo, em que o Estado aparece como agente empresarial e as teorias marginalistas – centradas na “economia da firma” – mostram seus limites frente à planificação (de origem soviética) e muito mais agora com o diante do projetamento (chinês).

Por fim, mas não menos importante, devemos abrir a mente aos acontecimentos que se mostram diferentes, singulares e, portanto, contrários ao nosso arcabouço formal, acolhendo a negatividade sempre presente nos conteúdos de transformação histórica. A compreensão do fenômeno socialista chinês instiga nossa criatividade para também solucionar as questões de interesse nacional.

  • (1)
    “A transferência dos mecanismos epistêmicos de objetividade da física e de neutralidade da linguagem matemática para o saber das humanidades é o que constitui o horizonte de interpretação do cientificismo iluminopositivista” (Capovilla, 2020, p. 311CAPOVILLA, C. Os dispositivos de dominação neocolonial e o ocaso das humanidades. Princípios, v. 39, n. 159, p. 307-320, jul./out. 2020.).
  • (2)
    Este tipo de empreendimento intelectual, por se tratar de uma busca permanente pela fronteira do conhecimento em temas que nem sempre se relacionam (socialismo e desenvolvimento econômico; planejamento x projetamento; marxismo europeu e marxismo asiático) podem induzir a uma leitura truncada dos artigos que temos apresentado, incluindo este. Acreditamos que é parte da construção de uma coerência categorial e conceitual uma certa falta de fluidez entre os temas, limite este muito comum ao estado da arte das ciências humanas e sociais e no tratamento de fenômenos de alta complexidade como a processo histórico de constituição e desenvolvimento da República Popular da China.
  • (3)
    O conceito de “socialismo com características chinesas” pode ser encontrado em vários escritos de Mao Zedong entre as décadas de 1930 e 1940.
  • (4)
    O socialismo na China ainda se desenvolve de forma embrionária, mas sua população urbana saltou de 18% em 1978 para 64% em 2022 (Jabbour; Gabriele, 2022).
  • (5)
    Para Marx, a identidade do nosso tempo presente é resultado de combinações entre “camadas de diferentes idades” (1881 [2002], p. 17).
  • (6)
    Já existe acúmulo razoável sobre a “Nova Economia do Projetamento”, destacamos: Jabbour, Dantas, Espíndola e Vellozo (2023)JABBOUR, E.; DANTAS, A.; ESPÍNDOLA, Carlos; VELLOZO, J. The (new) projectment economy as a higher stage of development of the Chinese market socialist economy. Journal of Contemporary Asia, v. 53, n. 5, 2023.; Jabbour e Moreira (2023)JABBOUR, E.; MOREIRA, U. From the national system of technological innovation to the “New Projectment Economy” in China. Brazilian Journal of Political Economy, v. 43, n. 3, p. 543-563, 2023.; Boa Nova, Cambuhy e Jabbour (2023)BOA NOVA, V.; CAMBUHY, M.; JABBOUR, E. A nova economia do projetamento como estágio superior de intervenção do estado chinês no território. Geosul, v. 38, n. 87, p. 69-93, 2023.; Jabbour e Gabriele (2021)JABBOUR, E.; GABRIELE, A. China: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2021.; Jabbour e Dantas (2020).
  • (7)
    Ao comentar a Ciência da Lógica do Hegel, Lênin escreveu: “não é correto que as formas do pensamento sejam apenas meios para uso. Também não é correto que elas sejam formas exteriores, formas que estejam apenas sobre o conteúdo e não sejam o próprio conteúdo” (1989, p. 96).
  • (8)
    O que chamamos de conglomerados empresariais na China, em tese, pouco tem de diferente com o que a história demosntrou ter existido em países de capitalismo tardio, caracterizados por uma precoce fusão entre banco e indústria. Segundo Braga (1996, p. 95)BRAGA, J. C. S. Economia política da dinâmica capitalista: observações para uma proposta deorganização teórica. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 26, número especial, p. 83-133, 1996.: “Esses capitais (centralizados) organizam-se efetivamente de diferentes formas no espaço e no tempo histórico. Presentemente manifestam-se nos Estados Unidos na forma da grande empresa industrial moderna com sua estrutura multidivisional; na Alemanha, via conglomerados, nos quais reina a fusão orgânica entre banco e indústria; e no Japão, por meio dos Keiretsu, em que a articulação de organizações financeiras e não financeiras constitui grupos empresariais enquanto verdadeiros “subsistemas” econômico-financeiros (Braga, 1996, p. 95BRAGA, J. C. S. Economia política da dinâmica capitalista: observações para uma proposta deorganização teórica. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 26, número especial, p. 83-133, 1996.).” O caso chinês se diferencia não somente por se tratar de uma forma particular e histórica de propriedade, mas pelo papel crescente do Partido Comunista sobre as decisões empresariais.
  • (9)
    Na verdade, esse paradigma dos trens de alta velocidade é apenas um retrato do crescente papel que as políticas industriais têm desempenhado no país. Jovens, porém, sofisticados autores brasileiros têm-se destacado em decifrar as novas determinações deste processo. Sobre isto ler, Diegues e Roselino (2023)DIEGUES, A. C.; ROSELINO, J. E. Industrial policy, techno-nationalism and Industry 4.0: China-USA technology war. Brazilian Journal of Political Economy, v. 43, n. 1, p. 5-25, 2023. e Diegues, Pellegrini e Noronha (2022)DIEGUES, A. C.; PELLEGRINI, M. G.; NORONHA, T. Política industrial e catching-up da estrutura produtiva chinesa entre 2007 e 2014. Cadernos do CEAS, v. 47, n. 255, p. 19-55, 2022..

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EDITOR RESPONSÁVEL PELA AVALIAÇÃO Carolina Troncoso Baltar

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Dez 2023
  • Aceito
    07 Mar 2024
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