RESENHAS REVIEWS
Leitor em construção e/ou construção do leitor?
Francisca Izabel Pereira Maciel
Doutora em Educação pela Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Professora associada da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Coordenadora da Pesquisa Interinstitucional: Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento. E-mail: emaildafrancisca@gmail.com
Contato
A palavra, segundo Bartolomeu Campos de Queirós, "acorda a memória, altera o desejo e a educação se faz". E a palavra, enquanto escrita, permite que se possa continuar uma conversa Sobre ler, escrever e outros diálogos com esse escritor e educador mineiro que nos deixou em 2012. A editora Autêntica, sob a organização de Júlio Abreu, mantém vivo o pensamento de Bartolomeu ao editar uma coletânea de textos que, originariamente, foram destinados a publicações em palestras, revistas e suplementos pedagógicos. Essa publicação faz parte da Série Conversas com o professor, da própria Editora.
Sobre ler, escrever e outros diálogos consiste em uma coletânea de 22 ensaios, divididos em dois blocos: "Leitura e memória", com sete ensaios, e "Leitura e educação", com 15 ensaios. Publicados entre os anos de 1982 e 2011, originalmente em jornais, periódicos educacionais e em livros, alguns textos foram transcritos de conferências, palestras e seminários sobre políticas de leitura, literatura e educação. Não constituem blocos estanques, pois muitas confissões, informações e colocações migram de uma parte para outra, estabelecendo, como denominador comum, uma sensível reflexão sobre leitura, escola e o ato de criar de Bartolomeu Campos de Queirós. Ainda que a edição traga algumas repetições, uma vez que o autor nunca coligiu esse material e os apresentou em épocas, lugares e espaços diversificados, o resultado é positivo. O leitor tem em mãos uma síntese das ideias e das confissões de um escritor e educador que se pautou pela sensibilidade em sua maneira de lidar com os fios que enredam memória, ficção, leitura e educação. Uma sensibilidade dotada de grande lucidez e cheia da consciência de que o humano é frágil, por isso seus escritos não se alicerçam em certezas dogmáticas, mas, pelo contrário, sempre se expõem à luz da dúvida, pois crê que "nossa verdade inquestionável é a dúvida" (QUEIRÓS, 2012, p.71).
Mergulhando no "açude" das memórias de Bartolomeu, o leitor, ao mesmo tempo em que vai construindo um perfil mais nítido de um autor que se nutre de reminiscências e questionamentos, também se deixa construir ao encantamento de um fazer literário que é, ao mesmo tempo, delicadeza e rigidez, pela forma como urde e confere consistência a um substantivo pensar. Avesso ao adjetivo perdulário, Bartolomeu é um autor colado à vida, e essa mestra rejeita penduricalhos.
Desde o Livro de Lili, passando pela Bíblia e pelas obras de Monteiro Lobato, Bartolomeu Campos de Queirós vai peregrinando pelos férteis campos de suas leituras, sempre citando a mestra inesquecível, Dona Maria Campos, que lhe ensinou muito além do que lia nas paredes da casa de seu avô. Irresistível esse jogo de palavras: da parede para os campos, a palavra escrita, sempre mediada pelo afeto como a mais doce e firme das metodologias, conduziu o menino Bartolomeu para insaciáveis trilhas e o vasto mundo, que começa a ser "juntado" através do alfabeto. "Eu descobria o 'a' e ele completava o abismo do depois" (QUEIRÓS, 2012, p.31). Nessa imagem, fica entrevista uma das obsessões do autor, a sua preocupação com as profundezas do devir, a ideia de que a leitura é uma espécie de catapulta para o que se aloja no depois, podendo também ser ponte sobre um precipício para além do princípio, mas que se não deve temer.
O aprendizado inicial da leitura e escrita sempre foi motivo de preocupação para Bartolomeu, e o livro Sobre ler, escrever e outros diálogos está recheado dessa preocupação, não só ao anunciar, mas também denunciar as práticas de alfabetização: "encher o caderno de fileiras e fileiras de a, e, i, o, u foi o primeiro exercício" (QUEIRÓS, 2012, p.22), os ditados, as cópias, os exercícios com as famílias silábicas, as composições sobre a primavera, as minhas férias. Entretanto, de tudo isso, o autor não deixa de retomar as lembranças de Dona Maria e conclui: "de tudo aprendido, resta a certeza do afeto como a primordial metodologia" (QUEIRÓS, 2012, p.25).
