Open-access METODOLOGIAS ATIVAS COMO SIGNIFICADO TRANSCENDENTAL DE CURRÍCULOS DE FORMAÇÃO MÉDICA

METODOLOGÍAS ACTIVAS COMO SIGNIFICADO TRANSCENDENTAL DE CURRÍCULOS DE FORMACIÓN MÉDICA

RESUMO:

O objetivo deste trabalho é mostrar como um currículo é significado pelas teorias pós-críticas e, a partir desse modo específico de interpretação, buscar problematizar os discursos que se sobressaem no currículo oficial médico de uma Instituição de Ensino Superior pública, que está baseado no uso das Metodologias Ativas. Para o alcance desse objetivo, fundamentamos nosso referencial nos estudos pós-críticos sobre currículo e analisamos documentos que o orientam. O exercício de problematização foi realizado mediante o emprego da análise de discurso de inspiração foucaultiana. O resultado alcançado foi a possibilidade de se enxergar o currículo analisado para além de um instrumento envolvido em um processo de ‘revelação’ de metodologias e de sujeitos considerados ideais. Significamos o(a) médico(a) como efeito da disputa entre diferentes discursos presentes nesse currículo e mostramos como esse(a) profissional é posicionado(a). Concluímos este trabalho explicitando pontos-chave de estudos sobre currículo na perspectiva pós-crítica, visando subsidiar futuras investigações.

Palavras-chave: Currículo; Metodologias Ativas; Educação Médica

RESÚMEN:

El objetivo de este trabajo es mostrar cómo un currículo es representado por teorías poscríticas, y desde este método específico de interpretación, tratamos de problematizar los discursos que se destacan en el currículo médico oficial de una institución pública de educación superior, que se basa en el uso de metodologías activas. Para alcanzar este objetivo, basamos nuestro marco en estudios poscríticos sobre el plan de estudios y analizamos los documentos que guían este plan de estudios. El ejercicio de problematización se llevó a cabo utilizando el análisis del discurso de Foucault. El resultado arrojó la posibilidad de comprender el currículo analizado, así como entenderlo como un instrumento involucrado en un proceso de “revelación” de metodologías y materias consideradas ideales. Definimos al “doctor” como un producto de la disputa entre los diversos discursos presentes en este plan de estudios y mostramos cómo se posiciona este profesional. Concluimos este trabajo explicando algunos puntos clave de los estudios curriculares desde la perspectiva poscrítica con el objetivo de apoyar la investigación futura.

Palabras clave: Currículo; Metodologías Activas; Educación Médica

ABSTRACT:

The objective of this work is to show how a curriculum is signified by post-critical theories, and from this specific method of interpretation, we try to problematize the discourses that stand out in the official medical curriculum of a public institution of higher education, which is based on the use of active methodologies. To reach this goal, we base our framework on post-critical studies on curriculum and analyze the documents that guide this curriculum. The problematization exercise was carried out using Foucault's discourse analysis. The result yielded the possibility of understanding the curriculum that was analyzed as well as understanding it as an instrument involved in a process of “revelation” of methodologies and subjects considered ideal. We define the “doctor” as a product of the dispute between the various discourses present in this curriculum and show how this professional is positioned. We conclude this work by explaining some key points of curricular studies from the post-critical perspective with the goal of supporting future research.

Keywords: Curriculum; Active Methodologies; Medical Education

INTRODUÇÃO

Nas últimas duas décadas, as discussões no campo da educação médica no Brasil têm enfatizado questões como proposta curricular e modelo pedagógico. Nunes e Nunes (2005) afirmam que isso vem ocorrendo em virtude de a educação hoje exigir postura aberta a mudanças e revisão de paradigmas. A adoção desse tipo de postura é justificada pelos pesquisadores da área pela necessidade de superar um modelo tradicional de ensino, fundamentado principalmente no paradigma flexneriano. Vale lembrar que esse paradigma (orientador da reforma universitária de 1968) foi responsável por focar o aprendizado na transmissão do conhecimento pelo(a) professor(a) e tornar obrigatório o ensino centrado no hospital, oficializar a separação entre ciclo básico e profissional e imprimir características mecanicistas, biologicistas e individualizantes ao ensino médico (NOGUEIRA, 2009). Como observam Pagliosa e Da Ros (2008):

Mesmo que consideremos muito importantes suas contribuições para a educação médica, a ênfase no modelo biomédico, centrado na doença e no hospital, conduziu os programas educacionais médicos a uma visão reducionista. Ao adotar o modelo de saúde-doença unicausal, biologicista, a proposta de Flexner reserva pequeno espaço, se algum, para as dimensões social, psicológica e econômica da saúde e para a inclusão do amplo espectro da saúde, que vai muito além da medicina e seus médicos. (PAGLIOSA e DA ROS, 2008, p. 496).

Objetivando superar essa fragmentação da formação médica, ganha cada vez mais destaque a enunciação sobre a necessidade de que a organização curricular e o conteúdo programático desenvolvido nas escolas médicas assumam uma proposta interdisciplinar. Tal proposta visa desvincular-se “de um currículo fechado e estanque, conteudista, biologicista, com pouca, ou nenhuma, relação entre as diferentes áreas do conhecimento e ausente de uma visão unificada do corpo humano” (CARABETTA JÚNIOR, 2016, p. 114). Esse é um tipo de discurso que se justifica pela afirmativa de que hoje “o acúmulo de informações de nada vale se estiver isolado da capacidade de resolver novos problemas que surgem diariamente” (NUNES e NUNES, 2005, p. 180).

A esse discurso é acrescentada a orientação de que os objetivos educacionais desses currículos sejam definidos de acordo com a perspectiva do construtivismo,

[...] em que a aprendizagem passa a ser caracterizada como uma construção realizada pelo sujeito por meio das relações que estabelece entre as informações que lhe são apresentadas, entre elas com seus conhecimentos prévios e com seu meio social, o que implica uma nova realidade educacional com a ação do aluno para a criação de algo novo por meio do próprio fazer. (CARABETTA JÚNIOR, 2016, p. 114).

Nesse contexto, as exigências são de um trabalho em que a aprendizagem seja ‘ativa’, isto é, “construída pelo aluno a partir de interações dialógicas com o professor, com os colegas e com os diferentes conteúdos” (CARABETTA JÚNIOR, 2016, p. 114). Observamos com isso o deslocamento do foco da ‘simples reprodução de conhecimentos’ para o desenvolvimento de competências e habilidades “que devem caminhar junto com a construção do conhecimento socialmente estabelecido” (CARABETTA JÚNIOR, 2016, p. 115). Ao buscar atender a essas recomendações, coloca-se em pauta, nas discussões sobre educação médica no Brasil, a necessidade de reformulação curricular e do modelo pedagógico.

É válido salientar que as justificativas para esse processo de reformulação são recorrentes ao contexto da Reforma Sanitária no Brasil, um movimento sócio-político que se caracterizava por lutar contra a ditadura e contra a forma de atenção do complexo médico-industrial. Esse movimento contribuiu para a criação de um sistema público de saúde no Brasil, pautado numa concepção ampliada de saúde. Sobre a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e sua conexão com o processo de reformulação dos currículos médicos, Nogueira (2009) afirma que

O SUS foi implementado com a criação do Programa Saúde da Família (PSF), escolhido pelo Ministério da Saúde como a estratégia inicial de reorientação do modelo assistencial. A expansão do PSF trouxe em seu bojo alguns desafios conceituais, como a necessidade de buscar uma prática clínica ampliada e integradora das dimensões biopsicossociais do adoecimento e capaz de promover o cuidado em saúde mediante o trabalho de uma equipe multidisciplinar. A partir daí, uma constatação se evidenciou: as faculdades de Medicina não estão formando esse tipo de profissional. Assim, tornou-se imprescindível adotar medidas voltadas à formação e à capacitação desse profissional por meio da viabilização de mudanças na graduação que atendam aos interesses apontados por um novo modelo de atenção à saúde (NOGUEIRA, 2009, p. 264).

