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SEM ESCOLAS PODE HAVER EDUCAÇÃO MUSICAL?1 1 Esta resenha, em versão reduzida, foi publicada em Histoire de l'éducation, n. 137, 2013, p. 136-139. Esta versão é uma tradução de Eliane Marta Teixeira Lopes (professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, professora visitante sênior Capes PPG Educação - ICHS, da Universidade Federal de Ouro Preto) e Érico Fonseca (mestre em práticas interpretativas pela Haute-École de Musique de Suisse Romande e professor do Departamento de Música da Universidade Federal de Ouro Preto).

BISARO, Xavier. Chanter toujours: Plain-chant et religion villageoise dans la France moderne (XVIe-XIXe siècle). Rennes, France: Presses Universitaires de Rennes, 2010. 246 p.18€

Xavier Bisaro, especialista do cantochão erudito, conduzia suas pesquisas "no isolamento inconsciente" dos grandes cabidos das catedrais. Descobrindo, com surpresa, o dossiê das missas brancas, missas cantadas sem padre que se alastraram pelo interior da França durante a Revolução, ele deixou a sociedade capitular para imergir no mundo dos lutrins2 2 Vocábulo francês que define uma estante apoiada em tripé utilizada para apoiar partituras musicais. Em português existem as palavras "atril" e "leitoril". Optamos por manter, ao longo do texto, o vocábulo em francês, pois chama a atenção o fato de que, algumas vezes, lutrin refere-se também, pejorativamente, àquele que canta. (N.T.). dos vilarejos, para, a partir daí, compreender o enigma: como compreender o apego de simples camponeses ao cantochão? Sua "cultura" religiosa, contra a qual a Revolução mantinha uma vigorosa resistência, era, no entanto, considerada "incultura" bem antes de 1789, tanto pela hierarquia eclesial quanto pelas elites do Iluminismo. Rousseau, mesmo sem compartilhar todos os preconceitos parisienses em relação aos camponeses, fez eco a essa má reputação em seu Dictionnaire de musique (ROUSSEAU, 1768): "Chantre de lutrin. Se diz ironicamente de um mau músico, de um homem que tem uma voz desagradável". Ora, o chantre de lutrin é o mestre-escola.

Xavier Bisaro estava, pois, diante de um "objeto histórico não identificado". O cantochão da França rural, que era, no entanto, "para todos e por toda parte", não havia sido tratado pela historiografia escolar, muito ocupada com a história do "ler-escrever-contar" para prestar atenção na função musical desses mestres, essa tarefa subalterna e sem futuro. Ele também não fazia parte do canto popular, pois os folcloristas se dedicaram aos cantos profanos. Foi também desdenhado pelos musicólogos liturgistas, especialistas da "verdadeira música" e mais inclinados a partilhar da difamação urbana em relação ao "canto que late e muge". Assim, Xavier Bisaro deveria, encorajado por abordagens etnológicas pioneiras (Jean-Yves Hameline, Jacques Cheyronnaud), atravessar o obstáculo construído por toda tradição bibliográfica alimentada por libelos e periódicos do século XIX que fustigavam esse "fascinante museu dos horrores". Assim, seu estudo seria uma "real prova intelectual", segundo ele diz na apresentação, pelo fato de que sua própria cultura musical erudita não facilitava tal mudança de ponto de vista.

Quais seriam os limites cronológicos e espaciais de sua pesquisa? Sua pesquisa trata da época moderna "ampliada em suas franjas", pois ela vai do tempo em que "a vontade tanto leiga quanto clerical favoriza uma interação estreita entre ensino escolar e vida paroquial", na dinâmica do Concílio de Trento, e continua para além do episódio revolucionário, a desagregação dessa interação, cujos traços persistem até o Vaticano II3 3 Convocado em 1961 pelo Papa João XXIII. (N.T.). , como testemunhou o Padre Alexandre (1988) em Le Horsain.

