Open-access Mais uma Lição: sindemia covídica e educação

Resumo:

Este artigo articula os desdobramentos das crises geradas pela pandemia da COVID-19, com as deficiências da educação escolar, no Brasil. Argumenta que uma escola marcada por desigualdades, exclusões, elitismo, facilitação e superficialidade vem gerando amplos contingentes de estultos e refratários às orientações científicas de prevenção à pandemia e seu controle. Tal situação é agravada por parte das classes políticas dirigentes, cujos líderes são fiéis adeptos do negacionismo, fundamentalismo político e religioso, anticientificismo e conspiracionismo. Propõem-se alguns princípios norteadores para a educação científica com ênfase nas dimensões gnosiológica e formativa. É feita uma revisão da nomenclatura usada pelos estudos sobre pandemias.

Palavras-chave: Pandemia; Sindemia Covídica; Currículo e Educação Científica; Governamentalidade; Estultice

Abstract:

This article articulates the developments of the crises generated by the COVID-19 pandemic with the deficiencies of school education in Brazil. It argues that a school marked by inequalities, exclusions, elitism, facilitation and superficiality has generated large contingents of fools and people refractory to scientific guidance for prevention and control of the pandemic. This situation is made worse by the political governing classes, whose leaders are followers of negationism, political and religious fundamentalism, anti-scientificism and conspiracy theories. A few guiding principles are proposed for scientific education emphasizing the gnoseological and formative dimensions. The nomenclature used in studies on pandemics is reviewed.

Keywords: Pandemic; Covid Syndemic; Curriculum and Scientific Education; Governmentality; Stupidity

Lição: experiência adquirida por vivência, que serve como aviso ou conselho; ensinamento (Dicionário Houaiss, verbete lição).

Comecemos pelo conhecido comentário de Hanna Arendt (2011) sobre as crises: toda crise é também uma porta aberta para a criação e a inovação. Foi pensando na possibilidade de espiar pela porta da atual crise pandêmica que, nestes últimos meses, me lancei a pensar e a escrever sobre os sombrios tempos covídicos que estamos vivendo em 2020, especialmente em suas ressonâncias com a Educação. Este aqui é mais um texto gestado na crise da COVID-191 e nascido no decorrer das perplexidades que nos atravessam diariamente. Atônito - como muitos outros2 - diante de tantas notícias ruins, comportamentos irracionais, declarações estapafúrdias e interpretações bizarras, tenho tematizado e problematizado as raízes, desdobramentos e consequências da atual pandemia. E, pensando no comentário de Hannah Arendt, tenho me esforçado para tirar, deste nosso difícil e irrespirável presente, algumas lições para a Educação e, mais especialmente, para a educação científica3.

Agora, pretendo trazer mais uma contribuição - focada, específica - no sentido de, espiando pelas frestas da porta aberta pela crise pandêmica, compreender melhor alguns fatores que sustentam a complicada e tóxica atmosfera social, política e discursiva que hoje nos envolve, no Brasil. Não tenho dúvida de que quanto mais compreendermos de onde vem e como se alimenta tal atmosfera tóxica, mais fácil será enfrentarmos o mau tempo e mais preparados estaremos para nos protegermos de tudo isso, bem como para nos prevenirmos a médio e a longo prazos.

Quando me refiro a frestas, aponto para o fato de que não penso em abrir amplamente a porta da crise; nem tenho competência para isso. Pretendo apenas espiar pelas frinchas e, tanto quanto possível, vislumbrar e discutir de onde vêm os desencontros e desacertos nas discussões sobre a atual pandemia e nos encaminhamentos que a ela são dados em nosso país. Essa discussão será desenvolvida na próxima seção. A partir daí, na última seção enumerarei, de maneira bem resumida, algumas sugestões para a Educação, especialmente no que concerne ao campo do currículo.

Aqui, não chego propriamente a criar ou inovar. Bem menos do que isso, meus objetivos são mais modestos: quero tão somente levar em consideração algumas medidas educacionais que sejam úteis para o enfrentamento de situações semelhantes às atuais e que, infelizmente, venham a ocorrer daqui para diante. Sendo assim, reconheço que este texto tem uma abrangência restrita, como, aliás, são sempre restritos os alcances e resultados de quaisquer sugestões e operações de engenharia social e, no nosso caso, educacional. Afinal, não existem soluções simples para problemas complicados. Acrescente-se a isso o fato de que não se pode confundir necessidade com suficiência, ou seja, não se pode tomar automaticamente como suficientes mesmo as soluções mais bem elaboradas e que se apresentam como inescapavelmente necessárias4. Enfim, sempre se deve reconhecer os limites de qualquer proposta.

O que segue está dividido em duas seções assimétricas. A primeira seção - Diagnóstico - tem um tom diagnóstico, metodológico e descritivo. Ali, desenvolverei discussões que contribuem para a caracterização da atual crise pandêmica. A segunda seção - Proposições - é mais curta, tem um tom propositivo e move-se no campo dos Estudos de Currículo.

Justifico a assimetria entre as duas seções: antes de nos lançarmos às tarefas de propor correções para o que aí está ou de prevenir seu retorno, é absolutamente necessário conhecer o que aí está. É preciso mapear o terreno, descrever os obstáculos que temos por diante, avaliar as dificuldades que trancam nosso caminho. Conhecer em detalhes os problemas é condição necessária para resolvê-los, minorá-los, contorná-los ou superá-los. Assim, antes de falarmos em soluções e superação, é preciso saber o que, afinal, queremos mesmo solucionar e superar...

Diagnóstico (com precauções metodológicas)

Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza (Albert Einstein, físico).

Para deixar bem claro de onde falo e como falo, começo explicitando os pontos de onde inicio a caminhada e o caminho que vou seguir.

Se entendermos o método como o caminho a trilhar para alcançar um ou mais objetivos, então se pode dizer que nesta seção trato de algumas precauções metodológicas5. Ora, pensar no método e problematizá-lo implica conhecer e mapear o terreno em que nos movimentamos e, de certo modo, implica também já ir fazendo um diagnóstico do que temos na paisagem que nos rodeia e das dificuldades que temos pela frente.

Começarei pelo vocabulário; em seguida, comentarei a complexidade com a qual se apresentam as pandemias em geral e, mais especialmente, a atual pandemia covídica.

O vocabulário

Sem pretender fixar significados e sentidos às palavras e expressões, considero importante relembrá-las e esclarecer como estou me valendo delas neste texto6. No esforço de reduzir a ambiguidade, sigo sempre as palavras de Antoine Arnauld, expoente da Logique de Port Royal, que, em seu célebre debate com Nicolas Malebranche, perguntou: “A primeira regra do tratamento adequado em ciência não é a definição dos seus termos principais, para fixar a noção correspondente como tendo um único significado, mesmo que haja poucos motivos para temer que ele seja compreendido de maneiras diferentes?” (Arnauld, 1780, p. 296; in Dascal, 2006, p. 309).