O que se torna patente na leitura dos textos de Bartolomeu é que ele não abre mão de metáforas. Das tantas que utiliza, podese alinhavar algumas delas, recorrentes e certeiras na apreensão de seu desassossego em relação à descoberta do mundo mediante a ação da palavra. Uma de suas metáforas preferidas é a do laço, nó, fio e termos afins. Basta um exemplo: "Minha escola foi meu primeiro nó para iniciar toda costura entre meu tempo já vivido e meu tempo ainda sonhado" (QUEIRÓS, 2012, p.33). Por aí o leitor já se apossa de uma imagem capaz de conduzi-lo ao longo de toda a obra desse tecelão de lembranças, muitas vezes amargas, mas que se entrelaçam a outras peças fundamentais do "acon-tecido" e do sonhado. No diálogo com o leitor, Bartolomeu lhe concede generosamente o uso desse tipo de metáfora:
Meu discurso será, portanto, o de estabelecer, ou de explicitar o que penso, e que sentido tem cada palavra, isolada do tema proposto, esperando que o leitor costure, se assim for possível e necessário e com a própria linha, os pedaços. Não quero com isso menosprezar as colchas de retalhos. Acho-as rigorosamente bonitas, como espaço da convivência de diferentes formas e cores; como descoberta de geometria que existe traçada a priori; ou como revelação espontânea para uma nova estrutura (QUEIRÓS, 2012, p.109).
Eis uma bela amostragem de uma escrita coerentemente poética e educativa, atenta ao receptor e zelosa de uma construção verbal e social.
Se a metáfora do fio tem muito de feminino, que não deixa de evocar a mãe e a mestra, figuras emblemáticas na vida do autor, uma outra imagem, agora do espaço masculino, também tem lugar no discurso de Bartolomeu: a do navio, associado às palavras "viageiras", narradas pela professora, propondo descobertas: "suas palavras eram navios que nos conduziam, à deriva, para além dos oceanos, para outros horizontes, fantasiando destinos" (QUEIRÓS, 2012, p.34). Se a palavra é navio, o sempre citado Livro de Lili também se insere em uma área semântica relacionada à viagem, como se lê neste trecho: "Hoje, quando me vejo com um livro aberto e visitando paisagens que meus olhos não chegam, a menina está sempre ao meu lado me dizendo que foi a escola que me conferiu este passaporte para desmedidas viagens" (QUEIRÓS, 2012, p.41). Reunindo as metáforas da costura e do navio, associando-as ao espaço da escola, pode-se divagar que, para Bartolomeu, houve a junção do lírico e do épico, gêneros que explicam o urdir do sonho e o ímpeto para a aventura, provocados pelo ato de ler. Também o ato de criar é associado à metáfora náutica:
Uso da fantasia para amenizar um pouco a minha grande culpa. É que a fantasia, tomada como elemento para a construção literária, passa a adjetivar as coisas na perspectiva de estabelecer a beleza. Navego na cobiça de um mundo mais bonito (QUEIRÓS, 2012, p.52).
Outras metáforas frequentam o discurso de Bartolomeu e suscitam mais inquietações. Por exemplo, as paredes, que remetem para a ideia de que o próprio autor é um sujeito em construção, assim como o é todo leitor em permanente estado de desassossego. "Saber é possuir mais paredes", anota, na p.44, indagando sobre o espaço escolar, para concluir, na página seguinte, que, com o livro, ele "atravessava os muros, rompia com o caminho dos fantasmas, penetrava no entendimento possível", para constatar que "todo livro era uma parede que ao me revelar
o escondido me propunha outros encontros. A leitura me desequilibrava. Cada metáfora estreava mais ambiguidades e, consequentemente, mais escolhas" (QUEIRÓS, 2012, p.45). Diferentemente da imagem difundida pelo filme The wall, da canção de Pink Floyd, a relação entre escola e parede, para Bartolomeu, resulta em aspecto positivo, pois "o professor confirma as paredes e assegura força ao educando para investir sobre as suas dúvidas. Por ser assim, a escola permanecerá sempre" (QUEIRÓS, 2012, p.45).
Livro é passaporte e bilhete de partida; as palavras podem ser chaves e também portas e janelas. As páginas de um livro podem ser esquinas a serem dobradas, e são montanhas e são marés. Essas são mais algumas metáforas espalhadas pelos textos, evidenciando que, para Bartolomeu Campos de Queirós, a imagem poética é indissociada de um discurso "racional" sobre educação. Deixando de lado as metáforas e fisgando uma analogia, verificase o caráter crítico do olhar pedagógico do autor ao refletir sobre a questão da leitura na escola e bibliotecas. Como despertar o gosto pela leitura se as pessoas encarregadas para esse tipo de trabalho não possuem o hábito de ler? Assim, analogicamente, o autor considera que, se quiserem acabar com o futebol no país, é só acrescentálo ao currículo da escola:
No dia em que a escola colocar isso no currículo, ela vai determinar que o calção tem que ter tantos centímetros, que tem que ficar tantos de um lado, tantos de outro, que tem que ser assim, que tem que ser assado. E aí ninguém vai querer jogar mais isso, sabe; nós enfraquecemos o que nós colocamos a mão (QUEIRÓS, 2012, p.59).
Tal analogia se faz em relação ao processo da literatura na educação, na poesia que se faz para a criança, que requer muito cuidado no espaço escolar, sob pena de distanciá-la desse tipo de arte.
