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Sistema-mundo moderno, economia de mercado e formação do Brasil contemporâneo*

Modern world-system, market economy, and contemporary Brazil formation

Resumo

O presente artigo discute o processo de formação do Brasil contemporâneo nos quadros do sistema-mundo moderno através da instituição da economia de mercado como mecanismo de regulação social. Para tanto, exploram-se as formas de sociabilidade herdadas do período colonial e, então, analisam-se as tensões desestabilizadoras que envolvem o processo de homogeneização dos diferentes modos de vida através do impacto da formação do Estado brasileiro e da organização dos mercados de terra e de trabalho. Argumenta-se que o estudo da economia de subsistência é central para compreender a transição ao Brasil contemporâneo na medida em que a partir dela é possível apreender as tensões engendradas sobre e pelo Estado no processo de instituição do modo capitalista de produção da vida no Brasil.

Palavras-chave
Capitalismo; Sistema-mundo; Desenvolvimento econômico; Brasil; Sociabilidade; Economia de mercado

Abstract

The present paper aims to debate the formation process of contemporary Brazil into the modern world-system framework through the institution of the market economy as a mechanism of social regulation. Therefore, it explores the forms of sociability inherited from the colonial period and analyses the unstabilizing tensions which involve the Brazilian State building process, and the organization of land and labor markets. The paper argues that the study of livelihood economy is central to understand the transition to contemporary Brazil. From the livelihood, it is possible to apprehend the tensions over and by the State in the institution process of the capitalist mode of production in Brazil.

Keywords
Capitalism; World-system; Economic development; Brazil; Sociability; Market economy

Introdução

O presente artigo está inscrito no debate que versa sobre a singularidade da formação do Brasil contemporâneo no contexto da expansão da civilização ocidental europeia. Os estudos que problematizam esta questão influenciados pelo nacionalismo metodológico tendem a deslocar o lugar da economia na sociedade colonial e, por consequência, ofuscam a relação entre a formação do Estado nacional e a produção material da vida na transição ao Brasil contemporâneo1 (1) Para uma discussão acerca das implicações do nacionalismo metodológico nos estudos sobre o desenvolvimento ver Medeiros (2010) e Vieira (2015). . Como corolário, ofuscam-se dois fenômenos distintos, porém, interconectados: a separação institucional do sistema econômico nos diferentes núcleos de organização social herdados do período colonial e sua sujeição ao mecanismo formador de preço2 (2) Por mecanismo formador de preço compreende-se uma situação específica em que o sistema econômico passa a ser regulado pelo mercado, estando sujeito a administração complexa com base na racionalidade instrumental, conformando, assim, uma economia de mercado. .

Tentando contornar esse problema, e referindo-se ao período colonial tardio (passagem do século XVIII ao XIX), os historiadores João Fragoso e Manolo Florentino (2001FLORENTINO, M.; FRAGOSO, J. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1840. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2001., pp. 18-19) assumem como hipótese norteadora “… que a reprodução do sistema econômico se imbricava organicamente na contínua reiteração de uma hierarquia social fortemente excludente”. Ou seja, por ser tratar “… de uma sociedade escravista, a produção não era autorregulável, pressupondo a constituição pretérita de relações desiguais de poder - afinal, na escravidão, o produtor direto era cativo de outrem. O poder, expresso em uma hierarquia excludente e fundada na ordem privada, era, portanto, a condição sine qua non para a concretização do processo produtivo”.

Embora essa hipótese seja plausível para explorar as conexões entre a expansão do capital mercantil residente e a reprodução da sociedade escravista, no presente artigo exploram-se as tensões pelo desenraizamento3 (3) Compreender-se por desenraizamento o sentido atribuído por Polanyi (2012b) segundo o qual a produção e distribuição dos bens materiais encontram-se separados institucionalmente das relações sociais de natureza não econômica. do sistema econômico das hierarquias sociais do período colonial. O artigo centra atenção nas formas de sociabilidades herdadas do período colonial (crioulo, sertanejo, gaúcho, caboclo e caipira) e, a partir do século XIX, analisa as tensões desestabilizadoras que envolvem o processo de homogeneização dos diferentes modos de vida através das iniciativas que buscaram instituir uma sociedade de mercado no trópico.

Para avançar nessa direção, propõe-se a seguinte hipótese: a emancipação política de Portugal e a consequente instituição do Estado nacional, a organização de um mercado de dinheiro, a formação da propriedade privada da terra (Lei de Terras), a abolição progressiva da escravidão (Suspensão do Tráfico, Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários e Lei Áurea), a imigração, a proclamação da república e a industrialização se acumulam como rupturas sucessivas e de longa duração em direção à separação institucional do sistema econômico das formas de vida herdadas do período colonial. Lentamente, todas essas disjunções redefiniram o lugar da produção dos meios de vida no conjunto da sociedade imperial, desestabilizando os diferentes modos de vida que conformavam a paisagem social do Brasil no século XIX. O impulso a mercantilizar tudo foi pressionando pouco a pouco o escravo das fazendas exportadoras, o caboclo dos seringais nativos, o sertanejo da economia pastoril ou das lavouras do mocó que se sedimentaram em torno dos engenhos, o caipira e sua economia natural no interior de São Vicente e ainda os gaúchos, matutos e gringos que povoaram o sul colonial para se socializarem através da esfera do valor de troca.

Das disjunções acima listadas, o presente artigo explora o impacto da formação do Estado brasileiro e da organização dos mercados de terra e de trabalho sobre as formas de sociabilidade herdadas do período colonial. Argumenta-se que o estudo da economia de subsistência é central para compreender a transição ao Brasil contemporâneo na medida em que a partir dela é possível apreender as tensões engendradas sobre e pelo Estado no processo de instituição do modo capitalista de produção da vida no Brasil.

Para tanto, o artigo está dividido em três seções além desta introdução e das considerações finais. Na primeira seção, descreve-se o mosaico dos diferentes modos de viver herdados do período colonial no alvorecer do século XIX, destacando-se que a produção material da vida está imersa nas miríades das relações sociais que caracterizavam cada núcleo. A segunda seção explora a maneira pela qual a formação do Estado nacional estabeleceu, através da Lei de Terras (1850) e da Abolição (1888), as condições para o desenraizamento do sistema econômico do conjunto da sociedade nacional em formação. Na terceira seção, através da tensão entre o avanço da cafeicultura capitalista e a resistência caipira na primeira metade do século XX, ilustra-se a origem da economia de mercado no Brasil como mecanismo de regulação social.

1 Herança colonial: a economia de mercado à margem da regulação social

Se fosse possível fazer uma fotografia da paisagem colonial na virada do século XVIII para o XIX, nela estariam registrados diferentes núcleos de organização social que se estabilizaram em formas de integração (reciprocidade, redistribuição, domesticidade e troca) e estruturas de apoio (simetria, centralidade e mercado) particulares4 (4) De acordo com Polanyi (2012b, p. 83), as formas de integração correspondem aos “... movimentos institucionalizados pelos quais se conectam os componentes dos processos econômicos, desde os recursos materiais e o trabalho até o transporte, o armazenamento e a distribuição dos produtos”. Dizem respeito, portanto, as maneiras como bens e pessoas são combinadas para superar as dificuldades que envolver a produção material da vida. Já, as estruturas de apoio, correspondem as instituições que legitimam socialmente o princípio de integração. Para mais detalhes ver Polanyi (2012b), em especial o artigo “Formas de integração e estruturas de apoio”. , ajustados às condições de equilíbrio ao meio no qual cada núcleo estava inserido. Por exemplo, os engenhos açucareiros, os latifúndios pastoris, os aldeamentos extrativistas, os bairros caipiras, as estâncias e granjas, dentre outros (Cf. Ribeiro, 1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1995.). Nesta seção, descreve-se brevemente os modos de vida crioulo, sertanejo, gaúcho e caboclo herdados do período colonial, explorando a relação entre a forma de regulação social5 (5) Desde logo, cabe observar que a proposição da economia de mercado como mecanismo de regulação social deve ser compreendida no contexto da problemática da instituição e da regulação do social que caracteriza o pensamento político moderno e que busca, de acordo com Pierre Rosanvallon (2002, p. 7-12) “... entender a instituição autônoma da sociedade, independentemente de qualquer garantia exterior (notadamente de ordem religiosa).” Com isso retoma-se a originalidade de Adam Smith que não reduz o mercado a um “simples instrumento técnico de organização da atividade econômica”, “mas em um tipo de modelo político alternativo.” “Às figuras formais e hierárquicas de autoridade e comando, o mercado opõe a possibilidade de um tipo de organização e de tomada de decisão amplamente dissociados de qualquer forma de autoridade: realiza ajustes automáticos, efetua transferências e redistribuições, sem que a vontade dos indivíduos em geral e dos chefes da sociedade em particular desempenhem qualquer papel.” Mais que isso, “a ideia de mercado realiza de um certo modo um ideal de autonomia dos indivíduos ao despersonalizar a relação social. O mercado representa o arquétipo de um sistema de organização anti-hierárquica, de um modo de tomada de decisão na qual nenhuma intenção intervém. Os procedimentos e as lógicas profissionais substituem as intervenções personalizadas.” e o princípio de organização da produção e distribuição dos meios de vida no isolamento próprio de cada unidade doméstica para atender tanto as necessidades locais quanto do sistema mercantil6 (6) Para uma discussão sobre os diferentes modos de produção colônia portuguesa na América e o debate ver Lapa (1980). .

