Open-access Gnose: uma via de reconhecimento das sombras do eu

Gnosis: a way of recognizing the shadows of the self

RESUMO

Neste artigo queremos abordar a questão do fenômeno da sombra humana, como caminho de autoconhecimento e via de compreensão antropológica do ser. Para tal nos serviremos da filosofia da gnose, um velho método de autoconhecimento usado pelos filósofos gregos do século IV, os verdadeiros gnósticos, que tinham como base antropológica o modo de viver e pensar dos terapeutas do deserto do início da era cristã. Partimos da premissa de que é preciso nomear as sombras, tomar postura consciente diante delas e torná-las caminho de crescimento humano, superando assim a noção dualista de ser e respondendo ao profundo anseio humano por inteireza e comunhão com a Totalidade.

Palavras-chave Psicologia; Sombra; Gnose; Autoconhecimento; Transpessoal.

ABSTRACT

In this paper, we approach the matter of the phenomenon of the Shadow of the Human Self, as a means to self-awareness and anthropological understanding of the being. In order to do so, we make use of the philosophy of gnosis, an ancient method of self-awareness used by the Greek philosophers of the fourth century, the true Gnostics, which had as an anthropological basis the way of living of the desert therapists of the beginning of the Christian era. We believe it is necessary to name the Shadows, and to assume a conscious behavior facing them, so as to make them a way towards human growth, overcoming the dualist notion of being and answering to the profound human wishes for completeness and communion with the totality.

Keywords Psychology; Shadow; Gnosis; Self-Awareness; Transpersonal.

Introdução

O conhecimento sempre foi uma das grandes necessidades humanas. Nenhum ser humano pode dizer-se satisfeito por aquilo que sabe ou conhece. Está sempre à procura de significados, de compreensão e sentido. No entanto, nem todo ser humano tem a coragem de dirigir o seu desejo de conhecimento a favor de si mesmo: conhecer-se para conhecer. Há uma inquietação, sem dúvida, por conhecer-se, mas, ao mesmo tempo, há o receio de encontrar-se no seu mistério. As razões disso podem ser muito diversas e cada uma pode ter as suas, mas é notável o quanto ter de conhecer-se exige coragem e determinação.

Talvez seja justamente por isso que grande parte de nós mesmos fica desconhecida por longo tempo em nossa vida. Passamos mais tempo e gastamos mais energia em proteger o que é desconhecido do que conhecer aquilo que, por ser desconhecido, tememos. Temos medo de conhecer o que poderia nos fazer sofrer na iminência de poder revelar aquilo que menos desejamos ser. Muito de nosso medo de nos autoconhecer está no fato de possuirmos grande parte de nós mesmos mergulhada num mundo sombrio, obscuro, carente de sentido. Em razão disso fugimos desse encontro conosco. Aliás, aprendemos a criar um outro, uma espécie de pseudo eu ou ego, como é mais conhecido, acreditamos nele e nos defendemos das verdades do eu que poderiam nos fazer sofrer ao depararmo-nos com elas.

Ao longo da história da humanidade, através das religiões ou das filosofias e das tradições, na maioria delas, temos aprendido a combater as sombras como inimigas de nosso ser, obstáculos do nosso existir, ao invés de chegar perto delas, reconhecê-las e integrá-las. E não conseguimos muito sucesso. A prova disso se encontra nas aberrações vividas por nossa sociedade atual. Apesar de ter evoluído tanto no campo tecnológico faz experiências de sombras explícitas, parecendo entregar-se a elas sem escrúpulos.

Como poderíamos fazer esse caminho de autoconhecimento na certeza de que seremos menos feridos do que já estamos? Onde estaria o caminho do meio entre o negar e o viver as sombras? Existe um modo de viver sem que se tome partido entre a luz e a sombra? Neste artigo queremos refletir fundamentalmente sobre isso: a sombra enquanto caminho de autoconhecimento e de apropriação do próprio mistério. Nessa intenção queremos buscar na filosofia antiga o verdadeiro sentido da gnose e seu aporte para um verdadeiro autoconhecimento. E, para tal, nos basearemos no modo de viver e nos escritos dos padres gregos conhecidos por verdadeiros filósofos (do século IV) que, por sua vez, eram conhecedores do estilo de vida e da sabedoria dos terapeutas do deserto (que datam o início da era cristã, um pouco antes). Para isso nos apoiaremos fundamentalmente nas obras do francês Jean-Yves Leloup, que enquanto filósofo, teólogo, antropólogo e doutor em psicologia transpessoal nos ajuda a ter uma síntese desse conhecimento ancestral.

Inicialmente trataremos do conceito de sombra de Jung para, em seguida, vê-la de modo integrado a partir do pensamento mente-corpo de Deepak Chopra e, assim, entramos na sabedoria dos considerados verdadeiros gnósticos, nomeando as principais sombras e o caminho transpessoal de integração delas.

Este artigo tem o modesto objetivo pedagógico de ajudar a chegar um pouco mais perto daquilo que está tão perto da humanidade, mas de modo indesejado e temeroso. Que as sombras da humanidade possam revelar o caminho da luz que se perdeu na medida em que perdemos o único caminho: aquele da interioridade.

A Experiência do Desconforto

A vida humana é permeada de experiências que, assim como cada uma delas acrescenta substância interna ao ser, também revelam o que há de mais profundo nele. Muito se tem falado e escrito sobre a importância de conhecer-se e tornar-se autoconsciente a fim de descobrir a profundidade e a largueza de nosso eu na sua mais original e pura verdade.

No entanto, mesmo depois de muitos anos de história humana sobre a terra, ainda nos debatemos, como humanidade, em descobrir o sentido de tantas aberrações cometidas por nós mesmos, ainda que contrárias às nossas intenções e opções fundamentais. Em nível coletivo nos deparamos com a violência nas suas mais diferentes feições, a competição, a ganância, o materialismo e o consumismo exacerbados. No âmbito individual ainda não sabemos o que fazer com a raiva, com o medo e suas diversas formas de fobias, com o estresse e, principalmente, com o alto nível de insatisfação interna experimentado como tristeza, apatia, desmotivação para vida, pouca estima e um senso de solidão, por vezes angustiante.

Precisamos também constatar e reconhecer que nesses últimos anos de história - além de usufruirmos da sabedoria milenar das muitas tradições religiosas e sapienciais -, a ciência tem se esmerado muito em procurar saídas, particularmente no seu viés mais humanístico, para que se pudesse interpretar e compreender melhor todos esses fenômenos humanos coletivos e individuais. Basta pensar nas proporções tomadas pela psicologia, nas suas várias correntes de pensamento e prática terapêutica, na medicina e psiquiatria, na neurologia, na filosofia e na sociologia, inclusive na própria teologia, enquanto ciência e método interpretativo da realidade.

