RESUMO:
Na Academia Militar das Agulhas Negras, ocorre a formação dos oficiais do Exército brasileiro em seus aspectos profissionais, políticos, sociais e culturais. Neste artigo, propõe-se identificar o perfil e como são formados aqueles que, no futuro, serão generais. Para isso, a pesquisa usa dados quantitativos do perfil dos cadetes de 2002 a 2012 e analisa as características formais do ensino, tais como currículos e horários. Também mereceu atenção a dimensão informal e igualmente relevante do processo de aprendizagem: a ressocialização do aluno através da exposição permanente a situações com forte carga simbólica, quando se formam noções de hierarquia, disciplina e sobre o que é ser militar diante do ‘civil’. As conclusões dialogam com estudos correlatos, questionando o Exército como a imagem da nação, confirmando tendências e trazendo novidades, como o crescimento do recrutamento entre civis e a permanência do recrutamento endógeno, ainda que agora entre os militares de baixa patente.
Palavras-chave: educação dos militares; Academia Militar das Agulhas Negras; Exército; ensino; perfil profissional
RESÚMEN:
En la Academia Militar de Agulhas Negras, se lleva a cabo la formación de oficiales del Ejército Brasileño en sus aspectos profesionales, políticos, sociales y culturales. En este artículo se propone identificar el perfil y cómo se forman quienes, en el futuro, serán generales. Para eso, la investigación utiliza datos cuantitativos del perfil de los cadetes de 2002 a 2012 y analiza características formales de la enseñanza, como currículos y horarios. También ha merecido atención la dimensión informal e igualmente relevante del proceso de aprendizaje: la resocialización del alumno a través de la exposición permanente a situaciones de fuerte carga simbólica, cuando se forman nociones de jerarquía, disciplina y lo que significa ser militar frente a 'civiles'. Las conclusiones dialogan con estudios relacionados, cuestionando al Ejército como imagen de la nación, confirmando tendencias y trayendo noticias, como el crecimiento del reclutamiento entre civiles y la permanencia del reclutamiento endógeno, pero ahora entre los militares de bajo rango.
Palabras clave: educación militar; Academia Militar Agulhas Negras; Ejército; enseñando; perfil profesional
ABSTRACT:
At the Military Academy of Agulhas Negras, officers of the Brazilian Army are trained in their professional, political, social, and cultural aspects. In this article, it is proposed to identify the profile and how those who, in the future, will be generals, are formed. For this, the research uses quantitative data from the cadets' profile from 2002 to 2012 and analyzes formal teaching characteristics, such as curricula and schedules. The informal and equally relevant dimension of the learning process also deserved attention: the re-socialization of the student through permanent exposure to situations with a strong symbolic load, when notions of hierarchy, discipline, and what it means to be military in the face of the 'civilian' are formed. The conclusions dialogue with related studies, questioning the Army as the image of the nation, confirming trends, and bringing news, such as the growth of recruitment among civilians and the permanence of endogenous recruitment, but now among the low-ranking military.
Keywords: military education; Agulhas Negras Military Academy; Army; teaching; professional profile
INTRODUÇÃO
A educação profissional militar é considerada um pilar do controle civil democrático em todo o mundo. Torná-la parte de um sistema educacional sob supervisão civil é objetivo relevante, em particular para as democracias recentes (BRUNEAU, 2016). No Brasil, a autonomia entre os sistemas educacionais civis e militares é prevista constitucionalmente, e foi reafirmada no artigo 83 da Lei de Diretrizes e Bases para o Ensino (Lei 9394/96), que estabelece: “o ensino militar é regulado por lei específica, admitida a equivalência de estudos, de acordo com as normas fixadas pelos sistemas de ensino” (Brasil, 1996). Dessa maneira, cada uma das Forças - Exército, Marinha e Aeronáutica - instituiu seus sistemas de ensino próprios, regulados por leis específicas. Em outras palavras, o Brasil tem quatro sistemas de ensino2, um de ensino civil, controlado pelo Ministério da Educação, e outros três, vinculados a cada uma das forças. No caso do Sistema de Ensino do Exército, compreende basicamente as atividades de educação, instrução, pesquisa, atividades culturais, cursos e estágios realizadas nos estabelecimentos de ensino militares, em que se destacam os 13 colégios de nível médio e as dez escolas de ensino superior ou profissional (Lei 9.786/1999)3. Este texto se debruça sobre uma das escolas, a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), única porta de entrada para o posto máximo da carreira militar - general de quatro estrelas - o que a torna a mais relevante do sistema.
O objetivo deste texto é modesto. Trata-se de avaliar como funciona o ensino na AMAN. Para tanto, dividiu-se o artigo em sete partes, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira, apresenta-se a escola, passando em revista suas origens e simbologia. Depois, debruça-se sobre o perfil do jovem que ingressa na AMAN, avaliando sua origem social e regional e as expectativas do educando. Em seguida, expõe-se a forma de ingresso à AMAN. Na quarta parte, estuda-se como são organizados os cursos, sua divisão, currículo, disciplina e o dia -a dia dos cadetes. Na sequência, discute-se o processo de ressocialização pelo qual passam os estudantes, seguido da apresentação dos processos de avaliação e de dados sobre evasão. Por último, mostra-se a divisão em Armas e seu significado para o oficial que na AMAN é formado. A fonte para essas reflexões vem da bibliografia disponível e dos materiais da própria escola, como os anuários estatísticos, currículo, editais de seleção, legislações, entre outros. O horizonte temporal que fundamenta as reflexões é extenso, mas a produção se concentra no período de 2002-2012.
Ademais da importância do tema em si e para a construção da democracia no país, este texto busca contribuir para a compreensão do comportamento dos futuros comandantes das forças armadas (FFAA) nacionais. Embora analisando uma única escola, é possível extrair elementos da formação das FFAA em geral. Os militares são sujeitos bastante presentes na história política do Brasil, e recorrentemente apresentados como um grupo de excelência em termos de qualificação técnica, ainda que empregados em funções sem ligação com a defesa nacional.
A doutrina ensinada nas escolas é tema relevante. Entretanto, esse texto não se debruça sobre ela, ou sobre as possibilidades de emprego desses cadetes. O’Donnell (1981) fez isso brilhantemente, apontando um grau intermediário na profissionalização das FFAA latino-americanas, que não podiam ser classificadas como guardas pretorianas de ditaduras personalistas e nem como as forças profissionais dos países de capitalismo central. Esse grau intermediário teria relação com a manutenção dos combates internos típicos da Doutrina de Segurança Nacional, um comportamento ditado desde fora, e condizente com o lugar periférico que os regimes burocrático-autoritários latino-americanos, assim como suas FFAA, ocupam no mundo. Esse tema será objeto de futuros trabalhos.
A ESCOLA
Em 1943 foi extinta a Escola Militar no Realengo e criada a Escola Militar de Resende, que em 1951 passaria a ser chamada de Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Ela foi idealizada ainda na década de 1930, pelo General José Pessoa, quando ele comandou em Realengo. A Escola foi uma promessa feita por Getúlio Vargas aos militares na campanha de 19324. Do ponto de vista doutrinário, ela marca a transição da doutrina militar francesa para a influência dos Estados Unidos, recém-vitorioso na Segunda Guerra Mundial e era inspirada no que de mais moderno existia à época. Nos primeiros anos, a formação do oficial da AMAN durava três anos e restringia-se às armas clássicas: artilharia, cavalaria, engenharia e infantaria. A partir de 1958, passaram a ser formados oficiais para a Arma de Comunicações e para o Quadro de Material Bélico e, na década de 1960, para o Serviço de Intendência. Posteriormente, o curso passou para quatro anos em todas as modalidades, unificando as carreiras e nivelando as promoções (ROSTY, 2011). Desde 2012, o curso passou a ter cinco anos, sendo o primeiro cursado na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), em Campinas.
Segundo o site oficial5, a AMAN possui três objetivos:
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formar o aspirante-a-oficial das Armas, do serviço de Intendência e do quadro de Material Bélico, habilitando-o para os cargos de tenente e capitão não aperfeiçoado;
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graduar o bacharel em Ciências Militares;
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iniciar a formação do chefe militar.