Ao se analisar as formas de integração dos regimes de propriedade da terra, de trabalho e de organização da produção e distribuição dos meios de vida em cada núcleo, observa-se que a economia (a produção material da vida) se encontrava enraizada em um sistema patriarcal de valores em que a lealdade tanto dos escravos como dos “homens livres”7 (7) No sentido atribuído por Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997). era assegurada com base no domínio da terra e no uso da violência. Argumenta-se que, apesar do sistema mercantil que envolvia e dava sentido os núcleos coloniais, a regulação social em cada núcleo não se fundava na economia de mercado na medida em que a produção da subsistência nos diferentes núcleos estava sujeita ao arbítrio do senhor.

Por exemplo, no litoral nordeste se sedimentou o modo de vida crioulo. Sob o regime de propriedade da sesmaria, na qual a Coroa ou a Igreja outorgava a concessão da terra, condicionada à efetiva exploração econômica da mesma, sob a possibilidade de reversibilidade do direito de uso (Cf. Smith, 1990SMITH, R. Propriedade da terra e transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo. São Paulo, SP: Brasiliense, 1990.), o uso da terra no engenho açucareiro se dava em função de sua qualidade. As áreas mais férteis se destinavam ao cultivo da cana-de-açúcar enquanto as pastagens eram reservadas à criação do gado. Outra parcela da terra era destinada à organização da lavora, onde eram cultivados os meios de vida necessários à reprodução do engenho com base no sistema de roça. A área da mata, por sua vez, era reservada para a extração da madeira, tanto para o fabrico de móveis e utensílios como para a lenha necessária à produção do açúcar. O sistema de produção da cana-de-açúcar, como se sabe, organizava-se com base em grandes extensões de terra, intensiva em trabalho, sobretudo escravo, não obstante, incorporasse outras formas de trabalhadores especializados necessários nos elos à montante da cadeia8 (8) Para uma discussão detalhada da cadeia mercantil do açúcar ver Vieira (2010). . O açúcar era voltado exclusivamente para atender o mercado europeu e estava sujeito ao monopólio colonial da política mercantilista. Dada a escala da produção, o custo financeiro da fabricação era elevado, exigindo planejamento mínimo para se obter o lucro mercantil necessário a manutenção do direito de exploração da terra. Apesar de sua autonomia, o engenho necessitava de atividades de apoio que se desenvolviam na orla dos engenhos. Carecia, por exemplo, do tabaco, essencial para o comércio de escravos, e de alguns víveres complementares à produção da roça como o mocó (uma espécie de algodão de árvore) e a carnaúba (insumo importante para alimentar os rebanhos, adubar o solo e fabricar cera). Nessas áreas, ocupadas basicamente por mestiços, a escravidão não era predominante e a produção dos artigos se organizava com base no sistema de granja ou de parceria, analisados mais adiante.

No mundo do açúcar, o regime de propriedade da sesmaria foi a base da hierarquia social colonial na qual o senhor de engenho (o coronel) ocupava o topo. Ele dividia seu poder e conciliava interesses com o patronato parasitário, que organizava as redes de comércio de longa distância, alimentando o engenho de escravos e comercializando o açúcar na Europa, bem com o patriciado governamental, que assegurava a ordem política imperial portuguesa na colônia. Granjeiros e parceiros eram, apesar da situação precária de vida, considerados homens livres, vinculados aos senhores de engenho por meio da lealdade, ao passo que escravos eram sujeitados com base na violência. Como bem observou Darcy Ribeiro (1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1995., p. 284),

o caráter oficial do empreendimento açucareiro - instituído e estimulado pela Coroa através da concessão das terras em sesmarias, da atribuição de privilégios, honrarias e títulos honoríficos - dá aos senhores de engenho um poder hegemônico na ordenação da vida colonial.

Se, por um lado, o regime das sesmarias impedia a absolutização da terra como ocorrera no feudalismo - isto é, a desvinculação da propriedade de seus traços feudais (Cf. Smith, 1990SMITH, R. Propriedade da terra e transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo. São Paulo, SP: Brasiliense, 1990., p. 340-341) -, por outro, a distinção entre o público e o privado na colônia se colocou de modo invertido. Como observou Fernando Novais (2005NOVAIS, F. A. Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo, SP: Editora Cosac Naify, 2005., p. 209), no contexto da colonização, “… a privacidade vai abrindo caminho não só em contraponto com a formação do Estado, mas ainda com a gestação da nacionalidade”. Neste sentido, à medida que o regime da sesmaria concedia autoridade ao senhor de engenho nas terras portuguesas na América, o arbítrio se instituía como norma dentro engenho açucareiro. Novamente, Darcy descreve bem a questão:

Assim, o poder do senhor de engenho, dentro do seu domínio, se estendia à sociedade inteira. Situado nessa posição dominadora, ele ganha uma autoridade que a própria nobreza jamais tivera no reino. Diante dele se curvavam, submissos, o clero e a administração reinol, integrados todos num sistema único que regia a ordem econômica, política, religiosa e moral. Nesse sentido, constituía uma oligarquia que operava com a cúpula patronal da estrutura de poder da sociedade colonial. Frente a ela, só a camada parasitária de armadores e comerciantes exportadores de açúcar e importadores de escravos - que era também quem financiava os senhores de engenho - guardava certa precedência. Mas não dava lugar a antagonismos, porque suas disputas eram menos relevantes que sua complementariedade (Ribeiro, 1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1995., p. 284).

Nesses termos, pode-se dizer que o mecanismo de regulação social do modo crioulo de vida no interior do engenho açucareiro era arbítrio do senhor:

Primeiro, porque importa na subordinação direta e total de toda a população engajada à autoridade única do proprietário das terras, que é também dono das casas, das instalações, dos animais, das pessoas, e de tudo podendo dispor com absoluto arbítrio. Essa centralização autocrática combinada com uma atitude puramente mercantil - que levara a tratar as pessoas integradas na plantação, sobretudo os escravos, como simples instrumento de ganho - permitia exercer uma pressão conformadora dos costumes e impositiva da deculturação, maior que em qualquer outro sistema de produção (Ribeiro, 1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1995., p. 283).

Isto fica evidente se se recupera a discussão de economia de subsistência do ponto de vista da produção dos meios de vida necessários à reprodução do engenho. Aqui a polêmica sobre a brecha camponesa no interior do sistema escravista é fundamental. Como delimitou Ciro Flamarion,

Devemos a Tadeusz Lepkowski a expressão “brecha camponesa” para designar atividades econômicas que, nas colônias escravistas, escapavam ao sistema de plantation entendido em sentido estrito. Ele distinguia duas modalidades de tal brecha camponesa: 1) a economia independente de subsistência que os quilombolas organizavam em seus quilombos; 2) os pequenos lotes de terra concedidos em usufruto nas fazendas, aos escravos não-domésticos, criando o que autor chama de mosaico camponês-escravo, coexistindo este, porém, com a “massa compacta, indubitavelmente dominante, das terras do senhor, nas quais, o escravo era trabalhador agrícola ou industrial, fazendo parte de uma organismo de produção (Cardoso, 1987CARDOSO, C. F. S. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo, SP: Brasiliense, 1987., p. 54).

Não convém aqui retomar o polêmico debate sobre o cativo ser escravo ou camponês. Destaca-se apenas que, no modo de vida crioulo, a produção da subsistência se realizava fora do âmbito da esfera do valor de troca. Como bem ilustra Ciro:

[...] no engenho Sergipe, cada escravo recebia um machado, uma picareta e uma enxada, marcados com o símbolo do Colégio de Santo Antão, e pelos quais era responsável, para trabalhar a sua parcela. Mas em geral, diz o autor que eram muitos - [...] - os engenhos que usavam o sistema de lotes de terra dados aos escravos com tempo para cultivá-los e a possibilidade de dispor livremente dos excedentes produzidos. Aliás, como tais propriedades açucareiras trabalhavam com frequência segundo um sistema de quotas, estas uma vez cumpridas, os cativos poderiam trabalhar pelo resto do dia em suas próprias parcelas. O tempo, em princípio, concedido para tal era muito variável nos documentos, e provavelmente também na realidade: há textos que falam só de domingos e feriados, outros de um dia útil a mais por semana (Cardoso, 1987CARDOSO, C. F. S. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo, SP: Brasiliense, 1987., p. 95-96).

Com base nessas observações, infere-se que a produção e a distribuição dos meios de vida estavam subordinadas, em última instância, a um sistema redistributivo, em que a movimentação de bens e pessoas dependia da vontade do senhor de engenho.