Reconheço a impossibilidade de se fixar um único significado para qualquer palavra, conceito, enunciado etc. Mesmo assim, sempre valem os esforços para cercar as polissemias e, tanto quanto possível, diminuir a ambiguidade dos discursos7.

Em primeiro lugar, as palavras endemia, epidemia e pandemia. Como bem sabemos, chama-se de endemia a doença que ocorre em uma população, durante um longo tempo. A palavra epidemia designa uma enfermidade em geral contagiosa e de caráter transitório, que ataca simultaneamente um grande número de indivíduos em um espaço geográfico limitado. Para designar uma epidemia em escala planetária, usa-se a palavra pandemia.

Em segundo lugar, a palavra sindemia. Ela encerra o conceito criado pelo antropólogo-médico estadunidense Merrill Singer, na década de 1990, para designar as combinações sinérgicas entre a saúde de uma população e os respectivos contextos sociais, econômicos e culturais, aí incluídos os recursos disponíveis (hospitais, ambulatórios, medicamentos, especialistas etc.).

Recentemente, uma comissão criada pelo periódico científico The Lancet usou esse neologismo para se referir à associação, em escala mundial, entre obesidade, desnutrição e mudanças climáticas (Swinburn et al., 2019, p. 1):

O relatório da Comissão do Lancet demonstra que as pandemias de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas são o principal desafio para as pessoas, o ambiente e o planeta. Como descrito abaixo, essas três pandemias representam, em conjunto, a Sindemia Global, com determinantes comuns subjacentes nos sistemas de alimentação, transporte, urbanismo e uso da terra8.

Trata-se de um neologismo bastante útil para nos referirmos à combinação e potencialização de problemas que se situam nos âmbitos sanitário, sociocultural e ambiental. Portanto, aí se incluem principalmente, no âmbito sanitário: questões da saúde individual e coletiva, patogenia e transmissibilidade de certas moléstias, prevenção e terapêutica etc.; no âmbito sociocultural: hábitos, crenças, valores, práticas culturais, educação, estrutura populacional - em termos demográficos, etários, econômicos, migracionais etc.; no âmbito ambiental: poluição, esgotamento de recursos naturais, mudanças climáticas etc. Dado que na pandemia da COVID-19 se combinam esses três âmbitos, a palavra sindemia passou também a ser usada para designá-la.

Ao comentar a gravidade da COVID-19 e as situações de comorbidade que ela envolve, assim se manifestou, em setembro de 2020, o editor-chefe da The Lancet (Horton, 2020, p. 874):

A associação dessas doenças num cenário de disparidades sociais e econômicas exacerba os efeitos de cada doença tomada em separado. A COVID-19 não é uma pandemia. É uma sindemia. A natureza sindêmica da ameaça que nós temos pela frente significa que é necessária uma abordagem mais matizada se quisermos proteger a saúde das nossas comunidades9 (Tradução minha).

A criação desse neologismo não significa apenas uma especificidade ou maior adequação entre a terminologia técnica e os novos fenômenos colocados em marcha pela pandemia da COVID-19. Bem mais do que isso, essa nova palavra encerra um conceito poderoso para uma compreensão mais abrangente e refinada dos problemas criados pelo novo vírus e, consequentemente, para um enfrentamento mais efetivo de tais problemas, em termos de reorientar tanto os tradicionais enfoques e procedimentos da medicina clínica, quanto os tradicionais programas de saúde coletiva. Em suma, referir-se à pandemia covídica como uma sindemia é interessante, importante e potente, na medida em que acentua o seu caráter extremamente polimórfico e complexo. Sendo assim, daqui para diante passarei a me referir à atual pandemia da COVID-19 com a expressão sindemia covídica.

No âmbito sociocultural acima referido, há mais um complicador: num mundo cada vez mais conectado, permeável e aberto à livre circulação de informações de todo tipo, as boas e más notícias e orientações - na forma de breaknews, goodnews, fakenews, cheatnews10 e até as mentiras mais grosseiras - são ampla, acrítica e igualmente difundidas11. Se isso é assim do lado da emissão e difusão, deve-se também considerar o que acontece do lado da recepção. Em parte decorrente da saturação de informações às quais todos estamos sujeitos e em parte decorrente do perfil mal preparado e pouco crítico dos amplos contingentes de consumidores da informação, o conteúdo daquilo que é visto, lido e escutado é pouco diferenciado. Parece haver uma tendência de tudo ser absorvido como se, a priori, tudo fosse verdade; ou de tudo ser negado como se, a priori, tudo fosse mentira12.

Para piorar o quadro, uma característica traiçoeira das fakenews e das cheatnews é que muitas delas são bem elaboradas, se apresentando de forma palatável, plausível e geralmente simples, o que as torna pretensamente verdadeiras. Isso funciona muito bem principalmente para aqueles que não estão suficientemente aparelhados para pensar criticamente.

A Complexidade e (Consequente) Irredutibilidade

Entendendo uma pandemia como um fenômeno sanitário, sociocultural e ambiental extremamente complexo, mutável e situado num patamar epistemológico acima das raízes que lhe dão origem e o alimentam, ela é irredutível a qualquer uma das muitas variáveis que dela participam. De modo a clarificar tal complexidade, tenho recorrido ao caleidoscópio como uma metáfora bastante potente para me referir aos fenômenos que estamos vivendo hoje.

Como se sabe, um caleidoscópio compõe-se de um tubo cilíndrico escuro, no fundo do qual há uma câmara, um espaço limitado por duas paredes de vidro branco, translúcido e leitoso; no interior dessa câmara, estão soltos pedacinhos de vidros multicoloridos. Na outra extremidade do cilindro, há um orifício por onde se observa o que ocorre dentro do tubo. As paredes internas do tubo são revestidas com um prisma triangular espelhado longitudinal, cujo objetivo é multiplicar as imagens a serem observadas. Como os pequenos vidros coloridos são móveis, a cada movimento feito no tubo eles mudam de lugar dentro da câmara, de modo que seus múltiplos reflexos pelas paredes longitudinais do prisma espelhado formam imagens infinitamente variadas contra o fundo branco, translúcido e leitoso. Apesar da sua simplicidade construtiva, o caleidoscópio produz belos e cambiantes efeitos.

Excluindo o bonito efeito estético que se obtém a cada movimento do cilindro, em tudo o mais o caleidoscópio serve como metáfora às pandemias. Vejamos por quê.