Ao ingressar na AMAN, o estudante recebe o título de cadete. Na hierarquia, esse título corresponde a um praça especial, com graduação entre o subtenente e o aspirante a oficial. Rapidamente, da maior para a menor hierarquia: General de Exército, General de Divisão, General de Brigada, Coronel, Tenente Coronel, Major, Capitão, Primeiro-Tenente, Segundo-Tenente e Aspirante, seguindo posteriormente para os praças. O cadete sai da AMAN com a patente de aspirante a oficial, ocupando o posto mais baixo entre os oficiais subalternos. Até hoje, a AMAN diplomou aproximadamente 70 turmas e mais de 20 mil aspirantes a oficiais. A entrada anual é de, em média, 450 jovens e o efetivo total de alunos tem se mantido estável, variando entre 1.600 e 1.750 cadetes (dados divulgados pela Instituição).
Sua localização foi pensada segundo as necessidades para os exercícios militares, no sopé da Serra da Mantiqueira (de onde se vê o pico das Agulhas Negras). Pesava também a necessidade de distanciar os cadetes das agitações políticas dos grandes centros urbanos para melhorar a sua profissionalização. Essa distância, porém, não poderia afastá-los do poder político, daí a escolha de uma cidade do eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Desde um ponto de vista simbólico, construir a escola próximo ao então ponto mais alto do Brasil também fez parte dos critérios de escolha do local (CASTRO, 1994).
O nome da Academia também guarda um conteúdo simbólico, uma vez que as montanhas representam a força, a autoridade e a sabedoria. Seu projeto arquitetônico combinou o que de mais moderno existia em termos de instalações militares à época, somado a um estilo sóbrio. Ela foi projetada de forma a parecer tradicional (BENTO, 2010). Esse conjunto foi ampliado em 1990, como parte do projeto Força Terrestre -90, seguindo as mesmas características.
O termo “castrense”, usado como sinônimo de militar, vem de “castro”, castelo fortificado de origem pré-romana (HOLANDA, 1986). Desde o seu surgimento, era entendido como acampamento ou alojamento militar, sendo hoje empregado para tudo o que toca à vida militar. Na estratégia militar, os castelos eram usados para a proteção da população dos feudos em tempos de guerra, servindo como uma muralha. Por outro lado, eles demarcavam a separação física entre senhores feudais e servos, visto que os primeiros, além de residir no castelo, também eram os responsáveis pela sua defesa, enquanto os segundos não viviam no castelo, mas eram responsáveis por sua manutenção (BENTO, 2010).
A associação entre o termo castrense e castelo permaneceu presente na construção da AMAN. Não porque as formas do conjunto arquitetônico se parecessem com um castelo (mecanismo de defesa absolutamente superado com o moderno aparato militar), mas porque ele simboliza a tentativa de distanciar aqueles que manejam armas (os servidores castrenses) dos demais, usando para isso uma estrutura física de aspecto tradicional e imponente, inspirada na monarquia.
A cidade da AMAN tem população de aproximadamente 12.000 habitantes divididos em três bairros, aparelhos educacionais e de moradia, quatro igrejas/capelas, correio, banco, hospital, clubes, entre outros serviços. Essa organização é necessária, pois a escola funciona em regime de internato. Os cadetes recebem, no próprio local, gratuitamente, moradia, alimentação, uniformes, serviço de lavanderia, assistência médica e dentária, além de um soldo (salário) para suas despesas pessoais.6 Por ter essa estrutura, ela também conta com preocupações ambientais, administrativas, sistema de coleta e tratamento de água e esgoto, entre outros, tudo organizado sob a supervisão de uma prefeitura militar.
No tocante à estrutura educacional, a AMAN conta com um conjunto principal, no qual ficam o comando e a administração , salas de aula, museu, bibliotecas e refeitórios, uma ampla praça de esportes (com dois estádios), parque aquático, quadras diversas, pista de treinamento, centro de reabilitação, academia de musculação, dois ginásios cobertos, centro hípico, auditório (1.150 lugares), teatro (2.821 lugares) e dependências próprias para a instrução militar, como instalações de tiro e a praça das armas. No conjunto principal ficam alojados os cadetes, separados por ano de entrada e Arma escolhida. As matérias do ensino propedêutico e comum são ministradas nas salas de aula e as do ensino profissional têm seu lugar nos parques de treinamento. Após a separação por Armas, até mesmo as matérias do ensino comum são cursadas com a Arma.
Trabalhos etnográficos apontam como aspectos físicos são utilizados para a formação comportamental e a perpetuação das tradições, características subjetivas do processo educacional (CASTRO, 2004). Exemplo disso é o portão monumental na entrada da AMAN, que contém a inscrição “entrada de novos cadetes” e, em seu verso, “saída de novos aspirantes”. Frases motivacionais também estão inscritas nos pátios internos, como aquela que expressa o binômio hierarquia-disciplina que atravessa a vida militar: “Cadetes! Ides comandar, aprendei a obedecer”. Para Godoy (2004), na organização das escolas há a tentativa de identificar o ambiente de estudo com o futuro ambiente de trabalho, favorecendo a construção de uma identidade coletiva; por exemplo, a partir da divisão dos cadetes em pelotões desde o período na AMAN. Verifica-se, portanto, que a infraestrutura foi cuidadosamente pensada de forma a atender aos objetivos da educação militar.
PERFIL DO CADETE
Conhecer o perfil do cadete que é admitido nas escolas é importante para pensar o próprio processo educacional. Em um contexto em que a maioria da população é analfabeta, o primeiro passo para profissionalizar um oficial seria alfabetizá-lo adequadamente. Por outro lado, se a escola tem a maioria das suas vagas reservadas para filhos de militares, é desnecessário investir na ressocialização do aluno, por ele trazer da família valores militares. Ou seja, pensar a educação implica conhecer também quem será o sujeito dessa educação.
Os dados quantitativos atuais foram produzidos para este trabalho baseados nos Anuários Estatísticos da AMAN do período de 2002 a 2012. Eventualmente, apresentamos dados de 2018 ou 2019 para atualizar a informação, mas não tivemos acesso ao período completo. Alguns dados tiveram seu método de mensuração e apresentação alterado durante esse período pela Academia. Nesses casos, a mudança será comentada junto às tabelas e gráficos. Em alguns momentos, para fins de comparação, serão citados (ou incorporados nas tabelas) números de trabalhos similares já realizados sobre a Academia retirados de Castro (2004) e de Stepan (1975), este último largamente utilizados por Carvalho (2005) e Barros (1978). Entretanto, Castro (2019) faz uma importante ressalva sobre como os dados apresentados aqui, e em pesquisas similares, foram originalmente gerados, usados e preservados com finalidades mais cotidianas e práticas, e não como ferramentas para a pesquisa social. “Não explicitar essa diferença e explorar suas consequências pode gerar o 'fetichismo dos dados'” (CASTRO, 2019, p. 11).
Segundo a Estratégia Nacional de Defesa:
É importante para a Defesa Nacional que o oficialato seja representativo de todos os setores da sociedade brasileira (...) a ampla representação de todas as classes sociais nas academias militares é imperativo de segurança nacional. Duas condições são indispensáveis para que se alcance esse objetivo. A primeira é que a carreira militar seja remunerada com vencimentos competitivos com outras valorizadas carreiras do Estado. A segunda condição é que a Nação abrace a causa da defesa e nela identifique requisito para o engrandecimento do povo brasileiro (BRASIL, 2008, p. 20).
Seguindo o mesmo raciocínio, a instituição militar deveria se apresentar como um espelho da nação. Os dados apresentados sobre os futuros oficiais sob diversos aspectos desmentem essa noção.
Em seu trabalho sobre o perfil dos cadetes dos EUA, Janowitz (1964) faz comentários interessantes. Após as duas grandes guerras e o incremento tecnológico, o recrutamento passou a levar em conta mais a habilidade técnica que a classe social de origem. Essa mudança impactou no status e no comportamento das FFAA, pois elas passaram a ser consideradas uma excelente oportunidade de ascensão social pelas camadas médias da população com alta especialização. Permaneceram algumas famílias que tiveram gerações seguidas de oficiais de alta patente, mas elas deixaram de ser comuns. Essa ampliação do recrutamento de técnicos para cumprir funções não estritamente guerreiras modificou a hierarquia organizacional da profissão, com o aumento de oficiais nas camadas intermediárias (JANOWITZ, 1964). Os dados sobre a classe social de origem, cruzados com a escolaridade dos pais e a redução da endogenia, apresentados a seguir, permitem inferir que fenômeno semelhante pode estar ocorrendo no Brasil.