No latifúndio pastoril nordestino, que se proliferava nas proximidades do engenho açucareiro, a escravidão não era a instituição central. Contudo, isto não significava necessariamente uma vida melhor. Tal como no engenho açucareiro, a propriedade estava fundada no regime da sesmaria. No começo, o direito era concedido aos próprios senhores de engenho, mas com o passar do tempo, à medida que a atividade foi se especializando, aqueles que mereciam o favor real, eram chamados de criadores. A criação do boi ou do bode se dava com base nos currais que eram construídos próximos às águas ribeiras, onde o gado poderia tomar água e encontrar sal. As atividades de cuidar dos animais eram, por sua vez, entregues aos vaqueiros. Eles recebiam um soldo em gêneros, em geral sal e crias em rebanho, uma rês a cada três marcadas para seu dono. Ainda dentro do latifúndio, os criadores exploravam outras atividades que assistiam os engenhos, como, por exemplo, a exploração do mocó ou a extração das palmeiras de carnaúba. Essas atividades se organizavam com base no regime de meação, em que os meeiros, recebiam uma parcela de terras para cultivar os alimentos de que necessitavam, bem como para produzir os gêneros comercializáveis, dos quais a metade deveria ser entregue ao criador. Deste modo, pode-se observar que no latifúndio pastoril, além do criador e do vaqueiro (e sua família), reuniam-se: aprendizes que auxiliavam o vaqueiro; boiadeiros, que arrebanhavam os bois a serem levados para o litoral bem como trazia sal; e alguns meeiros dedicados as atividades extrativas. Menos desigual que o engenho açucareiro, o latifúndio pastoril era também rigidamente hierárquico. De acordo com Darcy Ribeiro,

O criador e seus vaqueiros se relacionavam como um amo e seus servidores. Enquanto dono e senhor, o proprietário tinha autoridade indiscutida sobre os bens e, às vezes, pretendia tê-la também sobre as vidas e, frequentemente, sobre as mulheres que lhe apetecessem. Assim, o convívio mais intenso e até a apreciação das qualidades de seus serviçais não aproximavam socialmente as duas classes, prevalecendo um distanciamento hierárquico e permitindo arbitrariedades, embora essas estivessem longe de se assemelhar à brutalidade das relações prevalecentes nas áreas da cultura crioula (Ribeiro, 1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1995., p. 343).

Portanto, no modo de vida sertanejo consolidado dentro do latifúndio pastoril, o arbítrio também se instituiu como mecanismo de regulação social, subordinando a produção dos meios de vida as teias da dominação pessoal. Vale ainda observar que:

Sob essas condições de domínio despótico, as relações do sertanejo com seu patrono se revestem do maior respeito e de referência, esforçando-se cada vaqueiro ou lavrador por demonstrar sua prestimosidade de servidor e sua lealdade pessoal e política. (...) Seu temor supremo é verem-se desgarrados, sem patrão e senhor que os proteja do arbítrio do policial, do juiz, do cobrador de impostos, do agente de recrutamento militar. Ilhados no mar do latifúndio pastoril dominado por donos todo-poderosos, únicos agentes do poder público, têm verdadeiro pavor de se verem excluídos do nicho em que vivem, porque isso equivaleria a mergulhar na terra de ninguém, na condição de fora-da-lei. Paradoxalmente essa saída desesperada é a única que enseja ao sertanejo libertar-se da opressão em que vive, seja emigrando para outras terras, seja caindo no banditismo (Ribeiro, 1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1995., p. 350-351).

No núcleo sertanejo, a subsistência estava baseada majoritariamente na roça. Como destaca o antropólogo,

os núcleos formados nos currais plantavam roçados e amansavam umas quantas vacas para terem leite, coalhada e queijos. Carneavam, por vezes, uma rês, garantindo-se assim uma subsistência mais farta e segura do que a de qualquer outro núcleo rural brasileiro (Ribeiro, 1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1995., p. 342).

A essência da sociabilidade que articulava a vida sertaneja pode ser assim descrita:

Apesar das enormes distâncias entre os núcleos humanos desses currais dispersos pelo sertão deserto, certas formas de sociabilidade se foram desenvolvendo entre os moradores dos currais da mesma ribeira. A necessidade de recuperar e apartar o gado alçado nos campos ensejava formas de cooperação como as vaquejadas, que se tornaram prélios de habilidade entre os vaqueiros, acabando, às vezes, por transformar-se em festas regionais. O culto dos santos padroeiros e as festividades do calendário religioso - centralizado nas capelas com os respectivos cemitérios, dispersos pelo sertão, cada qual com seu círculo de devotos representado por todos os moradores das terras circundantes - proporcionavam ocasiões regulares de convício entre as famílias de vaqueiros de que resultavam festas, bailes e casamentos. Afora essa convivência vicinal e que se circunscrevia aos vaqueiros da mesma área, o que prevalecia era o isolamento dos núcleos sertanejos, cada qual estruturado autarquicamente e voltado sobre si mesmos, na imensidade dos sertões (Ribeiro, 1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1995., p. 344).

Vista em perspectiva, tanto no engenho açucareiro como o latifúndio pastoril, a reprodução da vida material não tinha dependência direta do mercado. O mesmo se pode observar nas estâncias no planalto gaúcho ou nos aldeamentos extrativistas na Amazônia.

Ao sul da colônia, adentrando ao planalto que protege a bacia do Rio da Prata, localizavam-se as estâncias gaúchas. Sedimentação das antigas invernadas, que buscavam arrebanhar o gado selvagem, as estâncias estabilizaram um modo de vida particular em torno do latifúndio pastoril. Dedicando-se à pecuária de bovinos, equinos e muares para suprir as necessidades colônias de carne, couro, força de tração e transporte de carga. No isolamento da estância, a produção material da vida também se baseava em laços de lealdade, apesar da orientação mercantil da pecuária. O regime de sesmarias concedia ao estancieiro o direito de aquerenciar o gado selvagem ou trazido por vacaria, bem como criar cavalos e muares. No interior das estâncias as relações sociais dependiam das características das atividades que eram realizadas. Por exemplo, nos saleiros, onde o trabalho era pesado e intenso, a mão de obra escrava foi frequentemente utilizada. Contudo, os cuidados da criação, que exigiam um regime de trabalho disciplinado, foram entregues aos campeiros ou peões presos à terra pelo assalariamento. Não obstante, o contingente de pessoas que não era incorporado no cuidado dos animais era dispensado das estâncias. Alguns se recusavam à disciplina do assalariamento, como, por exemplo, o gaúcho-a-pé que, tal como o caipira, era um subproduto do latifúndio. Alguns eram convertidos em trabalhadores temporários de acordo com a necessidade de caudilho na execução de tarefas específicas como bater os campos, aramado ou tosquia. Outra parte era incorporada ao latifúndio sob o regime de parceria. Eram totalmente dependentes dos estancieiros proprietários na medida em que estes lhes cediam parcelas de terras onde podiam cultivar alguns gêneros. Em troca, pagavam a metade ou a terça parte da colheita. Além disso, o estancieiro exigia a lealdade pessoal e política. Este trato pessoal também se observava na relação do estanceiro com os peões. Apesar de cordial e respeitoso, o convívio era marcadamente assimétrico, característico das relações entre patrões e empregados:

Nessas circunstâncias, tanto o gaúcho de estância quanto o gaúcho parceiro, imersos no latifúndio pastoril, não alçam as condições mínimas para uma conduta autônoma de cidadãos. São homens de seus patrões, temerosos de perder um vínculo que lhes parece um ampara face da ameaça de se verem lançados em condições ainda mais difíceis (Ribeiro, 1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1995., p. 424).

No norte da colônia, na região da bacia amazônica, constituíram-se outros núcleos de colonização sedimentados na forma de aldeamentos extrativistas. Estes núcleos foram basicamente organizados em torno da busca por drogas da mata - cravo, canela, quina, urucu, açafrão e óleos, sementes, resinas, tubérculos em geral - e, mais tarde, a borracha. Aí se constituiu uma variante cultural diferente que, segundo Darcy Ribeiro, pode ser denominada de caboclos da Amazônia. O modo de vida caboclo tem por base a adaptação indígena ao meio. Contudo, o caráter mercantil das atividades extrativas, exigiu a organização de atividades acessórias, como a pastoril e a agrícola, que asseguravam a reprodução material. Ergueu-se aí uma sociedade estratifica a partir da sujeição do gentio ao trabalho compulsório, em que a oligarquia foi formada por funcionários da coroa e comerciantes que repartiram as propriedades jesuíticas após sua expulsão. O componente de estabilização fundava-se em dois pilares: a aliança do patronato contra qualquer rebelião indígena e a servilidade dos caboclos aculturados. Ambos os pilares eram permeados pela violência. Ao nível dos aldeamentos extrativistas, a subsistência provinha da adaptação à floresta tropical, de onde se retirava o sustento através da caça, da pesca e da coleta de frutos e tubérculos, e do cultivo de roças de mandioca e milho.