Sendo o caleidoscópio um artefato especular e multifacetado, as imagens que se observam no seu interior são apenas representações - indiretas e invertidas, porque especulares - de fenômenos e disposições que ocorrem dentro da câmara leitosa. Assim, a cada movimento do artefato, aquilo que vemos não corresponde exatamente ao que se passa no seu interior. Qual num jogo gestáltico, para irmos adiante da - ou superarmos a - impressão imediata das imagens que vemos, nossa imaginação tem de ficar oscilando constantemente entre aquilo que vemos ou percebemos e aquilo que pensamos (porque já sabemos) sobre a estrutura físico-construtiva do caleidoscópio. Em outras palavras, aquilo que vemos não está mesmo lá, mas se apresenta para nós como se lá estivesse mesmo.

Para compreendermos o que se passa mesmo no interior do caleidoscópio, é preciso um exercício mental que articule observação e percepção com conhecimento prévio e abstração. Faz-se necessária uma mínima capacidade mental que articule objetividade com subjetividade. Em suma, é preciso a associação entre aquilo que se vê e um mínimo de conhecimentos; tal associação implica uma razoável capacidade mental de abstração. E ainda que as exigências não sejam grandes, é impressionante observar a dificuldade de tantas e tantas pessoas para compreenderem os fenômenos envolvidos na formação das imagens nos caleidoscópios. O mesmo acontece com as pandemias em geral. As dificuldades da compreensão decorrem do grau variado da estultice13 e do travamento mental de cada um. Seja por uma escolarização deficiente ou ausente, seja por uma carência de estímulos precoces das atividades psi, ou seja, mesmo por alguma insuficiência dos e nos circuitos do córtex cerebral, muitas pessoas não conseguem realizar essas operações mentais que exigem alguma mobilidade cognitiva. Na carta nº 52 de Sêneca a Lucílio, aquele assim pergunta: “[...] que tendência é essa, Lucílio, que nos desvia do rumo pretendido, que nos empurra para o ponto de onde pretendemos sair? [...] Andamos à deriva entre resoluções contrárias; não conseguimos ser fiéis a uma vontade livre, absoluta, constante” (Sêneca, 2014, p. 176).

O estulto até pode mudar de opinião; mas, quando isso acontece é por influência externa e não por alguma autorreflexão. Por isso, ele anda à deriva, apresenta comportamentos erráticos, imprevisíveis.

As constatações acima não carregam, em si mesmas, nenhum juízo de valor a priori. Elas partem de verificações empíricas, simples e diretas. Entendo que é necessário comentá-las na medida em que nos ajudam a compreender - e, quando for o caso, a desarmar - os pontos de apoio nos quais se sustentam os imensos desacordos entre os discursos e as diferentes representações sociais que, entre nós, são atribuídas à sindemia covídica. E desarmar, também e em cada um de nós, as representações estultas ou até criminosas sobre a sindemia covídica, que amplos setores do governo fazem circular constantemente no nosso país.

No mesmo sentido e por uma questão de semelhanças com o que se observa na condução da sindemia covídica no Brasil, vale a pena abrir aqui um primeiro parêntese, para lembrar como Hannah Arendt entende a burrice, quando descreve o nazista Adolf Eichmann em seu julgamento, no ano de 1961, em Jerusalém. Nas palavras de Gros (2018, p. 122), para a filósofa, “[...] a burrice é pensar por clichês, por generalidades. É isso que Arendt chama de burrice: a automaticidade da fala, o pronto pensar os elementos de linguagem. [...] é a ausência de juízo”. A partir dessa caracterização da burrice, Arendt cria a expressão banalidade do mal para designar a “[...] burrice ativa, deliberada, consciente. Essa capacidade de tornar a si próprio cego e burro, essa teimosia em não querer saber” (Gros, 2018, p. 129).

Agora, abro um segundo parêntese para caracterizar cada um daqueles pontos de apoio referidos mais acima: o negacionismo, terraplanismo, conspiracionismo, fundamentalismo, anticientificismo, tribalismo e o refratarismo. Vejamos cada um deles, de modo bem resumido.

A palavra negacionismo denota a prática de negar sistematicamente realidades ou verdades que, embora evidentes, causam algum medo ou desconforto. Em geral, o negacionismo revela uma dificuldade no enfrentamento de problemas que, para serem compreendidos e resolvidos, exigem o emprego de alguma racionalidade fora do alcance dos estultos. A arrogância, a pobreza intelectual, o fundamentalismo, o anticientificismo e o conspiracionismo reforçam os comportamentos negacionistas.

O terraplanismo é o nome dado à doutrina arcaica, fantasiosa e profundamente conservadora que afirma ser a Terra um disco flutuando no espaço, e não uma esfera, como na Antiguidade já haviam demonstrado Pitágoras e Aristóteles.

Conspiracionismo designa um modo de enxergar conspirações atuando em toda parte e engendradas por agentes malignos - pessoas, organizações ou espíritos -, trabalhando calculada e secretamente contra nós. O reptilianismo, por exemplo, é uma modalidade do conspiracionismo: um grupo de répteis humanoides teriam invadido a Terra - vindos do espaço ou do interior do planeta - e estariam vivendo misturados na população, com o objetivo de nos destruírem.

Em termos gerais, fundamentalismo é a postura de inegociável fidelidade a um princípio fundacional, unificador e transcendente e, por isso, colocado acima de qualquer entendimento, interpretação ou visão de mundo (weltanschauung). Na medida em que funciona como uma âncora ou um gancho no céu (Rorty, 1988), o pensamento dogmático dos fundamentalistas reduz seus medos frente aos mistérios da existência e assim funciona, para eles, como uma segurança ou tábua de salvação. Entre nós, o fundamentalismo político parece se destacar mais do que o religioso.

Anticientificismo refere-se à postura contrária à Ciência - seus métodos, suas práticas, seus princípios. Os movimentos antivacinais, por exemplo estão imbricados com o anticientificismo e, frequentemente, também com o conspiracionismo.

Por tribalismo designa-se a adesão a um determinado grupo social mais ou menos autônomo e bastante fechado - a tribo -, cujos membros partilham de mesmos princípios basilares e mesmos ideais. Em sociedades tradicionais, a tribo tem - ou pensa ter - uma ascendência familiar comum.

Por refratarismo, designo a resistência em aceitar, a priori, as evidências dos fatos e suas interpretações dadas até mesmo pelo senso comum. O refratarismo confunde-se em parte com o negacionismo e o anticientificismo. Para além deles, no entanto, o refratarismo abarca também a teimosia, a cegueira, a arrogância de que pensa que tudo sabe e a insensibilidade frente às dificuldades alheias e às mazelas sociais.