CLASSE SOCIAL
Em estudo estatístico sobre as características dos cadetes da AMAN, Stepan (1975) aborda como a entrada para o Exército era considerada uma possibilidade de ascensão social, especialmente para as classes médias. Nos anos 1941, 1943, 1962 e 1966, cerca de 78% dos catetes tinham como origem social diferentes extratos da classe média. Em contrapartida, inexiste um histórico de entrada de cadetes das camadas mais altas da população. Quando da existência da Guarda Nacional (1831-1922), os aristocratas brasileiros (e portugueses) compunham esse corpo. Depois de sua extinção, a carreira militar, com seus vencimentos e exigências, nunca se mostrou atraente para essas camadas, que poderiam facilmente ter acesso a outros empregos no mundo civil. A esse respeito, Castro (1990, p. 140) elaborou a Tabela 1, simplificada a partir dos dados de Stepan (1975):
A conjunção entre o desinteresse das camadas mais altas e a impossibilidade dos estratos mais baixos serem aprovados na seleção para as academias levou a uma realidade de concorrência baixíssima por essas vagas. Segundo Stepan (1975), entre 1950 e 1965 havia menos de dois candidatos para cada vaga da Academia.
Já para Ludwig (1998) a origem dos oficiais está nos setores privilegiados da sociedade, citando como exemplo o fato de que, em 1989, 60% dos pais dos cadetes tinham nível de estudo superior ou médio. O autor defende também que a profissão “confere certo status, salário razoável, estabilidade empregatícia, oportunidades de viagens para estudo e trabalho tanto no Brasil quanto no exterior” (LUDWIG, 1998, p. 24). Por essas características e por se apresentar como possibilidade de ascensão social, atrai as classes médias, em particular para funções de praças e oficiais subalternos.
Castro (2004) e Barros (1978) formulam críticas à elasticidade do conceito de classe média7 e às classificações de todos os militares em uma mesma classe social, tenham eles origem nos estratos superiores ou subalternos, como apontado na Tabela 2:
Para os autores, esse lento aumento do recrutamento entre os filhos dos oficiais superiores indica que a classificação correta não seria classe média, e sim classe média baixa ou classe baixa qualificada. Da mesma maneira, a origem entre oficiais e praças tenderia a se equalizar. Concorda-se que os dados apontam para o equilíbrio de estratos no recrutamento. Todavia, a classificação dos oficiais superiores como “classe média baixa” parece exagerada.
Os números entre 2002 e 2012, por outro lado, mostram que a tendência de equalização não se confirmou. Os filhos de oficiais superiores raramente chegaram a 30% do total, voltando a patamares próximos da década de 1970. Quando os dados foram separados entre oficiais subalternos e praças, é possível abstrair um crescimento vertiginoso do recrutamento dos filhos de subtenentes e sargentos, acima dos oficiais subalternos. Portanto, o recrutamento acontece especialmente entre os militares de baixa patente.
Sabe-se que a entrada para o Exército acontece mediante concurso público. Por isso, assim como o vestibular representou durante anos um filtro que manteve os filhos das camadas mais pobres da população fora das universidades, os exames de entrada nas academias também serviam como filtro, dificultando o ingresso na AMAN dos originários de estratos inferiores. Entre 2001 e 2010, o crescimento do acesso ao ensino superior no Brasil foi de 110,1% (INEP, 2010), devido a um conjunto de políticas implementadas por Lula e Dilma que ampliaram a entrada nas universidades. Pode-se observar a mesma mudança na AMAN, com a ampliação acelerada da presença dos estratos mais baixos da população entre as fileiras da escola. Pode-se perceber isso avaliando a renda familiar dos cadetes.
Renda familiar dos cadetes matriculados no 1º ano em números absolutos (Inclui cadetes de nações amigas)
Os dados revelam que permanece a ausência do recrutamento entre as camadas altíssimas da população, ou seja, entre a elite militar em formação praticamente inexistem representantes das elites econômicas civis.
ESCOLARIDADE DOS PAIS
Stepan (1975) analisou o padrão escolar dos pais dos recrutas e percebeu que o jovem que entrava nas academias apresentava mais anos de estudo que seus pais, significando mais profissionalização e ascensão daquelas camadas. Portanto, “(...) o ingresso na Academia é um meio de mobilidade ascensional para 61% dos cadetes cujos pais frequentaram oito ou menos anos de escola. Isso indica que o centro de gravidade do recrutamento reside na classe média baixa” (STEPAN, 1975, p. 30). Castro (2004), comentando o período de 1963-1965, sinaliza que o último grau concluído pelos pais dos cadetes era o superior, totalizando, em média, 30% dos casos, reforçando, assim, as conclusões de Stepan.
Os dados da Tabela 3 atualizam estas análises, apontando duas questões. A primeira é que, seguindo tendência de todo o país (INEP, 2010), cresce o número de anos de estudo dos pais dos cadetes, muitos com pós-graduação. A segunda, que permanece a perspectiva ascensional na profissão militar, pois, ao concluírem a AMAN, mais de 50% dos cadetes terão mais anos escolares que seus pais.
Os dados de 2018 não apontam novidades nas tendências, mas merece menção que, possivelmente em decorrência do fortalecimento das discussões de gênero na sociedade e combinada com a entrada de cadetes do sexo feminino, a AMAN passou a mensurar a escolaridade paterna separando as informações de pai e mãe. Na tabela estão apresentadas as informações da escolaridade materna, levemente mais baixa que a paterna.
Uma simples comparação entre os dados coligidos por Stepan e os da Tabela 3 apontam a manutenção da tendência de maior escolaridade dos pais, bem como aumento nos anos de estudos dos cadetes relativamente aos pais, reforçando a tendência de ascensão social dos jovens militares. Assim, ainda que considerando os problemas apontados relativamente à classificação de classe média, pode-se dizer que a origem social dos oficiais do Exército está nesta classe, com alguma tendência, apontada pela maior escolarização e renda, para os estratos superiores (não baixos, como indicava Stepan) desta classe.
ENDOGENIA
Vários estudos enfatizam a endogenia nas FFAA, ou seja, a tendência a haver recrutamentos e relacionamentos apenas entre os pares do próprio meio militar. Segundo Stepan (1975), em 1939, 61% dos cadetes da Academia Militar tinham origem nos colégios civis. Entretanto, de 1962 a 1966, apenas 7,6% tinham origem civil, invertendo completamente o quadro. Isso pode ser explicado pelo desenvolvimento, na década de 1950, de um sistema de colégios mantido pela organização militar para os filhos dos militares, origem de boa parte dos cadetes. O autor reconhece que a consequência desse tipo de recrutamento levou ao corporativismo entre os militares e ao “afrouxamento dos seus laços com os civis no período anterior e posterior à tomada do poder em 1964” (STEPAN, 1975, p. 35).
Analisando os dados entre 1976 e 1985, Castro (2004) notou que 85% dos ingressantes na AMAN já haviam tido algum tipo de experiência em escolas militares. Para apenas 15% dos cadetes as marchas, continências e uniformes eram novidades. Independentemente dos números, os primeiros meses na AMAN seriam para ensinar esses conteúdos e homogeneizar o grupo o mais rapidamente possível. “Os oficiais procuram em todas as situações dispensar o mesmo tratamento e exercer a mesma pressão sobre todos os cadetes” (CASTRO, 2004, p. 25). Mesmo assim, aqueles que tinham contato prévio com o meio militar conseguiam adaptar-se mais rapidamente.
Em comparação com o período 1976-1985, os dados do período 2002-2012 exibem drástica redução no número de cadetes que vêm de colégios militares. Conforme exibe o gráfico 3 abaixo, há, praticamente, uma inversão, pois, em média, 75% dos ingressantes têm sua origem em outros estabelecimentos de ensino civis. Em números absolutos, o ano de 2008 representa o pico de ingressos externos. Do total de 465 cadetes ingressantes (100%), 81 tiveram origem em colégios militares (17%), 371 estudaram em colégios civis (80%) e 13 são estrangeiros (3%).
Além da origem nas escolas militares, para relatar a endogenia, conhecer a profissão dos pais é imprescindível. A partir dos dados de Stepan (1975), Castro (2004) amplia o recorte temporal, o que completamos com o período mais recente, como apresentados na tabela:
Castro (2004) ressalta que o recrutamento endógeno predominou até a década de 1980, tema debatido também por Barros (1978), para quem “a maior clivagem da nação pode vir a ser entre civis e militares. A endogenia e a especificidade do padrão de socialização são processos que se reforçam mutuamente” (BARROS, 1978, p. 66). Todavia, a tendência de crescimento endógeno não se confirmou, como mostram os dados do gráfico 4, que indicam tendência à queda no número de alunos com pais militares.