Com base nessas breves considerações, observa-se que a sociedade colonial na América portuguesa no alvorecer do século XIX era um arquipélago de modos de vida gestados no contexto do Antigo Sistema Colonial. A maneira como cada núcleo colonial se estabilizou dependeu em grande medida do choque de civilização entre o europeu, o gentio e o escravo em um longo e violento processo de adaptação cultural. Apesar de os diferentes núcleos estarem submetidos aos circuitos mercantis, a produção dos meios de vida que permitiam a reprodução material tanto da fazenda exportadora, como dos latifúndios pastoris do Nordeste e do Sul, ou ainda do aldeamento extrativista, dependia em grande medida da roça. Seu cultivo estava sujeito à vontade do senhor de escravos, do criador, do estanceiro ou do patronato. Parceiros, meeiros e escravos, recebiam uma determinada área na qual produziam seu próprio alimento e entregavam parte ao proprietário. Somente o eventual excedente da roça era destinado à troca. Deste modo, o que não era produzido no interior da unidade doméstica era suprido através do intercambio de excedentes. Portanto, o que parece transversal aos modos de vida crioulo, sertanejo, gaúcho e caboclo é o fato da produção material se encontrar enraizada em um sistema patriarcal de valores, em que a lealdade tanto dos escravos como dos “homens livres” era assegurada com base na violência da oligarquia ou na troca de favores e serviços. Quando se observa em perspectiva essa paisagem colonial, nota-se a marginalidade da economia de mercado para o adensamento dos núcleos coloniais.

Não obstante, pode-se afirmar que esses núcleos eram sociedades abertas no topo, porque se vinculavam a algum interesse mercantil de longa distância (interna ou externa à colônia), porém, ao mesmo tempo, eram fechadas para dentro, rigidamente hierárquicas e quase sem mobilidade social. Assentadas no regime da sesmaria e no arbítrio, o crescimento vegetativo da população era estimulado pela expansão das fronteiras com a tutela do posseiro mais forte e da Coroa, que concedia o usufruto para alguns poucos privilegiados em troca de uma renda.

Todos esses modos de vida mudaram com o processo de emancipação política em relação a Portugal. Sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, com a supressão progressiva da escravidão e o estabelecimento do direito de propriedade privada da terra.

A próxima seção explora as tensões desestabilizadoras sobre os núcleos coloniais decorrentes do processo de construção do Estado brasileiro através da organização dos mercados de terra e de trabalho.

2 Formação do Estado nacional e o desenraizamento da economia

Para inserir o Brasil na grande narrativa do sistema-mundo moderno, é importante, nesta altura do argumento, recuperar a tese do professor Fernando Novais (1995NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6. ed. São Paulo, SP: Editora Hucitec, 1995. [1972], 2005) para quem o surgimento do Estado nacional, escravista e sob o regime de governo imperial, foi uma resposta particular à crise do Antigo Sistema Colonial.

No momento em que a economia-mundo capitalista se consolidava no centro (1640-1750), o Estado português, sob liderança de Pombal, tentando recuperar sua influência no sistema interestatal, impôs uma dura reforma à colônia americana, intensificando sobre esta o grau de exploração. Contudo, a reforma pombalina antes reforçou do que neutralizou a conjuntura sistêmica que, com a ascensão do imperialismo britânico do livre comércio, colocou em xeque o monopólio do comércio e o regime escravista.

Para Novais (1995NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6. ed. São Paulo, SP: Editora Hucitec, 1995. [1972]), ainda que a expansão colonial fosse produto da alargamento da economia de mercado europeia, a sociedade colonial na América portuguesa limitava seu avanço. O escravismo, por exemplo, por não apresentar nenhuma tendência intrínseca a elevar produtividade, gerava uma baixa rentabilidade, cuja lucratividade era compensada pela redução dos custos de reprodução do escravo a partir do alargamento das faixas de produção de subsistência. Consequentemente, isto dispensava o espraiamento de relações de mercado no interior dos engenhos escravistas. A articulação com o universo mercantil se dava pela camada superior, que concentrava a renda da atividade exportadora nas suas mãos.

A ruptura com a dominação colonial portuguesa ocorreu quando a própria expansão da economia de mercado na Europa se tornou incompatível com o escravismo na periferia. Segundo Novais (1995NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6. ed. São Paulo, SP: Editora Hucitec, 1995. [1972]), a Revolução Industrial, ao mecanizar a produção, elevou a produtividade ao ponto em que foram exigidos novos volumes de matérias-primas bem como a generalização das relações mercantis para assegurar o consumo. Neste cenário, a expansão extensiva das atividades coloniais em base escravista se tornou incompatível com as necessidades da acumulação do capital industrial na medida em que não assegurava a bom ritmo o fluxo de mercadorias demandados e ofertados pela Europa.

Ronaldo dos Santos (1985)SANTOS, R. M. dos. O rascunho da Nação: formação, auge e ruptura da economia colonial. Campinas, SP: Unicamp, 1985. explorou a tensão entre a Revolução Industrial, a crise do Antigo Sistema Colonial e novo papel colocado às periferias. De acordo com Santos, a transformação do caráter da acumulação capitalista no centro aprofundou a divisão social do trabalho na colônia, provocando a ultrapassagem dos limites internos a mercantilização. A fase da economia mineira representou, segundo o autor, essa ruptura fundamental. Ela não só deu origem ao capital mercantil nacional, que passou a conectar diferentes mercados locais dispersos pela colônia, como também promoveu uma espécie de acumulação mercantil “interna”. O aprofundamento das relações mercantis internas elevou a capacidade da colônia assimilar os novos estímulos engendrados pelo “novo” mercado mundial criado pelo capital industrial britânico. Com isso, a colônia passou a operar como periferia produtora de alimentos e matérias-primas e, sobretudo, consumidora de produtos maquinofaturados. Decorre daí o significado econômico da independência:

o Estado Nacional é, portanto, a culminância do desenvolvimento dos circuitos mercantis responsáveis pela acumulação interna, conferindo-lhes o impulso e a estabilidade vitais para sua reprodução ampliada em bases relativamente autônomas. O capital mercantil deverá necessariamente se desenvolver apoiado no Estado para que se criem condições para a supressão do escravismo e para o surgimento do capitalismo (Santos, 1985SANTOS, R. M. dos. O rascunho da Nação: formação, auge e ruptura da economia colonial. Campinas, SP: Unicamp, 1985., p. 195).

Complementado as sugestões de Novais (1972) e Santos (1985)SANTOS, R. M. dos. O rascunho da Nação: formação, auge e ruptura da economia colonial. Campinas, SP: Unicamp, 1985., Eduardo Mariutti (2012)MARIUTTI, E. B. Capital comercial autônomo: dinâmica e padrões de reprodução. Campinas, SP: Unicamp. Instituto de Economia, 2012. (Texto para Discussão, n. 214). contribuiu em duas direções. Primeiro, demonstrando que no período da Crise do Antigo Regime, o capital mercantil dava coesão à economia-mundo capitalista em formação, articulando diferentes formações sociais, como, por exemplo, na Europa Oriental, o reestabelecimento da segunda servidão, e nas Colônias na América, a preservação da escravidão por meio do Antigo Sistema Colonial. Segundo, indicando que a penetração do capital mercantil nas sociedades implicava numa re-estratificação social fundada na riqueza que, por sua vez, contestava as formas de sociabilidade pretérita, configurando um novo modo de produção da vida. Este segundo caminho lança luz sobre a relação centro-periferia do ponto de vista da dinâmica de expansão do sistema-mundo moderno ao mesmo tempo em que oferece a possibilidade de compreender a transição ao Brasil contemporâneo através das mutações das formas de sociabilidade em direção a integração pela economia de mercado.

Não obstante, para completar o argumento, é preciso ainda considerar o papel do mercado interno. Nesta direção, Antonio de Paula (2002)ANTONIO DE PAULA, J. O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história. História Econômica & História de Empresas, v. 5, n. 1, p. 7-39, 19 jul. 2002. Disponível em: http://www.abphe.org.br/revista/index.php/rabphe/article/view/126/158.
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procurou, por um lado, destacar a centralidade do mercado interno na gênese e dinâmica de sistemas econômicos nacionais capitalistas e, por outro, indicar algumas especificidades do processo de constituição do mercado interno brasileiro. Dentre as particularidades, o autor destaca:

1) a longa permanência no Brasil da fragmentação do mercado interno - apesar do embrião de articulação do mercado interno, representado pela economia mineira no século XVIII, a realidade dominante do mercado interno no Brasil, foi, até a segunda metade do século XX pelo menos, a sua falta de integração, a existência de um efetivo arquipélago de relações de trabalho, tecnologias, graus de mercantilização e monetização, estruturas fundiárias regionalmente diferenciadas; 2) o importante papel no desenvolvimento das relações econômicas no Brasil da continuidade de uma política de terras, que herdada da tradição sesmarial lusitana, prolongou-se no latifúndio e no bloqueio ao acesso à terra aos muitos que dela dependem, e que a demandam desde a época colonial até os mais recentes movimentos de luta pela terra; 3) a importância da mobilidade especificamente brasileira da constituição do mercado de trabalho, marcada pela longuíssima duração da escravidão e pela pesada herança de uma sociedade parasitária e excludente, que tem reiterado historicamente mecanismos de interdição dos direitos sociais e de desqualificação da força de trabalho (Antonio de Paula, 2002ANTONIO DE PAULA, J. O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história. História Econômica & História de Empresas, v. 5, n. 1, p. 7-39, 19 jul. 2002. Disponível em: http://www.abphe.org.br/revista/index.php/rabphe/article/view/126/158.
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, p. 12-13).