No entanto, não estamos satisfeitos com o que colhemos de nossas semeaduras. Não sabemos por que é que decidimos semear amor e colhemos o que parece não ser fruto dele; não temos explicações que nos ajudem a entender por que é que mesmo depois de empreender um caminho de vida que aponte para a paz, para o bem, para a concórdia, para a tolerância e a compaixão, acabamos nos surpreendendo com atitudes individuais ou coletivas de violência, de preconceito, de competição, de agressividade, ou mesmo de medo, de insegurança, de insatisfação, de inveja, de senso de pouca valia e rejeição. Paulo de Tarso, um grande místico cristão, expressou essa dialética de base escrevendo aos Romanos: “Efetivamente, eu não compreendo nada do que faço: o que eu quero, não o faço, mas o que odeio, faço-o” (Rm, 7,15) (Bíblia Sagrada, 1996, p. 1390).

O Lado Sombrio da Realidade

Jung considerou todos esses fenômenos acima descritos como pertencentes ao mundo das sombras, tanto da humanidade como do indivíduo humano. Segundo o velho e sábio psicólogo suíço:

Todo mundo carrega uma sombra, e quanto menos ela está incorporada na vida consciente do indivíduo, mais negra e densa ela é. Se uma inferioridade é consciente, sempre se tem uma oportunidade de corrigi-la. Além do mais, ela está constantemente em contato com outros interesses, de modo que está continuamente sujeita a modificações. Porém, se é reprimida e isolada da consciência, jamais é corrigida, e pode irromper subitamente em um momento de inconsciência. De qualquer modo, forma um obstáculo inconsciente, impedindo nossos mais bem-intencionados propósitos (Jung, documento online, s. p., parágrafo 131).

O grande problema gerado pela sombra não está simplesmente no fato de existir um lado obscuro em todas as realidades e principalmente no inconsciente individual e coletivo da humanidade, mas na dinâmica que é gerada por ela. Normalmente, o ego precisa manter seu senso de unidade e segurança. Toda vez que algo põe em risco essa aparente segurança o consciente adverte como perigoso e ameaçador, então reprime, mandando para o inconsciente. Forma-se ali, aos poucos, esse complexo sombrio de nosso ser, a constelação das sombras. No entanto, o que está reprimido não está morto. Assim, qualquer coisa externa que, de um jeito ou de outro, desperta o que está reprimido gera algum tipo de sentimento desconfortável como medo, raiva, agressividade ou culpa. O que é que a sombra faz, então? Pressiona o ego para que ignore e projete externamente sua fraqueza: vendo o mal nos outros ele tem a sensação de se livrar do mal que sente. A projeção tem uma complexa estrutura de expressividade. Ela se revela na inveja, nos julgamentos, na projeção e na idealização, e carrega como pano preto de fundo a negação, mantendo o indivíduo cego a esse complexo sombrio de seu ser.

Um exemplo típico de sombra poderia ser esse: o menino que cresceu numa família muito religiosa que em nome da paz, da fraternidade e do bem querer não podia se zangar com ninguém, muito menos expressar a raiva, inclusive aprendeu na sua religião que ter raiva é moralmente errado. Reprimiu totalmente, portanto, a energia da raiva. E assim foi crescendo. Mas, quando via alguém expressando sua raiva, facilmente entrava em processo de julgamento dessa pessoa, inclusive considerando-a como má por suas atitudes. Por outro lado, idealizava as pessoas consideradas por ele como: pacíficas, tranquilas e boas. E assim ele lidava com sua sombra. No entanto, ficou conhecido pelos seus colegas como o menino bom, mas estourado. Bom quando conseguia controlar sua raiva, e estourado quando essa lhe fugia do controle. Ele mesmo cresceu com essa noção de si, embora não falasse abertamente com ninguém sobre isso.

Por isso que tratar da sombra é desconfortável e desafiador, pois ela é um complexo que envolve dinâmica e energia, e ao mesmo tempo responde a umas demandas que não são nada conscientes.

Não bastasse tudo isso, a sombra individual também tem sua raiz e é continuamente reforçada pela sombra coletiva da humanidade. Isto é, o complexo sombrio de cada indivíduo humano das gerações passadas gerou e continua gerando uma espécie de substância humanitária inconsciente coletiva. O inconsciente coletivo foi uma das grandes descobertas de Jung, logo em seguida que Freud havia elaborado a teoria do inconsciente individual.

Deepak Chopra afirma que “[...] nomear a sombra não foi o maior feito de Jung; nem a teoria dos arquétipos. Sua maior realização foi mostrar que os seres humanos compartilham um self. ‘Quem sou eu?’ depende de ‘Quem somos nós?’” (Chopra; Ford; Wiliamson, 2010, p. 26). Isto é, cada indivíduo, ao nascer, queira ou não, entra no processo histórico da humanidade, nesse mar da substância humanitária que se gerou ao longo da história humana. Ali estão engendradas as luzes e as sombras coletivas humanas geracionais. Portanto, no processo de separação e individuação que o sujeito faz ao desenvolver-se como ser único e social ao mesmo tempo, ele não está isolado e isento das forças coletivas inconscientes da humanidade, inclusive das sombras. Poderíamos dizer que ele é somente a ponta do lado de cá de uma longa corrente humana que teve seu início há muitos e muitos anos antes dele.

Uma das provas de que o mundo das sombras sempre esteve presente ao longo da história da humanidade é que a maioria das religiões e tradições, embora com modos e linguagem diferentes, de uma maneira ou de outra, teve de enfrentar a questão complexa do paradoxo humano, da luz e da sombra, pelo menos na incumbência de dar uma explicação ao problema do bem e do mal, presentes desde os primórdios da humanidade.

Por sua vez, a ciência teve de lidar com o problema do caos no meio da ordem do universo, com o lado obscuro do conhecimento que pretende ser lúcido, com a questão da doença num organismo que necessita manter um equilíbrio saudável, com o declínio e a morte no percurso da vida que não quer morrer, com a questão da entropia como parte do ciclo da natureza, enfim, com o mundo dos contrários, enquanto o desejo é aquele de alcançar a harmonia de tudo. Ambas, religião e ciência, sempre tiveram como objetivo dar uma solução ao paradoxo, mas permaneceram muito longe de alcançar tal objetivo, talvez, até, por terem ficado muito longe do próprio paradoxo.

A Face Obscura da Sombra

Na maioria das vezes, esse aspecto paradoxal da vida humana foi tratado como um desequilíbrio do ser. Por isso mesmo, o lado iluminado do eu, sua identificação com o que é mais harmônico, pacífico, sereno, nobre, e aceito socialmente como bom, agradável e verdadeiro é que foi mais valorizado e mostrado pelos indivíduos e pela cultura. A sombra, no entanto, tem ficado sempre muito escondida ou revelada para poucos, normalmente para aqueles que se tornava quase que impossível não fazê-la conhecida, dado o grau de proximidade dessas pessoas no viver de cada dia do indivíduo ou do grupo.