Em vários de seus textos, Bartolomeu incomodará o professor: ainda que tenha trabalhado muito tempo dentro da escola, ele não faz concessão à pedagogia, que, de certa forma, tem seu quê de violência, pois "assalta e rouba a infância da criança" (QUEIRÓS, 2012, p.106). Crê, acima de tudo, no papel da arte, da literatura, instrumentos doadores de beleza, capazes de atingir as pessoas pela via das emoções. "É condição da beleza distribuir-se" (QUEIRÓS, 2012, p.107), afirma o escritor, exemplificando com um caso em que operários se encantaram com a Bachiana nº 5, de Villa-Lobos. Mas é na literatura que enxerga um poderoso motor para a aprendizagem, aliando prazer e conhecimento, ambiguidade da linguagem metafórica, fantasia e incessante busca da verdade humana, permeada pela consciência da fragilidade. Rejeita o que é convergente e repetitivo, apregoa que
[...] é na literatura que, liberto do agir prático e da necessidade, o sujeito viaja por outro mundo possível. Sem preconceitos em sua construção, daí sua possibilidade intrínseca de inclusão, a literatura nos acolhe sem ignorar nossa incompletude (QUEIRÓS, 2012, p.118).
As críticas permeiam todo o livro, e o autor, ao fazê-las, a partir de suas experiências e memórias como professor, autor de livros didáticos e escritor, apresenta-as de forma delicada, mas profunda, cuidando de cada palavra e metáfora. Assim o faz no recado aos professores e acadêmicos para que não sejam como Dona Regina, que "não falava nada de seu, mas só pedaços de livros lidos e decorados. Dona Regina não era verbo, e sua voz morava em um jardim só cheio de vaidades" (QUEIRÓS, 2012, p.30-31). Como foi autor de livro didático na década de 80, Bartolomeu deixa clara a diferença entre os livros didáticos e os de literatura. Ao primeiro, cabe "ensinar", e o livro literário permite a liberdade, a invenção e a reinvenção do mundo.
O pensar sobre a educação, com Bartolomeu, ganha um formato sinestésico, abrangendo a totalidade dos sentidos, instaurando o corpo em sua materialidade como sujeito de um processo que passa pelo afeto, pelo olhar. Em vários de seus artigos, encontra-se a relação do olhar que acaricia. O professor, longe de ser o que dita, o que impõe, deve chegar até o aluno com um coração destrancado, que saiba tomar sol. A opção por escrever em vez da prática do ensino permitiu ao autor uma transparência e liberdade difíceis de serem sustentadas no recinto escolar. Entretanto, através de suas considerações, pode o professor ficar mais interessado e integrado ao compromisso de que "ler é o preço que pagamos por sermos alfabetizados" (QUEIRÓS, 2012, p.91). Dessa sorte, se somos condenados à solidão pela leitura, é pela leitura, "exaustivo trabalho mental", que somos também destinados a partir e repartir à procura do encontro com outro. E Bartolomeu indaga "quem" é o outro, acreditando que não se pode conferir ao educando um objeto decifrado pelo nosso conhecimento, o que leva a uma educação limitada, adestradora. Por outro lado, sabe que
[...] educar implica escutar, pois só nos é possível compreender 'quem' é o outro quando ele se diz. Por ser assim, é a partir da posse da complexidade de nossa interioridade que podemos suspeitar 'quem' é o outro. Reconhecendo-nos como a soma do vivido e do sonhado, intuímos o educando como corpo onde o real e o ideal também se completam (QUEIRÓS, 2012, p.85).
Em cada texto dessa coletânea, Bartolomeu se inaugura e concede ao leitor não necessariamente um "caminho das pedras", mas o rumor e o rumo das águas da memória, para que se compreenda melhor o universo imaginário que criou Indez, Os ciganos e, sobretudo, Vermelho amargo. Além de nos aproximar do poeta e do ficcionista, a presente obra aclara
o inquieto pensamento de um educador que nunca se permitiu fazer o que já tinha sido feito, pois isso é dar continuidade e cumplicidade a uma condição reificada, selando o indivíduo mais como objeto do que sujeito. Em vez de sujeitarse, o autor sugere que, pela leitura, sejamos sujeitos, buscando outras palavras, aquelas que não "estão muito ditas", conforme o poema "Interlúdio", de Cecília Meireles (apud QUEIRÓS, 2012, p.53), poeta que, juntamente com Henriqueta Lisboa, tanto contribuiu para a construção do leitor Bartolomeu, alavancando sua vocação de escritor.
Contato:
Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino
Faculdade de Educação
Universidade Federal de Minas Gerais
Avenida Antônio Carlos, 6627
Pampulha
CEP 31270901
Belo Horizonte | MG | Brasil
Recebido: 22/04/2013
Aprovado: 08/08/2013
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Out 2013 -
Data do Fascículo
Set 2013