Todos eles são -ismos que, de certo modo, jogam entre si e se articulam uns aos outros, formando algo semelhante a uma rede coerente, firme, conservadora e autojustificada. De modo correlato ao jogo das infinitas imagens que vemos no caleidoscópio, da articulação entre esses -ismos resulta um reforço mútuo que acaba levando muitos a vê-los, compreendê-los e defendê-los como naturais e verdades inquestionáveis. Mas não se deve esquecer que todos eles são manifestações de superfície; quais tristes icebergs, todas essas crenças e princípios têm, abaixo de si, uma massa considerável de fantasias e desinformação, de simploriedade e contrainformações, de tolice e pura imaginação, de arrogância e insensibilidades. E, amarrando tudo isso, estão boas doses de estultice.

É claro que, alimentando e reforçando a circulação de uma massa considerável de fantasias e contrainformações, além da estultice também podem estar em jogo, nesses -ismos, muitos interesses escusos. Seus promotores ora pensam aumentar o capital político sobre seus simpatizantes, eleitores e partidários, todos também estultos e/ou mal-intencionados; ora querem consolidar suas posições públicas e políticas alcançadas às custas da disseminação do desprezo para com os outros e ódio aos adversários, geralmente vistos como inimigos; ora têm medo de que eventuais mudanças coloquem em risco seus confortáveis, porém discutíveis, privilégios.

Continuemos explorando a metáfora. A cada movimento que se faz no caleidoscópio, muda a imagem observada; mas tal mudança não obedece necessariamente à amplitude ou à velocidade do movimento feito por nós. A relação entre um movimento e o seu resultado visível não é de causalidade estrita, mas sim de causalidade complexa e com a eventual intervenção de certas condições de possibilidade. Os movimentos intervêm, mas os resultados são sempre aleatórios, pois entram em jogo também outras variáveis e outras condições de possibilidade sobre as quais não se tem um controle a priori. E, para complicar ainda mais, quase sempre também entram em jogo processos estocásticos, cuja determinação a priori é até impossível de ser feita. No caleidoscópio, nunca se tem um controle direto - e, muito menos, determinístico - sobre os movimentos dos vidros coloridos e sobre as posições que eles assumem a cada movimento que se faz com o artefato. Tudo se passa como se estivéssemos num jogo de dados.

Transportemo-nos do caleidoscópio para as pandemias em geral e, no nosso caso, para a sindemia covídica. Agora, a situação fica bem mais complicada; mas, em termos gerais, ainda vale recorrer à metáfora. De uma parte, é preciso entender tanto a natureza multifatorial dos fenômenos que ocorrem em ambas, quanto o seu caráter não-necessitarista - mas contingente, indeterminístico e até estocástico. De outra parte - e nunca é demais insistir -, tem-se de considerar que uma pandemia é a manifestação articulada de fenômenos naturais - biomédicos e geográficos (climáticos, orográficos, hidrográficos, atmosféricos etc.) - combinados com fenômenos sociais - populacionais (demográficos, migratórios etc.) e culturais (hábitos, crenças e mitos, práticas discursivas e não-discursivas etc.). E, para complicar ainda mais, tal articulação não se dá apenas como uma somatória simples dos fenômenos envolvidos, mas sim como interações que são ora sinérgicas, ora antagônicas; ou seja, interações cujos resultados ora são maiores do que a soma das partes e ora são menores ou nulos, isso é, as partes se anulam quando combinadas entre si.

Vê-se, então, que a compreensão de como funcionam as pandemias - e de como podemos abordá-las e até nos livrarmos delas - exige muitos levantamentos, elaboradas análises, cálculos estatísticos e várias operações mentais cuja complexidade e abstração colocam-se muitíssimo além das evidências imediatas e concretas da - ou daquilo que se considera ser a - realidade. Multifatorialidade, contingência, indeterminação e interações complexas instituem aquilo que se pode chamar de rationale pandêmico; ele situa-se num plano que resiste a qualquer simplificação reducionista. Com tudo isso, mais uma vez se vê o quão adequado é o neologismo sindemia...

E há mais: é preciso entender, também, que tanto o caleidoscópio quanto as pandemias articulam variáveis espaciais com variáveis temporais, de modo que qualquer análise que se queira fazer de ambos envolve determinadas imagens restritas a um dado espaço e num dado tempo. Além do mais, as imagens mudam em função dos ângulos e posições espaciais e teóricas - no sentido de weltanschauung (visão de mundo) - assumidas pelo observador. Nem o caleidoscópio nem as pandemias são estáveis; suas configurações não ficam pacientemente à espera das nossas observações, descrições e soluções14.

É claro que, mesmo confrontados por tais dificuldades, podemos minimamente conduzir ou prever - com algum grau de aproximação e de eventual sucesso, mas nunca de certeza - as imagens no caleidoscópio, antes de fazer um movimento com ele. O mesmo acontece com os resultados que esperamos obter no enfrentamento das pandemias, seja na sua avaliação e acompanhamento, seja na sua prevenção ou solução. Mas estaremos sempre presos às sequências que são típicas das ciências experimentais: tentativas --> muitos erros --> novas tentativas --> novos erros e poucos acertos --> novas tentativas --> muitos acertos e poucos erros e assim por diante. Então, mesmo sem nunca termos a mínima certeza lógica de atingir o pleno sucesso daquilo que previmos acontecer, é preciso ir adiante e, acreditando na indução baconiana, aumentar a probabilidade de que os acontecimentos se deem conforme nossa previsão15.

Tudo o que foi discutido acima aponta para a imperiosa necessidade de abordar a sindemia covídica armados com um pensamento suficientemente apto para enfrentar a descrição, a compreensão e o controle de fenômenos extremamente complexos. Trata-se de uma complexidade que ultrapassa largamente as facilidades prometidas pelo senso comum, praticadas pelo pensamento mágico, pelos imperativos formulados com base em fundamentalismos toscos e pelas certezas e esperanças baseadas apenas naquilo que desejamos, nos favorece e nos tranquiliza.

Para encerrar esta seção, vejamos mais algumas palavras sobre o cenário sindêmico que hoje nos cerca e nos sufoca.

É fácil ver que a atual sindemia fez aflorar e amplificou um variado conjunto de crises mundo afora. No Brasil de hoje, por exemplo, não é exagero identificar pelo menos cinco tipos de crises que se combinam, se interpenetram e se reforçam mutuamente: covídica, econômica, política, ética e estúltica16. Sendo assim, o quadro que se nos apresenta é de extrema complexidade, inapreensível por uma análise reducionista e, também por isso, incompreensível por amplos contingentes da população e, bem como, por uma parte significativa das classes dirigentes.