Os dados coligidos para os anos 2000 (gráfico 4), mostram que havia uma tendência de queda na endogenia, com o ano de 2010 apresentando o mais baixo percentual de pais militares, com 32,6%, e os anos de 2011-12 indicando nova tendência de aumento da endogenia. Ao analisar todo o período de 10 anos, detecta-se uma média ao redor de 40% de cadetes oriundos de família militar - e, portanto, apontando relativo equilíbrio entre recrutamento no meio civil e no militar. Porém, como discutido anteriormente, o recrutamento endogênico maior está nos praças, reforçando tendência de ascensão social dos novos oficiais.
É difícil dizer se o ano de 2019, apresentado no gráfico acima, representa uma tendência ou se refletiu um momento específico. Todavia, o que é significativo é que ali se apresenta o menor ingresso de filhos de militares de toda a série apresentada, revertendo as análises tradicionais sobre educação militar: a endogenia já não seria realidade.
Uma explicação oferecida por Janowitz (1964) é que prevalece no alto oficialato um sentimento de que seu padrão salarial está aquém do de outras elites, como os de altos cargos administrativos, e essa insatisfação é repassada aos filhos. A carreira oferece salários bons para um servidor público, mas esses dividendos são menores que no setor privado. Outro fator é a distância entre o menor salário e o maior salário, que no mundo militar é muito menor que no civil. Os melhores incentivos são extra salariais, como sistema de saúde e previdência próprios.
ORIGEM REGIONAL
O Exército está no imaginário popular como força nacional, em virtude de ter espalhado ‘Tiros de Guerra’9 por todo o território. Esta crença não é corroborada por Stepan (1975). Entre 1964-1966, poucos cadetes eram recrutados no Nordeste, ou em grandes centros como São Paulo. O número mais representativo vinha do estado da Guanabara, antiga cidade do Rio de Janeiro, contribuindo com aproximadamente de 40% do ingresso. Considerando a divisão regional, os dados de Castro (2004) e os do período 2002-2012 corroboram a análise.
Esses números ajudam a entender melhor a questão do corporativismo na profissionalização. Boa parte dos cadetes vinha do estado da Guanabara, pois este também era o estado com a maior concentração militar do Brasil, antiga capital do país. Entretanto, se esta fosse a explicação para a concentração de cadetes, haveria deslocamento para Brasília no pós-1961. Contudo, o percentual mais expressivo do Sudeste atinge 66,1% em dois momentos: 1984-1985 e 2019. Isso indica que continuou a haver concentração de instituições militares nesta região, apontando que ali estavam as famílias militares. Porém, como parece que a endogenia foi revertida, a região originária não parece explicar-se pela origem familiar.
De toda forma, o destaque são as contínuas taxas do Sudeste, somando sempre mais de 50%. Cadetes originários do Centro-Oeste, onde fica a capital federal, mais que dobraram da década de 1980 para a de 2000, porém, ainda que apresente crescimento, não chega a 10% dos ingressantes. Ademais, quando se desagregam os dados, vê-se que os números apresentados pelos estados que a compõem são semelhantes. Também se manteve relativamente estável, com percentuais muito baixos, a região Norte. A região Nordeste foi a que mais oscilou. O mesmo raciocínio se aplica à região Sul, que mantém índices mais baixos que na década de 1960. A explicação para os números apresentados, pelo menos até 2012, parece estar na endogenia. Portanto, as escolas de oficiais continuam não sendo um reflexo regional do Brasil. Elas são, na realidade, um reflexo da própria corporação.
Os dados de 2019, como informado, desmentem a tendência à endogenia, pedindo outra explicação. Referente à origem regional, pode-se aventar, então, duas hipóteses: 1) há um volume maior de informação sobre as escolas militares justamente no local em que estão baseadas - Campinas, interior de São Paulo (EsPCEx) e Resende, interior do Rio de Janeiro; 2) é a região de maior desenvolvimento do país, o que implica em ser a que oferece as melhores oportunidades de empregabilidade. Nesse caso, a opção pela carreira militar seria um cálculo de custo-benefício: é uma profissão que oferece pouco risco, muita estabilidade e ganhos razoáveis frente ao investimento necessário. Além disso, diferente das universidades civis, o estudante que ingressa na carreira militar recebe salário (soldo) desde o primeiro momento e os anos de estudo contam para a aposentadoria (reserva), diferenciações mantidas com a reforma da previdência militar (Lei 13.954/2019).
Importa lembrar, a favor das hipóteses, que a maior procura de sudestinos pelo ingresso na carreira acontece em momentos de incerteza econômica e política: os anos 1980 foram chamados de ‘década perdida’. Em 1984 não se sabia o que esperar do futuro - foi o ano das grandes manifestações em prol das eleições diretas - enquanto 1985 foi aquele do início do primeiro governo civil, com a decepção causada pela morte de Tancredo e a posse de Sarney garantida pelos militares no governo. Em 2019, há a grande participação de membros de farda no governo e ganhos financeiros individuais e na carreira, mesmo em uma situação de crise econômica.
Outro dado a se destacar é a queda vertiginosa representada pela região Nordeste em 2019, saindo de 16,9% (2012) para 3,8% (2019), o que representa um decréscimo de praticamente 75%. Também é a região que apresenta maior oscilação entre os períodos.
FORMA DE INGRESSO
Estudiosos divergem sobre as motivações que levam um jovem a escolher a carreira militar. Para Huntington (1996), o motivo é um sentimento vocacional baseado no “amor técnico por sua habilidade e no senso de obrigação social para utilizar essa qualidade em benefício da sociedade” (HUNTINGTON, 1996, p. 33).
Em sentido oposto, Andreski (1968), argumenta que o recrutamento dos soldados dos Estados ex-coloniais origina-se na periferia do sistema. Perlmutter (1977) traz reflexões semelhantes, afirmando que o recrutamento dos soldados pretorianos está nas camadas pobres da população. Assim, ambos convergem para as motivações financeiras na escolha profissional.
Em Janowitz (1964) tem-se análise mais completa, com quatro motivos principais para a escolha da carreira de militar: a) tradição e herança familiar; b) desejo por continuar estudando e avançar socialmente (na carreira militar ou em outras); c) experiência de batalha ou vivência em um cenário de guerra; e d) ambição pessoal, pois ser militar oferece respeitável nível de segurança individual em tempos de paz, além de prestígio. Também seriam possíveis motivações difusas como o desejo de uma carreira ativa, do tipo “atlética”.
Cabe lembrar que no caso do Brasil, a opção c) aventada por Janowitz não ecoa na realidade, pois a experiência nacional em cenários de guerra é limitada. Também a opção a) parece cada vez mais limitada enquanto explicação. Assim, é provável que as explicações b) e d) sejam as mais adequadas ao caso brasileiro. Assim, ainda que exista algum grau de “vocação profissional” na escolha da carreira militar, a opção econômica é forte. Esse fenômeno causa o crescimento dos oficiais “carreiristas”, aqueles que não têm identidade ou interesse em se tornar um militar, escolhendo a carreira pelo status e pelo dinheiro. Com tempo e doutrinação adequada, teoricamente, mesmo os carreiristas deveriam incorporar o ‘espírito de corpo’.
Há uma única forma de ingresso na AMAN: aprovação em concurso público para a EsPCex.10 Anualmente são oferecidas até 500 vagas11 e para concorrer a elas é preciso ser brasileiro nato, solteiro, do sexo masculino ou feminino, ter entre 17 e 22 anos (completados até o fim do ano da matrícula) e ter concluído ou estar concluindo o ensino médio. Primeiro, o candidato é submetido a provas de exame intelectual. Caso aprovado, é convocado para provas de inspeção de saúde, exame de aptidão física, averiguação de idoneidade moral e comprovação dos requisitos biográficos. Posteriormente, é matriculado e passa a ser um militar da ativa do Exército Brasileiro, estando sujeito à legislação militar.
Importante demarcar que o recrutamento para as escolas de formação de oficiais é absolutamente voluntário, portanto, os jovens escolhem a carreira nas FFAA. E mais, essas escolas costumam ser bastante concorridas. No exame de 2019 para a EsPCEx, por exemplo, foram 40.443 candidatos inscritos para 445 vagas, praticamente 91 candidatos por vaga. Quando segmentados por gênero, verifica-se dificuldade maior para as candidatas. No caso delas, a média foi de 243 candidatas por vaga.12
ORGANIZAÇÃO DO CURRÍCULO
Desde 2012, o curso básico para a formação de oficiais tem duração de cinco anos em regime de internato, com saídas ocasionais, mediante autorização. A formação está dividida em três fases: um ano básico - cursado na EsPCEx -, um ano avançado e três anos nas Armas, Quadro ou Serviço, os últimos quatro anos cursados na AMAN. Essa mudança é reflexo do novo perfil do cadete e das novas necessidades da Força (VIEIRA, 2011).