Aliás, como bem disse Jung, as sombras, aquelas características indesejadas de si mesmo que o indivíduo carrega, permanecem escondidas não somente para a sociedade, mas, inclusive, elas se escondem do próprio indivíduo, enquanto conteúdo guardado no inconsciente, reprimido e desconhecido. Aspectos da sombra como medo, raiva, ansiedade, violência se escondem no mais profundo do inconsciente humano que, quando menos se espera, num momento de distração ou de forte pressão aparece de forma surpreendente, inclusive para aquele que os experimenta.

Em razão do caráter inconsciente que a acompanha, a sombra normalmente deixa o indivíduo fragmentado na noção de si mesmo. De um lado, ele deseja tanto a unidade e a conexão com tudo e, por outro, experimenta-se extremamente deslocado, incongruente, dilacerado, longe de seu eixo. Isso gera uma noção pouco segura de inteireza e, naquelas vezes em que a força da sombra se mostrar muito potente, é como se o indivíduo se perdesse nela, caindo na cegueira da escuridão, conferindo-lhe, assim, maior poder ainda.

Por conta disso, na maioria das vezes, o indivíduo não tem a noção do caráter destrutivo que possui sua sombra. Age sem ter o conhecimento do efeito de seu comportamento. Isso se pode ver a todo instante na televisão, no jornal, na rua, na humanidade em geral. É impressionante notar com que tamanha naturalidade se mata na guerra, com que facilidade se manipula os mais frágeis na sociedade, e com que violência se trata as torcidas de futebol nos estádios. Ao mesmo tempo, no íntimo de cada um de nós, quantas vezes nos deparamos com pensamentos destrutivos, com desejos que não admitimos tê-los? É o reino das sombras tomando conta, enquanto a sombra não é levada em conta.

A Luminosidade da Sombra

Mas será que a sombra foi tratada com devido cuidado e valor ao longo do caminho de educação da interioridade humana? Ela é necessariamente pejorativa? Então, por que é que ela existe? Se ela faz par com a luz, estaria ela tão desligada da luminosidade? Haveria um lado luminoso na sombra?

Alguns sábios da alma humana arriscaram dizer que a sombra é tanto necessária e significativa para a alma quanto a luz. Outros disseram que por ela é que se pode saber em que direção se encontra o Sol. Anselm Grün, monge cristão alemão, disse que se observarmos bem os vícios que temos, logo saberemos o que é que nossa alma mais precisa, pois, os vícios, nesse caso, funcionariam como paliativos para a alma, até que o indivíduo não acessar aqueles aspectos mais profundos de seu ser que ele mais precisa conhecer para que sua alma se aquiete (Grün, 2004).

Para os autores Deepak Chopra, Debbie Ford e Marianne Williamson (2010, p. 43-44), a melhor forma de “resolver” a questão das sombras é não reforçar a dialética como princípio da construção do humano. Isto é, segundo eles, o impulso pela separação é que criou o contraste e a luta entre a luz e a escuridão. E foi o mesmo impulso que criou o self. Por isso, a alma humana é santa e pecadora, sagrada e profana, divina e diabólica. Se a separação for patológica ela aponta para a sombra, com seus impulsos hostis, de raiva, medo e inveja. Eu diria inclusive que ela poderia ser patológica também apontando unicamente para a luz, tornando-se fundamentalista, grandiosa, narcisista e prepotente. Por isso, para os autores citados, a melhor forma de cuidar da sombra é aproveitar a força impulsiva que gerou a separação, agora, em um modo que se gere a unidade. E a melhor forma de fazer isso é conceber ambas, luz e sombra, como partes da mesma unidade. Portanto, sempre que se fizer qualquer esforço para vencer a sombra se acabará intensificando a dualidade e a separatividade, reforçando assim a sensação de fragmentação e dilaceração tão nociva ao self.

Por isso, numa visão como essa, a luta constante da alma teria seu lugar entre o divino e o diabólico, entre a unidade e o espalhamento, como se não houvesse a possibilidade de um existir sem o outro. Essa unidade dos polos seria garantida pelo impulso holográfico, que assim como fragmenta também amplia, compondo numa única unidade as várias peças do caos. Dessa forma, a dualidade e a fragmentação seriam somente o extrínseco da realidade, isto é, aquilo que se vê, enquanto a unidade estaria na amplitude, naquilo que é intrínseco à realidade, o que garante a luz da inteireza, mesmo nas experiências de aparente fragmentação ou sombra.

Nessa ótica, a primeira grande sombra encardida no ser humano poderia ser justamente a tirania de manter alimentada a noção de dualidade de si mesmo. Na luta constante de manter separado o lado luminoso do lado sombrio do próprio ser poderia estar, assim, a raiz da maioria das insatisfações humanas. Exatamente pelo sofrimento que isso acarreta. Ter de manter um constante equilíbrio com a finalidade de conservar-se no lado iluminado da vida não só colocará o eu em contínua e extrema vigilância como também o deixará muitas vezes em situação de desconforto e incongruência, por experimentar que grande parte daquilo que ele vivencia, pelo tipo de conteúdo acessado, deverá ser mantida longe da consciência. Isso o afasta da possibilidade de realizar o grande desejo de inteireza, que está no cerne de sua essência, enquanto ser feito para a totalidade: eis o grande sofrimento.

O Caminho de Integração da Sombra

A constatação de que a sombra é parte de cada ser humano que compõe a humanidade inteira - e que ela tem sua origem desde os tempos mais remotos da humanidade e que se estrutura no ser humano desde os primeiros anos de vida através do processo de separação e individuação -, nos leva a pensar e a nos convencer que um bom projeto de educação, mesmo nos seus mais diferentes pontos de vista, deverá levar em conta, sine qua non, essa questão do paradoxo humano. Por educação queremos entender aqui não somente aquela no seu sentido mais formal, mas também enquanto reeducação, no senso mais terapêutico, digamos assim.

Já temos dito, pelo menos entre linhas, que a pior das possíveis intervenções educacionais em relação à sombra é tratá-la como se esta não existisse, uma vez que negá-la ou ignorá-la seria reforçar o seu poder inconsciente de influência sobre o self. Edgar Morin afirma que é preciso ensinar que o ser humano é passível de erro e ilusão. No árduo caminho do conhecimento ele se expõe ao risco de errar e se enganar (Morin, 2002; Trevisol, 2004). Não levar em conta isso na educação seria aumentar a possibilidade do erro e do engano.

A grande dificuldade de um estilo de educação que leve em conta a sombra talvez pudesse estar justamente no fato de as sombras estarem profundamente arraigadas ao inconsciente do indivíduo. A educação, em geral, ainda se ocupa dos fenômenos humanos apenas no seu caráter extrovertido, visível e palpável, correntemente está atenta àquilo que diz respeito somente ao mundo racional, do pensamento e do jeito de pensar ou de construir o pensamento, permanecendo, mesmo sem ignorar, longe daquilo que estaria provocando determinados tipos de comportamentos reveladores de sombras, percebido como aspectos de erro e de ilusão.