O espaço rural que Bisaro inventariou nos arquivos foi, sobretudo, o das comunidades vilarejas em torno da linha Saint-Malo-Genebra, marcadas pela "importância das funções endossadas pela voz do mestre, dos chantres e das crianças no seio das vilas". Os arquivos de inúmeros incidentes ou conflitos que teceram a vida paroquial revelam por meio desses desregramentos o funcionamento ordinário do dispositivo. As fontes impressas (periódicos, cadernos de queixas, manuais, memórias e uma centena de obras, entre as quais, abordagens sobre o sujeito do século XIX quanto ao assunto) permitiram ampliar a pesquisa para outros territórios.

O livro, dividido em 5 capítulos, apresenta inicialmente "O dever de cantar" (Cap. 1), com suas perspectivas religiosas, instituindo as petites écoles (escolas fundamentais) da reconquista tridentina e o ensino acoplado "canto e leitura". "Figuras de chantres" (Cap. 2) descreve, sobre o fundo de traços comuns, vários tipos de mestres-chantres e interroga sobre a especificidade "da voz" requerida pelas comunidades. "Partilha de bens" (Cap. 3) trata da evolução dos objetos do canto, lutrin, e dos livros ao longo das reformas litúrgicas. "O canto de uma comunidade" (Cap. 4) desenvolve em três tempos o funcionamento do cantochão: do século XVII a 1789; depois, o momento do Serment de 17914 4 Juramento que o clero deveria prestar à constituição feita pela Revolução francesa. (N.T.). ; e, enfim, o das missas brancas com o desaparecimento do clero. Finalmente, "O fim de um mundo" (Cap. 5) interroga sobre as evoluções separadas da escola e da liturgia paroquial sob os diferentes regimes que se seguem ao Concordat de 18015 5 Acordo feito entre Napoleão e Pio VII regulando as relações entre o Estado e a Igreja Católica. (N.T.). . Com o compromisso de reconstruir a história de uma prática musical, esse livro contribui, assim, por ricochete, para que se vejam o mestre rural do Antigo Regime e suas funções com um novo olhar. Essa é a razão pela qual a obra, embora seu autor a destine inicialmente aos músicos, concerne a todos aqueles que trabalham com a história da educação, pois o cantochão toca ao mesmo tempo à instrução religiosa, às aprendizagens escolares e à socialização rural.

A instrução religiosa

As petites écoles da reconquista tridentina deveriam responder aos desafios da Reforma com suas próprias armas, o ensino, o livro. Rapidamente, pensava-se nas lições de catecismo, mas a primeira instrução era, antes de mais, a da prática: os alunos assistiam, todo dia, à missa e algumas vezes às Vésperas6 6 Na liturgia católica, a parte do ofício divino que tem lugar à tarde, entre 15 horas e 18 horas. (N.T.). . Com exceção dos alunos dos colégios que iam à capela, o lugar do culto, imposto pelo Concílio de Trento, era a paróquia. Nas igrejas urbanas, o padre era rodeado de clérigos, de curas, de um coro preparado, e o mestre podia velar pelo bom comportamento das crianças durante o ofício. Nas cidades, o mestre distribuía os terços aos mais jovens, os livros de horas ou de ofícios simplificados àqueles que sabiam ler (Charles Démia e Jean Baptiste de la Salle também recomendavam essa medida), dava o sinal para a genuflexão ou para o sinal da cruz (se ele seguia as recomendações de L'Ecole parroissiale) e conduzia os mais jovens a se desentorpecerem do lado de fora durante os sermões.

Mas como fazer nas igrejas dos vilarejos? Voltado para o altar, de costas viradas para a nave, onde estavam assentados os alunos, o mestre estava no lutrin, rodeado, aos domingos, por outros chantres, sozinho com o padre durante a semana. A "pedagogia do culto" não poderia mais ser a mesma. O mestre campesino delegava a vigilância aos alunos maiores e ensaiava toda a sala para que ela pudesse se juntar ao cantochão. Destinado a enfrentar a sedução exercida pelos hinos huguenotes e os salmos rimados em francês, o cantochão era uma arma de reconhecimento e afirmação católica reservada àqueles que, na cidade, oficiavam no coro. Não era o caso nos vilarejos do interior: todos os meninos dos vilarejos aprendiam a cantar em latim, ao passo que os alunos dos Irmãos das Escolas Cristãs aprendiam a recitar as rezas e a cantar os cânticos em francês.