O ensino compreende três áreas: fundamental, profissional e militar. O ensino fundamental visa dar ao cadete uma cultura geral necessária à carreira. Já o ensino profissional objetiva proporcionar o conhecimento técnico para atuar até o posto de capitão. Durante o primeiro ano na AMAN, todos os cadetes fazem os seus estudos em comum. Após a escolha da Arma, o ensino profissional varia em razão das necessidades da especialidade escolhida. O treinamento militar, embora não esteja necessariamente expresso no currículo, faz parte de um intenso processo de ressocialização. Nesse percurso, destaca-se a prática de esportes. Os treinamentos físicos, além de aprimorar a resistência física necessária ao exercício profissional, ajudam a desenvolver o espírito de corpo (VIEIRA, 2011).
Os cinco anos são organizados baseados na pedagogia por competências que, a partir da gestão de talentos e de pessoal, tenta adequar o talento do educando (competências natas e adquiridas) às necessidades da instituição.13 O Exército define por competência militar a “capacidade de mobilizar ao mesmo tempo e de maneira interrelacionada conhecimento, habilidade, atitude, valores e experiências para decidir e atuar em diversas situações” (VIEIRA, 2011, p. 78). Portanto, as competências foram pensadas para as múltiplas possibilidades de emprego militar e para os futuros cenários de conflito.
Para desenvolver competências, foram propostas mudanças no currículo. Os estabelecimentos de ensino militar, inclusive a AMAN, adotam o modelo de disciplinas isoladas. As mudanças sugerem que, durante os três últimos anos na AMAN, o cadete possa optar por disciplinas eletivas, segundo áreas de interesse definidas pelo Exército. No quinto ano também estão previstos cursos e estágios na tropa. Essas atividades práticas são uma preocupação histórica das escolas. Para isso, são utilizados exercícios de adestramento, jornadas e campo, estágio na tropa (que é quando o cadete experimenta o cotidiano em uma unidade da sua Arma) para que ele execute as funções de comandante e líder de pequenas frações (pelotão e seção) e de subunidade (companhia, bateria ou esquadrão).14
Com essas mudanças na organização das disciplinas, a AMAN enfrenta um desafio antigo: o reconhecimento do mundo acadêmico em geral, pois embora o concluinte da Academia receba o título de bacharel em Ciências Militares, as disciplinas da AMAN não têm paridade com as civis, seja em nomenclatura, carga horária ou assuntos. O título de bacharel existe desde 1994, mas a área de Ciências Militares foi delimitada pelo General Peri,15 apenas em 2010, como sendo “o sistema de conhecimentos relativos à arte bélica, obtidos mediante pesquisa científica, práticas em escolas militares, experiências em observação de fenômenos guerra e conflitos, valendo-se de metodologia própria do ensino superior militar” (VIEIRA, 2011, p. 78), e reconhecida pela CAPES no mesmo ano.
A rotina dos cadetes é extremamente apertada ao longo do dia, sobrando pouco tempo para atividades escolhidas individualmente. Durante o período de adaptação, por exemplo, são previstas atividades das 6h às 22h, sem horários livres. De forma geral, os horários de segunda a sexta-feira seguem o cronograma sintetizado no Quadro 1:
Mesmo com tantas horas à disposição da escola, existem dificuldades para a montagem do currículo. Ele é desenvolvido por especialistas - professores, assessores e técnicos - e necessita de aprovação do Departamento de Ensino do Exército (DECEx). Cada instituição monta o seu currículo, porém, devido à necessidade da autorização do DECEx, essa autonomia é limitada.
A frequência às aulas é obrigatória, sendo considerado ato de serviço (assim que ingressa na Academia, o cadete começa a ter o tempo de serviço contado para a sua ida para a reserva). A seguir (Quadro 2), o currículo atual, organizado em cinco anos e totalizando 5.782 horas/aula (h/a)16.
Como em qualquer outra escola, o desafio permanente é a distribuição de horas/aula entre os diversos conteúdos. Ainda que a AMAN funcione em regime de internato, é comum a observação de que mais tempo seria necessário para o desenvolvimento de algumas atividades ou que certas disciplinas demandariam maior carga horária. Pode-se observar o movimento de valorização do aprimoramento em línguas, bem como de disciplinas de Direito e de Relações Internacionais, totalizando 900 h/a, fruto do maior envolvimento dos militares com as Missões de Paz das Nações Unidas. Chama também a atenção a carga horária de 1.267 h/a da disciplina Desenvolvimento da Identidade Militar, dispondo, sozinha, de quase 22% do curso.
Currículo Básico AMAN organizado por grandes áreas: humanidades, exatas, aplicadas e militares
A responsabilidade pelas disciplinas da área básica é da Divisão de Ensino, e da área profissional é o pelotão da AMAN. Apesar dos documentos sobre modernização do ensino expressarem o desejo de equacionar as áreas, em termos gerais não é isso o que se materializa, apontando que o objetivo principal do ensino é a criação do espírito de corpo. Essa desproporção se reflete em uma relação também assimétrica entre os docentes, com sobrevalorização dos instrutores das Armas em detrimento dos professores das demais áreas, numa reedição da velha discussão entre militares ‘tarimbeiros’ e ‘intelectuais’. Ao contrário da crença comum, é baixíssima a presença das exatas e das ciências aplicadas no currículo.
Para atividades além das previstas no quadro de aulas, a AMAN reserva algumas horas para matérias complementares, como pode ser visto no Quadro 4, abaixo.
Neste quadro, destaca-se o número de horas destinadas a NAVAMAER, jogos esportivos em que competem as três Forças e um dos poucos momentos em que os cadetes do Exército têm contato com seus pares da Marinha e da Aeronáutica. Neles, também “se pôde realizar encontros entre docentes, instrutores e alguns alunos não atletas” (GODOY, 2009, p. 7).
O PROCESSO DE RESSOCIALIZAÇÃO DOS CADETES
Tomando as escolas como instituições históricas, tradições são desenvolvidas nesses espaços com o objetivo de conformar o ambiente ideal para educar o “espírito militar” dos aspirantes. Refletindo sobre West Point e Annapolis, Janowitz (1964) faz afirmações que podem ser aplicadas à AMAN. O autor entende as academias como espaços nos quais padrões de comportamento do militar profissional são construídos. Além das habilidades técnicas, é ali que o estudante recebe a doutrina de como ser um líder militar, guardião da moral e da honra. Isso pode ser observado no forte simbolismo histórico que as escolas carregam. Bandeiras e objetos de guerras enfrentadas, materiais de militares que se tornaram heróis nacionais e cerimônias repetidas, algumas há mais de um século, são fontes de aprendizado sobre a história da guerra e da própria Força, tão importante quanto o estudo sistemático em manuais ou em sala de aula (JANOWITZ, 1964).
O jovem ali está exposto a etapa de definições e aprendizagem de “como ser militar”, principalmente, pelo dia-a-dia na academia e na socialização com colegas e oficiais. O esforço é para que o cadete aprenda valores, atitudes e comportamentos tomados como apropriados à vida militar. Assim, “é na interação cotidiana com outros cadetes e oficiais que o cadete aprende como é ser militar” (CASTRO, 2004, p. 15).
Na AMAN existem diversos rituais e normas para auxiliar o processo de ressocialização. Parte disso está, inclusive, expresso nas Normas Gerais de Ação (NGA), documento que o cadete recebe com instruções sobre como se comportar, como deve ser a marcha, o uniforme, e com a descrição minuciosa do ritual a ser cumprido para cada atividade. Também estão previstos no NGA, com alto grau de detalhamento, prescrições para o comportamento extraclasse: como dançar, como manter o cabelo e os alojamentos etc.
A intensidade dessa ressocialização é tão grande que alimenta a discussão se as escolas militares podem ser consideradas instituições totais. Assim que ingressam na escola, ainda durante o processo de adaptação, o choque cultural já começa com treinamentos coletivos de marchas, continências, posturas militares, educação física, os regulamentos da Academia, recebimento de uniformes etc. Esse é um momento de muita pressão, pois não existem licenças, ordens são recebidas durante todo o tempo, ocorrem humilhações e há aumento na exigência física. É uma espécie de teste do grau de comprometimento dos cadetes com o desejo de seguir carreira militar, assim como sua motivação e autocontrole. Os novatos são exortados a desistir e a abandonar a Academia (CASTRO, 2004).