Como poderia ser, portanto, uma educação que tivesse como foco essa questão antropológica do paradoxo humano? Poderíamos recorrer a vários estilos ou fontes teóricas e metodológicas educacionais para responder a essa nossa incógnita. No entanto, de antemão, precisamos admitir que, para isso, faz-se necessária uma abordagem educacional mais complexa, pelo menos aquela que faça uma parceria multidisciplinar com outras áreas do conhecimento, como aquela da psicologia, da filosofia e da própria teologia. Pois, há que se chegar à raiz, ao âmago do humano, lá onde se encontram os grandes complexos do ser, sua origem, suas motivações e os nós que deverão ser desatados.

Para esse tipo de educação, têm importância, sim, as técnicas educacionais e terapêuticas, mas não parece serem essas mais importantes do que a pessoa do educador ou do terapeuta, uma vez que, parafraseando o que foi dito sobre os filósofos, os verdadeiros educadores não seriam os que sabem diversas teorias e técnicas terapêuticas e educacionais, mas aqueles que se deixarem transformar pelo que conhecem. Isto é, uma educação assim deverá focar-se antes de tudo sobre a pessoa do educador. Assim ele aprenderá a ver a partir de dentro de si mesmo para poder compreender e ajudar o outro. Haverá de conhecer a dinâmica do próprio paradoxo interior antes de fazer qualquer coisa para ajudar na integração desse mesmo paradoxo nos outros. Pois, nada do que ele não enxergar de si vai poder ver de maneira límpida o que há no outro. Talvez tenha sido isso que Jesus queria dizer aos fariseus (que eram criticados por ensinarem uma coisa e fazerem outra) quando falou: Hipócrita, tira antes a trave que tens nos teus olhos, depois vai tirar o cisco do olho de teu irmão. Só quem vê o tamanho de seu complexo sombrio saberá fazer alguma coisa para ajudar o outro a integrar suas sombras.

Portanto, queremos ter presente aqui, particularmente, a figura do educador e do terapeuta como sujeitos da própria educação, que vão se conhecendo na medida em que vão se deixando conhecer pelo conhecimento.

De Volta às Fontes

Para isso, queremos recorrer a uma tradição filosófica, educacional e terapêutica milenar, como via do conhecimento integral humano: a gnose. Vamos nos deter, no entanto, na gnose dos padres gregos, considerados os verdadeiros filósofos, enquanto se opunham aos que eram filósofos sofistas, conhecidos como aqueles que tinham boa fala, mas não agiam segundo o que diziam. Conforme Jean-Yves Leloup (2003, p. 7):

O verdadeiro filósofo não procede a especulações, mas transforma-se. Seu objetivo não é ter razão ou mudar o mundo, mas transformar-se a si mesmo; e, por esta transformação encontrar acesso para outro modo de consciência que lhe permita encarar o mundo de uma forma diferente...1

Portanto, filósofo verdadeiro é aquele que conhece com o coração e não somente com a razão. Por isso que nos primórdios da era cristã, e até antes, o filósofo é também terapeuta, uma vez que a filosofia só é verdadeira se trouxer saúde para alma, segundo os epicuristas. Fílon de Alexandria dirá por sua vez que os verdadeiros terapeutas são filósofos, amantes da sabedoria2. E como tais são pesquisadores da inteligência criadora e médicos também. Ou seja, não se limitam em curar o corpo como tal, mas um corpo “animado” (Leloup, 2003, p. 10-11).

Ao comentar os escritos de Filon de Alexandria, Leloup salienta que a verdadeira filosofia é, antes de mais nada, “caminho de despertar”. Por causa disso é que o terapeuta precisa ver claro, elucidando a mente, não somente em nível de conceitos, mas, principalmente, purificando-a das fantasia e imagens inúteis para que se torne capaz de contemplação silenciosa (Leloup, 2003, p. 13).

A Verdadeira Gnose

A gnose teve várias definições e correntes. Epistemologicamente ela é entendida como teoria do conhecimento. No sentido metafísico ela é a via do intelecto, da inteligência. Também foi considerada como termo prático para designar os que não caminhavam com as verdades da Igreja: gnosticismo herético. Derivada da heresiologia surge a gnose esotérica, usada para denominar documentos antigos e doutrinas novas sem base histórica. Ultimamente ela foi usada como sinônimo de sincretismo para designar a fusão simbiótica de elementos que estão em várias tradições ou correntes religiosas, como uma espécie de saber absoluto, uma espécie de religião. Também é concebida como fenomenologia enquanto é vista como resposta às questões humanistas da origem, do devir e do destino. No mundo do imaginal ela é concebida como uma experiência espiritual visionária ou mística (Leloup, 2003)3.

A corrente favorável à gnose dentro do cristianismo, encarada como theosis, foi representada por Irineu, São Clemente de Alexandria, Orígenes, Evágrio, Gregório de Nissa, Dionísio Teólogo e Máximo Confessor. Eles têm como princípio que o gnóstico verdadeiro é o cristão cujo ideal de perfeição consiste em deixar-se transformar pelo conhecimento (gnosis) (Leloup, 2003)4.

Como dissemos, baseando-nos nas pesquisas de Jean-Yves Leloup, o modo de viver desses monges gnósticos evocava bastante o estilo de vida dos terapeutas de Alexandria, descrito por Fílon. Cada monge tinha sua cela individual (cabanas sem reboco), distante das outras celas, onde permanecia toda a semana dividindo seu tempo entre trabalho manual, meditação das Escrituras e oração, normalmente alimentando-se somente de pão temperado com sal e azeite. No final de semana se reuniam para participarem de uma refeição em comum e celebrar a liturgia do domingo (Leloup, 2003)5.

A Gnose como Caminho de Integração da Sombra

Praticamente, todo o caminho educacional e de autoconhecimento do verdadeiro monge gnóstico consistia em ter de entrar em contato com as próprias sombras, a fim de alcançar o verdadeiro conhecimento, que consistia em viver em harmonia ou semelhança com Deus. Por isso, vivia retirado, em silêncio, em constante atitude de oração, confrontando-se com as Escrituras, onde se deparava com vários e diferentes arquétipos humanos, figurados nos múltiplos personagens bíblicos. No trabalho manual expressava o que o coração meditava.

Conhecedores que eram do estilo de vida dos terapeutas de Alexandria, os monges gnósticos tinham profunda noção da relação corpo e alma, e que a saúde do corpo tem íntima relação com a saúde da alma e vice-versa. Que, portanto, o corpo é animado pelo tipo de alma que nele habita. E que para alcançar o verdadeiro conhecimento é necessário entrar em contato profundo com o paradoxo humano das luzes e das sombras que se traduz em cada ser com um jeito todo peculiar. Assim, o caminho do verdadeiro conhecimento consistirá na árdua tarefa de apaziguar a psique para tornar-se capaz de contemplação espiritual profunda onde ele vai encontrar a sua essência original.