Onde está a modernidade? Onde está a pedagogia ativa? Os terços e os livros de horas "ocupavam" os fiéis, mas como recitações ou leituras piedosas, sem relação com a missa. Essas rezas independentes do andamento do ofício foram logo depreciadas: "a melhor maneira de escutar a missa é se unir com o padre, de sorte que se entra no espírito das palavras que ele pronuncia" (Prefácio do Missal parisiense latim-francês 1701). Daí a farta edição de livros transportáveis para fazer com que os fiéis pudessem "participar". Xavier Bisaro distingue, em uma primeira família, os livros nos quais se leem ou se recitam, interiormente, as orações impressas entre os textos da missa que elas comentam ou parafraseiam e os livros bilíngues sem comentários, para seguir em francês os textos latinos ditos pelo oficiante ao longo de sua enunciação. A missa tridentina era então "O teatro divino" ao qual assistiam espectadores atentos e silenciosos - retomando o título de Philippe Martin (2010) em Une histoire de la messe. Em uma segunda família, os livros eram feitos para escutar o canto e cantar. Aparecem assim os livros em latim sem comentário nem tradução, destinados à participação ativa dos fiéis; eles indicam as modalidades de execução (sinais de acentuação; corte em versinhos, como nos manuais escolares) e os momentos propícios: "Assim que os coristas entoam a Antífona do Introito, faz-se sobre si mesmo o sinal da cruz e pode-se juntar sua voz àquela do Coro" (1778). Eram estes que ganhavam, pouco a pouco, os vilarejos do interior. Enfim, os livretos de bolso anotados eram destinados àqueles que "sabiam ler" o cantochão: era esse livreto que o companheiro vidraceiro Ménétra7 7 Ménétra: personagem do século XVIII que escreveu para seu próprio e único prazer uma autobiografia a partir da qual é possível conhecer cotidiano da vida antes da Revolução. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k90239/f434.image>. (N.T.). tinha consigo quando lhe foi pedido que cantasse em uma etapa de seu périplo.

Essa maneira de "se unir com o padre" pelo canto fazia com "que se entrasse no espírito das palavras que ele pronunciava"? À crítica recorrente sobre a ignorância popular do latim os prelados respondiam que o francês era ignorado por aqueles que falavam o patoá. Nas palavras de Colbert de Croisy (1702), bispo de Montpellier: o "grande hábito de recitar e cantar essas rezas públicas desde a infância faz com que a maior parte do povo {saiba} o que elas querem dizer {...} sem falar das traduções e instruções dos pastores {...}". A questão era mais sobre a separação da orientação entre uma participação mental, que dizia respeito ao "sentido" da celebração e de seu mistério, e a participação corporal (auditiva e vocal), que requeria o cantochão e que parecia valer por si mesma. De fato, diz X. Bisaro, o efeito do cantochão era mais semiótico que semântico: ele era vivido como o gesto ritual e social "fazendo igreja".

Tudo ia muito bem enquanto o chantre-mestre cantava e ensinava um repertório que ele conhecia. Ao contrário, as reformas litúrgicas, rapidamente adotadas nos capítulos das catedrais, chegaram atrasadas às vilas, por uma agregação lenta ao repertório acumulado na memória. Cada novidade punha em questão a competência do mestre, momentaneamente despreparado diante das inovações que o bispo impunha, o que viria a ser objeto de deboche em alguns vaudeviles (Nosso muito sábio mestre/ sabia o velho {cantochão} como seu Padre Nosso/ Agora não é mais que um asno/ Que não tem mais nada na cabeça - 1754)8 8 Notre très-savant magister/ Savait le vieux {plain-chant} comme son Pater/ À présent ce n'est plus qu'un âne/ Qui n'a plus rien dedans le crâne, 1754. (N.T.) .