No decorrer das mudanças desencadeadas pelo SUS e no intuito de formar profissionais de acordo com seus princípios, em 2001, são estabelecidas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do curso de Graduação em Medicina (Resolução CNE/CES Nº 4, de 7 de Novembro de 2001); posteriormente, o Programa Nacional de Incentivo a Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (Promed) e o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) são, também, implantados com o objetivo de formar profissionais em um modelo de educação de acordo com a proposta do novo sistema público de atenção em saúde. O Promed, por exemplo, visava oferecer apoio técnico e financeiro às escolas médicas dispostas a desenvolver processos de mudança que levassem a “uma articulação com os serviços de saúde, à adoção de metodologias ativas de ensino-aprendizagem e a uma formação crítica e humanista do profissional médico” (NOGUEIRA, 2009, p. 265).

Desse modo, tanto esses programas, quanto as próprias DCNs, direcionam suas orientações para que os currículos médicos adotem “metodologias que privilegiem a participação ativa do aluno na construção do conhecimento e a integração entre os conteúdos” (BRASIL, 2001a, p. 5). Logo, estará aí a justificativa pela necessidade de mudanças nos currículos de graduação médica e a sugestão de uso das Metodologias Ativas (MAs). Entretanto, nem todos os cursos de Medicina no Brasil aderiram ao uso das MAs. As DCNs estabelecidas para os cursos de graduação médica em 2001 são reformuladas pela Resolução nº 03 de 20/06/2014 do Ministério da Educação que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a graduação em Medicina (BRASIL, 2014). Ao reafirmar objetivos semelhantes àqueles instituídos em 2001, essas novas DCNs parecem sinalizar que a proposta de 2001 não foi alcançada.

Sobre as novas DCNs, destacamos aqui o Capítulo III da resolução que estabelece recomendações sobre os Conteúdos Curriculares e o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de Graduação em Medicina. No artigo 26, a resolução estabelece que o curso deverá ser “centrado no aluno como sujeito da aprendizagem e apoiado no professor como facilitador e mediador do processo, com vistas à formação integral e adequada do estudante” (BRASIL, 2014, p. 12). Ao buscar garantir essa postura na relação professor/aluno(a), no artigo 29, item II e IV, orienta-se (assim como fora estabelecido nas DCNs em 2001) que o curso deve “utilizar metodologias que privilegiem a participação ativa do(a) aluno(a) na construção do conhecimento e na integração entre os conteúdos, assegurando a indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão”. Por meio do uso de metodologias ditas mais adequadas, o curso deve promover “a integração e a interdisciplinaridade em coerência com o eixo de desenvolvimento curricular” (BRASIL, 2014, p. 12).

Essas novas DCNs indicam que as exigências a uma proposta curricular e a um modelo pedagógico devem ir além da simples ilustração (NOGUEIRA, 2009), requerendo dos atores envolvidos no processo educacional a capacidade criativo-pragmática. Em decorrência dessa constatação, tem-se buscado cada vez mais colocar em prática metodologias de ensino e aprendizagem com possibilidade de desenvolver nos(as) alunos(as) tais competências (NUNES e NUNES, 2005). Nesse contexto, muitas pesquisas (ALMEIDA, 1997; LIMA JÚNIOR, 2002; MORÉ e GORDAN, 2004; NUNES e NUNES 2005; MITRE, 2008; GOMES, et. al., 2009; CEZAR, et. al., 2010; GOMES e REGO, 2011; e COSTA, 2016) têm defendido uma formação que incorpore MAs no processo ensino e aprendizagem de estudantes da Medicina. Dito de outro modo, essas pesquisas têm reiterado o discurso das MA como prática ideal para formação de um(a) profissional mais adequado(a) ao ato médico e às práticas de saúde, tal como requerido pelas DCN’s de Medicina.

Os discursos em torno das MAs indicam que elas são caracterizadas como um processo em que os estudantes desenvolvem atividades as quais necessitam de reflexão de ideias e desenvolvimento da capacidade de usá-las (FARIAS, 2015). Ademais, é definido por esses discursos que, para ser considerado bom método, ele deve ser:

Construtivista - se basear em aprendizagem significativa; Colaborativo - favorecer a construção do conhecimento em grupo; Interdisciplinar - proporcionar atividades integradas a outras disciplinas; Contextualizado - permitir que o educando entenda a aplicação deste conhecimento na realidade; Reflexivo - fortalecer os princípios da ética e de valores morais; Crítico - estimular o educando a buscar aprofundamento de modo a entender as limitações das informações que chegam até ele; Investigativo - despertar a curiosidade e a autonomia, possibilitando ao educando a oportunidade de aprender a aprender; Humanista - ser preocupado e integrado ao contexto social; Motivador - trabalhar e valorizar a emoção; Desafiador - estimular o estudante a buscar soluções (FARIAS, 2015, p. 146).

Farias (2015) afirma existir uma infinidade de métodos ativos de educação, sendo comum, na educação médica, referências à Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP - do inglês Problem Based Learning - PBL). De acordo com Nunes e Nunes (2005), a ABP guarda estreita relação com os pressupostos filosófico-pedagógicos de John Dewey, pois visa o desenvolvimento de cidadãos conscientes das realidades vividas e participantes de transformações baseadas num senso crítico.

Dewey (1959), ao afirmar a necessidade de se romper com a postura de mera transmissão de informações, na qual os estudantes assumem o papel de receptáculos passivos, preocupados apenas em memorizar conteúdos e recuperá-los quando solicitado - habitualmente, por ocasião de uma prova -, orienta-nos sobre a possibilidade da ascensão da ABP na educação médica. De fato, um dos aspectos cruciais da ABP é o processo educativo centrado no estudante, que permite que este seja capaz de se ‘tornar maduro’, e adquira graus crescentes de autonomia.

Quanto aos objetivos da ABP, esses foram definidos com ênfase no “desenvolvimento das habilidades do pensamento crítico, do entendimento, do aprender a aprender e do trabalho grupal e cooperativo” (DECKER e BOUHUIJS, 2009, p. 187). Segundo Putnam (2001), os objetivos educacionais da ABP direcionam os alunos para:

desenvolver uma abordagem sistemática para a solução de problemas da vida real utilizando habilidades mentais superiores, como aquelas relacionadas à resolução de problemas, ao pensamento crítico e à tomada de decisões; adquirir uma base ampla de conhecimentos integrados, que possam ser acessados e aplicados a diferentes situações; desenvolver habilidades para a aprendizagem autodirigida, identificando o que é preciso aprender, localizando e utilizando recursos apropriados, aplicando a nova informação/conhecimento na resolução de problemas [...]; desenvolver atitudes e habilidades necessárias para o trabalho efetivo em equipe [...]; adquirir o hábito permanente de abordar um problema com iniciativa e diligência, mantendo a propensão para aquisição dos novos conhecimentos e habilidades necessários para a sua resolução; desenvolver o hábito de autorreflexão e autoavaliação, que lhes permita considerar honestamente seus pontos fortes e suas fraquezas, bem como o estabelecimento de metas realísticas. (PUTNAM, 2001, p. 7, tradução nossa).

Seguindo esse mesmo entendimento, Araújo e Sastre (2009) afirmam que na ABP o aluno parte de problemas ou situações que objetivam gerar dúvidas, desequilíbrios ou perturbações intelectuais, com forte motivação prática e estímulo cognitivo, para evocar as reflexões necessárias à busca de adequadas escolhas e soluções criativas. Isso pode, segundo Penaforte (2001), estabelecer uma aproximação à proposta educativa formulada por John Dewey.