Se Polanyi (2012a)POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier, 2012a. está correto em afirmar que em sociedades nacionais a formação do mercado interno representa um aspecto da separação institucional do sistema econômico das relações sociais, então as particularidades destacadas por Antonio de Paula podem ser reconsideradas como correspondentes ao próprio processo de expansão do mercado mundial em espaços tempos particulares. Essa expansão não se restringe, portanto, a exportação de capitais do centro em direção à periferia, se dá também através da instituição espraiada de relações especificamente capitalistas. Como se fosse metástase, os fundamentos da ordem social liberal migravam pela via do capital mercantil, contestando formas pretéritas de sociabilidades.

Sendo assim, mesmo sob regime de governo imperial e escravista, o Estado em construção, ao instituir o Banco do Brasil (1808), estabelecer a Lei de Terras (1850) e abolir a escravidão (1888), promoveu a formação do mercado interno ao dar alguma organicidade os mercados de dinheiro, de terra e de trabalho9 (9) Para uma discussão sobre os desafios da instituição da economia de mercado no Brasil, ver Wanderley Guilherme dos Santos (1977). . Do ponto de vista estrutural, o Estado deu início ao desenraizamento das economias nos diferentes modos de vida que conformavam o Brasil do século XIX, redefinindo as condições de sociabilidade dentro e entre os núcleos regionais.

A questão que precisa ser respondida é como o estabelecimento da propriedade privada da terra e a organização do mercado de trabalho livre promoveram a separação institucional do sistema econômico da trama social que as envolvia nos diferentes núcleos coloniais?

Entre os séculos XVI e XVIII o direito à terra se baseava no domínio régio com base na sesmaria e na posse. (Cf. Silva, 1996SILVA, L. M. O. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas, SP: Unicamp, 1996.) Em fins do século XVIII, abriu-se o período de extinção do regime da sesmaria. Como observou Roberto Smith (1990)SMITH, R. Propriedade da terra e transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo. São Paulo, SP: Brasiliense, 1990., a alta dos preços na Europa em função das guerras napoleônicas e da crise de produção colonial nas Antilhas e nos EUA promoveu um surto de crescimento da agricultura mercantil de exportação na colônia portuguesa na América. Este surto, porém, teve impacto diferente em cada região. No Nordeste, por exemplo, a produção açucareira avançou dentro do latifúndio, ao passo que no Vale do Paraíba, ela se expandiu para zonas de fronteiras. Além disso, com o indício da organização de uma economia urbana mineira e a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, o encadeamento de alguns circuitos mercantis internos também estimulou a expansão da agricultura mercantil. Tal expansão contribuiu para a desorganização do regime das sesmarias, que fora abalado pelo afrouxamento dos rígidos controles colônias. A extinção formal do regime de sesmaria se deu com a Independência em 1822. Como lembra Smith,

O fim do regime de concessão de sesmarias pode ser enquadrado no panorama geral do movimento antiabsolutista que emana da Revolução do Porto, cujos efeitos, no Brasil, vinculam-se mais ao movimento que oscila entre a independência e a obtenção de um status de país associado a Portugal, do que efetivas conquistas liberais, como assinala Viotti da Costa (Smith, 1990SMITH, R. Propriedade da terra e transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo. São Paulo, SP: Brasiliense, 1990., p. 343).

Da declaração da independência até a publicação da Lei de Terras em 1850, o Brasil viveu o terceiro período que marca o fim do regime de sesmaria. Como lembra Smith, a constituição de 1824 foi omissa com relação à questão da terra. A característica principal desse período foi o apossamento indiscriminado da terra. Correspondeu, portanto, ao período de formação efetiva dos latifúndios. Ainda segundo o autor, sem nenhuma regulamentação, foram removidas as restrições por áreas e números de propriedades do detentor das sesmarias e as cobranças de foros e morgadio, permitindo a concentração fundiária indiscriminada. Vale lembrar que a partir da década de 1830 o café começava a despontar como atividade econômica relevante.

Foi apenas em 18 de setembro 1850 que o Estado brasileiro definiu o novo regime de propriedade da terra. Como observou Smith (1990SMITH, R. Propriedade da terra e transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo. São Paulo, SP: Brasiliense, 1990., p. 345), “o reordenamento do processo de legitimação fundiária aparecia vinculado ao rumo que se pretendia dar à colonização europeia, baseada na implementação do trabalho livre.” Alguns dias antes, em 4 de setembro, foi publicada a Lei Eusébio de Queiros que proibiu o tráfico negreiro. Neste mesmo ano, o Código Comercial também foi consolidado e a Guarda Nacional reorganizada. Visto em perspectiva, Smith observa que:

Esse conjunto de medidas legais, de significativa densidade social e longo processo de conflituosa maturação, expõe transformações efetivas e, termos de um redirecionamento das relações de produção, mercantis e de propriedade. Assinala fundamentalmente o fim do padrão de acumulação escravista. Denota intencionalmente que parte do Estado, como se este fosse portador de um projeto para a nação, um projeto com elementos conservadores, mas progressista no sentido de uma direção para o capitalismo (Smith, 1990SMITH, R. Propriedade da terra e transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo. São Paulo, SP: Brasiliense, 1990., p. 345).

Portanto, o desvencilhamento com a ordem colonial se expressa na complementariedade entre esses dispositivos. É neste marco que se deve pensar a formação da propriedade privada da terra no Brasil e a introdução do assalariamento:

a legitimação da propriedade da terra pelo Estado é um dos pressupostos para o trabalho assalariado que surge na história do país. Mas a trajetória histórica para o assalariamento ainda teria um permeio, tanto o regime de colonato alimentado pelo imigrantismo na região do café, quanto a continuidade da hegemonia do capital mercantil presente no revigoramento por que passa a economia açucareira do Nordeste, no avanço do café sobre o Oeste Paulista, e mesmo nas formas de submissão do trabalho rural vinculado à pequena produção de subsistência com geração de excedentes (Smith, 1990SMITH, R. Propriedade da terra e transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo. São Paulo, SP: Brasiliense, 1990., p. 351).

A suspensão do tráfico em 1850 foi o primeiro passo em direção à formação do mercado de trabalho assalariado. A ela se somariam em 1871 a Lei do Ventre Livre, que tornava livre todos os filhos de escravos, e a Lei dos Sexagenários de 1885, que assegurava a liberdade dos escravos com mais de 60 anos. Apenas em 1888, com a Lei Áurea, foi decretado o fim da escravidão no Brasil. Não obstante, a abolição progressiva da escravidão no Brasil não implicava diretamente, segundo Sérgio Silva (1976SILVA, S. Expansão cafeeira e origem da indústria no Brasil. São Paulo, SP: Alfa-Omega, 1976., p. 47) a “introdução progressiva” do trabalho assalariado. As dificuldades advinham justamente do trabalhador estar preso à terra por meio da economia de subsistência:

Aquele que poderíamos chamar de o camponês brasileiro devia assegurar ele próprio a sua subsistência, explorando por seus meios as terras que lhe eram concedidas pelo latifundiário. Em contrapartida, devia trabalhar para o latifundiário, recebendo por esse trabalho uma retribuição mínima e, em geral, in natura (uma parte da colheita ou uma certa porcentagem do gado que ele havia criado, conforme o proprietário dedicasse as suas terras à agricultura ou à criação) (Silva, 1976SILVA, S. Expansão cafeeira e origem da indústria no Brasil. São Paulo, SP: Alfa-Omega, 1976., p. 42).

Portanto, a roça, a agricultura de subsistência, articulava e vinculava pela terra, a liberação do escravo e a condição de existência dos trabalhadores livres.

Pari passu a Lei de Terras e a abolição da escravidão, a imigração foi a terceira componente importante para compreender a organização do mercado de trabalho no Brasil. Como observou Silva:

Foi fundamentalmente graças a essa imigração massiva de trabalhadores de origem europeia que o mercado de trabalho formou-se e desenvolveu-se no Brasil até a década de 1920. E nesse mercado de trabalho, formado pelos trabalhadores imigrados, se abasteceram não somente os fazendeiros de café, mas também os primeiros industriais brasileiros [...] (Silva, 1976SILVA, S. Expansão cafeeira e origem da indústria no Brasil. São Paulo, SP: Alfa-Omega, 1976., p. 44).

Findada a escravidão, o regime de governo imperial também é abandonado com a Proclamação da República em 1889. Este seria o primeiro passo para a instituição de um regime democrático de governo.