Por reconhecer as dificuldades para alterar esse status quo, muito se vem investindo em maciças campanhas publicitárias, entrevistas e discussões públicas com especialistas, desarme das contrainformações etc. Tudo isso na pretensão de esclarecer e de neutralizar as mentiras e fantasias das fakenews e cheatnews. Mas talvez o maior obstáculo hoje encontrado por esses esforços - que tentam desarmar as contrainformações e estimular as boas e bem fundamentadas condutas sanitárias capazes de minorar aquele conjunto de crises que nos assola - esteja do lado da população-alvo desses movimentos. Parece que, na maioria das vezes, as pessoas se cansam de adotar as medidas sanitárias que contrariam seus arraigados hábitos culturais coletivos. Outras vezes, a recepção e o processamento das boas informações ficam simplesmente bloqueadas, ab principium, devido a um ou mais dos -ismos aos quais já me referi. Afinal, a tenacidade ao pensamento mágico, à fantasia, à imaginação, à ficção e à excentricidade parece mesmo indestrutível, a menos que, muito precocemente e pela educação, se consiga formar crianças e jovens cujo substratum mentis seja capaz de abrigar e desenvolver uma racionalidade minimamente crítica e consequente.

É neste ponto que passamos para a próxima e última seção.

Proposições

Qualquer jumento pode derrubar um celeiro com um coice; mas é preciso um carpinteiro para construir um (Samuel Rayburn, congressista estadunidense17).

Sintetizando bastante as discussões feitas até aqui e agora dirigindo o foco para a educação, meu argumento vai no sentido de ser imperioso e urgente proceder-se a abrangentes - porém simples e não dispendiosas - mudanças nas ênfases curriculares, com destaque para a educação científica. Vejo, aí, uma boa oportunidade de diminuir uma parte das históricas deficiências da educação escolarizada no Brasil. A formação de amplos contingentes familiarizados com o pensamento científico significa, também, a formação de uma cidadania sem paroquialismos, mas com uma mente mais aberta e alargada para o mundo. Compreender a importância da ciência no mundo de hoje já é um bom início para comportamentos menos estultos e não submissos ao pensamento mágico e dogmático. De saída, ao falar em proposições faço dois alertas:

Em primeiro lugar, não se trata de aderir automaticamente ao catastrofismo e ao prometeísmo, essas que eu considero ser duas dentre as muitas pragas da Pedagogia moderna. Não estamos à beira do fim do mundo. E insisto: medidas pedagógicas são necessárias, mas, por si só, elas não vão nos salvar nem resolver todas as deficiências e problemas sociais que nos afligem.

A deficiência a que me refiro fica por conta e resulta do fato de que a educação escolar, em nosso país, acumula uma secular tradição de desigualdades estruturais, exclusões de toda ordem, elitismo descarado, facilitação, aligeiramento e superficialidade curricular. Mesmo os amplos setores sociais incluídos na escola, na maioria das vezes encontram ali currículos - em termos de conteúdos e práticas didáticas - tão pobres e malconduzidos que se ampliam, cada vez mais, os contingentes de indivíduos individualizados18, encalhados na doxa19, pouco afeitos aos conhecimentos sistematizados e à mobilização de raciocínios lógicos, por mais simples que esses sejam.

Efeitos notáveis disso tudo se manifestam no plano da política, no qual se articulam, de um lado, os governantes estultos e/ou mal-intencionados e, de outro lado, um amplo contingente de governados, na sua maior parte desinformados e desinteressados. É bem comum e conhecida a situação: escandalosamente, as classes políticas aproveitam-se da fraca escolarização de amplas parcelas da população - e sua correlata pobreza e analfabetismo (também político) - para, colocando em marcha o populismo20, o fundamentalismo, o conspiracionismo etc., formarem castas e dinastias familiares, bem como se perpetuarem no poder.

Parece imperioso, então, caminharmos no sentido do fortalecimento de uma educação escolar voltada para diminuir ou mesmo sanar esses problemas. Mas dita apenas assim, essa frase não passa de um clichê. Temos, então, de ir muito adiante dos lugares-comuns. A questão complicada é: que medidas se pode tomar, principalmente a curto prazo?

Em segundo lugar, o que segue nesta seção não pretende ser original. Muito disso já vem sendo dito e defendido, há bastante tempo, por inúmeras correntes pedagógicas. De qualquer maneira, sugiro alguns poucos encaminhamentos curriculares e lhes dou algumas ênfases, na medida em que os considero apropriados e urgentes, face às situações calamitosas que a sindemia covídica está justamente colocando em evidência.

No que diz respeito às sugestões curriculares aqui tratadas, há duas dimensões principais a serem consideradas: a gnosiológica e a formativa. Certamente, não há uma linha clara de separação entre ambas; e elas são até interdependentes.

Na dimensão gnosiológica, estão os assim chamados conteúdos curriculares, isso é, as informações e conhecimentos a serem ensinados e aprendidos21. Um ponto a sublinhar é o fato de que os conteúdos não devem ficar no simples patamar das informações. Por mais atualizadas, importantes e interessantes que sejam as informações e os conhecimentos, por si mesmos eles são de pouco valor se não cumprirem duas funções: ampliar articuladamente o repertório e, principalmente, servir para desenvolver operações mentais mais e mais integradoras, elaboradas e complexas. Combinar e articular os conteúdos entre si, rebater uns com os outros, distinguir o que é importante do que é acessório, agrupá-los em distintas categorias, sequenciá-los, estabelecer as hierarquias e identificar os possíveis nexos causais entre eles são procedimentos que promovem e exercitam o raciocínio lógico. Com isso, elevam-se a integração e a elaboração mental a patamares cada vez mais avançados.

Na dimensão formativa estão a aprendizagem e o exercício de condutas éticas segundo princípios e códigos sociais historicamente estabelecidos por uma dada cultura e partilhados no seu interior, de modo a promover “[...] uma vida coletiva, includente, respeitosa ao outro e à diferença e, por isso mesmo, atenta ao comum” (Veiga-Neto, 2020, sp). Importa incluir atividades conjuntas no currículo - como trabalhos de campo, aulas práticas em laboratório, projetos coletivos etc. - que exercitem a colaboração mútua, o respeito às rotinas e protocolos e o uso de modelos como reprodução controlada ou representação de fenômenos naturais e sociais. Todas essas são atividades que valem tanto por si mesmas quanto como meios para aprender, exercitar e promover os valores (acima referidos) de uma vida coletiva.