Nomear as Sombras

O monge gnóstico sabe que o primeiro passo a ser dado no intuito de integrar a sombra é reconhecê-la presente no próprio ser e nomeá-la. São nos escritos de Evágrio Pôntico que vamos encontrar um caminho de prática de integração das sombras6. Na sua obra Tratado prático, composto de cem pequenos capítulos ou breves sentenças, Evágrio descreve a praxis ou practike pela qual o monge pode alcançar o equilíbrio psíquico ou aquele estado não patológico da alma voltada para o Espírito. Conforme Leloup:

Pode-se dizer que a practike de Evágrio é um tratado de terapêutica do séc. IV, cujo objetivo consiste em permitir ao homem conhecer sua verdadeira natureza “à imagem e semelhança de Deus”, liberado de todas as suas anomalias congênitas ou deformações patológicas. [...] A practike é uma forma de psicanálise no sentido próprio do termo: análise dos movimentos da alma e do corpo, das pulsões, das paixões, dos pensamentos que agitam o ser humano e se encontram na base dos comportamentos mais ou menos aberrantes (Leloup, 2003, p. 85-86).

Nessa obra Evágrio distingue oito sintomas de uma doença espiritual que, segundo ele, transformam o homem em “viciado7”. Cada uma delas ou cada um desses sintomas tem sua particular dinâmica e nos ajudam muito a compreender a complexidade da sombra que permeia o coração humano. Vamos abordar sucintamente cada uma dessas oito doenças da alma justamente no intuito de obtermos maior clareza na compreensão das sombras e meios práticos para a educação do coração em busca de sua inteireza.

1. Gastrimargia (a gula e todas as formas de patologia oral)

Na relação mãe-criança desde cedo se acumulam experiências que deixam marcas em cada ser humano. A fase do aleitamento e do desmame, por exemplo, o modo como esses rituais são vividos pela criança servirão, mais tarde, como base, mais segura ou menos, para outras passagens possíveis que exigirão do indivíduo força e capacidade de sustentação da ânsia e do medo da perdição ou do abandono.

Observando bem a sociedade de hoje logo percebemos como o comer e o beber se tornam recorrentes rituais de emergência para a diminuição da ansiedade e do medo da vida, funcionando como uma forma de escapatória imediata.

Os Padres do deserto, que bem conheciam como era a vida nos monastérios, sabiam que o modo de comer e de beber muitas vezes tornava os monges verdadeiros bulímicos ou anoréxicos. Para esses males, portanto, ensinavam que a melhor forma de superá-los é evitar os excessos e procurar a moderação e o equilíbrio sóbrio, através do jejum moderado (alimentação não excitante, evitando as carnes) e da prática da oração oral, entoando hinos e salmos, para o louvor a Deus, sem dúvida, mas também para acalmar a ânsia que poderia assolar a vida do monge.

Aprender dessa sombra talvez seja perguntar-se qual a fome ou a sede que existe realmente por trás desses tipos de excessos. Naquele instante a fome ou a sede facilmente poderiam ser necessidades ou vazios experimentados pela alma (por isso que apesar de comer e beber muito o indivíduo não se satisfaz). É que a alma não se sacia propriamente de comida ou bebida.

Por esse motivo, não há necessidade de negar ou combater essa sombra, mas fazer dela caminho de conhecimento de si mesmo e de crescimento.

Lembrando dos terapeutas do deserto, os monges sabiam que para ser terapeuta (ou educador) era preciso mudar a alimentação, “deixar de se alimentar de cadáveres”. Os terapeutas viviam praticamente de pão, água e sal. Ao se alimentarem, o monge, o terapeuta ou o educador sabem que estarão fazendo uma escolha entre “consumir” ou “comungar” (Leloup, 1993, p. 28). Dependendo da escolha estarão ou alimentando a sombra ou fazendo dela um caminho para o próprio progresso humano-espiritual.

2. Philaguria (avareza e todas as formas de patologia anal)

Leloup classifica como cabível nessa sombra “todas as formas de crispação relativamente a um ‘ter’ qualquer, de ‘constipação do ser’” (Leloup, 2003, p. 88). Neste complexo de sombra cabem todas as formas de apegos irracionais, além de bens materiais, a determinadas ideias, práticas ou posturas. É um dos grandes vícios do ego: identificar-se (fazer igual ou fazer o mesmo), tornar algo como parte de si mesmo. Isso resultará em grandes dores nas experiências de perdas, pois é como se o indivíduo estivesse perdendo uma parte de seu ego em cada coisa que se perde ou foge do controle. Como bem coloca Loloup:

Uma das raízes inconscientes de tal comportamento situar-se-ia na fase anal. Ao identificar-se com seu corpo, a criança experimenta um certo terror, vendo-o ‘decompor-se’ sob a forma das matérias fecais; neste caso se a mãe não estiver presente para tranqüilizá-la e agradecer-lhe por esse lindo presente’, ela poderá experimentar um certo temor que a levará a contrair os esfíncteres ou, pelo contrário, a chafurdar em seus esfíncteres (Leloup, 2003, p. 89).

Isso facilmente se manifesta na personalidade com determinados tipos de comportamentos com limpeza exagerada, através de numa atitude obsessivo-compulsiva, perfeccionista ou, o contrário, no desleixo com o próprio corpo. Também, nessa mesma linha, a avareza não é somente acumular riquezas, mas, não é raro encontrar nas pessoas uma atitude constante de guardar tudo, objetos, coisas aparentemente sem grande importância, mas que representam algo de sumo valor para quem tem esse comportamento.

Na base dessa sombra se encontra o medo de se perder, de perder o controle, a necessidade de garantir a vida. Bem no fundo, isso revela o medo da morte. Por isso, os monges ensinavam que para harmonizar essa sombra faz bem ao coração meditar sobre a morte e sobre a decomposição de tudo, sobre o declínio e sobre o próprio lado sombrio da vida.

Como os antigos terapeutas e os monges do deserto, como educadores e terapeutas atuais, podemos aprender que há algo no mais profundo de nós mesmos que é imperecível: nossa essência, o sopro divino, a luz maior. Apegar-se a algo não só é desconhecer esse valor maior que há em nós, com também é outorgar a razão de nossa existência a algum tipo de objeto materializado que está fora de nós mesmos, talvez, ainda na esperança de poder controlar alguma coisa de nosso destino. Poderíamos dizer que aprendemos integrar a sombra do ter na medida em que vamos vendo morrer partes de nosso ego, para que, no fim, apareça realmente a inteireza de nosso ser.