Lígia Maria Osório Silva (1996)SILVA, L. M. O. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas, SP: Unicamp, 1996. também explora a relação entre a privatização da terra e a formação do trabalho assalariado. De acordo com a professora, a Lei de Terras não eliminou a posse. Com a instituição da República e a promulgação da Constituição de 1891, a questão da terra e da mão-de-obra passou a ser assunto estadual. Essa transferência de poder alterou a Lei de Terras em dois aspectos: prorrogaram-se as datas de validade das posses e alteraram-se os prazos para reivindicar as sesmarias e legitimar a posse. (Cf. Silva, 1996SILVA, L. M. O. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas, SP: Unicamp, 1996., p. 358) Osório Silva ainda destaca que neste período o mecanismo seletivo de acesso à terra era muito dependente do coronelismo: “Controlando a vida municipal por meios que iam do paternalismo à violência, os coronéis, ‘fieis’ às oligarquias que dominavam a política estadual, representavam um papel central no modo pelo qual as terras devolutas se incorporavam ao patrimônio privado”. (Silva, 1996SILVA, L. M. O. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas, SP: Unicamp, 1996., p. 358). Do ponto de vista dos pequenos posseiros, agregados, ex-escravos e índios, a violência exercida sobre eles pelos posseiros mais fortes (os latifundiários) criava uma situação de permanente instabilidade. Muito embora a fronteira aberta permitisse acomodar muitos conflitos relativos à privatização da terra, a violência era essencial para assegurar a posse até sua regularização por via administrativa. Aqui também havia um impasse na formação da propriedade privada da terra. Dado o caráter predatório da agricultura, não havia muito interesse em regularizar a propriedade da terra na medida em que fosse possível incorporar novas terras devolutas. Em 1916, com o novo Código Civil, foram estabelecidas as normas para transmissão da propriedade entre particulares, o que transferia para a via judicial o processo de regularização da terra. A partir de então, colocou-se em questão a possibilidade de usucapião sobre as terras devolutas. Como a professora Lígia, observa:

Aceitar a possibilidade do usucapião das terras devolutas significava derrubar um dos pilares sobre os quais se assenta a Lei de Terras, que, embora não tivesse conseguido estancar o apossamento, permanecia como um marco definidor das atribuições do Estado e dos proprietários de terras (Silva, 1996SILVA, L. M. O. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas, SP: Unicamp, 1996., p. 363).

Das análises sobre a formação da propriedade da terra e da abolição da escravidão, João Antonio de Paula, por exemplo, conclui que:

... o resultado final seria a instauração de uma modernidade atrofiada, a constituição de um mercado incompleto e excludente, a afirmação de privilégios e desequilíbrios, e a reiteração de desigualdades sociais e regionais comprometedoras tanto da construção nacional quando da democracia (Antonio de Paula, 2002ANTONIO DE PAULA, J. O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história. História Econômica & História de Empresas, v. 5, n. 1, p. 7-39, 19 jul. 2002. Disponível em: http://www.abphe.org.br/revista/index.php/rabphe/article/view/126/158.
http://www.abphe.org.br/revista/index.ph...
, p. 32).

Como sugere Antonio de Paula, não é incorreto afirmar que grande parte da literatura crítica da formação do Brasil contemporâneo costuma definir a realidade brasileira a partir do polo negativo da contradição, definindo a modernidade brasileira como atrofiada, tardia ou selvagem. Isto ocorre porque se supõe a existência de modos de vida superiores ou avançados, que seriam modelos a alcançar, e outros inferiores ou atrasados, que seriam realidades a se transformar. Mais que isso, assume-se que o polo inferior ou atrasado bloqueia o despertar do avançado.

A partir da perspectiva delineada até aqui, o que parece estar em jogo não é o suposto caráter atrofiado da modernidade brasileira, mas sim a distensão do tecido social colonial provocado pelo aprofundamento da mercantilização da vida e as formas em que são transfigurados os diferentes núcleos coloniais dentro de uma sociedade nacional em construção. Instituir a economia de mercado como mecanismo de regulação social na periferia da economia-mundo capitalista não implica que o mercado interno se consolide de maneira homogênea como ocorreu no centro do sistema. A ideia de bloqueio só faz sentindo para perspectivas que assumem a concepção smithiana de progresso natural da riqueza.

Portanto, à luz das transformações das formas de sociabilidade, o que deve estar em mira são as condições gerais de reprodução do sistema-mundo moderno (acumulação de riqueza e poder) em tensão com as condições particulares de reprodução dos diferentes núcleos de organização social que se encontram estabilizadas dentro (centro, semiperiferia e periferia) ou fora (arena externa) da economia-mundo capitalista, conformando uma “nova” fronteira para a acumulação capitalista. (Cf. Wallerstein, 2001WALLERSTEIN, I. M. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2001.)

Na próxima seção, com base no estudo de Antônio Candido (1997CANDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 1997. [1964]), ilustra-se o processo de desenraizamento da economia e como isto impactou sociabilidade caipira. Para tanto, primeiro apresenta-se como o modo de produção caipira da vida se estabilizou no interior paulista e, em seguida, como este modo de vida foi desestabilizado pelos processos concomitantes de expansão da agricultura capitalista e de urbanização. Por fim, indica-se como ambos pressionaram para a redefinição da sociabilidade caipira com base na proletarização.

3 A desintegração dos parceiros do Rio Bonito

Em Parceiros do Rio Bonito, Antonio Candido retoma a questão dos meios de vida como fator dinâmico para a compreensão da solidariedade caipira e reconstrói a vida do homem da roça nos séculos XVIII e XIX com o intuito de avaliar as transformações que este sofreu durante a primeira metade do século XX. Para tanto, Candido situa o homem caipira em unidades mínimas de vida econômica e social, onde as relações sociais encontram um primeiro ponto de referência, o agrupamento de parceiros ou bairro. O termo caipira exprime uma forma de cultura rústica, um modo de viver que, no universo das culturas tradicionais, resultou do ajustamento do colono português ao meio em contato com o aborígene.

A vida caipira tinha por base uma economia marcadamente de subsistência e autárquica, que conservava o nomadismo bandeirante de sua origem associada à cultura indígena, cuja obtenção dos meios de vida advinha da pesca e coleta, e de uma agricultura itinerante que, dado o caráter instável, exigia a mobilidade dos indivíduos e grupos. Daí, pois, a rusticidade da habitação, do vestuário, dos utensílios e do próprio caráter do homem caipira (ideias, comportamento, modos e relações).

Na verdade, essa agricultura itinerante, extensiva, permitia ao caipira tradicional estabelecer um equilíbrio instável com o meio ecológico devido à falta de técnicas que permitissem a sedentarização com base no uso da terra. Como apontou Candido:

[...] a agricultura itinerante era possibilitada não apenas pelas reservas de terra nova e fértil, imensas para uma população esparsa, como também pelo sistema de sesmarias e posses; sobretudo estas, que abriam para o caipira a possibilidade constante de renovar o seu chão de plantio, sem qualquer ônus de compra ou locação. A posse, mais ou menos formal, ou a ocupação pura e simples, vêm juntar-se aos tipos de exploração e ao equipamento cultural, a fim de configurar uma vida social marcada pelo isolamento, a independência, o alheamento às mudanças sociais. Vida de bandeirante atrofiado, sem miragens, concentrada em torno dos problemas de manutenção dum equilíbrio mínimo entre o grupo social e o meio (Candido, 1997CANDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 1997., p. 46).

Essa observação ilustra a relação entre o regime de propriedade da terra, a possibilidade de obtenção dos meios de vida e as condições para a formação de uma sociabilidade que permitiram a estabilização dos núcleos caipiras.

Neste caso, o equilíbrio com o meio presumia uma dieta em que a obtenção dos recursos alimentares deveria favorecer a mobilidade que o modo de vida seminômade impunha. Assim, a base da alimentação caipira era o feijão, o milho e a mandioca. De maneira não regular, alimentavam-se também de diversas abóboras e tuberosas, como a batata-doce. Couve e chicória também faziam parte da dieta. Entre os condimentos sal e toicinho era os principais temperos. Não obstante, a sobrevivência do caipira dependia ainda da coleta, da caça e da pesca.

A maneira como as atividades eram organizadas para a obtenção desses meios de vida implicava formas de solidariedade que diferenciavam a vida do caipira em relação a outros núcleos coloniais, ganhando uma expressão espacial em forma de povoamento. No caso caipira, o bairro correspondia à base territorial sob a qual se desenrolava a vida, configurando um sentimento de localidade para seus membros. Este era também o espaço de convivência em função da proximidade física e da necessidade de cooperação para organizar a produção dos meios de vida.

No bairro, distinguiam-se dois tipos de moradores, o permanente e o transitório. Eram moradores permanentes o fazendeiro, proprietários da sesmaria, e o sitiante, proprietário ou arrendatário do sítio. Por sua vez, eram moradores transitórios o posseiro, o agregado e o cultivador nômade. Este último se estabelecia de maneira precária, ao passo que o agregado dependia do consentimento do proprietário e o posseiro era quem de fato ocupava à terra, muitas vezes a mando do morador permanente.

Do ponto de vista da produção dos meios de vida, trata-se basicamente de uma economia semifechada. O acesso à terra era assegurado por meio da posse e a organização do trabalho era essencialmente com base no trabalho familiar isolado, o qual ocasionalmente contava com a cooperação vicinal alicerçada no mutirão. O mutirão, descreve Candido:

consiste essencialmente na reunião de vizinhos, convocados por um deles, a fim de ajudá-lo a efetuar determinado trabalho: derrubada, roçada, plantio, limpa, colheita, malhação, construção de casa, fiação, etc. Geralmente os vizinhos são convocados e o beneficiário lhes oferece alimento e uma festa, que encerra o trabalho. Mas não há remuneração direta de espécie alguma, a não ser a obrigação moral em que fica o beneficiário de corresponder aos chamados eventuais dos que o auxiliaram. Este chamado não falta porque é praticamente impossível a um lavrador, que só dispõe de mão-de-obra doméstica, dar conta do ano agrícola sem cooperação vicinal (Candido, 1997CANDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 1997., p. 68).