Os maiores responsáveis por essa pressão sobre os cadetes são os tenentes, seus superiores imediatos. Como em tudo mais da hierarquia militar, os cadetes precisam respeitar a sua cadeia de comando e raramente têm contato com oficiais superiores. Embora os tenentes sejam os mais duros na disciplina militar, são também os que conhecem os cadetes em detalhes. Eles registram ao longo do ano o desempenho, punições, licenças médicas, elogios e tudo mais sobre cada um dos seus comandados. Este período é próprio das academias miliares, ocorrendo não apenas na AMAN, mas em outras escolas militares, como West Point, e recebe o nome de beastbarracks:
O próprio termo sugere que se trata de algo como um tratamento de choque, destinado a impressionar o novo cadete com a ruptura que ele efetuou em relação à vida civil, a erradicar quaisquer hábitos desleixados que ele possa ter adquirido, a dar-lhe a confiança que provém do enfrentamento e da conquista de uma dureza apropriada e a uni-lo estreitamente a seus companheiros que são submetidos à mesma experiência (MASLAND; RADWAY apudCASTRO, 2004, p. 35).
Segundo Janowitz (1964), para um ente externo ao mundo militar, essa transição pode ser repulsiva, mas tem um motivo: é como uma seleção para entrar em uma fraternidade. Quando os potenciais oficiais deixam de ser os “calouros” das escolas, eles vão sendo admitidos como um membro da corporação ou mais, como um membro da fraternidade, algo que também existe em algumas universidades e cursos civis, mas com menor força.
A partir daí, “a educação militar passa a ter uma grande influência na transformação pessoal, e isso é sentido pelos novos alunos que passam por um processo de despersonalização individual” (LUDWIG, 1989, p. 8). O primeiro ensinamento da ressocialização é o pilar da hierarquia e disciplina, base da formação que rege toda a vida da instituição, diferenciando tarefas, status e papéis no interior do mundo castrense. O estudante aprende que o fato de ocupar determinado posto “implica executar uma atividade específica e isso determina a conduta e estrutura as relações de comando e obediência, [...] sistematizando a ação e a elaboração do conhecimento militar” (FÁZIO, 2008, p. 68).
A hierarquia militar tem, entretanto, um componente diferente de outras organizações hierárquicas. “(...) [P]ode-se dizer que, de certa forma, eles (um capitão ou um general) são cadetes com alguns anos de experiência e idade a mais. Todos são oficiais e comungam o mesmo espírito militar” (CASTRO, 2004, p. 26). Os cadetes podem, portanto, ter a expectativa de, terminada a AMAN, serem inseridos na cadeia de ascensão que, mais rápida ou lentamente, irão galgar; e os tenentes que os pressionam, tornam-se modelos de futuro.
Os oficiais superiores apresentam-se para os cadetes como modelos diferentes, pois a hierarquia se manifesta de duas formas: na ascendência a partir da autoridade (que produz o chefe) e na ascendência por meio do prestígio (que produz o líder). O chefe tem sua autoridade derivada do posto que ocupa, e não das suas características individuais. Embora um Exército profissionalizado deva ter preferência pelo chefe, tão preso às normas quanto o restante do sistema, Castro (2004) identifica a preferência dos cadetes pelo líder, capaz de arrastar pelo exemplo.
Finalmente, importa recordar que a ascensão na hierarquia não vem apenas da antiguidade, mas também combinada com avaliações de mérito. A posição na hierarquia influencia, inclusive, as amizades travadas na escola. Relações de amizade entre hierarquias distintas existem, porém não são estimuladas. Percebe-se isso até mesmo na separação dos cadetes de cada ano nos alojamentos, um dos poucos ambientes informais de socialização (CASTRO, 2004). Segundo Fázio (2008), a grande preocupação é com a promiscuidade, que ocorre quando um oficial de nível superior se relaciona com subtenentes e sargentos sem a presença de oficiais subalternos, quebrando a cadeia hierárquica, o que pode levar ao desprestígio entre os colegas da mesma patente.
Além da hierarquia, outro valor fundamental para a ressocialização é a disciplina. Ao chegar à EsPCEx, o cadete aprende que deve acatar as regras da instituição disciplinadamente, adaptando-se ao meio. Ele passa a pedir permissão mesmo para as atividades mais comuns, como tomar banho ou fumar, abrindo mão do seu livre arbítrio.
Diferentemente da hierarquia, dos presentes (apliques, botões, medalhas) no fardamento e que indicam as patentes, dos cursos executados e da arma escolhida, a disciplina é intangível. Entretanto, é ela que determina a conduta do militar: a continência, a formação, o respeito e a rigidez corporal. Em outros termos, enquanto a hierarquia explicita uma imagem do militar, a disciplina evidencia os valores da autoimagem castrense. Assim, “a disciplina transmite valores, deveres e direitos da instituição castrense ou da vontade coletiva para o oficial em particular”, conformando as características que devem orientar a honra militar (FÁZIO, 2008, p. 77). São valores morais e não econômicos, expressos no Estatuto dos Militares:
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- o patriotismo, traduzido pela vontade inabalável de cumprir o dever militar e pelo solene juramento de fidelidade à Pátria até com o sacrifício da própria vida;
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- o civismo e o culto das tradições históricas;
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- a fé na missão elevada das Forças Armadas;
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- o espírito de corpo, orgulho do militar pela organização onde serve;
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- o amor à profissão das armas e o entusiasmo com que é exercida;
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- o aprimoramento técnico-profissional.
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(BRASIL, 1997, p. 13-14).
Esses valores aprendidos na escola funcionam como um divisor de águas entre civis e militares. Segundo Fázio (2008), as organizações civis pautam-se pela legalidade e pelo individualismo, enquanto as organizações militares subordinam-se à honra e ao juramento ao Estatuto Militar. “É a obrigação moral do militar sacrificar-se em defesa da Pátria que o faz sentir-se diferente do civil, que apenas envolve-se em momentos excepcionais, por adesão voluntária, podendo se retirar quando quiser sem se comprometer ou prejudicar” (FÁZIO, 2008, p. 81).
Atualmente, há dúvidas sobre essa última afirmação. Em primeiro lugar, Shy (2001), em ampla revisão sobre a guerra em suas múltiplas formas, aponta o quanto a população civil é envolvida nos conflitos, sendo diretamente afetada por eles. Em segundo lugar, discute-se que o comportamento militar se orienta por expectativas pragmáticas, como finanças ou estabilidade, em detrimento do juramento de entrega da vida, particularmente em países como o Brasil, com baixas expectativas de envolvimento em guerras. Por fim, cabe perguntar se com o fortalecimento da institucionalização dos conflitos, as FFAA não passaram também a ser regidas pelos princípios da legalidade, como exemplifica a inclusão de disciplinas sobre Direito Internacional no currículo da AMAN. Portanto, o divisor de águas entre civis e militares pode situar-se em outros elementos e interesses, e não nas suas percepções sobre a guerra.
AVALIAÇÃO E EVASÃO
O processo de avaliação na AMAN é resultado de uma combinação de critérios verticais e horizontais. O primeiro critério é a assiduidade nas atividades. Outro, são as notas dos avaliadores e oficiais superiores sobre atributos cognitivos, afetivos, psicomotores e morais. A nota mínima exigida para prosseguir no ano seguinte é cinco. Caso o cadete obtenha menos de cinco em duas disciplinas, ele prossegue e cursa simultaneamente no ano seguinte as disciplinas “devidas”. Caso seja reprovado em mais de duas disciplinas, ele perde todo o ano escolar. Estes dois critérios compõem a avaliação feita pelos superiores.
Um terceiro critério é a avaliação pelos colegas de turma, que atribuem notas para entusiasmo profissional, lealdade, discrição, disciplina, aptidão para a chefia e para o trabalho em grupo, resistência física etc. Ou seja, o desempenho individual do militar não depende apenas da avaliação dos superiores, mas também do seu próprio grupo. São avaliados o espírito militar e outros elementos do comportamento, o que reforça o espírito de unidade, a disciplina e a estrutura militar. É um conceito horizontal, emitido pelos pares (CASTRO, 2004).