3. Porneia (luxúria e todas as formas de desvio da pulsão genital)

A porneia abrange todas as sombras ligadas ao campo da sexualidade enquanto desequilíbrio psicológico que polariza a energia humana no plano genital. Segundo Leloup, é a patologia que consiste em “tratar seu próprio corpo, ou o corpo do outro, como uma ‘coisa’, uma matéria sem alma, um objeto de prazer e não como um sujeito de amor” (Leloup, 2003, p. 90).

No seu significado mais profundo, viver bem a sexualidade é considerar o próprio corpo, ou o corpo do outro, como algo sagrado que engendra um mistério a ser cuidado e respeitado. Nesse caso, é a castidade que exerce esse cuidado, enquanto ela preserva o mistério e recupera o seu sentido primordial, garantindo na pessoa sua capacidade de relação e comunhão.

Para integrar esse complexo de sombra, provindo das pulsões genitais, Evágrio dá alguns conselhos práticos, como: beber menos, pois, conforme a medicina antiga, a excitação seria provocada pela umidade exagerada do corpo8. Fazer trabalhos manuais para ocupar a mente, além de meditar as Escrituras Sagradas, que é uma forma de manter a mente atenta. Como o cérebro é o principal órgão sexual, habituá-lo aos pensamentos de louvor em lugar daqueles obsessivos. Ocupar a mente com cânticos e orações de invocação do nome de Deus.

No caminho da integração da sombra da porneia talvez o mais importante seja não negar a energia sexual que está em nós, purificando-a de toda carga repressiva que nela fora depositado. Perceber a sombra em qualquer uma de suas manifestações pode ser um caminho de reconhecimento do tamanho do vazio ou da solidão que habita no coração de quem a sente, obtendo assim a oportunidade de perguntar-se sobre o real desejo que o coração está tendo naquele instante da vida. Normalmente, nossa carência de amor só é desmascarada e saciada na medida em que tivermos coragem de ver o tamanho do vazio que habita no nosso próprio ser. Daí por diante talvez comece um grande desafio: arriscar-se no amor ao outro, sem medo.

4. Orge (ira, patologia do irascível)

A quarta sombra pode ser entendida como ira ou impaciência. Biblicamente, ela é compreendida como brevidade do sopro. Na ira, o indivíduo estreita seu sopro parecendo tornar-se sufocado.

Segundo Leloup, Evágrio tem dado muita importância ao fenômeno da ira, pois ela torna o homem desfigurado de sua imagem semelhante a Deus, tornando-o parecido a um demônio.

Não bastasse, fisicamente a ira pode ser muito prejudicial à saúde, pois ela corrói o fígado, excita a bílis e, quando não expressa, torna-se inclusive perigosa, podendo causar úlceras. A ira não deixa nosso sono ser tranquilo, causando pesadelo para quem dormir sem resolvê-la. Por isso, São Paulo escreve aos habitantes de Éfeso: Que o sol não se ponha sobre vossa ira.

Na raiz da formação da ira, segundo Leloup, está a nossa grande dificuldade de aceitar o outro como outro, diferente daquilo que esperamos dele. Quando isso acontece, nos irritamos e deixamo-nos corroer pelo ressentimento. No entanto, existe uma ira saudável, aquela que nos torna indignados contra a injustiça, por exemplo, tornando-nos firmes como os profetas, ao invés de agressivos.

Para curar-se da ira como sombra, antes de tudo, é preciso aprender a perdoar, tanto a si quanto aos outros, reconhecendo simplesmente aquilo que se é. Em seguida, aprender a respirar prolongadamente. Expirando, liberando a energia da ira e inspirando a calma e a serenidade de nosso ser.

Por isso é que, para Evágrio, o monge deve aprender a virtude da mansidão, que, mais do que quietação, é serenidade que vem da harmonia causada pelo Espírito em nós.

5. Lupe (depressão, tristeza, melancolia)

Na base de toda tristeza está a dor da frustração de ter perdido ou não alcançado alguma coisa considerada importante ou, ainda, a carência de algo muito desejado.

Por isso, o monge antigo sempre lidou com as carências aprendendo a orientar o desejo, antes que não satisfazê-lo. Disciplinar o desejo a fim de que ele nos remeta ao Infinito, uma vez que só o Infinito pode saciar o grande desejo humano.

A tristeza na vida do monge aparece no desejo de ter de volta aquilo que ele tinha abandonado por vontade própria para seguir o caminho do monastério. Lá no deserto de tudo, no entanto, ele faz a experiência de grande carência e, quando essa carência parece ser muito forte, vem a tristeza que brota da frustração de não poder ter de volta uma casa, a família e, principalmente, o reconhecimento e o afeto das pessoas.

O remédio para o monge integrar a sombra da tristeza é o exercício constante de despojamento no intuito de alcançar o verdadeiro espírito de pobreza que consiste em perceber que a vida é uma eterna dádiva, que nada lhe falta e que tudo o que ele precisa ele tem. Mas isso só será possível se ele superar o desejo e a ilusão de que possuir algo é sinônimo de alegria. Não, a alegria virá da noção de simplesmente Ser aquilo que ele é, ali naquele instante, garantida pela profunda noção de totalidade da qual ele faz parte, vivida na comunhão com tudo.

6. Acedia (pulsão de morte)

Característica dessa sombra é a melancolia profunda, depressão com desejo de morte, de suicídio. Isso é muito conhecido no nosso mundo contemporâneo como sendo a depressão psíquica profunda.

Para o monge a acedia era também chamada de demônio do meio-dia, ou noite escura da alma, onde o monge depois de ter experimentado Deus e ter conhecido a profunda razão de seu existir se deparava com a noção interna de ter se enganado no caminho, de ter errado tudo, de ter sido abandonado por Deus e de ter-se verdadeiramente iludido. Muitos deles tinham vontade de morrer ou se jogaram na saciação dos vícios, do beber, comer e da sensualidade.

Conforme Leloup, esse processo todo é explicado por Jung ao tratar da crise que se dá por volta dos quarenta anos em que o indivíduo precisa passar para que apareça mais claramente quem ele é no seu Self (Leloup, 2003). É um período em que aparece o que estava recalcado, mas pode ser um momento de um salto de maior integralidade. Quando vivida conscientemente, após essa crise, ele estará mais inteiro, centrado no seu ser, e com a noção de si mais integrada, vivida como um senso de totalidade e inteireza.

Os monges ensinavam que na hora da acedia não se deve tomar nenhuma decisão, manter-se fiel às práticas e intensificar a fé com muita firmeza, centrando a mente nas coisas simples, sem voltar-se muito para o passado nem para o futuro, permanecendo atento ao processo, como que cozinhando o momento. Ter presente que esse momento é “passageiro” e que, ao tê-lo passado, a alma experimentará um estado de grande calma e inefável alegria (Leloup, 2003, p. 97).