Portanto, o sustento, baseado em uma dieta mínima, era assegurado pelo mutirão, permitindo ao bairro a autossuficiência.

Além do mutirão, o bairro também possuía uma dimensão lúdico-religiosa, central para a preservação da sociabilidade em áreas pouco povoadas. Consistiam basicamente em atividades que transcendiam o âmbito familiar e configuram um espaço de festejos religiosos locais. De acordo com Candido (1997CANDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 1997., p. 71), trabalho e religião, “… se associam para configurar o âmbito e o funcionamento do grupo de vizinhança, cujas moradias, não raro muito afastadas umas das outras, constituem unidades, na medida em que participam no sistema destas atividades”.

Candido quer, portanto, chamar atenção ao fato da dieta prover um mínimo vital ao passo que o bairro oferece um mínimo social para sedimentação instável da vida caipira.

O bairro, cujos limites e funcionamento ficaram sugeridos acima por meio de dois aspectos [mutirão e festejo], é, pois, o agrupamento básico, a unidade por excelência da sociabilidade caipira. Aquém dele, não há vida social estável, e sim o fenômeno ocasional do morador isolado, que tende a superar este estádio, ou cair em anomia; além dele, há agrupamentos complexos, relações mais seguidas com o mundo exterior, características duma sociabilidade mais rica. Ele é a unidade em que se ordenam as relações básicas da vida caipira, rudimentares como ele. É um mínimo social, equivalente no plano das relações ao mínimo vital represento pela dieta [...] (Candido, 1997CANDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 1997., p. 74).

A partir do século XVIII, este isolamento do caipira foi sendo quebrado ou reajustado com a fixação do paulista e o surgimento de vilas e fazendas abastadas. Para compreender essa transformação, Candido destaca a importância da estratificação social do bairro, distinguindo entre participante (o fazendeiro abastado) e integrante (sitiante) da cultura caipira. Segundo o autor, estava diferenciação estava baseada na capacidade de contratação de trabalho compulsório ou servil. Para Antonio Candido, a capacidade de contratar trabalho permitia ao fazendeiro abandonar o sistema de cooperação vicinal característico da vida caipira. A longa citação do professor Antonio Candido descreve bem este ponto:

Mas a possibilidade de empregar mão-de-obra servil, criou, desde as fases iniciais do apresamento, um fermento de diferenciação que se iria acentuando, não apenas pela superioridade econômica dos donos de escravos, como pela formação, na estrutura demográfica, de um elemento relativamente desqualificado socialmente - antigo escravo ou descendente de escravo. A combinação de ambos os traços permite entender a difusão do tipo social do fazendeiro, proprietários de terras lavradas pelo servo indígena, mais tarde pelo negro, comandando certa quantidade de agregados dependentes de seu favor.

A presença do escravo, depois do colono estrangeiro, levou a uma recomposição na organização dos bairros, onde os mais ricos abandonaram o sistema de cooperação vicinal, marcando assim a diferença crescente entre sítio e fazenda. Ao mesmo tempo, o latifúndio se formava à custa de proprietários menores, por compra ou espoliação - esta sempre fácil numa sociedade em que a precariedade dos títulos e a generalização da posso de fato desarmou o lavrador, na fase em que a expansão econômica passou a exigir requisitos legais para configurar o direito de propriedade. Neste passo, podemos compreender melhor o duplo caráter (ao mesmo tempo instabilizador e reparador) da mobilidade no espaço, à busca de terras disponíveis.

No latifúndio produtivo, assim formado, trabalho escravo criou condições dificilmente aceitáveis para o homem livre, que refugou também, posteriormente, a dependência social do colonato; não se tendo preparado a sua incorporação a este, agia sempre como fator negativo a comparação com o cativeiro. Em consequência, a cultura tradicional sofreria impactos sérios, tendentes a marginalizá-la, isto é, torná-la um sistema de vida dos que não eram incorporados às formas mais desenvolvidas de produção. Do seu lado, ela apresentou a faculdade apreciável de resistência, enquistando-se em vários casos, quando as condições permitiam conservar o caráter autárquico.

Aí vemos a relativa indiferença do começo substituída pela estrutura mais complexa que lhe sucedeu, sobrepondo o fazendeiro ao seu aparente sitiante (muitas vezes, senhor de tantas terras quanto ele, mas trabalhando-a pessoalmente), que por sua vez se sobrepunha a agregados sem estabilidade. Nas três camadas encontrara presença da cultura caipira; mas na intermediária se localizam as suas manifestações mais típicas, visto como a superior tende com o tempo a se desligar dela, acompanhando a evolução dos núcleos urbanos; e a inferior nem sempre possui condições de estabilidade, que lhe permitam desenvolver as formas adequadas de ajustamento social.

O caipira típico foi o que formou essa vasta camada inferior de cultivadores fechados em sua vida cultural, embora muitas vezes à mercê dos bruscos deslocamentos devidos à posse irregular da terra, e dependendo do bel-prazer dos latifundiários para prosseguir na sua faina. Depois de Oliveira Viana e sua análise, hoje em dia clássica, do poder centralizador do grande domínio rural, tornou-se lugar-comum acentuar a independência do fazendeiro. O sentido sociológico de autarquia econômico-social não deve, porém, ser buscado no latifundiário, largamente aberto a influências externas, graças à sua própria situação de estrutura-líder; e sim no bairro caipira, nas unidades fundamentais do povoamento, da cultura e da sociabilidade, inteiramente voltadas sobre si mesmas.

Nelas se desenvolveu uma população dispersa, móvel, livre, branca ou mestiça, geralmente de branco e índio, com pouco sangue negro (Candido, 1997CANDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 1997., p. 80-81).

Posto deste modo, pode-se afirmar que Antonio Candido divide a história do caipira em três momentos. O primeiro corresponde à época de equilíbrio instável, no qual o caipira possuía uma vida voltada para si. Um segundo momento compreende as primeiras tensões colocadas pelo avanço da economia capitalista no território paulista, quando a economia de subsistência, a formação de organização e a concepção de mundo foi sendo colocada em xeque com a expansão da agricultura comercial, engendrando uma crise social e cultural. Neste período de transição, em que as tensões ainda não haviam sido resolvidas, Candido observou casos em que houve o desaparecimento da cultura caipira como também situações em que ocorreu a persistência. Um retorno à forma tradicional mais elementar como a parceria foi adotado como recurso de ajustamento em face da civilização urbana em expansão. O terceiro momento corresponde justamente à dificuldade de resistir à expansão capitalista. Reflete o momento em que a vida caipira é a incorporada à economia moderna. Neste momento, há uma ruptura em todos os planos: ecológico, econômico, cultural, social e psíquico.

Candido descreve, do ponto de vista dos parceiros, como as diferentes dimensões da vida foram sendo alteradas, implicando em novas relações de trabalho, mais rotineiras e aceleradas, em um novo ajustamento ecológico, baseado em inovações técnicas e usos alternativos da terra, e em uma nova estrutura social.

Na sua vida meio ambígua de autonomia sem estabilidade, e autoderminação sem garantias, a crise cultural e social se manifesta com mais intensidade, colocando-o, de fato, entre o sitiante e o assalariado, e dando lugar a uma coexistência mais perceptível da tradição e da mudança.

Onde podemos claramente avaliar esta última, em relações sociais ligadas à obtenção dos recursos, é no que se poderia chamar de comercialização da cooperação.

Mostrou-se no capítulo 8º que os parceiros estudados não podem dar conta das tarefas sem auxílio vicinal, que continua, assim, elemento integrante da sua sociabilidade e da sua economia. Verificou-se, no entanto, acentuada substituição das formas desinteressadas pelas que envolvem retribuição, computada rigorosamente - fazendo como que as instituições tradicionais do termo e do mutirão cedam lugar às diversas modalidades de troca de serviço, individual ou coletivo. Os lavradores de mentalidade mais econômica refugam aquelas, que continuam vigorando para os conservadores ou os que lhes estão quase naturalmente sujeitos pelos vínculos de parentesco. Os problemas de mão de obra se solucionam pois, para eles, num compromisso entre velhas práticas, baseadas na solidariedade tradicional de vizinhança, e necessidades novas, que propiciam fluência do dinheiro como aferidor das coisas e dos atos (Candido, 1997CANDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 1997., p. 191-192).