O próprio cadete só tem acesso ao seu conceito final. Castro (2004) chama a atenção para um aspecto interessante: os instrutores e professores têm acesso a todas as notas recebidas pelo cadete. Com isso, eles podem cruzar suas impressões pessoais sobre cada discente com as notas emitidas pelos colegas, não raro descobrindo que alunos que eram por eles bem avaliados são tidos pelos companheiros de turma como desleais ou arrogantes, por exemplo.
A competição entre os cadetes é mediada pela coesão social da corporação. O sistema de ranking para estimular a competição e a ambição dos cadetes é, ao mesmo tempo, a base de um sistema de solidariedade entre eles. É difícil se destacar dentro da grade apertada da AMAN, pois sobra pouco espaço para o brilhantismo e inovação individuais. Os cadetes precisam tentar se mostrar sob limites bem estreitos, assim como os superiores desejam ao buscar os talentos. A competição pelo mérito ocorre com base em regras muito rígidas, de modo a não colocar em risco um pilar do espírito de corpo, que é o companheirismo (CASTRO, 2004).
Como discutido até aqui, e embora as condições para competir dentro da Academia sejam mais igualitárias do que no universo civil em geral, uma vez que são garantidos aos cadetes elementos básicos como moradia, alimentação e material didático, existem diferenças internas às FFAA, assim como na própria escola. A principal delas é a rede de relações familiares e a origem militar dos cadetes. Segundo Ribeiro (2005), as decisões de mérito são permeadas por relações pessoais de amizade e de influência, a maioria delas formada no último ano da escola, quando o estudante conclui o curso e escolhe seu local de serviço. Portanto, é impossível criar um ambiente de absoluta igualdade de condições para a concorrência entre eles.
Uma das principais funções da avaliação é a distribuição dos cadetes entre as Armas. Ao concluírem o segundo ano de curso (fim do primeiro na AMAN), os cadetes são chamados um a um, pela sua ordem de classificação, para a escolha da Arma, Quadro ou Serviço que cursarão nos próximos anos e no qual servirão por toda a carreira, segundo as vagas estabelecidas pelo Estado-Maior. Isso significa que os últimos colocados ficam sem opção. A classificação também interfere no local para o qual o militar servirá após a formatura, assim como nas promoções que receberá ao longo de toda a sua carreira. Além disso, a preocupação em ser o melhor é sempre presente, pois este é um componente essencial da honra militar. Outro caminho para o destaque pessoal é o bom desempenho esportivo, quando alguns cadetes se tornam membros de equipes, frequentando competições (VIEIRA, 2011).
Conquistar o primeiro lugar é uma meta constante. A figura de “01 de turma” é quase mítica, confere grande prestígio não só dentro da AMAN como durante toda a carreira. O simbolismo do primeiro da turma é reforçado na formatura: o 01 receberá a Espada de Caxias, patrono do Exército, das mãos do presidente da República ou de seu representante. Aqueles que atingem o primeiro lugar na AMAN, EsAO - Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais - e ECEME - Escola de Comando e Estado Maior do Exército - são chamados de “tríplice coroados” e chegarão ao generalato (CASTRO, 2004).
Essa vinculação entre as notas e o local onde servirão no futuro gera uma distorção na aprendizagem, identificada no Plano de Modernização do Ensino do Exército (1995). “A conquista de notas mais altas tem por objetivo predominantemente obter melhores condições de escolha de unidade, em detrimento do fim essencial do estudo, a adequada preparação para o exercício de cargos e de funções militares” (BRASIL, 1995b, p. 5).
Mesmo com a importância de se conseguir boas notas e da sua relativa dificuldade, pode-se observar que há baixa evasão de cadetes, que não chega a 5% de todo o efetivo, como mostra a Tabela 5.
É visível o quanto o primeiro ano é atribulado, pois é o período em que ocorre o maior número de desistências. Destaca-se que esses números correspondem ao período pós-matrícula, o que exclui aqueles que desistiram ainda na fase de adaptação. Esses números repetem a tendência sugerida por Castro (2004) nos dados de 1987, quando 78 cadetes evadiram de um universo de 1.473.
Em todos os anos, o número dos que saíram voluntariamente da AMAN supera o de desligamentos. As desistências por interesse próprio se concentram no primeiro ano. Após esse período, pode-se inferir, pelo baixo número de desligamentos efetuados, que há forte interesse por parte da escola em manter nos seus quadros cada um dos cadetes matriculados. No entanto, são necessários outros estudos para saber se no decorrer da carreira o patamar de evasão se mantém baixo. A respeito, cabe comentar que nos números sobre evasão não constam a origem anterior dos cadetes, se civis ou militares. O cruzamento entre esses dois dados poderia indicar se os cadetes de origem civil tendiam a evadir mais ou menos, em virtude da dificuldade de se adaptar à escola.
AS ARMAS NO EXÉRCITO
Após o fim da Etapa Avançada de Instrução Comum, o cadete escolhe, segundo a ordem de classificação, um curso para se especializar. Os cursos são: Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia, Comunicações, Material Bélico e Intendência. Cada Arma, Quadro ou Serviço tem suas representações coletivas, como: patrono, tradições, canções, comportamentos, entre outras características variadas, como o jeito de marchar. Segundo Castro (2004, p. 56), isso ocorre para que cada Arma forme um espírito particular. A escolha é muito importante, pois definirá o futuro profissional do indivíduo. De forma geral, “(...) quem ficar insatisfeito com a Arma em que ingressou, ou continua insatisfeito ou abandona a carreira” (CASTRO, 2004, p. 56)
Conforme Inácio Filho (2000, p. 3), o conceito de representação coletiva foi proposto por Durkheim, na busca por entender os mecanismos que garantem a coesão social. Ele concluiu que “através de imagens - tatuagens, cocares, brasões - os grupos sociais podem referir-se a si mesmos, regular seu funcionamento, sua hierarquia e as diferenciações entre seus membros” (INÁCIO FILHO, 2000, p. 3). Por meio de seus símbolos, em particular os iconográficos, se constrói uma identidade ao redor de cada uma das especialidades da AMAN.
Além das características subjetivas, medidas objetivas são tomadas para fortalecer a identificação de cada cadete com a sua Arma. Os alojamentos, as refeições, as aulas teóricas e práticas e tudo mais é feito com outros cadetes da Arma escolhida. Isso possibilita que exista, muitas vezes, mais interação com membros da própria Arma de diferentes anos do que com cadetes da própria turma (CASTRO, 2004).
Na tentativa de criar este espírito de corpo, é estimulado algum nível de rivalidade entre as especialidades. Sob esse aspecto, elas não são avaliadas horizontalmente, percebendo a sua contribuição para o combate, e sim verticalmente, hierarquizando umas sobre as outras. Segundo Castro (2004), essa hierarquização ocorre de duas formas. A primeira é uma grande valorização entre os cadetes que entram nas Armas consideradas mais combatentes em detrimento daquelas consideradas menos combatentes, sendo a Infantaria a melhor de todas elas.17 Nesse ponto de vista, “a ação é vista como mais importante que o estudo, não somente porque ela dá preparo físico, rusticidade e união, mas também porque é nela que se forjam os líderes” (CASTRO, 2004, p. 68). A segunda hierarquização atribui mais valor às Armas Técnicas, “associadas à cognição, à maior proximidade com o meio civil, à mudança e modernização” (CASTRO, 2004, p. 95).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise do perfil social dos cadetes, na esteira de estudos similares, questiona o mito de que o Exército é um reflexo da sociedade. A profissão confere certo status, salário razoável, estabilidade empregatícia, benefícios sociais, oportunidades de viagens para estudo e trabalho tanto no Brasil quanto no exterior. Por essas características, atrai as classes médias, apresentando-se como uma possibilidade de ascensão social, em particular sobre praças e oficiais subalternos. Quando terminarem a Academia, mais de 50% dos cadetes terá estudado mais que seus pais. Considerando os dados até 2012, em média, um quarto da turma vem de famílias que recebem até cinco salários mínimos. Por outro lado, permanece o elemento do baixíssimo recrutamento entre as camadas altíssimas da população.
Por isso, entende-se que os cadetes escolhem a carreira basicamente por quatro motivos: a) tradição e herança familiar; b) desejo por continuar estudando e avançar socialmente (seja na carreira militar ou em outras); c) carreira atlética e guerreira (adrenalina); d) ambição pessoal, pois ser militar oferece respeitável nível de segurança individual em tempos de paz, além de prestígio. Em outras palavras, a imagem de sacerdócio não condiz com as motivações.
Outra questão relevante é a endogenia, que já foi muito forte, com 70% de recrutamento entre militares, mas que hoje não é mais a realidade. No período analisado, 75% dos alunos matriculados na AMAN vinham de escolas civis. Os filhos de oficiais superiores raramente chegaram a 30% do total, voltando a patamares próximos aos da década de 1970. Quando os dados foram separados entre oficiais subalternos e praças, verificou-se um crescimento do recrutamento dos filhos de subtenentes e sargentos. Portanto, o recrutamento endógeno acontece especialmente entre os militares de baixa patente.
Quanto à naturalidade, os oficiais do Exército são do Sudeste, em geral, e do Rio de Janeiro, em particular, somando sempre mais de 50% e mais de 30%, respectivamente, aqui incluindo os dados de 2019. A região Nordeste, como já dito, foi a que mais oscilou, caindo bastante sua representação entre os matriculados. Já a região Sul, manteve estável sua participação nas matrículas, enquanto o Centro-Oeste cresceu bastante. Dessa maneira, as escolas de oficiais, ainda que desejem, continuam não sendo um reflexo do Brasil. Elas são, na realidade, um reflexo da própria corporação. Ou seja, a mentalidade reflete uma classe média específica, a do Sudeste e a carioca, formada basicamente por vários estratos de servidores públicos desde a época em que o Rio de Janeiro era a capital do país.
Em estudos futuros, pretende-se analisar os impactos do perfil dos cadetes sobre as possibilidades de emprego militar. Por exemplo, o maior recrutamento entre praças interfere na percepção de atividades mais próximas a segurança pública? O desequilíbrio regional no recrutamento impacta nas atividades realizadas na Amazônia ou no Nordeste? Impacta na legitimidade dos oficiais diante dos praças?
A AMAN, da sua arquitetura ao currículo, busca deixar claro para o cadete seu compromisso com a perpetuação de tradições, sendo por esse motivo eminentemente conservadora. O aprendizado de “como ser militar” acontece, principalmente, pelo dia-a-dia na academia, e existem diversos rituais que auxiliam o processo de ressocialização. Na escola, o binômio hierarquia e disciplina é apreendido através do ensino formal e informal. Mesmo alunos de anos distintos têm relações hierárquicas entre si. A coerção e a coesão social se combinam, por exemplo, nos momentos de avaliação dos cadetes. Outro aspecto importante é a escolha da Arma. É com os colegas da mesma Arma que os cadetes passarão boa parte da vida escolar. Funcionando em regime de internato, pode-se afirmar que durante o seu principal período de formação, o futuro general praticamente não tem contato com civis ou mesmo militares de outras Forças, algo que favorece a formação de laços de lealdade e de corporativismo, assim como distancia as visões de mundo civis e militares.
Como uma Weltanschauung apartada do mundo civil passa a ser considerada superior, ou até salvacionista, não é objeto deste artigo, mas traz consequências que não favorecem a democracia, como a atual militarização da política exemplifica. Sinais desse comportamento podem ser encontrados nas turmas da AMAN do final dos anos 1970. Este texto discutiu tendências que se mantêm desde aquele período, e mais, pretendeu oferecer pistas sobre o futuro, que parece repetir-se não mais como farsa, mas como tragédia.
REFERÊNCIAS
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Lema da AMAN, escrita em seu frontão principal.
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A Constituição Federal de 1988, com a Emenda Constitucional n.º 14, de 1996, e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), instituída pela lei nº 9394, de 1996, são as leis maiores que regulamentam o atual sistema educacional brasileiro, que compreende a educação básica - formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio - e a educação superior. Escolas como o Instituto Rio Branco (carreira diplomática) e as vinculadas às polícias estão subordinadas a esse sistema (MENEZES, 2001).
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Para saber mais sobre o sistema de ensino do Exército ver Fázio, 2008.
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Para ter uma ampla visão histórica sugerimos Motta, 2001.
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Caderno de Boas Vindas aos novos integrantes da AMAN (2019), disponível em: http://www.aman.eb.mil.br. Acesso em 10/06/21.
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O valor do soldo em 01/01/19 era R$ 1.336,00. Consultado em https://editalconcursosbrasil.com.br /noticias/2020/01/reajustes-2020-veja-nova-tabela-salario-dos-militares/. Acesso em 24/03/2020
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Para minimizar as interferências que a classificação de classe média apresenta (uma vez que comporta setores com características e padrões de consumo muito diferentes), é fundamental a inserção de outras variáveis, como a escolaridade dos pais, rendimento global.
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Até o período estudado, já foram formados mais de 180 estrangeiros na AMAN, entre latino-americanos e africanos. O critério de escolha dos países e dos cadetes, o desempenho e acompanhamento destes na escola, seu alinhamento com a política externa do país, entre outros temas, constituem objeto para um novo trabalho. Para as FFAA brasileiras, receber militares de outros países é um fator de projeção de influência muito respeitado.
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Instituição militar centenária criada para conciliar o serviço militar obrigatório e a permanência dos jovens no trabalho, especialmente nas áreas rurais. Sua manutenção decorre de convênios entre prefeituras, que cedem as dependências físicas, e o Exército, que fornece material, instrutores e treinamento de tiro. Em 2012, eram mais de 200 Tiros de Guerra em todo o Brasil. Consultado em https://www.eb.mil.br/web/ingresso/servico-militar/-/asset_publisher/yHiw1SW kLQY6/content/tiro-de-guerra?inheritRedirect=false. Acesso em 15/03/2020.
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Todos os anos são divulgados novos editais, mas o conteúdo basicamente permanece o mesmo. http://www.espcex.eb.mil.br/downloads/Edital_PS_2018.pdf
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Por meio da Lei nº 12.705, sancionada pela Presidenta Dilma Rousseff, em agosto de 2012, permitiu-se que as mulheres ascendessem às Armas combatentes do Exército (BRASIL, 2012). O primeiro edital neste sentido foi o de 2017, destinando 10% das vagas da EsPCEx às mulheres. A primeira Força a abrir suas portas para as mulheres foi a Marinha, que conta hoje com uma oficial superior, a Contra-Almirante Médica Dalva Mendes, enquanto foi a Força Aérea a primeira a dar acesso às Armas combatentes, em 2003. No caso do Exército, já existem mulheres há mais de duas décadas admitidas como quadros complementares e auxiliares, porém, apenas a partir de 2018, com a entrada na AMAN, elas poderão chegar a ser, daqui cerca de 20 anos, parte do Estado Maior do Exército. Consultado em https://www.terra.com.br/noticias/mulheres-no-comando-nas-forcas-armadas-as-historias-das-duas-unicas-hoje-no-topo-da-carreira-e-por-que-ha-so-duas,e24475d4e2f1220c026bb29ee28d9db6zonowluy.html. Acesso em 08/03/2020.
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Conforme o Edital de inscrição, do total de 445 vagas, 400 eram para candidatos do sexo masculino e 45 para o sexo feminino. Veja http://www.espcex.eb.mil.br/downloads/Edital_PS_2018.pdf. Acesso em 08/04/20.
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Até o posto de capitão, a intenção é “vocacionar” o profissional para as atividades para as quais foi formado. “(...) A partir dessa fase da carreira, poderá ser empregado em outra vertente, em que ele comprovadamente demonstrou ter mais aptidão” (VIEIRA, 2011, p. 79). Essa medida diminuiria as possibilidades de um profissional no fim da carreira se encontrar frustrado em virtude de só ter exercido funções distantes da sua formação. Da mesma forma, diminui a pressão sobre o cadete da AMAN no momento da escolha das especialidades. Por fim, existe o desejo de criar “pontos de escape” da carreira convencional, permitindo que o militar tenha mais flexibilidade para fazer suas escolhas.
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São consideradas pequenas frações com em média 20 a 50 militares. As subunidades têm, em média, de 60 a 250 militares, com exceção do esquadrão, que pode chegar a 1000.
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Comandante do Exército Brasileiro de 2007 a 2015.
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A título de comparação, o curso de Direito tem, no mínimo, 3.700 h/a; e o curso superior em Medicina tem 7.200 h/a, segundo dados do MEC (BRASIL, 2004).
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Percebe-se na valorização da Infantaria o peso da tradição, pois na guerra contemporânea exige-se adestramento maior em tecnologia e conhecimento especializado em técnicas informacionais do que a presença de um grande número de soldados. Embora haja vários planos de modernização do ensino militar, estes não parecem refletir esta necessidade.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
09 Dez 2020 -
Aceito
16 Jul 2021