Nesta dimensão, um primeiro ponto a considerar é o fato de que a atenção ao comum implica compreender a importância das singularidades e, simultaneamente, os limites a serem respeitados nas relações interpessoais. Assim, por exemplo, no que tange à liberdade individual é sempre imperioso manter em equilíbrio os interesses e direitos de cada um com os interesses e direitos da comunidade em que cada um está inserido22. Tal equilíbrio é, ele mesmo, um imperativo situado acima daquilo que muitos consideram ser a transcendentalidade do (assim chamado) imperativo das liberdades e dos direitos individuais23.

Um segundo ponto a considerar quanto à dimensão formativa refere-se àquilo que se denomina capacidade de escuta. Tal capacidade implica o respeito ao outro, decorrente do reconhecimento da sua autoridade, na medida da sua história e em função da posição que esse outro ocupa numa determinada rede social. Como bem apontou Virilio (1995), num mundo em aceleração constante, avança o presentismo - entendido como a contração social do tempo, reduzido e colapsado ao agora. O presentismo bloqueia e desvanece a memória do passado e, consequentemente, o valor da história e da tradição. Ao ocaso do passado e consequente esmaecimento do valor da história e da tradição, corresponde a sensação de que o mundo se cria a todo instante; consequentemente, tendem a se enfraquecer ou desaparecer as noções de autor, autoria e autoridade.

Ainda no âmbito da dimensão formativa, um terceiro ponto a considerar é a atenção ao princípio da caridade. Sem nenhuma conotação religiosa ou humanitária e a partir da proposta inicial de Neil Wilson e depois desdobrada por Donald Davidson, esse princípio é entendido como o dever - em qualquer comunicação, explanação, diálogo ou controvérsia - “[...] de que se atribua ao outro a melhor das intenções e a melhor compreensão possível” (Dascal, 2006, p. 309). Sendo assim, vai-se para além da escuta como simples escuta. O princípio da caridade exige que a escuta seja qualificada, pois se assume - e se exige que todos os interlocutores assumam - a presunção e o compromisso ético de que tudo aquilo que está em jogo na comunicação deve estar, necessariamente, no verdadeiro24.

Um quarto ponto a considerar está relacionado à formação daquilo que Foucault (2008) chamou de governamentalidade. Aqui, cabe uma digressão.

Dos quatro conceitos que o filósofo atribuiu a essa palavra, valho-me daquele que mais interessa: a saber, a governamentalidade como o encontro ou superfície de contato entre o governamento que alguém exerce sobre si mesmo, o governamento que exerce sobre os outros e o governamento que esses outros exercem sobre aquele alguém (Foucault, 2001). Na medida em que a governamentalidade conecta o governo de si mesmo com o governo dos outros, ela se situa no circuito daquele que eu chamo de terceiro domínio foucaultiano: o domínio do ser consigo mesmo. Em outras palavras, trata-se de como alguém se torna sujeito a partir das ações sobre si mesmo, mas sem esquecer que nesse processo há sempre a intervenção de outro(s) sujeito(s). Resulta daí a bem conhecida máxima estoica: só governa bem os outros quem governa bem a si mesmo.

Pode-se deduzir, então, que a dimensão formativa do currículo é imanente à governamentalidade. Mas, além disso, elas mantêm entre si uma relação de causalidade, do tipo que Deleuze (1991) qualificou de imanente, ou seja, elas mutuamente se atualizam como causa e efeito25. Sendo assim, ao dar ênfase à dimensão formativa na educação científica não se está apenas preparando sujeitos racionais, capazes de exercitarem melhor o raciocínio lógico e compreenderem como funciona a ciência. Tudo isso é importante, principalmente se acrescentarmos as funções de formar futuros defensores da ciência e, até mesmo, eventuais futuros cientistas. Mas vou além: é importante, também, porque se está trabalhando a favor de formar subjetividades mais capazes de se autogovernarem e de bem governarem os outros. É bom lembrar que, sendo assim, a educação científica assume uma importância que extrapola, em muito, as tradicionais alegações que a defendem em nome da formação de mão de obra especializada e apta para o trabalho técnico-científico.

Relacionada a esta primeira, cabe uma segunda digressão. O deslocamento que, no terceiro domínio, Foucault faz do uso de poder para o uso de governo tem bastante a ver com os processos de subjetivação e, por essa via, com a dimensão formativa do currículo. Como bem sabemos, exercer o poder e governar referem-se a ações que uns exercem sobre as ações dos outros; mas estas duas palavras encerram sentidos ligeira, mas decisivamente, distintos. A par de outros detalhes que não cabe aqui discutir, lembro que o verbo poder deriva do radical indo-europeu poti- (poderoso, senhor, aquele que está acima e manda), por via do latim vulgar potēre. Poder está no mesmo campo semântico de poderio, potestade, potente, potência, déspota etc.; trata-se de um campo semântico que aponta para uma diferença de nível, tomada como natural e, em princípio, inegociável. Por outro lado, a palavra governar deriva do verbo grego κυβερνώ (kyvernó), cujo significado é, muito aproximadamente, levar o outro com a aquiescência desse outro e até com sua própria vontade. No caso de governar, não se leva à força, nem com mentiras, nem ocultando motivos; ao contrário, governar implica levar pela verdade, pelo reconhecimento daquele que é levado em relação àquele que o leva26. No governo de uns sobre os outros há uma racionalidade envolvida numa economia de trocas, acordos implícitos, vantagens e reconhecimentos mútuos27.

Esta digressão pode parecer um mero detalhe. Mas ela é importante na medida em que nos faz compreender que a dimensão formativa do currículo envolve também o ensino e a aprendizagem de modos de governar-se e de governar os outros. Sendo assim, ao enfatizar a dimensão formativa do currículo, se está promovendo não apenas a fabricação de sujeitos com visões de mundo mais elaboradas, mas, também, participantes de formas de vida mais inteligentes, éticas e humanas, capazes de um bom autogoverno e, consequentemente, de um bom governo sobre os outros. E isso vale, é claro, tanto para a educação científica quanto para a educação musical, literária, artística, humanista etc.

Mesmo se vendo que a Educação Científica pode ser extremamente rica para o atendimento e a consecução das dimensões gnosiológicas e formativas acima comentadas, se fazem necessários mais alguns cuidados. Refiro-me à historicidade da ciência. Ainda que muito importantes as informações e os conhecimentos específicos acerca das teorias, leis, princípios, nomenclaturas, fórmulas e conceitos científicos, é preciso colocá-los sempre em relação com os processos, acordos e embates históricos nos quais eles foram gestados, se desenvolveram e se firmaram. Ao invés de simplesmente reduzir a educação científica ao ensino de ciências, é preciso enfatizar o caráter histórico-social, aproximativo, relacional, provisório e falível das práticas e correlatas teorizações científicas. Tal ênfase é determinante para uma aprendizagem científica circunstanciada que acaba por mostrar a profunda e íntima relação entre o mundo da ciência e do mundo da vida cotidiana. Ao mesmo tempo, mobiliza maneiras de estar no mundo e de pensar, capazes de neutralizar os indesejáveis -ismos discutidos na seção anterior.