7. Kenodoxia (vanglória, inflação do ego)

É o complexo sombrio em que se encaixam todos os tipos de grandiosidades, de caráter paranoico e narcísico. É o mecanismo através do qual o indivíduo, de um modo ou de outro, precisa estar no centro de tudo. Uma fome obsessiva de glamour, de importância, de reconhecimento, no intuito de compensar todas as carências vividas no passado está sempre presente no indivíduo que carrega essa sombra. Irrita-se com qualquer possibilidade de crítica e com todos aqueles que o criticam ou fazem algum tipo de observação.

Esse complexo sombrio está muito presente na sociedade ocidental atual.

Os monges estavam sujeitos a essa sombra enquanto poderiam se orgulhar do caminho que levavam, pelos dons vividos, podendo considerar-se como Deus, achar-se iluminado, predestinado e prodigioso. Apodera-se dos dons e, na ilusão, pensa que todos acorrerão a ele para serem curados, para serem salvos por ele.

O melhor remédio para a sombra da kenodoxia, segundo Evágrio, é a gnose: autoconhecer-se para livrar-se da ilusão. A gnose conduz o homem ao conhecimento de si e ao conhecimento de quem é realmente Deus.

Autoconhecer-se implica morte e desapego. Isso, conforme Leloup (2003, p. 99), pode conduzir-nos à lupe e à acedia, isto é, ao luto e à tristeza, tão necessários em alguns casos para que se supere as fortes raízes das sombras da vanglória e do egocentrismo.

8. Uperephania (orgulho, vanglória, delírio esquizofrênico)

É mais forte que a sombra de kenodoxia. É uma profunda ignorância humana. Pode conduzir o homem a um estado tão egocêntrico que é como se ele rompesse com o real do jeito esquizofrênico, autossatisfazendo-se subjetivamente, do tipo autista, impedindo qualquer possibilidade de relação com o Outro. É quando o homem fica literalmente fora de si colocando-se no lugar de Deus e outorgando-se os poderes divinos do Criador.

Para os antigos monges, o remédio para a uperephania é a humildade. A prova disso é que quando o orgulhoso receber alguma admoestação ele logo fica fora de si, ao passo que o monge humilde, mesmo quando humilhado ou caluniado, não perde a paz que garante o centro de seu eixo. Para os antigos monges a humildade é a Verdade. É ser o que se é. Nem menos, para não fazer-se centro enquanto vítima de tudo, nem mais para não ser o centro enquanto grandioso. A humildade vem de humus, a terra. Humilde é aquele que aceita a condição terrena como lugar de vivência da condição divina.

Em síntese, os monges, para esse complexo de sombras, nos apresentam como remédio básico a gnose, o conhecimento de si em profundidade, o que nos garante a percepção de nosso ser de forma inteira. É só entrando no mais íntimo de si mesmo que o ser humano vai poder perceber o complexo de seu self que engendra tanto a luz quanto a sombra, e que a sombra é sempre mais intensificada quanto mais deixar de ser vista a partir de sua relação com a luz.

Ao entrar em contato com a sombra, esvazia-se o espaço que parece ter sido reservado a ela, deixando que penetre a luz também nesses recônditos, diminuindo seu poder que desumaniza e cria a ilusão de ser o que não se é.

Nesse caminho, lidar com as sombras é não combater contra elas, mas aproximar-se delas, perceber o seu tamanho e a sua função, nomear a cada uma e oferecer-lhes, em lugar do julgamento, a compreensão, a interpretação, o acolhimento e a integração na totalidade. Assim, elas não serão inimigas do ser, mas simplesmente o sinal de que está havendo uma compreensão limitada do ser, um olhar parcial sobre o eu e, particularmente, uma ignorância sobre si que faz criar uma ilusão para negar aquilo que é temido. Assim, o self se torna irreconhecível, doente e ameaçado por um inimigo que se chama ego: a parte do ser que não é verdade, aquela que foi criada pela mente para ocultar a sombra que, por sua vez, em maior grau, ameaçaria o ego.

Na verdade, todas essas sombras são doenças do ego ou escapatórias da mente para proteger ego. Mas, ao mesmo tempo, elas não estão tão longe do ser enquanto self, na medida em que apontam para alguma escassez no ser, razão pela qual elas se desenhem dessa forma no indivíduo, até ele não tomar consciência da complexidade única da qual o seu ser faz parte.

Claro que esse é um caminho que pode levar uma vida inteira. Mas a gnose, nesse sentido, é sem dúvida uma filosofia, um método, mas principalmente um modo de ser que garante a alimentação do ser, uma vez que, através dela, o ser mantém contato constante com o grande Ser. Por isso, a sombra sempre estará às portas do ser, assim como a luz nunca faltará ao próprio ser. O que tranquilizará o ser humano será justamente essa presença consciente no ser que ele é. O testemunho dado ao ser. Não a ausência da sombra, portanto, mas a maneira de estar presente junto a ela: sem negá-la, sem projetá-la nem julgá-la, para poder integrá-la. Talvez seja isso que significa plenitude humana: uma atitude plena, de consciente presença, que plenifica o ser e garante uma profunda alegria, que vem, não da ausência da sombra ou de uma vida de pura luz, mas justamente do brilho de uma existência consciente em comunhão com a Totalidade.

Conclusão

Temos observado que um dos anseios maiores do ser humano consiste no grande desejo e necessidade de conhecimento. Mas que, ao mesmo tempo, ter que se autoconhecer torna-se um enorme desafio, principalmente pelo fato de temermos aqueles aspectos de nós mesmos que, por fazerem parte do mistério profundo humano que nos habita, nos foge da compreensão consciente. Ansiamos pelo mistério, mas, ao mesmo tempo, o inusitado nos deixa temerosos.

Alguns estudiosos do profundo humano, como Freud e Jung, entre outros, nos mostram que na base desses nossos medos está o medo da morte ou da morte de nosso ego, que luta para manter-se íntegro na iminente possibilidade de fragmentação. Nesse processo, elaboram-se partes de nós que são inconscientes - juntando-se àquilo que já trazemos da humanidade coletiva -, uma espécie de complexo sombrio, aquilo que temos medo de nos tornar e que, por necessidade de segurança, o ego se encarrega de proteger, defender e reforçar, no intuito de que as expressões dessas sombras não se revelem facilmente para o consciente.

A maioria das religiões, tradições e muitas filosofias têm tratado a questão das sombras, particularmente ao terem de refletir e enfrentar o paradoxo do bem e do mal. Normalmente, as sombras foram encaradas como algo negativo que, portanto, precisa ser combatido e eliminado do nosso ser. No entanto, os resultados sempre ficaram aquém do esperado, uma vez que apesar das lutas e sacrifício disciplinar, nos momentos de distração do ego elas aparecem, e de maneira surpreendente e muito estranha ao eu.