A leitura sobre a ABP e sobre as Mas, de modo geral, sugere-nos que um currículo médico, quando fundamentado em métodos ativos de aprendizagem, seria capaz de revelar, por meio de um processo transcendental ou de tomada de consciência, um(a) profissional médico(a) em sua essência, isto é, um(a) profissional dotado(a) de competências e habilidades específicas, como autonomia, capacidade crítica e reflexiva. Apesar de esse ser um discurso da formação médica acionado por muitos currículos e práticas de ensino e aprendizagem dentro e fora da educação médica, não reproduziremos ou reiteraremos o mesmo.

Pelo contrário, o objetivo neste trabalho é de o problematizar esse discurso, e para isso tomamos como objeto de análise o currículo oficial de graduação médica de uma Instituição de Ensino Superior (IES) pública, que está fundamentado nas MAs. Para o alcance desse objetivo, fundamentamos nossa análise a partir de referenciais teóricos da vertente pós-crítica dos estudos curriculares (sobretudo aqueles de inspiração foucaultiana). Para tornar mais clara essa tarefa, compusemos o texto em quatro tópicos, além desta introdução. No tópico primeiro, demarcamos um caminho metodológico que pudesse nos orientar na problematização de discursos a partir de um currículo médico fundamentado no uso das MAs. No segundo tópico, mostramos como os conceitos de poder, saber e discurso são acionados na dinâmica de um currículo, e como esse é significado pelas teorias pós-críticas; em seguida, no terceiro tópico, realizamos um exercício de problematização dos discursos que se sobressaem em um currículo de Medicina quando fundamentado nas MAs; e, no quarto e último tópico, apresentamos as considerações finais do texto.

PERCURSO METODOLÓGICO

O estudo aqui referido está ancorado no referencial pós-crítico dos estudos curriculares (sobretudo aqueles de inspiração foucaultiana). Essa perspectiva é caracterizada pelo questionamento feito ao “conhecimento (e seus efeitos de verdade e de poder), ao sujeito (e aos diferentes modos e processos de subjetivação), aos textos educacionais (e as diferentes práticas que estes produzem e instituem)” (PARAÍSO, 2004, p. 287). Tendo por base essa postura problematizadora, buscamos analisar os discursos que se sobressaem em um currículo de graduação médica de uma Instituição de Ensino Superior (IES) pública, que está baseado no uso das MAs.

Ao tomar como foco do estudo um currículo específico, priorizamos a análise de documentos textuais (impressos e eletrônicos) norteadores do curso, tais como as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) de Medicina (BRASIL, 2001ae 2014) e o Projeto Político do Curso (IES, 2017). Esses documentos oficiais compreendem os recursos para captura de componentes não verbais dos eventos e das práticas. Segundo Flick (2009), os documentos não são somente uma simples representação dos fatos, alguém os produziu visando algum objetivo. Os documentos “devem ser vistos como uma forma de contextualização da informação. Em vez de usá-los como contêineres de informações, devem ser vistos e analisados como dispositivos comunicativos metodologicamente desenvolvidos na construção de versões sobre eventos” (FLICK, 2009, p. 234).

Os documentos aqui referidos foram examinados mediante o uso da análise de discursos de inspiração foucaultiana. Aqui é válido destacar que o conceito de ‘discursos’, em si, já compreende uma dimensão da prática, na medida em que os interpretamos não como

um puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras. [...] analisando discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes das palavras e das coisas e separar um conjunto de regras próprias à prática discursiva [....]. Tarefa que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (de elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam (FOUCAULT, 2005, p. 64).

Ao empregar o conceito de ‘discursos’ para se referir às relações que propiciam o processo de formação dos objetos, Foucault (2005) disponibiliza-nos uma ferramenta analítica. Nesse trabalho, o uso do conceito de ‘discurso’ nos permitiu analisar (por meio de documentos) como se estabelece a formação do(a) profissional médico(a) demandada pelo currículo de Medicina de uma IES pública. Nesse processo analítico, em vez de “buscar o sentido profundo”, centramos nosso interesse na “rede de relações que produziu a essência e fez com que ela parecesse natural”, tal como recomendado por Caldeira (2016, p. 74). Olhando desde os documentos aqui analisados, isso significa que nosso interesse esteve centrado na ‘rede de relações discursivas’ que tornou possível pensar um currículo de Medicina fundamentado nas MAs como sendo uma proposta ‘salvacionista’, capaz de revelar um(a) profissional médico(a) considerado(a) ideal.

Nessa mesma linha de raciocínio, Paraíso (2014) afirma que realizar a análise do discurso significa “mostrar as regras de aparecimento de um discurso” (p. 38). Ou, ainda, como apontado por Foucault (2015), significa “[...] determinar as condições de sua existência, de fixar da maneira mais justa os seus limites, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados aos quais ele pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação ele exclui” (p. 97). Desse modo, o uso do procedimento aqui destacado foi fundamental para ‘descrever analiticamente’ (PARAÍSO, 2014) os discursos e mostrar o que eles fazem e produzem a partir de um currículo de Medicina fundamentado pelas MAs. Para tanto, os discursos foram analisados como envoltos em relações de saber-poder e como produtores de significados, de práticas, de sujeitos, de identidades e de diferenças.

Como proposto por Veiga-Neto (2016), os discursos foram analisados em sua “positividade”, isto é, “naquilo que eles são capazes de produzir, em termos de efeitos” (VEIGA-NETO, 2016, p. 65). Ao interpretar os discursos como práticas que nos constituem como sujeitos de determinados tipos, Foucault (2005) alerta que, certamente, “os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os tornam irredutíveis à língua e ao ato da fala” (p. 56). Como proposto por Foucault, é exatamente esse ‘mais’ que procuramos fazer aparecer na análise deste trabalho. Para realizar essa tarefa foi necessário compreender antes como um currículo é significado pelas teorias pós-críticas (tal como descrevemos no tópico a seguir), para em seguida fazer o exercício da problematização dos discursos que se sobrepõem em um currículo de graduação médica de uma IES pública.

SIGNIFICANDO UM CURRÍCULO A PARTIR DAS TEORIAS PÓS-CRÍTICAS

Para significar um currículo em perspectiva pós-crítica, tomamos como ponto de partida e inspiração o conceito de ‘epistemologia social’ para diferir dos sentidos de um currículo pensado a partir da ‘filosofia da consciência’ (POPKEWITZ, 2008). Temos aqui dois caminhos (formas de compreensão) distintos que nos levam a diferentes conceitos de currículo. Dito de outro modo, temos duas formas de raciocínio sobre o conhecimento histórico que estariam implicadas em produzir formas de regulação social que determinam o modo como um currículo é organizado, definindo que tipo de conhecimento deve ser incorporado e qual deve ser excluído (POPKEWITZ, 2008). Por ‘filosofia da consciência’, compreende-se a ideia moderna de que o conhecimento deriva de uma consciência (ideia a partir da qual poderíamos desenvolver um conhecimento libertador). Essa filosofia consiste em “considerar a maneira como as pessoas e os eventos mudam ao longo do tempo, focalizando a linguagem como expressiva e descritiva da direção e propósitos da mudança social” (POPKEWITZ, 2008, p. 180).

Nessa acepção, a linguagem é entendida apenas como uma transmissão do discurso científico, artístico e cultural para o campo da educação, tratando-se apenas de uma questão de ‘transposição didática’ (SILVA, 1996). Ou, ainda, o discurso, nessa perspectiva específica, é o produto das operações mentais, em contínuo desenvolvimento; ele “não tem nada a ver com relação de poder, nem com os saberes produzidos nessas relações, nem com modos de assujeitamento. O discurso não produz o real, nem os sujeitos, nem as significações” (CORAZZA, 2001, p.92). Nesse momento, poder e saber são concebidos como uma relação externa aos discursos no currículo, apesar de nele implicados. Partindo da relação entre esses conceitos, o currículo é interpretado desde a perspectiva da ‘filosofia da consciência’ como instrumento envolvido em um processo de ‘reprodução social’ ou de ‘revelação do sujeito em sua essência’ (SILVA, 1996), algo próximo do que Cherryholmes (1992) definiu como ‘natureza dialética do currículo’3

Quando o currículo é problematizado como envolvido no processo de ‘reprodução’, ressalta-se a noção de que o conhecimento (o saber) corporificado no currículo estaria contaminado, via ideologia, pelo poder (SILVA, 1996). O poder regularia a distribuição do conhecimento, “distorcendo, desviando, desvirtuando elementos da vida social e educacional, que na sua ausência poderiam aparecer em sua essência original, não contaminada.” (SILVA 1996, p. 167). Esse processo de construção curricular resultaria na caracterização do sujeito como um ser ‘alienado’. De outro modo, quando considerado como envolvido em um processo de ‘revelação’, o currículo é interpretado como uma “operação destinada a extrair, a fazer emergir uma essência humana que preexista a linguagem, ao discurso e a cultura” (SILVA 1996, p. 165). Nesse momento, o saber aparece como uma espécie de antídoto ao poder e, pelos procedimentos de uma pedagogia crítica, possibilitaria a caracterização de um sujeito livre, emancipado e autônomo (SILVA, 1996).

Tal modo de interpretar o currículo se aproxima da compreensão de muitos autores(as) sobre o que seria um currículo de Medicina fundamentado nas MAs. Esses autores(as) têm descrito e prescrito propostas curriculares na área da saúde e, em específico, da Medicina, baseadas nessas MAs. Os resultados de suas pesquisas defendem que as MAs permitiriam “introduzir maior eficiência nas práticas de ensino-aprendizagem e formar profissionais mais críticos” (ALMEIDA, 1997, p. 38). Ao mesmo tempo, essas pesquisas apontam as MAs como: “um novo paradigma que prepara os alunos para aprender a aprender e assumir uma postura mais crítica” (LIMA JÚNIOR, 2002, p. 214); “uma proposta de mudança curricular capaz de mudar o perfil do egresso da escola médica” (GOMES e REGO, 2011, p. 563). De acordo com o pensamento desses(as) autores(as,) as práticas pedagógicas fundamentadas pelas MAs, na área médica, estariam voltadas a preparar o(a) estudante para tomar consciência de seu mundo e atuar intencionalmente para transformá-lo. Em síntese, esses olhares significam o currículo como um instrumento de ‘revelação’.

Entretanto, esse modo de interpretar o currículo ou os efeitos, a partir de uma ‘filosofia da consciência’, é ampliado e ao mesmo tempo modificado quando o analisamos a partir da ideia de ‘epistemologia social’. Essa forma de raciocínio, oriunda de teorizações pós-críticas, consiste num “mapeamento conceitual que descreve mudanças na forma como os objetos da vida social são discursivamente construídos” (POPKEWITZ, 2008, p. 180). Nessa perspectiva, a linguagem aparece como ‘constitutiva/formadora’ e não meramente ‘expressiva/descritiva’ (CORAZZA, 2001). Ademais, ela advém de estilos de raciocínio historicamente formados e se constitui não apenas como representativa de coisas no mundo, mas também como elemento importante de poder (POPKEWITZ, 2008). Ao buscar enfatizar a historicidade do sistema linguístico, Popkewitz (2008) usa a concepção de epistemologia para se referir “à forma como o conhecimento, no processo de escolarização, organiza as percepções, as formas de responder ao mundo e as concepções de eu” (p. 174). O social que qualifica epistemologia enfatiza a “implicação relacional e social do conhecimento, em contraste com as preocupações filosóficas americanas com epistemologia como a busca de asserção de conhecimentos universais, sobre a natureza, a origem e os limites do conhecimento” (POPKEWITZ, 2008, p. 174-175).

Esse modo de privilegiar o conhecimento (como regulação social) e a linguagem (como constitutiva da realidade) nos estudos de currículo é tributário do que se convencionou chamar de ‘virada linguística’. A ênfase na linguagem e no discurso passou a ser utilizada “como estratégia de luta cultural” (PARAÍSO, 2010, p. 40), sendo o currículo compreendido como uma “invenção social como qualquer outra”, e seu conteúdo como uma “construção social” (SILVA, 2002, p. 135). Isso nos aproxima da ideia de que o currículo é constituído por discursos concorrentes, que o perpassam e disputam significados sobre o mundo e as coisas do mundo, em um jogo que se dá em meio a relações de poder-saber (FREITAS, 2014). Tudo isso porque ganha destaque, no campo curricular, a noção de discurso como práticas destinadas a formar os objetos aos quais se referem (FOUCAULT, 2005).

Sobre os conceitos de poder e saber, esses se mostram, nessa perspectiva, em uma relação mútua e interna aos discursos do currículo. Portanto, o currículo visto em uma perspectiva pós-crítica segue sendo espaço de poder, todavia,

[...] esse poder torna-se descentrado, e o conhecimento não é exterior a esse, mas parte inerente do poder [...] A análise desse não se limita mais ao campo das relações econômicas do capitalismo [...] o mapa do poder é ampliado para incluir os processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade. (SILVA, 1996, p. 148-149)

As noções de poder e saber permanecem centrais em análises pós-críticas sobre o currículo e aparecem indissociáveis (o currículo, como corporificação do saber, está estritamente vinculado ao poder). Essa interdependência entre poder e saber na perspectiva pós-crítica consiste em entender que “a regulação da conduta, o governo dos indivíduos - e portanto, o poder - pressupõe seu conhecimento [...] Saber implica necessariamente dominação” (SILVA, 1996, p.167). O poder está inscrito no interior do currículo: “aquilo que divide o currículo - que afirma o que é conhecimento e o que não é - e aquilo que essa divisão divide - que estabelece desigualdades entre indivíduos e grupos sociais - isso é precisamente o poder” (SILVA, 1996, p. 167). Nesse sentido, “o saber é um conhecimento oriundo daquilo que o poder olha com seus próprios olhos” (MAKNAMARA, 2011, p. 55).

Desse modo, os discursos de um currículo são interpretados como práticas permeadas por relações de poder-saber; os discursos são “um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais” (FOUCAULT, 2003, p.11) e devem ser considerados como “jogos estratégicos, de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta” (FOUCAULT, 2003, p. 9). Assim, ao corporificar conhecimentos particulares sobre o indivíduo e a sociedade, os discursos nos constituem como sujeitos (SILVA, 1996), e, quando o currículo é interpretado como ‘discurso’, é possível significá-lo como ‘a constituição de nós mesmos como sujeitos’ (SILVA, 1996, p. 167).

Dito isso, compreendemos que um currículo não está envolvido, necessariamente, num processo de ‘transmissão de conteúdos’, ‘reprodução social’ ou de ‘revelação da realidade’, mas num processo de ‘constituição’ (de sujeitos de determinados tipos) e de ‘posicionamento de sujeitos’ (que são múltiplos, no interior das diversas divisões sociais). É com base nessa percepção que pesquisadores do campo do currículo - tais como Corazza (2004); Popkewitz (2008); Silva (1996; 2002); Cherryholmes (1992); Paraíso (1996; 2014) e Gallo (2012) - buscam, desde as teorias pós-críticas, significar o currículo de modos variados, afastando-se da ideia de que podemos chegar a um conceito unívoco do mesmo.

Popkewitz (2008) faz esse exercício de significação de um currículo explicitando-o como ‘sistema de regulação e disciplina’ (POPKEWITZ, 2008). Esse modo de caracterização sugere que “aquilo que está inscrito no currículo não é apenas informação - a organização do conhecimento corporifica formas particulares de agir, sentir, falar, ver o mundo e o eu” (POPKEWITZ, 2008, p. 174). Desse modo, é possível compreender que o currículo envolve formas de conhecimento cujas funções consistem em regular e disciplinar o indivíduo4. O conhecimento curricular é visto como ‘tecnologia disciplinar’ que envolve nossas formas de falar e raciocinar - as formas pelas quais nós ‘dizemos a verdade’ sobre nós e sobre os outros - com questões de poder e regulação (POPKEWITZ, 2008).

De modo semelhante, um currículo pode ser visto como ‘instrumento de regulação e controle’ (SILVA, 1996). Para fundamentar essa argumentação, Silva (1996) parte do pensamento de Foucault sobre ‘formas de governo’ no qual os conceitos ‘poder’ e ‘saber’ aparecem imbricados/interdependentes:

Em Foucault, o governo não está baseado em uma estratégia puramente externa de controle, mas no pressuposto do autogoverno dos indivíduos. O controle externo da conduta - aquilo que Foucault chamou de “tecnologias de dominação” - combina-se com o autocontrole - aquilo que Foucault chamou de “tecnologias do eu” - para produzir o “sujeito autogovernavél” (SILVA, 1996, p. 162).

O governo deve ser entendido, portanto, no sentido de “técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta” dos outros e de si mesmo (FOUCAULT, 1997, p. 101). Quando falamos em tecnologias5 de dominação, estamos nos referindo a práticas institucionalizadas de objetivação de uns sobre outros e que supõem uma certa forma de racionalidade, tal como ocorre com a disciplina, por exemplo (FOUCAULT, 1993). Já por técnicas de si, Foucault entende serem as

práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo. (FOUCAULT, 2001, p.15).

‘Técnicas de si’ ou ‘tecnologias do eu’ são expressões utilizadas por Foucault para se referir aos processos de conhecimento e domínio de si por si, ou a relação consigo “através dos quais o indivíduo se constitui e se reconhece como sujeito” (FOUCAULT, 2001, p.11)6. O encontro entre essas técnicas de si e as técnicas de dominação dos outros caracteriza a governamentalidade, entendida como a “superfície de contato em que se juntam a maneira de conduzir os indivíduos e a maneira pela qual eles se conduzem” (GROS, 2004, p. 637), isto é, o campo de ações possíveis e limitantes do exercício do governo. As técnicas de dominação e as técnicas de si devem ser entendidas, portanto, como “os meios ou os instrumentos por meio dos quais o governo é acoplado e os indivíduos são subjetivados tornando-se sujeitos de determinados tipos” (PARAÍSO, 2006, p. 4)7.

A articulação desses conceitos na análise sobre currículo permite-nos compreender e observar uma gestão governamental em um currículo. Nessa análise, a produção de um ‘sujeito autogovernável’ é objetivo da ação da educação, e o currículo seria “um domínio particular de conhecimento do indivíduo implicado em estratégias de governo” (SILVA, 1996, p. 162), ou seja, um instrumento de regulação e controle. Essa forma de interpretar um currículo aproxima-se da definição do mesmo como ‘modo de subjetivação’ (CORAZZA, 2004). Sobre o conceito de subjetivação, podemos interpretá-lo como

[...] a relação consigo que renasce sempre, em vários lugares e sob múltiplas formas [...] Os indivíduos são a matéria sob a qual se realiza o trabalho da subjetivação. Eles não são nada sem a forma na qual a experiência ética os modela, e não tem verdadeiramente ser, independente desse trabalho de subjetivação” (CORAZZA, 2004, p. 62).

Isso implica analisar as subjetividades produzidas por um currículo “enquanto vinculadas às relações de saber e de poder que atravessam os corpos para gravar-se nas consciências” (CORAZZA, 2004, p. 58). Seguindo essa mesma linha de raciocínio, o currículo nos é apresentado como ‘máquina de subjetivação’ (GALLO, 2012), sendo a subjetivação pensada como um processo que transgride o conceito moderno de sujeito (pensado como categoria fundante; como substância; identidade monolítica). Ele também deve ser entendido como “algo produzido, fabricado de acordo com algumas categorias históricas e culturais. Algo que varia no tempo e no espaço” (GALLO, 2012, p. 204), ou, ainda, como um artifício da linguagem, uma produção discursiva, um efeito das relações poder-saber (FOUCAULT, 1995).

De modo similar, Silva (1996; 2002) discute o currículo como território, como lugar onde os sujeitos são constituídos e como espaço de formação. Ele também deve ser entendido como “artefato social, cultural e histórico, sujeito a mudanças e flutuações” (SILVA, 2002, p.77). Na categoria de um artefato cultural, o currículo é entendido como algo feito, construído para um fim determinado. Tal qualificação atribuída ao currículo é reforçada por Paraíso (1996), que ao entender cultura como ‘terreno de luta’, afirma ser o currículo construído a partir de uma seleção no interior das culturas, sendo o mesmo, portanto, “campo de produção e de contestação cultural” (p. 139).

Como vimos até aqui, os(as) autores(as) apontados(as) não buscam uma resposta essencialista e fixa sobre ‘o que é um currículo?’; em vez disso, eles(as) problematizam o conceito de currículo, atribuindo a ele modos variados de significações. Essa pluralidade de conceitos tem um objetivo em comum, que é nos fazer compreender que currículo é um ‘artefato’ e que está envolvido na produção de sujeitos multiplamente posicionados. Pode-se afirmar também como objetivo dessa base conceitual o fato de ela nos inspirar e nos fazer entender que, ao se investigar um currículo de Medicina fundamentado pelas MAs, devemos problematizar esse currículo e o processo de constituição de profissionais médicos que emerge a partir dele. Esse é um exercício que passamos a realizar no tópico a seguir.

PROBLEMATIZANDO DISCURSOS QUE CONSTITUEM UM CURRÍCULO MÉDICO FUNDAMENTADO NO USO DAS MAs

Após explicitarmos como um currículo é significado na perspectiva pós-crítica, foi possível compreender que não há como se chegar à origem, ao núcleo, à essência do conceito de currículo. No entanto, não é difícil encontrar, nos trabalhos de pesquisas na educação médica do Brasil, investimentos discursivos que, de modo geral, reiteram um currículo fundamentado nas MAs como ideal e reafirmam que essas MAs seriam práticas mais adequadas para formação médica. Isso pode ser observado a partir dos fragmentos discursivos a seguir, que denotam as MAs como: uma “estratégia inovadora, importante para formar um médico que responda às demandas sociais, isto é, um humanista e técnico competente” (MORÉ e GORDAN, 2004, p. 112); uma prática pedagógica “ética, crítica, reflexiva e transformadora, ultrapassando os limites do treinamento puramente técnico, para efetivamente alcançar a formação do homem como um ser histórico, inscrito na dialética da ação-reflexão-ação” (MITRE, 2008, p. 10); “uma metodologia capaz de tornar o discente um agente potencial de transformação social” (CEZAR, et. al., 2010, p. 300); “uma proposta metodológica que possibilita formar um profissional definido pelas DCN’s de medicina e que atenda às necessidades do SUS” (COSTA, 2016, p. 245).

O esforço em trazer esses fragmentos discursivos é para demonstrar o que há em comum entre eles, a saber, o fato de ilustrarem ‘vontades de verdade’ (CORAZZA, 2004) sobre currículos médicos que partem do referencial das MAs. Dito de outro modo, o que há em comum é o modo como significam um currículo fundamentado pelas MAs, apresentando-o segundo uma lógica ‘salvacionista’, advogando sua suposta capacidade de atender às necessidades e preencher as lacunas da educação médica no Brasil. Ainda perseguindo esses ditos, esse currículo seria capaz de ‘revelar’, por meio de uma suposta transcendência ou tomada de consciência, um(a) profissional tal como proposto no currículo oficial do curso de graduação em Medicina de uma Instituição de Ensino Superior (IES) pública, tomado neste trabalho como objeto de análise. Ao fundamentar sua proposta nas MAs e buscando atender às DCN’s de Medicina, esse currículo define que:

O Curso de Graduação em Medicina seguindo os seus objetivos de uma formação integral, humana, crítica e transformadora, propõe-se a formar o(a) médico(a) com o perfil generalista, humanista, crítico e reflexivo, com competência para atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação a saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a dignidade humana, a cidadania e a defesa da vida vulnerabilizada. (IES, 2017, p. 14)

Ao traçar esse perfil médico como desejado, o currículo mencionado parece pretender ‘revelar’ um(a) profissional em sua essência. Esse currículo demanda um perfil ideal de profissional médico, definindo que ele deve ser um sujeito ‘crítico’, ‘reflexivo’, ‘humanista’, ‘ético’ e ‘transformador’. Essas adjetivações atribuídas ao egresso de Medicina, quando somadas aos discursos da ‘atenção integral em saúde’ e da ‘responsabilidade e compromisso social’, sugerem a constituição de um(a) profissional médico(a) do tipo super-herói. Os dizeres desse currículo fazem-nos crer que, se o(a) egresso(a) em Medicina for capaz de deter as habilidades/atitudes/técnicas expostas, ele(a) se tornará um(a) profissional que estará apto(a) a defender/salvar vidas vulnerabilizadas.

Entretanto, aprendemos com a linguagem pós-crítica a enxergar a ‘pretensiosidade’ e ‘arbitrariedade’ embutida nas coisas, e a não mais cair na falácia de buscar uma essência nelas. Nesse sentido, olhar para os dizeres de um currículo, e em específico do currículo de Medicina analisado neste trabalho, implica focalizar esses dizeres em sua produtividade e questionar a suposta autenticidade, superioridade e coerência que esse currículo advoga para si mesmo. Significa, portanto, recusar-se a aceitar a aparente ‘despretenciosidade’ ou ‘benevolência’ e ‘transparência’ desse currículo para apostar em suas ‘vontades de sujeito’.

Assim, ao analisar um currículo, e de modo específico, o currículo de Medicina tomado para análise neste trabalho, devemos desconfiar de sua intencionalidade e estar à espreita da natureza de sua discursividade, pois ela é “arbitrária e ficcional, por ser histórica e socialmente construída” (CORAZZA, 2004, p. 20). Vale reiterar que esse caráter considerado arbitrário e ficcional está presente em diferentes currículos para formação profissional nas graduações do País (dentro e fora da área da saúde); contudo, optamos neste trabalho por analisar apenas o caso de um currículo de graduação em Medicina que está fundamentado nas MAs.

Portanto, ao direcionar esse modo de olhar para o currículo médico aqui analisado, passamos a enxergá-lo como apenas uma ‘possibilidade’ para a educação médica; e o(a) profissional médico(a) que emerge dele deve ser compreendido(a) como uma fabricação, uma ‘invenção’ (no sentido de sua ‘arbitrariedade’ e ‘ficcionalidade’) que se dá a partir de diferentes demarcações discursivas e não discursivas (FISCHER, 2001). Essa referida invenção leva à constituição de médicos(as) posicionados(as), em que as tentativas de se buscar explicitar aquilo que fidedignamente caracterizaria esse(a) profissional resultam na definição de ‘regimes de verdades’ (CORAZZA, 2004) sobre o que vem a ser um(a) médico(a). Tais ‘regimes de verdades’ estariam localizados no currículo oficial aqui analisado, previsto no PPC (por exemplo, quando esse define o perfil médico desejado, como mencionado anteriormente) e nas DCNs que orientam o mesmo (os princípios, fundamentos, condições e procedimentos da formação de médicos(as) apresentados na Resolução CNE/CES Nº 4, de 7 de novembro de 2001 e reiterados pela Resolução Nº 3, de junho de 2014, estabelecem o que vem a ser o(a) profissional médico(a)). Portanto, a verdade que sobressai dos discursos desse currículo não diz tudo, é um ‘semi-dizer’ (CORAZZA, 2004), ou ainda “[...] o discurso qualificado como verdadeiro é aquele que se impôs sobre outros discursos, relegando-os ao terreno do falso e do ilusório, instaurando assim uma ordem” (CANDIOTTO, 2010, p. 51).

Aqui buscamos nos afastar da ideia da origem e da essência de um(a) profissional médico(a) através de uma suposta tomada de consciência/transcendência, e nos aproximar da compreensão de que esse(a) profissional é efeito das relações entre ‘poder e saber’ (SILVA, 1996) presentes nos discursos de um currículo médico fundamentado pelas MAs. Tais relações aparecem nesse currículo como formas de regulação e controle da conduta de profissionais médicos(as), que se estabelecem por meio da classificação e hierarquização de conteúdos (incorporando uns e excluindo outros) a serem adquiridos pelo egresso do curso. Vale salientar que essa é uma característica que faz parte de qualquer construção curricular, independente do nível referido (seja na educação básica, seja na educação superior), e que o currículo de graduação em Medicina aqui analisado não foge a essa regra. Essas formas de regulação e controle são observadas já a partir das DCNs de Medicina (inscritos na Resolução de 2001 e retomados pela Resolução de 2014), quando essas definem os conteúdos curriculares do PPC de graduação em Medicina, afirmando que:

Art. 23. Os conteúdos fundamentais para o Curso de Graduação em Medicina devem estar relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade e referenciados na realidade epidemiológica e profissional, proporcionando a integralidade das ações do cuidar em saúde (BRASIL, 2014, p. 10).

Ao chamar de ‘fundamentais’ os conteúdos que seleciona, esse currículo acaba incluindo, em sua proposta, formas específicas de saberes e de conhecimentos, como aqueles previstos no Art. 6º da Resolução de 2001, retomados no Art. 23 da Resolução de 2014, que devem contemplar:

  1. - conhecimento das bases moleculares e celulares dos processos normais e alterados, da estrutura e função dos tecidos, órgãos, sistemas e aparelhos, aplicados aos problemas de sua prática e na forma como o médico o utiliza;

  2. - compreensão dos determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais, nos níveis individual e coletivo, do processo saúde-doença;

  3. - abordagem do processo saúde-doença do indivíduo e da população, em seus múltiplos aspectos de determinação, ocorrência e intervenção;

  4. - compreensão e domínio da propedêutica médica: capacidade de realizar história clínica, exame físico, conhecimento fisiopatológico dos sinais e sintomas, capacidade reflexiva e compreensão ética, psicológica e humanística da relação médico-pessoa sob cuidado;

  5. - diagnóstico, prognóstico e conduta terapêutica nas doenças que acometem o ser humano em todas as fases do ciclo biológico, considerando-se os critérios da prevalência, letalidade, potencial de prevenção e importância pedagógica;

  6. - promoção da saúde e compreensão dos processos fisiológicos dos seres humanos (gestação, nascimento, crescimento e desenvolvimento, envelhecimento e morte), bem como das atividades físicas, desportivas e das relacionadas ao meio social e ambiental;

  7. - abordagem de temas transversais no currículo que envolvam conhecimentos, vivências e reflexões sistematizadas acerca dos direitos humanos e de pessoas com deficiência, educação ambiental, ensino de Libras (Língua Brasileira de Sinais), educação das relações étnico-raciais e história da cultura afro-brasileira e indígena; e

  8. - compreensão e domínio das novas tecnologias da comunicação para acesso a base remota de dados e domínio de, pelo menos, uma língua estrangeira, que seja, preferencialmente, uma língua franca. (BRASIL, 2014, p. 10-11)

Ao definir esses conteúdos como adequados para a formação médica, esse currículo exclui outros conhecimentos ou os coloca como menos importantes em sua proposta, como, por exemplo, os conteúdos “centrados na doença de forma individual e concreta” (FLEXNER, 1910, p. 1), previstos nas recomendações do Relatório Flexner. De acordo com Santos (1986), essas recomendações abordavam a doença como um processo natural, biológico, e não consideravam o social, o coletivo, o público e a comunidade como fundamentais para o ensino médico, e tampouco os viam como implicados no processo de saúde-doença.

Além de selecionar conteúdos (incluindo uns e excluindo outros), o currículo aqui em discussão faz questão de especificar com o que tais conteúdos deveriam estar relacionados: com saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade. Desse modo, ele impõe que os profissionais médicos devem realizar seus serviços tendo em conta que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o ato técnico, mas, sim, com a resolução do problema de saúde, tanto em nível individual como coletivo. Para garantir esse olhar ampliado do médico sobre o cuidado em saúde, as DCN’s definem estratégias a serem incorporadas nos currículos médicos, objetivando conduzir a aquisição de habilidade e atitudes pelos egressos de Medicina. Isso é observado nas determinações previstas no Art. 12 da Resolução de 2001, que, ao serem retomadas e reformuladas pela Resolução de 2014, definem (no Art. 29 do Cap. III dessa Resolução) que a estrutura do curso de Medicina deve:

VI - inserir o aluno nas redes de serviços de saúde, consideradas como espaço de aprendizagem, desde as séries iniciais e ao longo do curso de Graduação de Medicina, a partir do conceito ampliado de saúde, considerando que todos os cenários que produzem saúde são ambientes relevantes de aprendizagem (BRASIL, 2014, p. 12).

Aqui é válido apontar que, quando esse currículo pede a inserção dos alunos nas redes de serviço de saúde, ele não quer formar qualquer médico, mas formar um sujeito que não se restrinja ao isolamento de consultório particular. Essa determinação prevista no Art. 29 do Cap. III da Resolução de 2014 encontra-se materializada no currículo do curso de graduação em Medicina aqui analisado, em sua ‘matriz e organização curricular’. Durante os primeiros quatro anos do curso (denominados de ‘fundamentos da prática clínico-cirúrgica’), essa matriz está dividida em quatro eixos/modalidades, sendo a ‘Integração Ensino, Saúde e Comunidade (IESC)’ um desses eixos, visando garantir:

atividades desenvolvidas em cenários reais da comunidade e do SUS (unidades de saúde, hospitais, ambulatórios, etc) com o objetivo de fortalecer o aprendizado cognitivo e estabelecer uma aproximação do acadêmico com a população local, a fim de garantir uma assistência integral, respeitosa, ética, crítica e humanística, considerando o sujeito e o contexto no qual está inserido, sua cultura, sua crença, seus hábitos e seus costumes, e assim, proporcionar o desenvolvimento de habilidades e atitudes (IES, 2017, p. 52).

É possível observar nesse fragmento a ativação do discurso da ‘contextualização no ensino’, o qual permite que o currículo de Medicina da IES se apresente como formador de uma aprendizagem engajada e possibilitadora de assistência integral. Vale salientar que aprendizagem engajada e atuação integral são aqui interpretadas como atributos de sujeito, são posições a serem ocupadas pelos sujeitos que esse currículo está a demandar.

Essas definições estabelecidas para/pelo currículo do curso de Medicina da IES configuram-se, portanto, como ‘estratégias de governo’ para posicionar o(a) profissional médico(a), ou, dito de outro modo, para determinar qual o tipo de profissional é ‘desejado’ pelo currículo. Portanto, é objetivo desse currículo ‘governar’, no sentido de conduzir modos de ser médico(a), ou, como vimos desde Foucault (1996), produzir um ‘sujeito autogovernavel’. Isso também pode ser expresso na ênfase que esse currículo dá tanto no emprego dos métodos de ‘avaliação somativa’ quanto no uso daqueles de ‘avaliação formativa’ do ensino e aprendizagem. Sobre a avaliação somativa, esta tem como objetivo:

determinar o grau de domínio do estudante em uma área de aprendizagem, o que permite outorgar uma qualificação, que, por sua vez, pode ser utilizada como sinal de credibilidade da aprendizagem realizada [...] A avaliação somativa tem a função de analisar se o estudante está apto para progredir durante o seu curso de graduação [...] Os instrumentos utilizados para a avaliação somativa nas diversas atividades didáticas podem ser assim delineados: Provas escritas objetivas [...]; provas escritas de caráter subjetivo [...]; provas escritas de caráter integrado. (IES, 2017, p. 187).

Observamos aqui ‘técnicas e estratégias de dominação’ acionadas pelo currículo analisado para dirigir a conduta dos(as) estudantes de Medicina. Essas técnicas são utilizadas para medir o rendimento da aprendizagem discente e classificar esses(as) discentes ao fim de um período de aprendizagem (semestre ou módulo), de acordo com a existência ou não de aproveitamento (podendo o mesmo ser satisfatório ou insatisfatório). Tais técnicas buscam, portanto, adequar a aprendizagem discente às exigências para a formação médica, estabelecidas no/pelo currículo.

Ao descrever a ‘avaliação formativa’, são destacados nesse currículo alguns instrumentos, tais como: o feedback a ser realizado pelo tutor acerca do desempenho dos estudantes em suas atividades; a elaboração de portfólios como instrumentos que possibilitam estabelecer um diálogo com os docentes, e vice-versa, sobre os avanços, as dificuldades, as angústias dos discentes; e a autoavaliação discente sobre suas atividades de ensino e aprendizagem. No que diz respeito à autoavaliação discente, essa é entendida como um processo em que,

Cada estudante avalia o próprio desempenho nas atividades de ensino-aprendizagem, com o intuito de desenvolver o senso de autocrítica e de responsabilidade pela aprendizagem. A autoavaliação só passa a ter significado quando permite ao discente pensar sobre o próprio processo de aprendizagem. Esse exercício desenvolve a compreensão das fragilidades e amplia a consciência do estudante sobre a sua relação com o pensar e o fazer, possibilitando maiores chances de transpor as dificuldades (IES, 2017, p. 190).

Quando esse currículo defende que cada um(a) avalie sua progressão na aprendizagem, ele não está apenas falando de avaliação: ele toma a avaliação como objeto para requerer um tipo de sujeito. E que tipo de sujeito é esse? Ora, se esse sujeito precisa ser engajado em sua aprendizagem (como visto nas observações anteriores) e precisa também, agora, se engajar em sua avaliação, é porque esse currículo está demandando, com essas duas exigências (da aprendizagem e da avaliação), um tipo de sujeito ‘coach de si’. Tal posição corresponde a um sujeito capaz de gerenciar o desenvolvimento de sua formação e atuação, isto é, um sujeito que investe em sua “capacidade de aprendizagem contínua durante toda a vida profissional e de auditoria do próprio desempenho” (BRASIL, 2001b, p. 2). Observamos aqui o desejo desse currículo por formar um tipo de profissional médico dotado de capacidade de autonomia e autogestão da aprendizagem. Para tanto, esse currículo tem investido no uso das MAs, uma vez que, de acordo com a literatura, são muitas as possibilidades de MAs “com potencial de levar os alunos a aprendizagem para a autonomia” (BERBEL, 2011, p. 30). Dentre as modalidades de MAs trabalhadas no currículo aqui em análise, é enfatizado o uso da Aprendizagem Baseada em Problemas, a qual se constitui como o eixo principal do aprendizado técnico-científico nessa proposta curricular.

Como vimos até aqui, o currículo analisado deseja tipos de sujeitos múltiplos e específicos, disponibilizando posições a serem ocupadas (ou não) pelos estudantes do curso de Medicina da IES. O ‘coachi de si’ é uma dessas posições de sujeitos que, inclusive, será bastante necessária em futuros contextos de atuação do setor público de atenção à saúde, em que muitas vezes sobram problemas e faltam recursos, demandando do profissional médico autonomia, iniciativa, criatividade e jogo de cintura.

Contudo, cabe enfatizar que, considerando as posições de sujeitos apresentadas aqui, não podemos afirmar que um currículo oficial previsto nas DCNs irá formar médicos posicionados de tal maneira. A subjetivação não se constrói apenas a partir de um currículo formal previsto nas diretrizes curriculares ou no uso de Mas; ela deve ser compreendida e constituída “na relação consigo mesmo que renasce sempre, em vários lugares e sob múltiplas formas” (CORAZZA, 2004, p. 62). Ademais, como lembra Foucault (1995, p. 248), “não há relação de poder sem resistência”; assim, é importante deixar claro que não há controle sobre a produção de sujeitos demandados pelos discursos de um currículo. Os efeitos desses discursos são também sempre múltiplos, heterogêneos e variados, o que nos leva a compreender que as posições de sujeitos demandadas pelos mesmos não são fixas. Desse modo, ao pesquisar um currículo de Medicina fundamentado pelas MAs, buscando compreender a produção de sujeitos a partir do mesmo, é necessário considerar não só as posições de sujeitos disponibilizadas pelos discursos, mas também entender as ‘resistências’, os escapes e as construções de outros modos de ser vivenciados no currículo investigado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste texto foi mostrar como um currículo é significado pelas teorias pós-críticas e, a partir desse modo específico de interpretação, problematizar os discursos que constituem um currículo de Medicina quando fundamentado pelas MAs. Para tanto, tivemos como foco de leitura autores(as) contemporâneos(as) que fazem a conexão entre os temas ‘currículo’ e ‘teorias pós-críticas’. O esforço analítico desprendido aqui nos permitiu compreender um currículo fundamentado nas MAs para além da ideia de instrumento envolvido em processos de ‘transmissão’, ‘reprodução’ ou ‘revelação’ de metodologias e sujeitos em sua essência. Aprendemos que, em um cenário pós-crítico, um currículo está envolvido em processos tanto de constituição e posicionamento de sujeitos como de contestação e transgressão a essas posições.

Buscamos, portanto, ir além do significado transcendental atribuído ao currículo médico fundamentado pelas MAs, em que, a partir da perspectiva crítica de currículo, se pode compreender que essas metodologias seriam capazes de fazer revelar (através de um processo de transcendência ou tomada de consciência) um(a) profissional médico(a) ‘ideal’. Nosso interesse não esteve centrado em discutir o que pode ser feito a partir desse currículo, mas, sim, o que esse currículo faz, pois ele produz significados, fabrica coisas e arquiteta modos de subjetivação (CORAZZA, 2001). Observamos, com a análise desenvolvida neste trabalho, que modos de subjetivação são arquitetados pelo currículo de Medicina fundamentado nas MAs de uma IES pública, na medida em que esse currículo deseja tipos de sujeitos específicos. Vimos que, para isso, são disponibilizadas pelo currículo analisado posições de sujeitos (a serem ocupadas ou não por aqueles que se submetem a ele) múltiplos e específicos, como o tipo de sujeito ‘super-herói’ e o ‘coach de si’.

De modo mais específico, se quisermos avançar com a investigação desses modos de subjetivação a partir desse currículo, devemos fazer as seguintes interrogações: Com base em que saberes e formas de raciocínio esse currículo produz efeitos de verdade relativos a um profissional médico ‘crítico’, ‘reflexivo’, ‘humanista’, ‘ético’ e ‘transformador’? Que mecanismos de poder estão em jogo ao se afirmar que se pretende formar um médico com habilidades e atitudes específicas, tais como um ‘profissional médico crítico’, ‘reflexivo’, ‘humanista’, ‘ético’ e ‘transformador’? Que estratégias e tecnologias são mobilizadas para posicionar profissionais médicos? De que modo essas estratégias e tecnologias de subjetivação são acionadas para construir tais posições a partir desse currículo? Há ‘resistências’/‘escapes’ à constituição da posição do sujeito caracterizado como ‘crítico’, ‘reflexivo’, ‘humanista’, ‘ético’ e ‘transformador’? Considerando a possibilidade de ‘escapes’ ao posicionamento de sujeitos a partir de um discurso, como se dão as construções de outros modos de ser vivenciados no currículo investigado?

Essas e outras possíveis questões ensejam a possibilidade de problematizar um currículo de Medicina quando fundamentado nas MAs, no sentido de investigar como as subjetividades vêm sendo produzidas por meio dos discursos que o constituem. São questões que sinalizam para a possibilidade de outras pesquisas nesse campo, que podem ser levadas a cabo mediante um olhar minucioso sobre esse currículo, sobre os discursos em disputa, para então se compreenderem as relações de poder que se estabelecem, compreender aquilo que emerge dessas relações, o que (e como) elas são capazes de acionar através dos discursos em jogo e a produção de sentidos e sujeitos que sobressai desse processo. Esse exercício analítico pode ser realizado a partir do emprego da análise discursiva de inspiração foucaultiana, uma vez que essa ferramenta permitirá realizar uma “descrição analítica” (PARAÍSO, 2014) dos discursos, colocando em cena as maquinações pelas quais o profissional médico é fabricado como tipo particular de sujeito, por meio de um currículo médico fundamentado pelas MAs.

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  • 3
    Ao teorizar sobre a “natureza dialética do currículo” - que opera através do binário “construção/desconstrução” -,Cherryholmes (1992) afirmou que os currículos podem se traduzir em um esforço no sentido de “ajudar os estudantes a adquirir uma compreensão de seus discursos, de como o conhecimento e o poder se criam e se recriam mutuamente ou, então, eles podem se centrar na aceitação dos discursos existentes juntamente com suas oportunidades, constrangimentos e opressões singulares” (p. 163).
  • 4
    Em Popkewitz (2008), a noção de regulação “não serve para atribuir distinções de bom/mal ou moral/imoral quando se fala do processo de escolarização. Ela é utilizada para reconhecer uma premissa sociológica de que todas as situações sociais têm restrições e constrições historicamente inscritas sobre nossa individualidade” (p. 191).
  • 5
    “Tecnologias” são entendidas por Foucault (1993, p. 206) como “a articulação de certas técnicas e de certos tipos de discurso acerca do sujeito.”
  • 6
    Daí ser compreensível a aplicação de diferenciadas técnicas ou exercícios de si, que implicam algum tipo de relação do sujeito consigo mesmo, tais como “a confissão, o exame de consciência, a direção de consciência”, e aquelas que se estão presentes na pedagogia, sob outras designações, como, por exemplo, “a ‘auto-avaliação’, ‘autoconhecimento’, ‘auto-estima’, ‘autocontrole’, ‘autoconfiança, ‘autonomia’, ‘auto-regulação’, ‘autodisciplina’” (GONÇALVES, 2010, p. 119).
  • 7
    É por meio do encontro entre esses dois tipos de técnicas que é possível analisar como são produzidas as subjetividades (FOUCAULT, 1993).
  • 3
    In theorizing about the "dialectical nature of the curriculum" - which operates through the binary "construction/deconstruction" - Cherryholmes (1992) stated that curricula can translate into an effort to "help students acquire an understanding of their discourses, how knowledge and power create and recreate each other, or they can focus on the acceptance of existing discourses along with their unique opportunities, constraints, and oppressions" (p. 163).
  • 4
    For Popkewitz (2008), the notion of regulation "does not serve to attribute distinctions of good/bad or moral/immoral when addressing the process of schooling. It is used to recognize the sociological premise that all social situations have restrictions and constraints historically inscribed on our individuality" (p. 191).
  • 5
    “Technologies" are understood by Foucault (1993, p. 206) as "the articulation of certain techniques and certain types of discourse about the individual."
  • 6
    Hence, it is understandable to apply different techniques or exercises of oneself that imply some kind of relationship between the subject and himself, such as "confession, examination of conscience, and direction of consciousness," and those that are present in pedagogy with other designations, such as "self-evaluation," "self-knowledge," "self-esteem," "self-control," "self-confidence," "autonomy," "self-regulation," and "self-discipline" (GONÇALVES, 2010, p. 119).
  • 7
    The encounter between these two types of techniques allows to analyze how subjectivities are produced (FOUCAULT, 1993).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2019
  • Aceito
    09 Maio 2019
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