No mesmo caminho vai a problematização acerca das relações entre os fatos observacionais e a construção das teorias que tentam explicá-los. É preciso trabalhar contra o senso comum e não dar os conhecimentos, saberes, práticas e os avanços científicos como tranquilos, como se estivessem desde sempre aí, acabados e à disposição de serem descobertos. E também não os dar como revelações divinas e resultados imediatos, conseguidos por cientistas geniais e aplicados. Nunca será demais enfatizar o caráter temporal, social, coletivo e colaborativo das descobertas e invenções da ciência - com todas as suas convergências e divergências, acordos e desacordos, avanços e retrocessos, idas e vindas. Deste modo, vão ficando claros os topoi que, combinados, caracterizam a ciência, como é o caso, principalmente, do ceticismo28, verificação empírica29, debate aberto30, falibilismo31 e falseacionismo32.

Colocar constantemente em jogo esses topoi faz da educação científica um excelente instrumento para a criação e o desenvolvimento de sensibilidades, visões de mundo e comportamentos não-dogmáticos, não-fundamentalistas, não-negacionistas, não-tribalistas, não-refratários. Tais sensibilidades e visões de mundo promoveriam mentalidades capazes de escapar dos paroquialismos, de compreender e assumir a historicidade e a provisoriedade do conhecimento humano em geral, aí incluído o conhecimento científico. Aceitar o aperfeiçoamento, a revisão e a rejeição de noções tidas, até determinado momento, como basilares e, ao mesmo tempo, exercitar a autocrítica e a abertura para o diálogo, para a outridade e para a diferença são imperativos pragmáticos essenciais para a criação de pessoas mais prudentes, socraticamente humildes e, por aí, capazes de um melhor enfrentamento à atual sindemia.

A um primeiro olhar, minha posição pode parecer otimista demais acerca dos poderes da educação científica. Mas não tenho dúvidas acerca da sua força para entrar no circuito de combate e neutralização da estultice que, correndo solta em nosso país, serve de amálgama e combustível para os estragos causados pela sindemia covídica. De novo, é importante distinguir entre condição necessária e condição suficiente...

Em sintonia com o psicólogo e ensaísta canadense Steven Pinker (2018), entendo que a educação científica é capaz de promover o humanismo racional, por ele defendido. Apostando na ciência, ele vai na contramão dos numerosos críticos que enxergam, na ciência, as origens e o motor das principais mazelas da Modernidade.

Pinker enumera aqueles que para ele são os quatro temas fundamentais para melhor compreendermos a Contemporaneidade: razão, ciência, humanismo e progresso. E considera a razão como o tema primordial e mais importante:

Se existiu algo que os pensadores do Iluminismo tiveram em comum foi a exigência de que se aplicasse vigorosamente o critério da razão para entender o mundo, em vez de recorrer a geradores de ilusão como a fé, o dogma, a revelação, a autoridade, o carisma, o misticismo, o profetismo, as visões, as intuições ou a análise interpretativa de textos sagrados (Pinker, 2018, p. 26).

Nesse contexto então, ele ressalta o papel da ciência como o “[...] refinamento da razão com o objetivo de entender o mundo” (Pinker, 2018, p. 27). E assim continua: “Para os pensadores iluministas, a libertação da ignorância e da superstição mostrou o quanto a nossa sabedoria convencional pode ser equivocada e como os métodos da ciência [...] são um paradigma de como alcançar o conhecimento confiável” (Pinker, 2018, p. 28).

Para encerrar, insisto que minhas proposições não são grandes novidades no campo em que os Estudos de Currículo tratam da educação científica; e tampouco tenho a pretensão de sugerir medidas radicais, imediatas, dispendiosas e efetivas para problemas cujas soluções completas se colocam muito além do alcance da educação científica. Afinal, não há soluções mágicas e remédios milagrosos para dar conta dos enormes e intrincados problemas que se acumulam há séculos em nosso país.

Por obra desta perturbadora crise sindêmica, esses problemas - como já referi - tornam-se a cada dia mais evidentes, se combinam e se potencializam, dando origem a situações extremamente preocupantes e socialmente degenerativas. Como procurei deixar claro, o que tentei fazer foi colocar em jogo essas combinações e potencializações para, a partir daí, enumerar algumas medidas curriculares simples, de baixo custo e factíveis a curto prazo. Medidas que, talvez, nos empoderem um pouco mais para o enfrentamento dessas situações que tornam nosso mundo tão sombrio.

Referências

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  • LOUREIRO, Carine Bueira; LOPES, Maura Corcini (Org.). Inclusão, Aprendizagem e Tecnologias em Educação: para pensar a Educação no século XXI. São Paulo: Pimenta Cultural, 2020.
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  • McGUSHIN, Edward. Foucault ’s Askesis: an introduction for the philosophical life. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=i99-7-GTyaEC&pg=PA107&lpg=PA107&dq=stultitia+seneca&source=bl&ots=FsPX1BKnr2&sig=ACfU3U1N2MiMy_rI9rdkdudg4ZFjtTSHsg&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwji4vHcneLsAhXmEbkGHZyYDyUQ6AEwAnoECAgQAg#v=onepage&q=stultitia%20seneca&f=false >. Acesso em: 28 set. 2020.
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  • RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa: D. Quixote, 1988.
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  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian , 1987.
  • 1
    COVID-19 é o nome atribuído à pandemia do vírus SARS-CoV-2, originado na China no final de 2019.
  • 2
    Para abordagens mais amplas e detalhadas, vide principalmente Loureiro; Lopes (2020).
  • 3
    Uso educação científica como sinônimo de Educação em e para a Ciência.
  • 4
    Vale a pena chamar a atenção para uma confusão lógica bastante comum no campo da educação: ter a ilusão de que é possível resolver um problema social, apelando para uma ação sabidamente necessária, porém insuficiente.
  • 5
    Nunca é demais lembrar que método deriva da junção entre as formas gregas metá (adiante, através de) e hodós (caminho).
  • 6
    Seguindo Wittgenstein (1987), faço uma distinção entre significado (Bedeutung) e sentido (sinn).
  • 7
    Para usar a conhecida formulação do Segundo Wittgenstein (1979, § 38, p. 27), “[...] os problemas filosóficos nascem quando a linguagem entra em férias”.
  • 8
    Aqui, o original foi retirado do ar... A citação acima é oficial e ainda está no ar em: <https://actbr.org.br/uploads/arquivos/Resumo_-Sindemia-Global.pdf>.
  • 9
    No original: The aggregation of these diseases on a background of social and economic disparity exacerbates the adverse effects of each separate disease. COVID-19 is not a pandemic. It is a syndemic. The syndemic nature of the threat we face means that a more nuanced approach is needed if we are to protect the health of our communities.
  • 10
    Tenho proposto a palavra cheatnews para designar as contrainformações mistas, isso é, aquelas cujas partes, tomadas separadamente, não são falsas, mas que são organizadas e apresentadas de modo a enganar, falsear, induzir ao erro. Do inglês cheat (fraude, trapaça). Meias-verdades, por exemplo enquadram-se na categoria das cheatnews.
  • 11
    Não esqueçamos que, muitíssimas vezes, elas são também maliciosamente difundidas.
  • 12
    As bolhas informacionais algorítmicas são a própria materialidade imaterial, porque virtual, nas quais se agrupam os simpatizantes, seguidores ou absorvedores dessa ou daquela versão da informação.
  • 13
    Característica ou atributo dos estultos, isso é, daqueles que, não apresentando sensatez e bom discernimento, são estúpidos, néscios ou, no jargão popular, burros (uma palavra que prefiro não usar para não ofender os muares...). Derivada dos radicais indo-europeus stā- (estar de pé e imóvel) e stel- (pôr-se, colocar-se), a palavra estulto situa-se no mesmo campo semântico das palavras estábulo, estático, apóstolo, estátua, obstinado, estar, poste, pedestal, estupor, estado e suas derivadas. Para pormenores sobre a estultice desde os estoicos, vide: aula de 27 de janeiro de 1982, no Collège de France – A hermenêutica do sujeito (Foucault, 2004). Vide, também: McGushin (2007).
  • 14
    Em termos práticos, costuma-se equiparar as dificuldades de analisar as pandemias, e nelas intervir, com as dificuldades de trocar um pneu de um carro de corrida, mantendo o carro em movimento...
  • 15
    Afinal, como argumentou David Hume, a indução não se sustenta na lógica, mas envolve elementos que são da ordem da psicologia e da empiria (Marques, 2011).
  • 16
    Ainda que não dicionarizada na língua portuguesa, uso a palavra estúltica para adjetivar os comportamentos ou a qualidade dos indivíduos estultos, de modo a marcar uma clara diferença com o substantivo estulto.
  • 17
    No original: A jackass can kick a barn down, but it takes a carpenter to build one.
  • 18
    Nesse aparente pleonasmo, sigo Beck (2010), para quem a maioria dos processos contemporâneos envolvidos com a formação das individualidades não são de individuação, mas de individualização, gerando vazios políticos e levando a uma sociedade de indivíduos individualistas.
  • 19
    Estou usando doxa no sentido trivial de opinião ou juízo que, elaborado num momento histórico, pretende ser verdadeiro, mas que não vai além de uma crença ingênua, falsa e enganosa. Assim, a doxa deve ser superada por conhecimentos e saberes bem fundamentados e claramente articulados.
  • 20
    Reconhecendo a polissemia dessa palavra, esclareço que estou usando populismo como a prática política voltada a captar a simpatia e adesão populares por se declarar em defesa dos interesses das classes de menor poder econômico.
  • 21
    Para uma distinção forte, no campo dos Estudos de Currículo, entre informações, conhecimentos e saberes, vide Veiga-Neto; Noguera (2010).
  • 22
    A aceitação (ou a recusa) das medidas cautelares coletivas e individuais, no enfrentamento da sindemia covídica, são excelentes exemplos dessa atenção (ou da falta dela).
  • 23
    Novamente, certas situações sociais durante o enfrentamento da sindemia covídica nos fornecem excelentes – porém tristes – exemplos dessa confusão entre, de um lado, uma liberdade individual e absoluta e, de outro lado, uma liberdade socialmente informada. Entre outros, esse é o caso da insistente desobediência às recomendações técnicas que proíbem a livre circulação e ocupação dos espaços públicos. Os que desobedecem alegam que têm a liberdade de exercer o direito individual de ir e vir. Não compreender ou não querer compreender a diferença entre a liberdade ligada a um direito universal transcendente – como é o direito à vida, por exemplo – e a liberdade dependente de um direito circunstancial é, no mínimo, uma estultice.
  • 24
    Tomo essa expressão de empréstimo a Michel Foucault (2018).
  • 25
    Recorro a Deleuze (1991, p. 46), para quem a causa imanente é aquela “[...] que se atualiza em seu efeito. Ou melhor, a causa imanente é aquela cujo efeito a atualiza, integra e diferencia, [havendo uma] correlação, pressuposição recíproca entre a causa e o efeito, entre a máquina abstrata e os agenciamentos concretos”.
  • 26
    O verbo latino conducĕre (cum + ducĕre) do qual em português deriva o verbo conduzir, tem esse mesmo significado: quando se conduz, não se usa a força, mas se leva (ducĕre) o outro com o outro, com a aquiescência do outro, com a vontade do outro.
  • 27
    Vem daí a conhecida frase de Foucault: “[...] só se governam homens livres”.
  • 28
    O ceticismo é a doutrina segundo a qual nunca se pode chegar a uma certeza inquestionável sobre qualquer coisa tomada como verdadeira; implica dúvida permanente e reconhece a incapacidade humana de uma compreensão absoluta do que se considera ser a realidade.
  • 29
    O tópos da verificação empírica pode ser entendido como o princípio segundo o qual os enunciados devem guardar uma inequívoca correspondência com as observações empíricas. Ele não se confunde com o verificacionismo proposto pelo positivismo lógico do Círculo de Viena (Wittgenstein, 1987).
  • 30
    O tópos do debate aberto é entendido como a livre exposição e circulação de ideias, proposições e teorias.
  • 31
    O falibilismo é entendido como o princípio geral de que qualquer proposição, teoria ou enunciado é sempre falível, ou seja, está sempre sujeito a ser teórica ou empiricamente comprovado como falso. Assim, o falibilismo vai na contramão do dogma e das certezas últimas. É um quase sinônimo do princípio do falseacionismo proposto por Karl Popper (Blay, 2007).
  • 32
    Denomina-se falseacionismo o princípio criado por William Whewell e Charles Peirce, mas amplamente desenvolvido e utilizado por Karl Popper para distinguir a ciência da pseudociência. Segundo esse princípio, o mérito dos enunciados e das teorias científicas não está na sua verificação, mas na possibilidade de serem falseadas e, assim, refutadas.
  • Editora-responsável: Carla Vasques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2020
  • Aceito
    12 Nov 2020
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