Algumas melodias foram rapidamente adotadas ("Super Gentes"), se colocaram entre os "clássicos" (a missa de Bordeaux, as missas de Dumont, de La Feillée foram cantadas até os anos de 1960), mas outras, ferindo os hábitos vocais (como o uso do 6e tom irregular, dito "real"), foram "parodiadas". Analisando as partituras difundidas no século XVIII, X. Bisaro mostra que os editores anteciparam essas dificuldades, simplificaram as partituras, suavizaram as novidades. Entretanto, as variações vilarejas se fixaram, se juntaram à grande quantidade de ritos locais sedimentados. Assim, esses "erros" feriam os ouvidos dos "verdadeiros" músicos; a hierarquia queria unificar as práticas religiosas, mas cada vila se apegou às "suas versões", ainda mais intocáveis se conhecidas de cor. Era mesmo a escuta e a repetição de ouvido que constituíam a base pedagógica de todas as aprendizagens.

As aprendizagens escolares

A abordagem de Xavier Bisaro desfaz a trilogia do ler/escrever/contar. A dupla escrever/contar foi muito levada em conta na história da escola; a dupla cantar/ler, muito menos. Primeira razão: a reserva dos tratados pedagógicos em relação ao cantochão, ao passo que eram eloquentes sobre as três outras aprendizagens. Era apenas pelos efeitos da leitura que se media a presença prioritária do cantochão: apego ao latim da igreja (o que torna a posição de La Salle ainda mais singular), uso dos livros litúrgicos para aprender a ler, silabação acentuada das frases, cantaroladas no tom de um proto-canto que contaminava todas as leituras, burburinho das leituras em coro em tempo desregulado. "A maioria canta lendo e soletrando. Outros surpreendem lendo tons chorosos e langorosos ou outros menos revoltosos" (Hélié, 1784).

Os livros eram ao mesmo tempo "recitados de cor" e lidos. O texto impresso, assim como a notação musical, desempenhava um papel de ajuda à memória e instância de verificação. O ensino de leitura das notas (solfejar o nome das notas, cantar com o texto) era adequado aos alunos que, por sua boa voz, eram destinados a se tornar chantres, mas, para a maior parte, a restituição do texto silabado, acrescentada à melodia guardada pelo ouvido, bastava amplamente. Confirma-se, assim, o papel de soletração silábica para as rezas (Pé-A Pa, Té-É-Er, Ter, Pa-ter) como aprendizagem secundária, permitindo aprender como se escreviam os textos sabidos de cor, e não como técnica para aprender a ler frases desconhecidas. Era, então, em uma segunda etapa, tanto para os textos como para as partituras, que (talvez) se produziria a transferência dos saberes adquiridos sobre o repertório compartilhado para textos novos.

No entanto, os contratos de emprego de mestres mostram que, ao longo do século XVIII, o ensino do cantochão não era mais mencionado em primeiro lugar, como fora no século XVII, e que ele, algumas vezes, até estava ausente. Seria esse um sinal de seu desaparecimento prático? De um desagrado em relação a ele? Para X. Bisaro, a reorientação do mestre sobre suas obrigações escolares significou que, daí em diante, o cantochão fazia parte dos saberes paroquiais. Se os antigos alunos, agora adultos, cantavam, então não era mais necessário conduzir suas crianças à escola (da mesma forma que as conversões das novas unidades de medida no programa, depois de 1830, não seriam mais ensinadas sistematicamente à geração seguinte). A sociabilidade vilareja proveria isso o suficiente, o que significava que, de certa maneira, a transposição tridentina "havia pegado", como se veria durante a Revolução.