Reportando-nos às antigas tradições dos terapeutas do deserto e dos filósofos gnósticos que tinham a gnose como um verdadeiro caminho de autoconhecimento, propomos a ideia de superação da sombra não com a intenção de eliminá-la, mas de integrá-la ao ser, tornando-a uma espécie de via de autoconhecimento: pela sombra pode-se descobrir a que lado está a luz. Seguindo aquilo que os padres do deserto do século IV definiram como principais sombras, temos nomeado oito tipos de sombras que poderiam compor de modo abrangente a complexidade do mundo sombrio humano, ressaltando os aspectos característicos de cada uma e apontando caminhos psico-pedagógicos de integração delas. Desse modo, acreditamos poder contribuir com a educação e com a atividade terapêutica no serviço de ajudar o ser humano a experimentar-se mais íntegro e inteiro, saciando, assim, seu anseio mais profundo por totalidade e comunhão.

É bem sabido que não temos a grande pretensão de resolver os problemas da educação ou da psicologia, mas que podemos abrir maior espaço para uma visão transpessoal de ser humano que precisa sim de compreensão de si mesmo, mas que, antes de tudo, precisa aprender a interpretar para conferir significado, uma vez que a alma humana se alimenta de significados, mais do que tudo. E isso a visão transpessoal conhece bem.

Referências

  • BÍBLIA Sagrada (teb.). São Paulo: Paulinas e Loyola Edições, 1996. P. 1390.
  • CHOPRA, Deepak; FORD, Debbie; WILLIAMSON, Marianne. O Efeito Sombra. São Paulo: Lua de Papel, 2010.
  • GRÜN, Anselm. O Ser Fragmentado. Petrópolis: Vozes, 2004.
  • JUNG, Carl Gustav. Collection Work, v. 11, parágrafo 131. Disponível em: Disponível em: <www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/sombra.htm> . Acesso em: 01 jun. 2008
    » <www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/sombra.htm>
  • LELOUP, Jean-Yves. Cuidar do Ser. Petrópolis: Vozes , 1993.
  • LELOUP, Jean-Yves. Terapeutas do Deserto - de Fílon de Alexandria e Francisco de Assis a Graf Dürckheim. Petrópolis: Vozes , 1998.
  • LELOUP, Jean-Yves. Introdução aos Verdadeiros Filósofos. Petrópolis: Vozes , 2003.
  • LELOUP, Jean-Yves. Uma Arte de Cuidar. Petrópolis: Vozes , 2007.
  • MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2002.
  • TREVISOL, Jorge. O Reencantamento Humano. São Paulo: Paulinas, 2004. Disponível em: Disponível em: <www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/sombra.htm> Acesso em: 01 jun. 2008.
    » <www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/sombra.htm>

Notas

  • 1
    Para o tema da gnose como caminho educacional, queremos nos apoiar fundamentalmente no trabalho desse grande autor francês, filósofo, teólogo, antropólogo, PhD em Psicologia, além de experiente terapeuta e sacerdote hesicasta.
  • 2
    Fílon de Alexandria (data imprecisa entre 20/10 a.C a 39/40). Pouco se sabe historicamente dele. O historiador Flávio Josefo nos diz que Fílon era judeu, alguém ligado à economia e às finanças em Alexandria, embaixador dos judeus junto a Calígula, uma pessoa honrada e um filósofo experiente (Flávio Josefo, Antiguidades judaicas, 18, 259.). Mas é conhecido principalmente pelos seus escritos sobre os “terapeutas do deserto” e pela sua identificação com o jeito de viver desses terapeutas. Os terapeutas do deserto foram confundidos com os essênios que viviam em Qumran, no Egito. No entanto, eles viviam na Palestina. Eram parecidos com os Essênios no estilo de vida sóbrio, simples e centrado na meditação das Escrituras Sagradas. As diferenças fundamentais se encontravam em aspectos bem profundos. Os essênios acreditavam na predestinação: somos filhos da luz ou da treva. Tudo está determinado desde que nascemos. Os terapeutas do deserto acreditavam que o ser humano pode mudar. Nossas memórias recebidas podem ser transformadas. Para os terapeutas o homem pode se transformar, pode conferir sentido à vida, inclusive à doença e à morte. Os terapeutas do deserto cuidavam do Ser interior, tinham cuidado com o corpo através de massagem, liberando as energias do corpo, assim ajudavam outros a respirar, a cuidar do próprio sopro (Cf. Leloup, 2007, p. 24-27). Os terapeutas do deserto junto com Fílon nos interessam, portanto, porque eram terapeutas diferentes e nos quais os “verdadeiros filósofos” se inspiravam no seu jeito de viver. Para Leloup estes eram interessantes porque não separavam a vida da dimensão espiritual; eram homens e mulheres de cultura judaica, mas abertos à cultura grega. Além do mais, Fílon e os Terapeutas são antes de tudo hermeneutas (intérpretes): no interpretar as Escrituras aprendiam a interpretar a vida, relacionando-a com o significado mais profundo, com o Logos. Leloup diz que “no tempo de Fílon o terapeuta é um tecelão, um cozinheiro; ele cuida do corpo, cuida também das imagens que habitam em sua alma, cuida dos deuses e dos logoi (palavras) que os deuses dizem à sua alma, é um psicólogo... um sábio. O terapeuta é também um ser que “sabe orar” pela saúde do outro (Leloup, 1993, p. 25).
  • 3
    Aqui o leitor encontra também as várias concepções de gnose segundo C. G. Jung.
  • 4
    Conforme Leloup, 2003, p. 247.
  • 5
    Conforme Leloup, 2003, p. 81-82.
  • 6
    Vamos seguir aqui o belíssimo trabalho de pesquisa de Jean-Yves Leloup na sua obra citada: Introdução aos verdadeiros filósofos, p. 78-107. Evágrio Pôncio nasceu em Ibora, no Ponto (atual Turquia), por volta do ano 345 e faleceu no ano 399.
  • 7
    Esses oito sintomas foram de grande importância histórica, foram retomados e reformulados até passaram a ser resumidos nos “sete pecados capitais”, disseminados pela Contra-Reforma, perdendo assim seu caráter de análise e de cura, tomando uma conotação puramente moralista (Leloup, 2003, p. 86).
  • 8
    Cf. Hipócrates. De la génération, t. VII, Littré, 1851, p. 470 apud Leloup, 2003, p. 91.

Notas

  • *
    Jorge Antonio Trevisol é psicólogo e educador. Mestre em Psicologia e Espiritualidade pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Doutor em Educação, Cantor e Compositor, autor de Amor, Mística e Angústia: mistérios inevitáveis da vida humana; e O reencantamento humano: processos de ampliação da consciência na educação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2012

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2011
  • Aceito
    01 Dez 2011
location_on
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Educação Avenida Paulo Gama, s/n, Faculdade de Educação - Prédio 12201 - Sala 914, 90046-900 Porto Alegre/RS – Brasil, Tel.: (55 51) 3308-3268, Fax: (55 51) 3308-3985 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: educreal@ufrgs.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro