RESUMO
O artigo analisa formulações de L. S. Vigotski (1896-1934) no campo da educação, de modo articulado e situado historicamente com o conjunto da obra do autor, visando evidenciar a noção de educação para a liberdade presente em sua teorização e esboçar possíveis implicações dessa concepção para a educação escolar contemporânea. Na primeira seção, discute-se a gênese social da personalidade na visão de Vigotski, como um caminho para a liberdade. Na segunda seção, é apresentada a concepção de educação do autor, como formação humana e instrução. Na terceira seção é discutida a relação entre instrução e desenvolvimento da personalidade consciente e apresentadas algumas possibilidades de efetivação da educação como prática e caminho para a liberdade na escola contemporânea. Conclui-se que a concepção de educação como prática e caminho para a liberdade, formulada por Vigotski e nem sempre explicitada por estudiosos da obra do autor, pode contribuir para a efetivação de uma educação crítica e emancipatória.
Palavras-chave
Teoria Histórico-Cultural; Educação em Vigotski; Escolarização
ABSTRACT
The article analyzes formulations by L. S. Vigotski (1896-1934) in the field of education, in an articulated and historically situated way with the set of the author’s work, aiming to highlight the notion of education for freedom present in his theorization and to outline possible implications of this conception for contemporary school education. The first section discusses the social genesis of personality in Vygotsky’s view, as a way to freedom. In the second section, the author’s concept of education is presented, such as human education and instruction. In the third section, the relationship between instruction and the development of the conscious personality is discussed and some possibilities for the realization of education as a practice and way to freedom in the contemporary school are presented. It is concluded that the concept of education as a practice and a way to freedom, formulated by Vigotski and not always made explicit by scholars of the author’s work, can contribute to the realization of a critical and emancipatory education.
Keywords
Historical-Cultural Theory; Education in Vygotsky; Schooling
Introdução
Este artigo analisa e discute a concepção de educação presente no pensamento de L. S. Vigotski (1896-1934), tomando como base textos específicos do autor sobre o tema, de modo articulado e situado historicamente com o conjunto de sua teoria, visando evidenciar a noção de educação para a liberdade presente em sua obra e esboçar possíveis implicações dessa concepção para a educação escolar contemporânea.
Trata-se de um desafio, tanto por se tratar de um tema amplo, que pode ser examinado a partir de diferentes ângulos, questões e enfoques, como já realizado por diversos estudiosos de Vigotski (Ex. Daniels, 2003DANIELS, Harry. Vygotsky e a Pedagogia. Tradução: Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2003.; Davidov, 1995DAVYDOV, Vasily Vasilovich. The Influence of L. S. Vygotsky on Education Theory, Research and Practice. Educational Researcher, v. 24, n. 3, p. 12-21, Apr. 1995.; 1997DAVYDOV, Vasily Vasilovich. Introduction. Lev Vygotsky and Educational Psychology. In: VYGOTSKY, Lev Semionovitch. Educational Psychology, Boca Raton, Florida: St. Lucie Press, 1997. P. xxi-xxxix.; Duarte, 1996DUARTE, Newton. A Escola de Vigotski e a Educação Escolar: algumas hipóteses para uma leitura pedagógica da psicologia histórico-cultural. Psicologia USP, São Paulo, v.7, n.1/2, p.17-50, 1996. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psicousp/v7n1-2/a02v7n12.pdf>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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; 2000DUARTE, Newton. Vigotski e o Aprender a Aprender: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas: Autores Associados, 2000.; Kozulin; Gindis; Ageyev; Miller, 2003KOZULIN, Alex; GINDIS, Boris; AGEYEV, Vladimir; MILLER, Suzanne. Vygotsk’s Educational Theory in Cultural Context. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2003.; Mello, 2004MELLO, Suely Amaral. A escola de Vygotsky. In: CARRARA, Kester (Org.). Introdução à Psicologia da Educação: seis abordagens. São Paulo, SP: Avercamp, 2004. P. 135-155.; Moll, 1996MOLL, Luís. Vygotsky e a Educação: implicações pedagógicas da psicologia sócio-histórica. Tradução: Fani A. Tesseler. Porto Alegre: Artmed, 1996.; Pino, 1990PINO, Angel. A Corrente Sócio-Histórica de Psicologia: fundamentos epistemológicos e perspectivas educacionais. Em Aberto, Brasília, ano 9, n. 48, p. 61-67, out./dez. 1990. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me000622.pdf>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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; 2000PINO, Angel. A Psicologia Concreta de Vigotski: implicações para a educação. In: PLACCO, Vera Maria Nigro de Souza (Org.). Psicologia & Educação: revendo contribuições. São Paulo: EDUC, 2000. P. 33-61.; Stetsenko, 2017STETSENKO, Anna. The Transformetive Mind: explanding Vygotsky’s approach to development and education. New York: Cambridge University Press, 2017.), quanto pela possiblidade de colocar, mais uma vez, em relevo, o que o autor considerava “o mais vasto problema do mundo” (Vigotski, 2003VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003., p. 302), tendo sido objeto de preocupação e estudo durante toda a sua curta vida científica.
Este texto parte do pressuposto de que Vigotski empenhou-se em criar uma teoria psicológica de base materialista dialética — a dialética da psicologia, que possibilitasse a explicação do psiquismo humano como síntese de múltiplas determinações — a dialética do humano (Vygotski, 1991aVYGOTSKI, Lev Semionovitch. El significado historico de la crisis de la psicología: una investigación metodológica. In: VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas. Tomo I. Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia, 1991a. P. 259-407., p. 290), e, embora não tenha vivido para concluir o seu projeto de ciência, deixou como legado um amplo sistema teórico-conceitual, formado por conceitos críticos, do qual a educação é parte integrante e fundamental. Dessa forma, as formulações de Vigotski sobre a educação serão apresentadas e analisadas de modo articulado com o conjunto da produção científica do autor, compreendida de três modos peculiares e indissociáveis. 1. Como um sistema teórico-conceitual de base materialista-dialética; 2. Como uma produção histórica e 3. Como um projeto de ciência psicológica comprometido com a emancipação humana, no qual a educação exerce papel central.
A Teoria de Vigotski como um Sistema Teórico-Conceitual de Base Materialista-Dialética – a dialética da psicologia, que tem a dialética do humano como o seu objeto
Vigotski ressaltou a primazia dos sistemas conceituais sobre os conceitos específicos tomados de forma solta ou isolada. Na perspectiva do autor, “[…] somente quando o conceito está dentro de um sistema pode-se tomar consciência dele e empregá-lo voluntariamente” (Vygotski, 2007VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Pensamiento y Habla. Buenos Aires: Colihue, 2007., p. 317). Este pensamento o orientou durante todo o processo de construção de sua teoria. Vygotski (1991a)VYGOTSKI, Lev Semionovitch. El significado historico de la crisis de la psicología: una investigación metodológica. In: VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas. Tomo I. Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia, 1991a. P. 259-407. afirmou que não queria construir sua teoria fazendo uma colcha de retalhos de inúmeras citações, mas uma vez aprendendo a totalidade do método em Marx, construir uma explicação materialista dialética para o psiquismo humano, e assim procedeu, deixando como legado um sistema conceitual formado por conceitos críticos, organizado com base na dialética materialista marxista.
No texto O significado histórico da crise da psicologia. Uma investigação metodológica, Vigotski fez uma afirmação que condensa a sua proposta de ciência psicológica, dialoga com a história anterior da psicologia e marca o seu caminho (Delari Júnior, 2017DELARI JÚNIOR, Achilles. Dialética da psicologia e dialética do humano como seu objeto – em diálogo com a história da psicologia. Curitiba, PR: Coletivo Eras e Dias, 2017. Mimeografado. 8 p.). Disse Vigotski: “Assim como a dialética da ciência natural é, ao mesmo tempo, a dialética da natureza, a dialética da psicologia é, por sua vez, a dialética do humano como objeto da psicologia” (Vygotski, 1991aVYGOTSKI, Lev Semionovitch. El significado historico de la crisis de la psicología: una investigación metodológica. In: VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas. Tomo I. Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia, 1991a. P. 259-407., p. 290, tradução nossa). O projeto de psicologia elaborado por Vigotski contém, portanto, uma proposta de psicologia como uma ciência unificada, com base no princípio da dialética – a dialética da psicologia, que tem o ser humano como o seu objeto de estudo, compreendendo-o não como uma essência metafísica, imutável, mas como uma síntese contraditória de múltiplas determinações sociais – a dialética do humano.
Delari Júnior (2017DELARI JÚNIOR, Achilles. Dialética da psicologia e dialética do humano como seu objeto – em diálogo com a história da psicologia. Curitiba, PR: Coletivo Eras e Dias, 2017. Mimeografado. 8 p.; 2020aDELARI JÚNIOR, Achilles. Gênese Social da Personalidade na Visão de Vigotskl: aproximação indireta à ‘educação estética’. In: PEDERIVA, Patrícia Lima Martins; GONÇALVES, Augusto Charan Alves Barbosa; ABREU, Fabrício Santos Dias de (Org.). Educação Estética: a arte como atividade educativa. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2020a. P. 53-74.; 2020b)DELARI JÚNIOR, Achilles. Relações Sociais e Desenvolvimento da Consciência. Umuarama, PR: Estação MIR Arquivos digitais, 2020b. Disponível em: <https://vigotski.org/Delarirel-soc-cons.pdf>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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, em constante esforço para sistematizar as formulações teóricas de Vigotski na forma de um sistema teórico-conceitual, aponta quatro princípios gerais que precisam ser mantidos sempre que o tomamos como referência, são eles: (1) o devir contraditório da consciência e da personalidade ou da personalidade consciente, termo utilizado por Vigotski em suas últimas produções para unir dialeticamente os dois processos, como o objeto de estudo da psicologia; (2) as múltiplas determinações da existência social como princípio explicativo desse objeto de estudo; (3) a palavra significativa em seu desenvolvimento como unidade de análise que materialmente realiza a mediação entre os dois primeiros; e (4) o método genético-causal como modo privilegiado de proceder a análise.
Cabe, ainda, destacar o lugar que Vigotski reservou para a educação no seu sistema teórico-conceitual.
O novo sistema não precisará se esforçar para extrair de suas leis as derivações pedagógicas nem adaptar suas teses à aplicação prática na escola, porque a solução para o problema pedagógico está contida em seu próprio núcleo teórico, e a educação é a primeira palavra que [a nova psicologia] menciona
(Vygotski, 1991bVYGOTSKI, Lev Semionovitch. Prólogo a la versión russa del libro de E. Thorndike: principios enseñanza basados a la psicología. In: VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas - Tomo I. Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia, 1991b. P. 143-162., p. 144).
A Teoria de Vigotski como uma Produção Histórica, um Sistema Teórico-Conceitual em Movimento
É comum o entendimento errôneo de que temos um único Vigotski, homogêneo e linear. No entanto, estudiosos de sua obra (ex. Delari Júnior, 2013aDELARI JÚNIOR, Achilles. Vigotski: consciência, linguagem e subjetividade. Campinas, SP: Alínea, 2013a.; 2015; 2020a; 2020b; González Rey, 2013GONZÁLEZ REY, Fernando. O Pensamento de Vigotsky: contradições, desdobramentos e desenvolvimento. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, SP: Hucitec, 2013.; Kozulin, 1990KOZULIN, Alex. Vygotsky’s Psychology: a biography of ideas. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1990.; Minick, 1987MINICK, Norris. The Development of Vygotsky’s Thought: an introduction. In: VYGOTSKY, Lev Semionovitch. The Collected Works of L.S. Vygotsky. Volume 1. Problems of general psychology. New York: Plenum Press, 1987. P. 17-36.; Van der Veer; Valsiner, 1996VAN DER VEER, René; VALSINER, Jaan. Vygotsky: uma síntese. São Paulo, SP: Edições Loyola, 1996.; Veresov, 1999VERESOV, Nikolai. Undiscovered Vygotsky: etudes on the pre-history of cultural-historical psychology. Frankfurt am Main, Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Wien: Peter Lang, 1999.) têm demonstrado em seus estudos que a produção científica do autor em psicologia, que durou em torno de 10 anos, indo de 1924 a 1934, como qualquer outra produção humana, foi marcada pela constante recriação de seu sistema teórico-cultural, na tentativa de construir uma teoria cada vez mais dialética, que explicasse o humano como um ser concreto, em seu devir contraditório e multideterminado. Desse modo, como enfatiza González Rey (2013)GONZÁLEZ REY, Fernando. O Pensamento de Vigotsky: contradições, desdobramentos e desenvolvimento. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, SP: Hucitec, 2013., diferente de um todo harmônico, o legado de Vigotski precisa ser compreendido como um sistema em movimento, contraditório e vivo, com avanços, rupturas e superações.
Os autores citados concordam que Vigotski sempre tomou a consciência como objeto de estudo e procurou examiná-la à luz da dialética materialista, porém, o modo de compreender a consciência, de estudá-la cientificamente e, consequentemente, as ideias, proposições e conceitos derivados de seus estudos mudaram significativamente durante os anos em que o autor produziu sua teoria, permitindo a identificação de diferentes períodos.
Para estudar a consciência, Vigotski enfatizou o estudo das funções psíquicas superiores (Delari Júnior, 2013aDELARI JÚNIOR, Achilles. Vigotski: consciência, linguagem e subjetividade. Campinas, SP: Alínea, 2013a.; 2015DELARI JÚNIOR, Achilles. Questões de Método em Vigotski: busca da verdade e caminhos da cognição. In: TULESKI, Silvana Calvo; CHAVES, Marta; LEITE, Hilusca Alves (Org.). Materialismo Histórico-Dialético Como Fundamento da Psicologia Histórico-Cultural: método e metodologia de pesquisa. Maringá, PR: EDUEM, 2015. P. 43-82.; González Rey, 2013GONZÁLEZ REY, Fernando. O Pensamento de Vigotsky: contradições, desdobramentos e desenvolvimento. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, SP: Hucitec, 2013.; Kozulin, 1990KOZULIN, Alex. Vygotsky’s Psychology: a biography of ideas. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1990.; Veresov, 1999VERESOV, Nikolai. Undiscovered Vygotsky: etudes on the pre-history of cultural-historical psychology. Frankfurt am Main, Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Wien: Peter Lang, 1999.; Zavershneva, 2014ZAVERSHNEVA, Ekaterina. The Problem of Consciousness in Vygotsky’s Cultural-Historical Psychology. In: YASNITSKY, Anton; VAN DER VEER, René; FERRARI, Michel (Org.). The Cambridge Handbook of Cultural-Historical Psychology. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2014. P. 63-97.), porém, diferente da antiga psicologia, que concebia tais funções de modo abstrato e dissociadas da pessoa para quem elas cumprem função (Delari Júnior, 2020aDELARI JÚNIOR, Achilles. Gênese Social da Personalidade na Visão de Vigotskl: aproximação indireta à ‘educação estética’. In: PEDERIVA, Patrícia Lima Martins; GONÇALVES, Augusto Charan Alves Barbosa; ABREU, Fabrício Santos Dias de (Org.). Educação Estética: a arte como atividade educativa. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2020a. P. 53-74., p. 55), o autor, desde o início de sua produção científica, elegeu a personalidade como a unidade capaz de integrar dialeticamente todas as funções da consciência humana (Bozhovich, 2009BOZHOVICH, Lidia Ilínichna. The Struggle for Concrete Psychology and the Integrated Study of Personality. Journal of Russian and East European Psychology, v. 47, n. 4, p. 28-58, Jul./Aug. 2009.; Delari Júnior, 2020aDELARI JÚNIOR, Achilles. Gênese Social da Personalidade na Visão de Vigotskl: aproximação indireta à ‘educação estética’. In: PEDERIVA, Patrícia Lima Martins; GONÇALVES, Augusto Charan Alves Barbosa; ABREU, Fabrício Santos Dias de (Org.). Educação Estética: a arte como atividade educativa. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2020a. P. 53-74.; Gonzáley Rey, 2013GONZÁLEZ REY, Fernando. O Pensamento de Vigotsky: contradições, desdobramentos e desenvolvimento. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, SP: Hucitec, 2013.). Em suas últimas produções, num esforço para unir teoricamente os dois processos que caracterizam o psiquismo tipicamente humano, Vigotski passou a utilizar o termo personalidade consciente.
[…] hoje nos deteremos nas leis gerais do desenvolvimento psicológico da criança ou nas leis gerais do desenvolvimento da personalidade consciente da criança
(Vigotski, 2017VIGOTSKI, Lev Seminovitch. 7 aulas de L. S. Vigotski: sobre os fundamentos da pedologia. Rio de Janeiro, RJ: E-papers Serviços Editoriais Ltda, 2017., p. 93).
Essas neoformações, que caracterizam, em primeiro lugar, a reestruturação da personalidade consciente da criança, não são um pré-requisito, mas um resultado ou produto do desenvolvimento da idade
(Vygotski, 1996VYGOTSKI, Lev Seminovitch. El problema de la edad. In: VYGOTSKI, Lev Seminovitch. Obras Escogidas. Tomo IV. Madrid: Visor, 1996. P. 251-273., p. 264, tradução nossa).
Se a existência de períodos na produção científica de Vigotski é praticamente um consenso, os critérios para efetuar tal periodização divergem entre os diferentes autores.
Em coerência com a proposição de sistematização do projeto científico de Vigotski elaborada por Delari Júnior (2017DELARI JÚNIOR, Achilles. Dialética da psicologia e dialética do humano como seu objeto – em diálogo com a história da psicologia. Curitiba, PR: Coletivo Eras e Dias, 2017. Mimeografado. 8 p.; 2020aDELARI JÚNIOR, Achilles. Gênese Social da Personalidade na Visão de Vigotskl: aproximação indireta à ‘educação estética’. In: PEDERIVA, Patrícia Lima Martins; GONÇALVES, Augusto Charan Alves Barbosa; ABREU, Fabrício Santos Dias de (Org.). Educação Estética: a arte como atividade educativa. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2020a. P. 53-74.; 2020b)DELARI JÚNIOR, Achilles. Relações Sociais e Desenvolvimento da Consciência. Umuarama, PR: Estação MIR Arquivos digitais, 2020b. Disponível em: <https://vigotski.org/Delarirel-soc-cons.pdf>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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, e de modo a explicitar as diferentes formas de compreensão do processo de determinação da personalidade consciente pela existência social, apresentadas por Vigotski ao longo do seu trabalho científico, assume-se também neste trabalho, a proposição de periodização apresentada por Delari Júnior (2020aDELARI JÚNIOR, Achilles. Gênese Social da Personalidade na Visão de Vigotskl: aproximação indireta à ‘educação estética’. In: PEDERIVA, Patrícia Lima Martins; GONÇALVES, Augusto Charan Alves Barbosa; ABREU, Fabrício Santos Dias de (Org.). Educação Estética: a arte como atividade educativa. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2020a. P. 53-74.; 2020b)DELARI JÚNIOR, Achilles. Relações Sociais e Desenvolvimento da Consciência. Umuarama, PR: Estação MIR Arquivos digitais, 2020b. Disponível em: <https://vigotski.org/Delarirel-soc-cons.pdf>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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Segundo Delari Júnior (2020aDELARI JÚNIOR, Achilles. Gênese Social da Personalidade na Visão de Vigotskl: aproximação indireta à ‘educação estética’. In: PEDERIVA, Patrícia Lima Martins; GONÇALVES, Augusto Charan Alves Barbosa; ABREU, Fabrício Santos Dias de (Org.). Educação Estética: a arte como atividade educativa. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2020a. P. 53-74., 2020b)DELARI JÚNIOR, Achilles. Relações Sociais e Desenvolvimento da Consciência. Umuarama, PR: Estação MIR Arquivos digitais, 2020b. Disponível em: <https://vigotski.org/Delarirel-soc-cons.pdf>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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, Vigotski, desde o início da sua produção em psicologia, em consonância com a dialética materialista que orientava o seu trabalho, tinha clareza de que a personalidade consciente é determinada pela existência social, o que mudou ao longo de sua carreira científica foram os modos de ele conceber o processo pelo qual se dá essa determinação. Tais mudanças permitem a identificação de três períodos distintos. Num primeiro período, que vai de 1924 e 1927, o qual podemos chamar de reflexológico, Vigotski entendeu que a determinação da personalidade consciente se dava pela formação de sistemas de reflexos condicionais. Num segundo período, que vai de 1928 a 1931, denominado por diversos autores (ex. González Rey, 2013GONZÁLEZ REY, Fernando. O Pensamento de Vigotsky: contradições, desdobramentos e desenvolvimento. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, SP: Hucitec, 2013.; Van der Veer; Valsiner, 1996VAN DER VEER, René; VALSINER, Jaan. Vygotsky: uma síntese. São Paulo, SP: Edições Loyola, 1996.; Veresov, 1999VERESOV, Nikolai. Undiscovered Vygotsky: etudes on the pre-history of cultural-historical psychology. Frankfurt am Main, Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Wien: Peter Lang, 1999.) de histórico-cultural, ele entendeu que a determinação da personalidade consciente se dava pelo uso complexo de sistemas de signos, que funcionavam como estímulos-meio ou instrumentos psicológicos. Finalmente, no terceiro período, que vai de 1932 a 1934 e que podemos denominar de semântico e sistêmico, houve um avanço na teorização de Vigotski. O autor passa a entender que a determinação da personalidade consciente não se dá mais apenas e nem principalmente pelo uso de estímulos-meio, mas pelo ato de produção social de processos de significação para a generalização da realidade, não sendo mais quaisquer signos a efetuar tal processo, mas os complexos sistemas verbais – a palavra – signo arbitrário, dotado de significado e convencionado socialmente.
Considero importante ressaltar, conforme frisado anteriormente, que apesar da existência desses períodos, o trabalho de Vigotski não pode ser compreendido como algo linear. É imprescindível que ao se valer das ideias do autor, leve-se em conta a questão do avanço no seu processo de compreensão da gênese social da personalidade consciente pela existência social, pois ao considerar o que afirmou o próprio autor, em consonância com a ideia de Marx de que “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco” (Vygotski, 1991aVYGOTSKI, Lev Semionovitch. El significado historico de la crisis de la psicología: una investigación metodológica. In: VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas. Tomo I. Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia, 1991a. P. 259-407., p. 261), devemos sempre começar pelo mais desenvolvido. Esse cuidado é fundamental para não incorrer no erro de tomar como referência ou defender determinada ideia ou conceito que o próprio autor reformulou posteriormente. Por outro lado, dialeticamente, há obras dos primeiros períodos de sua produção, como é o caso de Psicologia pedagógica, a sua principal obra no campo da educação, escrita para fins didáticos e publicada em 1926, portanto, no seu período reflexológico, que, apesar de guardar traços reflexológicos ou behavioristas, contém ideias e conceitos críticos relevantes para a prática pedagógica, como por exemplo, o papel a ser cumprido pela organização das práticas educativas na luta de classes.
A Teoria de Vigotski como um Projeto de Ciência Psicológica comprometido com a Emancipação Humana, no qual a Educação exerce Papel Central
O projeto científico esboçado por Vigotski para a psicologia geral – a dialética da psicologia, que tem a dialética do humano como objeto de estudo – está intimamente relacionado com o contexto histórico vivido pelo autor, pós revolução russa de 1917 e o seu compromisso com a construção de “uma psicologia para um novo homem e uma nova sociedade” (Vygotski, 1991aVYGOTSKI, Lev Semionovitch. El significado historico de la crisis de la psicología: una investigación metodológica. In: VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas. Tomo I. Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia, 1991a. P. 259-407., p. 406), que se consolidaria com o socialismo. Vigotski tinha em seu horizonte, portanto, a construção de uma nova sociedade, mais justa e solidária, e atribuiu à educação papel essencial nesse processo. Nesse sentido, a teoria por ele formulada e a concepção de educação nela presente precisam se constituir em práxis por quem as toma como fundamento de seu trabalho. Não basta estudar e conhecer a teoria, é preciso vivê-la, o que implica no compromisso com a emancipação humana. Vigotski nos desafia todos os dias com esta afirmação:
Junto com a libertação de muitos milhões de seres humanos [da opressão], virá a libertação da personalidade humana dos grilhões que restringem o seu desenvolvimento. Essa é a primeira fonte [da transformação] – a libertação do homem
(Vygotsky, 1994VYGOTSKY, Lev Semionovitch. The Way to Freedom - On the Publication of Documents from the Family Archive of Lev Vygotsky. Prepared for publication and with coments by Ekaterina Zavershneva. Journal of Russian and East European Psychology, v. 48, n.1, p. 61-90, Jan./Feb. 2010., p. 181).
É preciso tomar esse desafio como tarefa, apropriando-se do sistema teórico-conceitual do autor e fazendo-o avançar, coletivamente, para as práticas sociais, de um modo especial, para a prática educativa, rumo à emancipação humana.
Uma vez feitas essas considerações iniciais, a análise sobre a concepção de educação presente no sistema teórico-conceitual de Vigotski e a discussão sobre possíveis implicações dessa concepção para a educação escolar serão aqui realizadas em três seções. Na primeira seção, explicita-se o conceito de personalidade em Vigotski como caminho para a liberdade, o que implica, dialeticamente, a compreensão do desenvolvimento de cada ser humano rumo à maior liberdade possível de suas ações como pessoa e no desenvolvimento como um processo coletivo rumo à libertação de toda humanidade. Na segunda seção, será apresentada a concepção de educação presente na obra do autor, como vospitanie e obutchenie, evidenciando ideias e conceitos críticos que convergem para a compreensão da educação como prática e caminho para a liberdade. Na terceira seção, é discutida a relação entre instrução e desenvolvimento da personalidade consciente e apresentadas algumas possibilidades de efetivação da educação como prática e caminho para a liberdade na escola contemporânea. Finalmente, serão apresentadas as considerações finais.
O Desenvolvimento da Personalidade na Perspectiva de Vigotski: um caminho para a liberdade
Uma grande imagem do desenvolvimento da personalidade: um caminho para a liberdade. […] O problema central de toda a psicologia é a liberdade
(Vygotsky, 2010VYGOTSKY, Lev Semionovitch. The Way to Freedom - On the Publication of Documents from the Family Archive of Lev Vygotsky. Prepared for publication and with coments by Ekaterina Zavershneva. Journal of Russian and East European Psychology, v. 48, n.1, p. 61-90, Jan./Feb. 2010., p. 66).
Como vimos, com base em Delari Júnior (2017DELARI JÚNIOR, Achilles. Dialética da psicologia e dialética do humano como seu objeto – em diálogo com a história da psicologia. Curitiba, PR: Coletivo Eras e Dias, 2017. Mimeografado. 8 p., 2020aDELARI JÚNIOR, Achilles. Gênese Social da Personalidade na Visão de Vigotskl: aproximação indireta à ‘educação estética’. In: PEDERIVA, Patrícia Lima Martins; GONÇALVES, Augusto Charan Alves Barbosa; ABREU, Fabrício Santos Dias de (Org.). Educação Estética: a arte como atividade educativa. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2020a. P. 53-74., 2020b)DELARI JÚNIOR, Achilles. Relações Sociais e Desenvolvimento da Consciência. Umuarama, PR: Estação MIR Arquivos digitais, 2020b. Disponível em: <https://vigotski.org/Delarirel-soc-cons.pdf>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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, para Vigotski, a psicologia é a ciência que estuda a gênese social da personalidade consciente, termo empregado por Vigotski no período mais avançado e profundo de sua teorização, por conceber a personalidade como a unidade dialética, a síntese superior das funções psíquicas superiores (Robbins, 2004ROBBINS, Dorothy. L. I. Bozhovitch and the Psychology of Personality. Journal of Russian and East European Psychology, v. 42, n. 4. p. 3-6, Jul.-Aug. 2004., p. 3), na qual o conjunto tem propriedades singulares e leis específicas com relação ao funcionamento das partes isoladas, como podemos observar em um de seus textos pedológicos, escrito no terceiro período de seu trabalho científico.
Como a investigação mostra e como a experiência nos ensina, o mais essencial no desenvolvimento da criança e de sua consciência não é apenas que as funções individuais da consciência da criança crescem e se desenvolvem na transição de uma idade para a outra, mas o essencial é que cresce e se desenvolve a personalidade da criança, e cresce e se desenvolve a consciência como um todo
(Vigotski, 2020VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Instrução e desenvolvimento na idade pré-escolar. [trad, do russo por Marina Darmaros e Pavel Golub]. Cadernos RCC#21 v. 7, n. 2, p. 114-160, maio 2020. Disponível em: <http://www.periodicos.se.df.gov.br/index.php/comcenso/article/view/882>. Acesso em: 08 set. 2021.
http://www.periodicos.se.df.gov.br/index... , p. 146).
Segundo Delari Júnior (2020ª, p. 56)DELARI JÚNIOR, Achilles. Gênese Social da Personalidade na Visão de Vigotskl: aproximação indireta à ‘educação estética’. In: PEDERIVA, Patrícia Lima Martins; GONÇALVES, Augusto Charan Alves Barbosa; ABREU, Fabrício Santos Dias de (Org.). Educação Estética: a arte como atividade educativa. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2020a. P. 53-74., diferente da visão idealista, que concebe a personalidade como uma instância psíquica, como algo que alguém tem e que o faz agir de uma determinada maneira, na perspectiva de Vigotski, portanto, sob uma ontologia materialista, a personalidade é um modo particular de o ser humano atuar no curso de sua existência social, ou seja, nas suas relações sociais com o mundo, com os outros e consigo mesmo. “A personalidade é o ser humano pessoalmente implicado em suas relações sociais com a realidade […] é o processo (dinâmico-estrutural) pelo qual o ser humano realiza relações pessoais junto ao mundo, aos demais e a si mesmo”.
Vigotski, em várias de suas obras, afirmou que “a personalidade é o social em nós” (2000aVYGOTSKI, Lev Seminovitch. Conclusiones. Futuras vías de investigación. Desarrollo de la personalidad del niño y de su concepción del mundo. In: VYGOTSKI, Lev Seminovitch. Obras Escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 2000a. P. 327-340., p. 337), é “o conjunto de relações sociais, encarnado no indivíduo” (Vigotski, 2000bVYGOTSKI, Lev Seminovitch. O manuscrito de 1929 [Psicologia concreta do homem]. Educação & Sociedade, ano XXI, n. 71, p. 21-44, 2000b., p. 33) e se empenhou em compreender a sua gênese social. Uma conclusão importante de Vigotski a esse respeito, que interessa particularmente à educação, é a de que a personalidade muda em termos de dinâmica e de estrutura durante todo o desenvolvimento ontogenético. Em 1929, Vigotski já afirmara que a “dinâmica da personalidade é drama” (p. 35). A partir de 1932, em seus textos pedológicos, aprofunda o estudo da dinâmica e estrutura da personalidade, mostrando como “[…] tanto as forças motrizes em luta no interior de sua ‘dinâmica’, quanto às relações interfuncionais complexas que constituem a sua ‘estrutura’” (Delari Júnior, 2020aDELARI JÚNIOR, Achilles. Gênese Social da Personalidade na Visão de Vigotskl: aproximação indireta à ‘educação estética’. In: PEDERIVA, Patrícia Lima Martins; GONÇALVES, Augusto Charan Alves Barbosa; ABREU, Fabrício Santos Dias de (Org.). Educação Estética: a arte como atividade educativa. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2020a. P. 53-74., p. 59), mudam durante o nosso processo de desenvolvimento ontogenético.
Foi também a partir desse momento de sua vida criativa, mais precisamente, a partir de 1932, que Vigotski passou a conceber o desenvolvimento da personalidade como um caminho para a liberdade. “Uma grande imagem do desenvolvimento da personalidade: [é] um caminho para a liberdade” (Vygotsky, 2010VYGOTSKY, Lev Semionovitch. The Way to Freedom - On the Publication of Documents from the Family Archive of Lev Vygotsky. Prepared for publication and with coments by Ekaterina Zavershneva. Journal of Russian and East European Psychology, v. 48, n.1, p. 61-90, Jan./Feb. 2010., p. 66). Como ressalta Delari Júnior (2013b, p. 9)DELARI JÚNIOR, Achilles. Personalidade e Brincadeira de Papéis Sociais: em diálogo com o educador. In: Estação Mir – arquivos digitais, 2013b. P. 37. Disponível em: <http://www.estmir.net/delari_2013_per-brc-pps.pdf>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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, “Se é ‘caminho para’, não a temos de saída. Se é para ‘a liberdade’ não é uma visão individualista, mas comunal”. Nessa perspectiva, para Vigotski, a liberdade “[…] não é pressuposto da ação humana, mas conquista coletiva por atingir. Nem será ausência de regras, mas possibilidade de tomá-las como recurso para superar nossos limites, em cooperação com outras pessoas” (Delari Júnior, 2013bDELARI JÚNIOR, Achilles. Personalidade e Brincadeira de Papéis Sociais: em diálogo com o educador. In: Estação Mir – arquivos digitais, 2013b. P. 37. Disponível em: <http://www.estmir.net/delari_2013_per-brc-pps.pdf>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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, p. 4).
Há, portanto, dois aspectos a serem destacados no conceito de liberdade em Vigotski: (a) trata-se de uma conquista e não um pressuposto; (b) é uma conquista que se obtém cooperando com alguém e não sozinho (Delari Júnior, 2009MÉSZAROS, István. Estrutura Social e Formas de Consciência: a determinação social do método. Tradução: Luciana Pudenzi, Francisco Raul e Cornejo e Paulo César Castanheira. São Paulo, SP: Boitempo, 2009., p. 6).
Nesse sentido, como afirma Delari Júnior (2013c)DELARI JÚNIOR, Achillles. Princípios Éticos em Vigotski: perspectivas para a psicologia e a educação. Nuances: estudos sobre Educação, Presidente Prudente, SP, v. 24, n. 1, p. 45-63, jan. /abr. 2013c. Disponível em: <https://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/2153>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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, o humanismo e, consequentemente, o conceito de liberdade postulados por Vigotski não se pautam nem no humanismo ingênuo, que considera o ser humano como essencialmente bom, nem no liberal que foca na realização individual (p. 48), mas em um humanismo crítico de raiz marxista, que tem como meta ética, o salto do reino da necessidade para o reino da liberdade. Tal meta converte-se em pelo menos três ações humanas a serem produzidas mediante a prática social: superação, cooperação e emancipação (p. 49).
A partir da análise do conceito de personalidade em Vigotski, como um caminho para a liberdade, valendo-se dos próprios escritos do autor e de estudiosos de sua obra, é possível elaborar como síntese que, em sua perspectiva, o desenvolvimento do psiquismo é o desenvolvimento do ser humano como uma totalidade, como uma síntese contraditória de múltiplas determinações sociais – como uma personalidade consciente.
O desenvolvimento da personalidade na perspectiva de Vigotski como um caminho para a liberdade comporta dois momentos indissociáveis de um mesmo processo histórico – o desenvolvimento de cada ser humano rumo à maior liberdade possível de suas ações como pessoa, e o desenvolvimento como um processo coletivo rumo à libertação de toda humanidade.
A Educação na Perspectiva de Vigotski – prática e caminho para a liberdade
A educação surge como o mais vasto problema do mundo, isto é, o problema da vida como uma criação
(Vigotski, 2003VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003., p. 302).
Vigotski utilizou basicamente dois termos russos para se referir à educação – vospitanie e obutchenie (Daniels, 2003DANIELS, Harry. Vygotsky e a Pedagogia. Tradução: Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2003.; Davidov, 1995DAVYDOV, Vasily Vasilovich. The Influence of L. S. Vygotsky on Education Theory, Research and Practice. Educational Researcher, v. 24, n. 3, p. 12-21, Apr. 1995.; 1997DAVYDOV, Vasily Vasilovich. Introduction. Lev Vygotsky and Educational Psychology. In: VYGOTSKY, Lev Semionovitch. Educational Psychology, Boca Raton, Florida: St. Lucie Press, 1997. P. xxi-xxxix.; Delari Júnior, 2013bDELARI JÚNIOR, Achilles. Personalidade e Brincadeira de Papéis Sociais: em diálogo com o educador. In: Estação Mir – arquivos digitais, 2013b. P. 37. Disponível em: <http://www.estmir.net/delari_2013_per-brc-pps.pdf>. Acesso em: 08 de set. 2021.
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). Vospitanie, que significa formação, no sentido de formação humana geral, formação ética, moral, estética, política, constitutivas do desenvolvimento psíquico humano compreendendo, portanto, um campo mais amplo do que a educação escolar e obutchenie, que significa instrução e está mais relacionado à educação escolar.
A palavra obutchiene merece ser comentada brevemente, devido à dificuldade de tradução desse termo russo para outros idiomas e aos equívocos advindos dessa questão. Segundo Valsiner (1988)VALSINER, Jaan. Semantic Problems in Translation: the case of ‘obuchenie’. In: VALSINER, Jaan. Developmental Psychology in the Soviet Union. Brighton, Great Britanian: The Harvester Press Limited, 1988. P. 162-164., tal dificuldade se deve ao fato de que essa palavra empregada por Vigotski reúne, dialeticamente, o ensino e a aprendizagem, aquele que ensina e aquele que aprende e a ação ou situação combinada a ser realizada coletivamente. Nas primeiras traduções de Vigotski para a língua inglesa, algumas das quais foram traduzidas posteriormente para o português, esse termo foi traduzido ora como ensino, ora como aprendizagem, contribuindo para a disseminação no Brasil de um equívoco muito frequente e recorrente, que é a ideia de que Vigotski teria defendido que a aprendizagem promove o desenvolvimento, quando na verdade, na proposição do autor é a obutchenie que pode promover o desenvolvimento da pessoa como uma personalidade consciente. Atualmente, após intensos debates, há praticamente um consenso de que a palavra em língua inglesa que mais se aproxima do termo russo obutchenie, é instruction (Rieber; Carton, 1987RIEBER, Robert W.; CARTON, Aaron S. Notes to the English Edition. The Collected Works of L. S. Vygotsky. Volume 1. Problems of general psychology. New York: Plenum Press, 1987. P. 387-389., p. 388) e, na língua portuguesa, instrução (Prestes, 2012PRESTES, Zoia. Quando Não É Quase a Mesma Coisa: traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.).
Como afirma Pino (2000)PINO, Angel. A Psicologia Concreta de Vigotski: implicações para a educação. In: PLACCO, Vera Maria Nigro de Souza (Org.). Psicologia & Educação: revendo contribuições. São Paulo: EDUC, 2000. P. 33-61., “[…] para Vigotski, desenvolvimento humano e educação constituem dois aspectos de uma mesma coisa” (p. 57). Neste trabalho, em concordância com Pino e de modo coerente com o período mais avançado do trabalho de Vigotski, afirma-se que o desenvolvimento da personalidade consciente e a educação formam uma unidade dialética. Vigotski tinha clareza de que sem a vospitanie – a educação em seu sentido amplo – e sem a obutchenie – a educação em seu sentido restrito, tarefa específica da escola – não há formação da personalidade humana consciente, uma vez que o desenvolvimento do ser humano como uma personalidade consciente, síntese das múltiplas determinações sociais, concretiza-se por meio da educação. Foi por essa razão que Vigotski considerou a educação o mais vasto problema do mundo, o problema da vida como criação, e foi também por essa razão que o autor fez a afirmação citada na introdução deste estudo, nos termos de que a psicologia por ele formulada não precisaria de esforços adicionais para ser aplicada à educação, pois a solução ao problema educacional está no seu núcleo teórico e a educação é a primeira palavra que ela menciona (Vygotski, 1991bVYGOTSKI, Lev Semionovitch. Prólogo a la versión russa del libro de E. Thorndike: principios enseñanza basados a la psicología. In: VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas - Tomo I. Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia, 1991b. P. 143-162., p. 144).
Como se pode interpretar essa formulação de Vigotski diante do que já foi afirmado neste texto? A referida citação deixa claro que se a educação é o processo de formação do ser humano, o prioritário, o mais importante para a educação é o que está contido no núcleo da teoria. E o que está contido no núcleo do sistema teórico-conceitual de Vigotski? A gênese social da personalidade e da consciência – da formação do ser humano como uma personalidade consciente, como função de suas relações sociais, mediadas por processos de significação. Sem considerar o desenvolvimento social do psiquismo como um todo, a contribuição da psicologia de Vigotski à educação se esvazia, podendo se reduzir à retórica da importância da interação social na escola, do professor mediador, da promoção do desenvolvimento cognitivo ou a outros psicologismos tão presentes no ideário pedagógico.
Portanto, assumir a concepção de educação presente no sistema teórico-conceitual de Vigotski significa, antes de tudo, compreender que o social para o autor não se reduz à interação entre as pessoas e nem ao contexto do desenvolvimento social da personalidade consciente. A existência social da pessoa, as suas relações sociais constituem a fonte desse desenvolvimento. O ser humano se educa – se forma como uma personalidade consciente nas e como relações sociais.
Como foi mencionado na introdução, o tema da educação foi parte das preocupações, pensamentos, teorizações e ações de Vigotski durante todo o período em que o autor construiu a sua teoria, porém, as ideias que convergem para uma educação como prática e caminho para a liberdade são apresentadas principalmente em três obras do autor. Duas delas foram elaboradas no início de sua produção científica. São elas: o livro Psicologia Pedagógica, publicado em 1926, e o texto Prólogo à versão russa do livro de Thorndike: princípios do ensino baseados na psicologia (Vygotski, 1991bVYGOTSKI, Lev Semionovitch. Prólogo a la versión russa del libro de E. Thorndike: principios enseñanza basados a la psicología. In: VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas - Tomo I. Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia, 1991b. P. 143-162.), que, como o nome diz, consistiu no prefácio escrito por Vigotski, em 1926, para o livro Princípios de Ensino Baseados na Psicologia, do psicólogo americano Edward L. Thorndike, quando da sua tradução para o idioma russo, naquele ano. Essas duas obras reúnem, sem dúvida, as principais contribuições específicas de Vigotski à educação. Há, no entanto, uma terceira obra que vem somar-se a essas e fortalecer a ideia de educação como prática e caminho para a liberdade. Trata-se do texto A transformação socialista do homem (Vygotski, 1994VYGOTSKI, Lev Seminovitch. The socialist alteration of man. In: VYGOTSKY, Lev Semionovitch. The Vygotsky Reader. Edited by Rene van der Veer and Jaan Valsiner. Oxford; Cambridge, UK: Blackwell, 1994. P. 175-184.), escrita em 1930.
Nessas três obras, é possível perceber a ideia de educação para a liberdade em Vigotski, com uma clara compreensão da liberdade como a capacidade humana para realizar escolhas deliberadas, conscientes, como nestas passagens em que o autor aborda a questão da educação moral: “A única conduta moral é a que está ligada à livre escolha das formas sociais de conduta […] A autogestão na escola e a organização das próprias crianças são o melhor meio de educação moral na sala de aula” (Vigotski, 2003VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003., p. 214). Para o autor (2003), qualquer pedagogia baseada na falta de liberdade e que, em vez da necessária liberdade de escolha, esteja estruturada sobre o princípio autoritário, “[…] só é capaz de criar uma criança bem-intencionada e cautelosa, pusilânime e propensa à obediência, submissa e covarde” (p. 218).
Vigotski, dialeticamente, não dissocia a liberdade pessoal da liberdade coletiva. Na perspectiva do autor, diferente da concepção liberal, a liberdade de um ser humano não termina onde começa a do outro, ao contrário, ela se abre, se expande no outro, como afirmou em um dos seus textos sobre educação especial, ao retomar Feuerbach: “[…] o que é absolutamente impossível para um, é possível para dois. Nós acrescentamos: o que é impossível no plano do desenvolvimento individual, se torna possível no plano do desenvolvimento social” (Vygotski, 1997VYGOTSKI, Lev Seminovitch. Prólogo al libro de E. K. Grachova. In: VYGOTSKI, Lev Seminovitch. Obras Escogidas. Tomo V. Madrid: Visor, 1997. P. 239-247., p. 246-247).
No texto A transformação socialista do homem (1994), em que Vigotski aborda a relação do desenvolvimento da personalidade com o desenvolvimento da sociedade e a construção do novo homem socialista, fica evidente o papel desempenhado pela educação no processo de construção de uma sociedade livre, emancipada de toda forma de expropriação humana.
A educação deve desempenhar o papel central na transformação do homem – o caminho de formação social consciente das novas gerações, a forma básica para transformar o tipo humano histórico. As novas gerações e suas novas formas de educação representam o caminho principal que a história seguirá para a criação do novo homem
(Vygotski, 1994VYGOTSKI, Lev Seminovitch. The socialist alteration of man. In: VYGOTSKY, Lev Semionovitch. The Vygotsky Reader. Edited by Rene van der Veer and Jaan Valsiner. Oxford; Cambridge, UK: Blackwell, 1994. P. 175-184., p. 181, itálicos do autor).
Muitas ideias e conceitos apresentados nas obras citadas, se compreendidos de modo articulado com o sistema teórico-conceitual do autor, podem contribuir para a compreensão da educação como prática e caminho para a liberdade. Dentre outros, destacam-se os conceitos de processo educativo, meio social educativo e professor.
Vigotski escreveu o livro Psicologia Pedagógica, sua única obra completa no campo da educação de que temos conhecimento até o momento, antes de 1924, no período que marca o fim do império czarista e a Revolução Russa de 1917. Os limites dados pelo objetivo deste texto não permitem relacionar de forma ampla e complexa essa obra com o conjunto das ideias de Vigotski e com o momento histórico que ele a elaborou, no entanto, é importante destacar que ela contém uma proposta comunista de educação, que não foi implementada na União Soviética e nem em outro lugar do mundo. Há, portanto, nesse livro, o sonho de uma educação para uma sociedade que nunca veio a existir de fato.
Nessa obra, Vigotski (2003, p. 220)VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003. afirma que “educar significa organizar a vida” e que é necessário organizar a vida na escola, por meio do planejamento e realização de práticas sociais educativas que tornem a escola um lugar de vivências democráticas. Entende-se como práticas sociais educativas a organização intencional das relações sociais vividas na escola, para que todos que dela participam possam viver práticas que os posibilitem ter liberdade de pensar, compreeder e agir no mundo de forma ativa, crítica e criativa, rumo à emancipação humana. Segundo Vigotski (2003, p. 220)VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003., “[…] em uma vida correta, as crianças são criadas corretamente” e “Não concordamos com o fato de deixar o processo educativo nas mãos das forças espontâneas da vida” (p. 77). Na concepção do autor, portanto, a vida não pode seguir espontaneamente, sem que a organizemos, sem que nos apropriemos das armas críticas para lidar com as contradições sociais.
Conforme já abordado, há nessa obra uma grande preocupação do autor com a aprendizagem de valores morais e éticos. Ele se opôs às notas, à chamada e à pedagogia da subserviência pela sanção de prêmios e castigos, práticas educativas presentes na escola czarista e que, infelizmente, se mantêm invioláveis na escola contemporânea.
De acordo Davydov (1995)DAVYDOV, Vasily Vasilovich. The Influence of L. S. Vygotsky on Education Theory, Research and Practice. Educational Researcher, v. 24, n. 3, p. 12-21, Apr. 1995., da obra de Vigotski, é possível extrair cinco indicadores que permitem relacionar a educação com o desenvolvimento da personalidade. São eles. 1. A educação, que inclui a instrução e a formação humana, visa, antes de tudo, desenvolver a personalidade; 2. A personalidade humana está ligada aos seus potenciais criativos; 3. A instrução e o processo de formação humana assumem a atividade pessoal por parte dos alunos. O aluno é sujeito no processo de educação; 4. O professor guia a instrução dos alunos, que ocorre mediante a colaboração entre os participantes; e 5. Os métodos mais valiosos para a instrução e a formação das pessoas são aqueles que correspondem às peculiaridades individuais e, portanto, os métodos não podem ser uniformes.
Davydov (1995DAVYDOV, Vasily Vasilovich. The Influence of L. S. Vygotsky on Education Theory, Research and Practice. Educational Researcher, v. 24, n. 3, p. 12-21, Apr. 1995.; 1997)DAVYDOV, Vasily Vasilovich. Introduction. Lev Vygotsky and Educational Psychology. In: VYGOTSKY, Lev Semionovitch. Educational Psychology, Boca Raton, Florida: St. Lucie Press, 1997. P. xxi-xxxix. evidencia, em sua sistematização, a defesa por parte de Vigotski do papel ativo do aluno no seu processo de educação – formação e instrução, como alguém que age com independência e capacidade de escolha. Ressalta também que essa posição de Vigotski já levou a conclusões equivocadas de que o autor defenderia uma educação permissiva, escolanovista, o que não é verdade. Ocorre que Vigotski, ao compreender o desenvolvimento da personalidade como um caminho para a liberdade e a educação como a concretização desse processo, jamais poderia defender uma educação autoritária, centrada na figura do educador, seja ele um pai, uma mãe ou um professor, e de submissão da pessoa em processo de educação. Diferente disso, o autor defende uma educação em que todos os participantes sejam ativos para decidir, regular uns aos outros e agir livremente dentro de limites combinados coletivamente.
Como a educação é um processo inalienável na vida do ser humano, a educação livre não significa rejeitar a restrição, mas transferi-la para a força espontânea da situação em que a criança vive. Se o ser humano renuncia à educação, então começará a ser educado pela rua, pelos móveis e pelas coisas
(Vigotski, 2003VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003., p. 222).
Percebe-se que as proposições de Vigotski com relação à educação estavam intimamente ligadas a um critério realista e crítico. O autor tinha clareza das contradições e dos limites inerentes à luta pela liberdade tanto individual quanto coletiva.
Os problemas da educação só serão definitivamente resolvidos quando forem resolvidos definitivamente os problemas do sistema social
(Vigotski, 2003VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003., p. 220).
Ser donos da verdade sobre a pessoa e da própria pessoa é impossível enquanto a humanidade não seja dona da verdade sobre a própria sociedade. Pelo contrário, na nova sociedade, nossa ciência se encontrará no centro da vida. ‘O salto do reino da necessidade ao reino da liberdade’ [o surgimento do comunismo] colocará inevitavelmente a questão do domínio de nosso próprio ser, de subordiná-lo a nós mesmos
(Vygotski, 1991aVYGOTSKI, Lev Semionovitch. El significado historico de la crisis de la psicología: una investigación metodológica. In: VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas. Tomo I. Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia, 1991a. P. 259-407., p. 406, tradução nossa).
Relação Entre Instrução e Desenvolvimento da Personalidade Consciente
Vygotski (1935)VYGOTSKI, Lev Semionovich. Умственное развитие детей в процессе обучения. Moscou: Editora Pedagógica e Educacional do Estado, 1935. Disponível em: <http://psychlib.ru/mgppu/VUR/VUR-1935.html>. Acesso em: 08 set. 2021.
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enfatizou o valor da instrução – obutchenie –, processo intencional, consciente e planejado visando o ensino e a aprendizagem, no qual quem instrui tem a responsabilidade de organizar o meio social educativo, de modo a contribuir, deliberadamente, para o processo de desenvolvimento de quem aprende.
Nos últimos anos de sua vida, o autor deu destaque a esse conceito por meio da produção de alguns textos sobre o tema, que, após sua morte, foram reunidos e publicados no livro Desenvolvimento mental de crianças no processo de instrução (Vygotski, 1935VYGOTSKI, Lev Semionovich. Умственное развитие детей в процессе обучения. Moscou: Editora Pedagógica e Educacional do Estado, 1935. Disponível em: <http://psychlib.ru/mgppu/VUR/VUR-1935.html>. Acesso em: 08 set. 2021.
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). Dentre esses textos, destacam-se O problema da instrução e do desenvolvimento mental na idade escolar, Instrução e desenvolvimento na idade pré-escolar, A dinâmica do desenvolvimento mental do escolar e a instrução e Sobre a análise pedológica do processo pedagógico. Em todos esses textos, o autor mostra o papel da instrução como elemento que pode promover o avanço do desenvolvimento.
Na obra citada (1935), em Pensamento e linguagem (2001VYGOTSKI, Lev Seminovitch. Pensamiento y lenguaje. In: VYGOTSKI, Lev Seminovitch. Obras Escogidas. Tomo II. Madrid: Machado Libros, 2001. P. 9-348.; 2007VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Pensamiento y Habla. Buenos Aires: Colihue, 2007.) e nos textos sobre pedologia, Vigotski introduziu um outro conceito, que, apesar de não estar no centro do seu núcleo teórico e, portanto, não se constituir em um dos pilares de sua teoria, é provavelmente um dos mais conhecidos e difundidos conceitos do autor. Trata-se do conceito de zona de desenvolvimento proximal ou iminente (Prestes, 2012PRESTES, Zoia. Quando Não É Quase a Mesma Coisa: traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.).
Concordo com Tudge (1999)TUDGE, Jonathan. Discovering Vygotsky: a historical and developmental approach to his theory. In: VERESOV, Nikolai. Undiscovered Vygotsky: etudes on the pre-history of cultural-historical psychology. Frankfurt am Main, Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Wien: Peter Lang, 1999. P. 11-17. que os problemas advindos da recepção do trabalho de Vigotski tanto na antiga União Soviética, onde os seis volumes das Obras escolhidas do autor só foram publicados nos anos 1980, quanto no Ocidente, onde no início dos anos 1990 só havia sido publicado o primeiro volume da coleção, permitiram que o conceito de zona de desenvolvimento proximal, apresentado na tradução de versão reduzida do livro Pensamento e Linguagem, publicada em 1962, nos Estados Unidos e na coletânea de textos de Vigotski intitulada de Mind in society, publicada originalmente, também naquele país, em 1978, ganhasse uma dimensão maior do que tem, na realidade, no sistema teórico-conceitual de Vigotski. Tal conceito passou a ser um dos mais conhecidos do autor principalmente nos meios educacionais, tendo sido utilizado para justificar e criar a metáfora dos andaimes, formas pelas quais professores, outros adultos ou crianças mais experientes prestam assistências a crianças menos avançadas em seus processos de desenvolvimento intelectual.
Ao analisarmos, atualmente, tal conceito de modo articulado e situado historicamente com o conjunto da produção de Vigotski que temos disponível, percebemos que ele foi introduzido como parte dos esforços do autor em produzir uma concepção materialista dialética (Vygotski, 1996VYGOTSKI, Lev Seminovitch. El problema de la edad. In: VYGOTSKI, Lev Seminovitch. Obras Escogidas. Tomo IV. Madrid: Visor, 1996. P. 251-273., p.255) da ontogênese humana, resultando numa compreensão do desenvolvimento da personalidade consciente como um processo dialético complexo marcado por avanços e retrocessos, com momentos estáveis e momentos críticos, incrementos quantitativos e saltos de qualidade, imbricamento entre processos internos e externos e o destaque para processos de superação de limites. O conceito de zona de desenvolvimento proximal foi introduzido, nesse contexto, por Vigotski com a finalidade de “[…] evidenciar um lugar e um momento importante no processo de desenvolvimento infantil” (Claiklin, 2003CLAIKLIN, Seth. The Zone of Proximal Development in Vygotsky’s: analysis of learning and instruction. In: KOZULIN, Alex; GINDIS, Boris; AGEYEV, Vladimir S; MILLER, Suzanne. Vygotsk’s Educational Theory in Cultural Context. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2003. P. 39-64., p. 45-46, tradução nossa) e refere-se
[…] às funções em processo de maturação que são relevantes para o próximo período etário e que fornecem os meios para atuar em situações colaborativas que não poderiam ser alcançadas de forma independente. Tais funções não são criadas na interação; em vez disso, a interação fornece condições para identificar sua existência e a extensão em que se desenvolveram
(Claiklin, 2003CLAIKLIN, Seth. The Zone of Proximal Development in Vygotsky’s: analysis of learning and instruction. In: KOZULIN, Alex; GINDIS, Boris; AGEYEV, Vladimir S; MILLER, Suzanne. Vygotsk’s Educational Theory in Cultural Context. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2003. P. 39-64., p. 58, tradução nossa).
Os limites deste texto não permitem que ampliemos este debate. No entanto, ao analisarmos a concepção de educação em Vigotski, não podemos nos furtar de abordar os problemas advindos de interpretações limitadas e/ou distorcidas desse conceito, que é sem dúvida, o mais conhecido de Vigotski nos meios educacionais e chamar a atenção para a necessidade de se compreender e empregar o termo zona de desenvolvimento proximal para se referir ao fenômeno sobre o qual Vigotski estava discutindo, ou seja, o desenvolvimento infantil, a gênese social da personalidade consciente “[…] e encontrar outros termos (por exemplo, instrução assistida, andaime) para se referir a práticas como o ensino de um conceito de assunto específico, habilidade e assim por diante” (Claiklin, 2003CLAIKLIN, Seth. The Zone of Proximal Development in Vygotsky’s: analysis of learning and instruction. In: KOZULIN, Alex; GINDIS, Boris; AGEYEV, Vladimir S; MILLER, Suzanne. Vygotsk’s Educational Theory in Cultural Context. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2003. P. 39-64., p. 59, tradução nossa, grifos do autor).
Em coerência com as formulações mais avançadas de Vigotski acerca da dialética do humano, é correto afirmar que é papel da instrução promover o desenvolvimento do aluno como um ser humano omnilateral, uma personalidade humana consciente e não unicamente o seu desenvolvimento intelectual. Do mesmo modo, quando Vigotski utiliza o conceito de zona de desenvolvimento proximal, é necessário que atentemos para o fato de que a letra D da sigla zona de desenvolvimento proximal significa o desenvolvimento do ser humano como uma personalidade consciente.
Ressalto também que apesar da atenção dada por Vigotski ao conceito de instrução no último período de sua produção científica, a riqueza da concepção de educação presente na teorização do autor não pode ser reduzida ao conceito de instrução, muitas vezes, inclusive, compreendido de forma unilateral, ora como ensino, ora como aprendizagem e nem o conceito de desenvolvimento reduzido à aquisição de uma determinada quantidade de conteúdos escolares por parte do aluno, esquecendo que, para Vigotski, o desenvolvimento em questão é o complexo processo de gênese social da personalidade consciente.
Diferente das concepções clássicas de processo educativo, que tendem a privilegiar um de seus polos, ao centrar o processo educativo ora no professor, ora no aluno, Vigotski, de modo coerente com a sua concepção de educação como prática e caminho para a liberdade, compreende o processo educativo como uma totalidade, uma síntese dialética formada por três elementos: o professor, o aluno e o meio social educativo, no qual todos são ativos. “O processo educativo, portanto, é trilateralmente ativo: o aluno é ativo, o professor e o meio existente entre eles são ativos” (Vigotski, 2003VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003., p. 79).
Outra proposição teórica de Vigotski que pode potencializar a sua concepção de educação como prática e caminho para a liberdade é a concepção de professor. Se para Vigotski, educar é organizar a vida, o professor “[…] é o organizador do meio social educativo, o regulador e controlador de suas interações com o educando” (Vigotski, 2003VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003., p. 76). No texto Prólogo à versão russa do livro de Thorndike: princípios de ensino baseados na psicologia, Vigotski ressalta que o professor não é o motor do processo educativo, ele é o condutor, o intelectual que organiza e conduz o processo em diálogo e compartilhamento com os seus alunos, e, utilizando a metáfora do condutor japonês e do maquinista do bonde, afirma que o professor não precisa ser o cavalo que puxa a carruagem, mas o cocheiro que a conduz. Cabe a ele criar as possibilidades para que a instrução ocorra, mas ele não precisa fazer isso sozinho, os esforços são compartilhados e as responsabilidades também.
É muito frequente no Brasil a ideia de que Vigotski concebeu o professor como mediador. Não há dúvidas de que um dos papéis da escola seja a transmissão dos conhecimentos, no sentido de socializá-los e assim, permitir aos alunos o acesso à riqueza da cultura acumulada pela humanidade. Nesse caso, o professor também cumpre a função de mediador entre o aluno e o conhecimento sistematizado, mas como vimos, não foi esse o papel que Vigotski reservou ao professor. Em coerência com a sua concepção de educação como prática e caminho para a liberdade, o autor reservou um papel de maior importância e responsabilidade para o professor – ele é o organizador das relações sociais vividas pelos alunos na escola –, sendo a relação com o conhecimento apenas uma dessas relações. Podemos concluir, então, que diante da concepção de educação de Vigotski, o conceito de professor como mediador mostra-se limitado, reduzido, por focar quase que exclusivamente no conteúdo do conhecimento, passando, inclusive, a ideia de que o professor é o detentor, o possuidor do conhecimento acumulado pela humanidade e que atua como uma ferramenta de acesso ao conhecimento para os alunos.
O conceito de meio social educativo é outro construto crítico de Vigotski sobre a educação escolar. De um modo geral, as teorias da educação compreendem que o processo educativo é formado por dois elementos: o professor e o aluno. Vigotski, na sua tentativa de contribuir para uma educação como prática e caminho para a liberdade, acrescenta um terceiro elemento na fórmula do processo educativo, o meio social educativo, compreendido como a organização consciente pelo professor, em ação combinada com os alunos, das relações sociais vividas na escola, de modo que possa interferir deliberadamente em seus processos sociais de desenvolvimento como personalidades conscientes.
Em nossa perspectiva, o conceito de instrução elaborado por Vigotski, e comentado anteriormente, permite unir dialeticamente os três elementos do processo educativo – o professor, o aluno e o meio social educativo, enfatizar o papel do professor como o organizador do meio social educativo e destacar o papel da intencionalidade pedagógica.
Outros conceitos de Vigotski, como imitação e forma ideal, este último ainda pouco discutido entre os estudiosos do autor, também poderão potencializar a relação entre instrução e desenvolvimento da personalidade consciente.
O conceito de forma ideal foi apresentado e desenvolvido por Vigotski em uma conferência sobre pedologia, conhecida como a quarta conferência ou quarta aula (Vigotski, 2017VIGOTSKI, Lev Seminovitch. 7 aulas de L. S. Vigotski: sobre os fundamentos da pedologia. Rio de Janeiro, RJ: E-papers Serviços Editoriais Ltda, 2017.), proferida nos últimos anos de sua vida. Na perspectiva do autor, os seres humanos, desde o início dos seus processos de formação social como uma personalidade consciente, convivem com outras pessoas que já estão em fases mais avançadas de desenvolvimento. Tal relação social proporciona à pessoa no início de seu processo de desenvolvimento uma forma ideal, uma forma de modelo, que de algum modo, representa onde ela pode chegar, mais ainda não chegou.
Todos esses conceitos elaborados por Vigotski, enfatizando o caráter histórico, social, ativo e relacional do ato educativo, contribuem para a efetivação de uma educação como prática e caminho para a liberdade. Cabe ao professor organizar o meio social educativo para que ele se torne potente em formação e transformação para alunos e professores como seres humanos em processos de formação e instrução.
Destaco, ainda, a riqueza de ideias e conceitos de Vigotski sobre o caráter ativo, criativo e colaborativo do ato educativo, presentes na obra seminal de Stetsenko (2017)STETSENKO, Anna. The Transformetive Mind: explanding Vygotsky’s approach to development and education. New York: Cambridge University Press, 2017.. Considero que as proposições e conceitos críticos sistematizados pela autora podem potencializar a concepção de educação em Vigotski como prática e caminho para a liberdade, na medida em que ensejam uma escola viva, em constante movimento, com envolvimento ativo de alunos e professores com a realidade e o compromisso com a transformação social. Afinal, como afirmou Vigotski (2003, p. 303)VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003., “[…] o processo pedagógico é a vida social ativa, é a troca de vivências combativas”.
Considerações Finais
O artigo teve por objetivo analisar e discutir a concepção de educação presente na obra de Vigotski, procurando articular as formulações do autor acerca da temática com o seu projeto de ciência psicológica, compreendendo-o como um sistema teórico-conceitual de base materialista dialética, elaborado para explicar o processo de desenvolvimento do psiquismo humano. Partiu-se do pressuposto de que Vigotski, durante a toda a sua curta vida científica, dedicou-se a construir uma teoria psicológica de base materialista dialética, que possibilitasse a explicação do humano como um ser concreto, como síntese de múltiplas determinações. Tal projeto culminou na construção de um sistema amplo de conceitos críticos do qual o autor se valeu para compor a sua mais radical e avançada concepção do psiquismo humano, compreendido como o processo social de desenvolvimento do ser humano omnilateral, denominado por ele em seus últimos escritos de personalidade consciente.