Restava, então, captar a força dessa sociabilidade vilareja. Contrariamente aos Irmãos que viviam separados de seus rebanhos (eles estavam em "terra de missão"), o mestre-chantre seria recrutado pela comunidade vilareja da qual ele faria parte. Ele estaria lá para assegurar por seu canto "o serviço público do culto" para a missa de domingo (cantada por obrigação canônica), mas também para matinas, vésperas, reverências, missas mortuárias, óbitos, festas locais. Quando um lutrin ficava vago, o conselho de fábrica9 9 No Brasil, o chamado "Livro Fábrica da Catedral" foi uma entidade que subvencionava as necessidades do culto divino público, cuidando da administração e da guarda de bens patrimoniais do templo. (N.T.) fazia o recrutamento, na dependência do acordo do Cura. A paróquia inteira era convocada na igreja para a prova do cantochão e de leitura, mas era no presbitério, diante de um júri reduzido, que eram testadas as capacidades de escrever e contar. Se havia muitos candidatos concorrentes, frequentemente o evento atraía um público estrangeiro desejoso de assistir à disputa vocal. Nessas competições viris, era a potência da voz que predominava, com preferência pelos baixos. Ao passo que, no seminário, aprendia-se o bom comportamento, a articulação clara, a melodia em legato10 10 Termo italiano que designa uma articulação musical ("ligado"). (N.T.) , o uníssono entre chantres, a vila apreciava aquilo que os curas criticavam: a expressão corporal, os movimentos, os coups de glottes11 11 Oclusiva produzida pelo fechamento brusco da glote. As vogais iniciais são precedidas por uma espécie de golpe, típico do idioma alemão. (N.T.) , os efeitos. "Ele tinha uma voz tão terrível e tão bela que, quando ele começava a cantar, todos os cães fugiam da igreja" (elogio fúnebre de Michel Morin, 1713). Esses homens do campo habituados a cantar ao ar livre consideravam (como na sfida12 12 Em italiano no original: desafio. (N.T.) das confrarias corsas) que cantar louvores a Deus era um desafio entre homens e que cada um deveria fazer escutar sua voz pessoalmente. Enquanto o clérigo escutava urros selvagens, desencontros harmônicos, uma incapacidade do uníssono, cacofonias de ignorância, o vilarejo apreciava a força, o elã, o entusiasmo, a clara adesão à tarefa.

Uma das críticas mais frequentes feitas pelos paroquianos aos curas era a de "obstruir o trabalho": dizer a missa muito depressa, cantar com a ponta dos lábios, deixar o chantre celebrar as vésperas ou as matinas só com as crianças, razão pela qual iam se queixar ao bispo. Os conflitos entre cura e chantre não eram raros, mesmo em plena missa (sobre se era preciso cantar ou não, quando e como). A assembleia, então, tomava partido por um "murmúrio", quando não por tomadas de palavras, pedidos de explicação (em que, de resto, as mulheres não estavam). A paróquia, frequentemente, ficava mais a favor do chantre que do cura: era o chantre que instruía as crianças do vilarejo, fazia parte do mundo dos homens (com os quais ele caçava, ia à taverna, arbitrava os tumultos), o que parece compatível com "a decência" (diversamente apreciada) imposta por sua função na igreja. No momento em que a reforma tridentina separou os padres do povo e lhes impôs representar a sacralidade de seu ofício por seu comportamento (atitude, moderação, devoção), o mestre-chantre de capa foi esse leigo escolhido pela paróquia, quem penetrou no coro e dela se fez "porta-voz". Assim, era o mestre-chantre que impunha ao cura os gostos litúrgicos da população, que dirigia os outros chantres, frequentemente saídos de famílias de notáveis (sacristãos, lavradores) ou recrutados em razão da potência e da beleza de seu "órgão". Era ele quem levava antigos alunos a se juntarem ao coro dos homens, a se colocarem na ponta das procissões (ocupando a posição do senhor do lugar), diante de toda a população, para grande orgulho de sua família, sob o olhar zombeteiro ou admirado das moças. Não dirigido pelos estatutos canônicos, o funcionamento do lutrin comportava uma margem de performance favorável às dinâmicas de apropriação e de comunhão coletiva, mas também às tensões e aos conflitos que "apenas a presença permanente do mestre {permitia} atenuar".