Na visão do autor, o que se observar é “… a relativa explosão da sociabilidade centrada nos velhos grupos vicinais”. (Candido, 1997CANDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 1997., p. 192)

Desse modo, frente à expansão da civilização capitalista no Brasil, a parceria expressava uma forma transitória de cooperação entre uma situação tradicional e seu sufocamento pela economia de mercado. Ela foi a forma de reajustamento à condição de um mínimo vital e social no contexto em que não proprietários, nômades, agregados e posseiros, eram forçados pelas novas circunstâncias a se tornarem ou colonos, ou assalariados nas fazendas e sítios, ou migrantes nas cidades. Portanto, expressava por um lado uma adaptação regressiva no contexto da crise do modo de vida caipira, e por outro, os desafios a assimilação do caipira na esfera do valor de troca.

Como observou Antonio Candido,

[...] a urbanização veio propiciar ao caipira, no plano ecológico, novas manifestações da sua velha e já aqui muito comentada tendência ao nomadismo. Não se trata mais agora de uma agricultura itinerante, nem da busca de novas terras para substituir as que se tornam inóspitas por cansaço ou expulsão. Trata-se, como vimos, na 3ª parte, da mobilidade como fuga à sujeição econômica total - seja mudando de lugar na mesma área, seja, buscando zonas pioneiras, seja rompendo com o passado e migrando para a cidade. A instabilidade de outrora se renova hoje por novos motivos, e no contexto da presente análise pode ser considerada como outra forma de regressão adaptativa (Candido, 1997CANDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 1997., p. 222).

Ao ter a cooperação vicinal diluída, a sociabilidade caipira foi reduzida ao espaço familiar, forçando o retorno aos padrões básicos de alimentação e engendrando o perigo da anomia social. Candido, portanto, matiza, com muitas nuances, como o modo de vida caipira reagiu ao avanço de uma agricultura capitalista no interior paulista.

Agora, quando se confronta o exemplo do caipira de Antonio Candido com o processo subjacente a formação do Estado nacional e o respectivo desenraizamento da economia que este promoveu, pode-se retirar implicações para pensar a formação do Brasil contemporâneo visto pelo lado avesso do sistema-mundo moderno: o da sujeição das formas de sociabilidade pretéritas à acumulação sem fim de capital.

À medida que o Estado nacional foi se formando no período imperial, a instituição da propriedade privada da terra, a abolição da escravidão e a incorporação do migrante sob o regime de assalariamento, permitiu, no interior paulista, o abandono do sistema econômico baseado na cooperação vicinal, do qual o caipira retirava o seu sustento, pressionando este para a esfera do valor de troa. É claro que da dissolução da cooperação vicinal para a sociabilidade definida pelo mercado, passando pela comercialização da cooperação, o processo avançou de maneira lenta e descontínua e merece pesquisa empírica detalhada para extrair qualquer conclusão. Não obstante, o exemplo do caipira de Antonio Candido ilustra o eixo da análise que se buscou construir.

Considerações finais

Ao longo do artigo discutiu-se o processo de formação do Brasil contemporâneo nos quadros do sistema-mundo moderno através da instituição da economia de mercado como mecanismo de regulação social. Ao focar a relação entre as formas de sociabilidade herdadas do período colonial e economia de subsistência, o trabalho procurou lançar luz sobre o papel do Estado e de sua relação com o econômico na formação da sociedade brasileira.

Ao privilegiar as unidades domésticas (engenho açucareiro, latifúndio pastoril, estância, aldeamento extrativista, bairro caipira) e as sociabilidades correspondentes, procurou-se colocar em evidência duas formas de produção: uma vinculada à produção direta dos meios de vida e outra à produção de mercadorias para troca, integrada ao sistema mercantil local ou de longa distância. Por este caminho, sugeriu-se que o desenraizamento da economia envolveu o ataque às condições de produção da subsistência em bases recíproca (cooperação vicinal do caipira) ou redistributiva (sistema de granja ou parceria). A formação da propriedade privada da terra, a abolição progressiva da escravidão e a imigração, organizadas pelo Estado estabeleceram, ao longo do século XIX, as bases para o ataque à coesão social dos diferentes núcleos sociais herdados do período colonial estabilizados à margem da economia de mercado. A partir do exemplo do caipira procurou-se ilustrar com mais detalhes a dinâmica dessa mudança social.

Reconhecer essas forças desestabilizadoras implica admitir descontinuidades que ideias dualistas (como arcaico e moderno, tardio e avançado, subdesenvolvido e desenvolvido) enfrentam dificuldades em apreender. O caráter da modernização capitalista no Brasil está em permanente disputa no debate brasileiro sobre o desenvolvimento. Estudos globalizantes e comparativos, capazes de integrar monografias históricas sobre como a vida estava organizada nos diferentes núcleos coloniais e como suas respectivas formas de produção foram afetadas pelo desenvolvimento do sistema-mundo moderno, se faz um caminho necessário para lançar luz sobre as desigualdades que fundam o Brasil contemporâneo.

  • JEL: N96, P16.
  • (1)
    Para uma discussão acerca das implicações do nacionalismo metodológico nos estudos sobre o desenvolvimento ver Medeiros (2010)MEDEIROS, C. A. de. Instituições e desenvolvimento econômico: uma nota crítica ao “nacionalismo metodológico”. Economia e Sociedade, v. 19, n. 3, p. 637-645, 2010. e Vieira (2015)VIEIRA, P. A. O nacionalismo metodológico na economia e a economia política dos sistemas-mundo como possibilidade de sua superação. Estudos do CEPE, n. 42, p. 78-94, 2015..
  • (2)
    Por mecanismo formador de preço compreende-se uma situação específica em que o sistema econômico passa a ser regulado pelo mercado, estando sujeito a administração complexa com base na racionalidade instrumental, conformando, assim, uma economia de mercado.
  • (3)
    Compreender-se por desenraizamento o sentido atribuído por Polanyi (2012b)POLANYI, K. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2012b. segundo o qual a produção e distribuição dos bens materiais encontram-se separados institucionalmente das relações sociais de natureza não econômica.
  • (4)
    De acordo com Polanyi (2012bPOLANYI, K. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2012b., p. 83), as formas de integração correspondem aos “... movimentos institucionalizados pelos quais se conectam os componentes dos processos econômicos, desde os recursos materiais e o trabalho até o transporte, o armazenamento e a distribuição dos produtos”. Dizem respeito, portanto, as maneiras como bens e pessoas são combinadas para superar as dificuldades que envolver a produção material da vida. Já, as estruturas de apoio, correspondem as instituições que legitimam socialmente o princípio de integração. Para mais detalhes ver Polanyi (2012b)POLANYI, K. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2012b., em especial o artigo “Formas de integração e estruturas de apoio”.
  • (5)
    Desde logo, cabe observar que a proposição da economia de mercado como mecanismo de regulação social deve ser compreendida no contexto da problemática da instituição e da regulação do social que caracteriza o pensamento político moderno e que busca, de acordo com Pierre Rosanvallon (2002ROSANVALLON, P. O liberalismo econÔmico: história da idéia de mercado. Bauru, SP: Edusc, 2002., p. 7-12) “... entender a instituição autônoma da sociedade, independentemente de qualquer garantia exterior (notadamente de ordem religiosa).” Com isso retoma-se a originalidade de Adam Smith que não reduz o mercado a um “simples instrumento técnico de organização da atividade econômica”, “mas em um tipo de modelo político alternativo.” “Às figuras formais e hierárquicas de autoridade e comando, o mercado opõe a possibilidade de um tipo de organização e de tomada de decisão amplamente dissociados de qualquer forma de autoridade: realiza ajustes automáticos, efetua transferências e redistribuições, sem que a vontade dos indivíduos em geral e dos chefes da sociedade em particular desempenhem qualquer papel.” Mais que isso, “a ideia de mercado realiza de um certo modo um ideal de autonomia dos indivíduos ao despersonalizar a relação social. O mercado representa o arquétipo de um sistema de organização anti-hierárquica, de um modo de tomada de decisão na qual nenhuma intenção intervém. Os procedimentos e as lógicas profissionais substituem as intervenções personalizadas.”
  • (6)
    Para uma discussão sobre os diferentes modos de produção colônia portuguesa na América e o debate ver Lapa (1980)LAPA, José Roberto do Amaral (Org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis, RJ: [s.n.]: Vozes, 1980..
  • (7)
    No sentido atribuído por Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997)CARVALHO FRANCO, M. S. de. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo, SP: Unesp, 1997. v. 3..
  • (8)
    Para uma discussão detalhada da cadeia mercantil do açúcar ver Vieira (2010)VIEIRA, P. A. A inserção do “Brasil” nos quadros da economia-mundo capitalista no período 1550-c. 1800: uma tentativa de demonstração empírica através da cadeia mercantil do açúcar. Economia e Sociedade, v. 19, n. 3, p. 499-527, 2010..
  • (9)
    Para uma discussão sobre os desafios da instituição da economia de mercado no Brasil, ver Wanderley Guilherme dos Santos (1977)SANTOS, W. G. dos. Liberalism in Brazil. In: BLACHMAN; MORRIS, J.; HELLMAN, R. G. (Org.). Terms of conflict: ideology in Latin American politics. Philadelphia: Institute for the Study of Human Issues, 1977. p. 1-38..

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EDITOR RESPONSÁVEL PELA AVALIAÇÃO Fábio Antonio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2021
  • Aceito
    04 Jan 2024
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