Ao elaborar o seu sistema teórico-conceitual, Vigotski reservou um lugar especial para a educação. No dizer do autor (1991b), ela é a primeira palavra a ser mencionada. Também afirmou que o sistema por ele elaborado não precisaria se esforçar para extrair de suas leis as derivações pedagógicas, nem adaptar as suas teses à aplicação prática na escola, uma vez que a solução para o problema pedagógico está contida em seu núcleo teórico. Como vimos, em nossa perspectiva, ao fazer tal afirmação Vigotski deixa claro que a maior contribuição de sua teoria para a educação não são os construtos específicos que ele criou diretamente para a educação escolar, mas a sua explicação geral para a gênese social da personalidade consciente como fruto de múltiplas determinações, uma vez que nisso está o seu diferencial, o seu avanço na compreensão do psiquismo humano.
Em um período já mais avançado de seu trabalho científico, Vigotski afirmou que o desenvolvimento da personalidade constitui um caminho para a liberdade, numa clara menção de que o ser humano mais desenvolvido não é aquele que internalizou mais conhecimentos, que teve acesso à cultura clássica ou que tem mais memória ou mais inteligência. O ser humano mais desenvolvido é aquele que ao longo da sua vida vai se tornando cada vez mais livre. Também evidenciou em seus escritos que não estava se referindo à visão liberal de liberdade, mas a um conceito enraizado na tradição marxista e formulou princípios éticos, como os apontados por Delari Júnior (2013c)DELARI JÚNIOR, Achillles. Princípios Éticos em Vigotski: perspectivas para a psicologia e a educação. Nuances: estudos sobre Educação, Presidente Prudente, SP, v. 24, n. 1, p. 45-63, jan. /abr. 2013c. Disponível em: <https://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/2153>. Acesso em: 08 de set. 2021.
https://revista.fct.unesp.br/index.php/N...
, que podemos tomar como critérios para a organização de práticas sociais com vistas a uma educação para a liberdade.
Na perspectiva de Vigotski, o processo de desenvolvimento da personalidade e a educação, compreendida em termos de vospitanie (formação) e obuchenie (instrução), formam uma unidade dialética. Não há desenvolvimento da personalidade humana consciente sem educação. Por outro lado, educar significa intervir no processo de desenvolvimento do ser humano, organizando a vida na escola e na sociedade de modo a edificar a liberdade de ação e pensamento.
Vimos que para Vigotski, o que explica a formação da personalidade consciente é o conjunto das relações sociais. Nesse sentido, a educação escolar, relação social organizada e semanticamente mediada entre alunos e professores é apenas uma das relações pelas quais se dá o processo de formação (vospitanie) dos alunos. No entanto, apesar de ser apenas uma dentre o conjunto das relações sociais, ganha potência pelo fato de ser organizada e planejada de forma consciente (obutchenie), visando contribuir intencionalmente para o processo de formação de todos que dela participam. Para Vigotski, o professor é o organizador do meio social educativo, o que requer uma sólida formação teórica, intencionalidade e diretividade.
As ideias de Vigotski acerca da relação entre instrução e desenvolvimento, como um processo deliberado, realizado por pessoas de forma ativa e em constante colaboração em busca de objetivos almejados, permitem-nos compreender não só a educação escolar, mas o complexo processo de formação social da personalidade consciente. Para Vigotski, o desenvolvimento que precisa ser potencializado por meio da atividade social de educação escolar é o desenvolvimento social da personalidade consciente. Logo, uma educação escolar que pretenda contribuir com e para esse desenvolvimento não pode centrar o processo educativo na atividade individual do aluno, na competição, nem na obtenção de rankings, mas na atividade coletiva, uma vez que é na cooperação de consciências que todos avançam.
Uma proposta de educação escolar fundamentada no sistema teórico-conceitual de Vigotski, não é escolanovista, interacionista ou sócio interacionista, como frequentemente é nomeada. Por outro lado, também não é bancária, centrada na transmissão de conhecimentos, na qual o aluno é puro espectador e não sujeito ativo e participativo. Ela é dialética e dialógica e visa a emancipação de todos alunos e professores, uma vez que ambos se formam na e pela relação social.
De acordo com a análise aqui apresentada, a teoria de Vigotski contém uma concepção profundamente dialética do ato social educativo, compreendendo-o como prática e caminho para liberdade. As categorias teóricas gerais que formam o sistema teórico-conceitual do autor, bem como as categorias teóricas específicas criadas para explicar o ato educativo, sinalizam formas de organização da vida na escola de modo a caminhar nessa direção. Esse horizonte, no entanto, ainda está muito longe de ser alcançado, uma vez que, como afirmou o próprio Vygotski (1994, p. 182)VYGOTSKI, Lev Seminovitch. The socialist alteration of man. In: VYGOTSKY, Lev Semionovitch. The Vygotsky Reader. Edited by Rene van der Veer and Jaan Valsiner. Oxford; Cambridge, UK: Blackwell, 1994. P. 175-184., citando Engels, ainda vivemos no reino da necessidade. A construção do reino da liberdade constitui enorme desafio imposto à educação, aos professores de todo o mundo e à classe trabalhadora. Para isso, além do nosso trabalho pedagógico, precisamos nos engajar na luta da nossa classe profissional e social. Assim, dialeticamente, contribuiremos desde já, para a transformação que queremos.
Como nos lembra Freitas (2013, p. 79)FREITAS, Luiz Carlos de. A Luta por uma Pedagogia do Meio: revisitando o conceito. In: PISTRAK, Moisey (Org.). A escola comuna. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013. P. 9-101., “[…] sob o capitalismo a educação é subsumida na instrução […] e a formação prevê como objetivo central a integração do estudante ao sistema social vigente, livre de análise de suas contradições”, sem evidenciar e formular a crítica ao modelo capitalista de produção. Soma-se a isso a observação de Mészaros (2008, p. 35)MÉSZAROS, István. A Educação para Além do Capital. 2 ed. Tradução: Isa Tavares. São Paulo: SP: Boitempo, 2008., de que a escola não apenas fornece os conhecimentos e a mão de obra especializada para o capital, como também gera e transmite um quadro de valores que “[…] legitima os interesses dominantes”, como se não pudesse haver outra forma de gestão da sociedade, que não seja essa de exploração do homem pelo homem. Nesse sentido, como observa Freitas (2013)FREITAS, Luiz Carlos de. A Luta por uma Pedagogia do Meio: revisitando o conceito. In: PISTRAK, Moisey (Org.). A escola comuna. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013. P. 9-101., ao examinar as contribuições dos pioneiros da educação soviética e que considero pertinente atentarmos no momento em que examinamos as contribuições da concepção de educação presente na obra de Vigotski,
É preciso, pois, separarmos, radicalmente, os lugares dos quais falamos. Uma coisa é pensar os espaços de luta nas escolas, com sua centralidade sob o sistema capitalista ao qual se espera que a criança se integre ‘naturalmente’; outra, completamente diferente, é pensarmos a formação, a educação e a instrução sob o sistema comunista, pela via da transição socialista – um caminho a ser criado, que precisa não só de lutadores, mas também de construtores desta nova sociedade. Não se pode pensar em um com os pés no outro
(Freitas, 2013FREITAS, Luiz Carlos de. A Luta por uma Pedagogia do Meio: revisitando o conceito. In: PISTRAK, Moisey (Org.). A escola comuna. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013. P. 9-101., p. 79-80, grifos do autor).
Sabemos dos limites da contribuição de uma teoria nesse processo de construção da nova sociedade que queremos, mais justa, igualitária e inclusiva, mas como afirmou Mészaros (2009, p. 277)MÉSZAROS, István. Estrutura Social e Formas de Consciência: a determinação social do método. Tradução: Luciana Pudenzi, Francisco Raul e Cornejo e Paulo César Castanheira. São Paulo, SP: Boitempo, 2009., uma “[…] prática revolucionária é inconcebível sem a contribuição de uma teoria revolucionária”. Nessa perspectiva, a concepção de educação de Vigotski, ainda pouco estudada e muito menos praticada, pode se converter em um componente da luta emancipatória, o que, evidentemente, requer compromisso político de todos que a adotam, com o projeto de formação de um novo homem para uma nova sociedade, bem como uma postura ativa na luta por uma escola pública, gratuita, laica e inclusiva e por políticas públicas de educação que possibilitem a materialização da educação como prática da liberdade.
No ano em que o Brasil comemora os 100 anos do nascimento de Paulo Freire, eminente educador brasileiro, que concebia a educação como prática da liberdade, este artigo que analisou e discutiu a concepção de educação presente na obra de Vigotski, encerra com o reconhecimento de Freire à potência crítica das formulações sobre educação de Lev Semionovitch Vigotski.
É preciso que a escola progressista, democrática, alegre, capaz, repense toda essa questão da relação entre corpo consciente e mundo. Que reveja a questão da compreensão do mundo, enquanto produzindo-se historicamente no mundo mesmo e também sendo produzida pelos corpos conscientes em suas interações com ele. Creio que desta compreensão resultará uma nova maneira de entender o que é ensinar, o que é aprender, o que é conhecer, de que Vygotsky não pode estar ausente
(Freire, 1994FREIRE, Paulo. Professora Sim, Tia Não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d’água, 1994., p. 73, grifos do autor).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Maio 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
19 Jul 2021 -
Aceito
01 Nov 2021