Sob a Revolução, considerado como um funcionário necessário "ao serviço público do culto", o chantre era escolhido entre os padres jurados e refratários, pois uma missa não cantada era considerada pelos fiéis como nula, sem valor. Ele se tornou uma espécie de vigário não ordenado, e seu estatuto intermediário era reconhecido pela administração. Assim que os padres jurados foram desqualificados pelo culto da Razão e os padres refratários foram excluídos, surgiram as "missas brancas", sem celebração eucarística, em particular em Yonne e em Aube13 13 Yonne é um departamento da França localizado na região Borgonha. Aube se localiza na região da Champagne-Ardennes. (N.T.) , onde a rede de escolas era densa. Em um tempo marcado pelo vai e vem entre juramentos e retratações, pelas metamorfoses de padres ou de mestres em ministros do culto teofilantrópico (com possível inversão de antigos estatutos), o mestre-chantre atraiu fiéis dos arredores, celebrou casamentos e enterros. Ele manteve as bases da comunidade socioreligiosa paroquial no momento em que as outras estruturas se afundavam (diocese, arquidiáconos, arquidioceses), em nome da soberania popular e da autorização da lei de Ventosa ano III14 14 Referência ao Calendário da Revolução Francesa. A Ventosa vai de 19 de fevereiro a 20 de março. (N.T.) , que não reconheceu qualquer estrutura eclesiástica. As autoridades civis não sabiam como reprimir essa resistência (tratava-se de um delito não previsto pela lei), e os bispos emigrados viram com inquietação nascer no horizonte uma religião sem padre, graças à impunidade dos cantores.

Com o Concordat, e depois a Restauração15 15 Concordat de 1801: acordo celebrado entre Napoleão Bonaparte e o Papa Pio VII que visava à restauração da Igreja Católica na França pós-revolução. (N.T.) , o parêntesis se fechou, e o mestre-chantre ficou sob sursis, exposto ao mesmo tempo à retomada da hierarquia católica (que devolvia ao cura o poder de nomear o chantre, em 1825) e ao projeto de escolarização "utilitária" das elites urbanas, substituídas pelos prefeitos das comunas, que se superpunham (ou substituíam) às paróquias. A imprensa reportava os incidentes de fim de missa no momento da reza cantada pelas autoridades: Domine salvum fac Regem até 1789, depois, em 1801, Salvam fac Rempublicam; Domine salvos fac cônsules; depois, Salvum fac imperatorem nostrum Napoleonem, em 1804; fac Regem, em 1815. Foi, então, que se debateu, em 1830, sobre o Salvum fac Regem Ludovicum Philippum, rejeitado por uma parte da hierarquia. O cantochão tornou-se, assim, uma bandeira política: aqui ou ali, o Salvum era seguido pela Marselhesa, entoada por uma parte dos assistentes. Os moradores apupavam, vaiavam os curas que recusavam os jovens saídos das escolas normais, ou, ao contrário, rejeitavam esses mestres "que não {tinham} voz"; as vilas se dividiam em dois campos.

A retomada do controle dos corais pelos curas (com harmônio, oficleide ou orquestra) deu a parte bela às vozes das crianças e das meninas, impondo "do alto" uma nova estética musical e religiosa. Esta clericalização litúrgica tirou do chantre seu lugar e seu poder e fez os homens e os meninos adolescentes fugirem, deixando de se juntar à vida paroquial. Nas igrejas rurais do século XIX, a ocupação do espaço se alterou. Se no Antigo Regime os homens estavam sempre na frente, perto do coro, agora eles se postavam atrás das mulheres, no fundo da nave, silenciosos ou ausentes, deixando a igreja no momento de um "cânone" ou de um "glória". A partir de 1860, os padres constataram essa grande mudança, que acompanhou a feminização da prática religiosa, sendo que a religião era, no tempo dos chantres, um negócio de homens e negócio de todos os homens.

Em 1950, um jovem cura encontrou os últimos chantres, sem lutrin nem livro, mas ainda com capa, suor no rosto e cantando a plenos pulmões. "Tomem dessa semente, a Igreja é uma festa", parecem lhe terem dito esses chantres, testemunhos de uma religião popular "em ato", tão dissonante quanto arcaica.16 16 ALEXANDRE, Bernard. Le Horsain. Vivre et survivre en pays de Caux, 1988.

Epitáfio tardio sobre "a beleza do morto", o livro de Xavier Bisaro acrescenta a música religiosa aos estudos, sempre em aberto, das tensões entre elites e culturas populares.

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    Esta resenha, em versão reduzida, foi publicada em Histoire de l'éducation, n. 137, 2013, p. 136-139. Esta versão é uma tradução de Eliane Marta Teixeira Lopes (professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, professora visitante sênior Capes PPG Educação - ICHS, da Universidade Federal de Ouro Preto) e Érico Fonseca (mestre em práticas interpretativas pela Haute-École de Musique de Suisse Romande e professor do Departamento de Música da Universidade Federal de Ouro Preto).
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    Vocábulo francês que define uma estante apoiada em tripé utilizada para apoiar partituras musicais. Em português existem as palavras "atril" e "leitoril". Optamos por manter, ao longo do texto, o vocábulo em francês, pois chama a atenção o fato de que, algumas vezes, lutrin refere-se também, pejorativamente, àquele que canta. (N.T.).
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    Convocado em 1961 pelo Papa João XXIII. (N.T.).
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    Juramento que o clero deveria prestar à constituição feita pela Revolução francesa. (N.T.).
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    Acordo feito entre Napoleão e Pio VII regulando as relações entre o Estado e a Igreja Católica. (N.T.).
  • 6
    Na liturgia católica, a parte do ofício divino que tem lugar à tarde, entre 15 horas e 18 horas. (N.T.).
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    Ménétra: personagem do século XVIII que escreveu para seu próprio e único prazer uma autobiografia a partir da qual é possível conhecer cotidiano da vida antes da Revolução. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k90239/f434.image>. (N.T.).
  • 8
    Notre très-savant magister/ Savait le vieux {plain-chant} comme son Pater/ À présent ce n'est plus qu'un âne/ Qui n'a plus rien dedans le crâne, 1754. (N.T.)
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    No Brasil, o chamado "Livro Fábrica da Catedral" foi uma entidade que subvencionava as necessidades do culto divino público, cuidando da administração e da guarda de bens patrimoniais do templo. (N.T.)
  • 10
    Termo italiano que designa uma articulação musical ("ligado"). (N.T.)
  • 11
    Oclusiva produzida pelo fechamento brusco da glote. As vogais iniciais são precedidas por uma espécie de golpe, típico do idioma alemão. (N.T.)
  • 12
    Em italiano no original: desafio. (N.T.)
  • 13
    Yonne é um departamento da França localizado na região Borgonha. Aube se localiza na região da Champagne-Ardennes. (N.T.)
  • 14
    Referência ao Calendário da Revolução Francesa. A Ventosa vai de 19 de fevereiro a 20 de março. (N.T.)
  • 15
    Concordat de 1801: acordo celebrado entre Napoleão Bonaparte e o Papa Pio VII que visava à restauração da Igreja Católica na França pós-revolução. (N.T.)
  • 16
    ALEXANDRE, Bernard. Le Horsain. Vivre et survivre en pays de Caux, 1988.
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    Doutora em Ciências da Educação; trabalha desde 1996 no Service d'Histoire de l'Éducation, no Institut National de Recherche Pédagogique (INRP). Trabalha com a história da escolarização da escrita, os métodos de ensino da leitura na França e na Europa Ocidental e com a história da formação dos professores e das práticas de ensino. Atua no Laboratoire de Recherche Historique Rhône-Alpes /École Normal e Supérieure de Lyon, França. E-mail: <chartier@inrp.fr>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    29 Fev 2016
  • Aceito
    30 Mar 2016
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