RESUMO:
O artigo apresenta causas do desinteresse dos alunos de sexto e nono anos do Ensino Fundamental pelas aulas de Educação Física a partir do índice de satisfação de suas Necessidades Psicológicas Básicas (NPB), bem como da interpretação dos motivos atribuídos pelos alunos para o afastamento das aulas na disciplina. Recorreu-se ao método misto sequencial, em que a amostra da fase inicial de característica quantitativa (extensiva) foi composta por 153 alunos, seguida pela fase intensiva, de natureza qualitativa, que contou com 12 alunos. Os resultados demonstraram que as meninas sentem as suas NPB menos atendidas quando comparadas com os meninos, no sexto ano, com ênfase na dimensão competência ampliando para as dimensões autonomia e vínculos sociais no nono. Em sintonia com os objetivos da pesquisa, este estudo indica que a falta de habilidade (competência), a falta de diversificação dos conteúdos para além dos esportes coletivos mais conhecidos (competência/ autonomia) e a falta de oportunidades de participação na tomada de decisão (autonomia) se apresentam como motivos que levam os alunos ao desinteresse pela disciplina, incidindo na abstenção da participação nas aulas de Educação Física.
Palavras-chave:
motivação; necessidades psicológicas básicas; ensino; aprendizagem; Educação Física escolar
RESÚMEN:
El artículo presenta las causa del desinterés de los estudiantes de sexto y noveno grado por las clases de educación física em función del índice de satisfacción de sus Necesidades Psicológicas Básicas (NPB), así como la interpretación de las razones dadas por los estudiantes para abandonar las clases en la disciplina. Se utilizo el método mixto secuencial, en el que la muestra de la fase inicial de característica cuantitativa (extensiva) estuvo compuesta por 153 alumnos, seguida de la fase intensiva, de carácter cualitativo, que contó com 12 alumnos. Los resultados mestran que las niñas se sientem menos atendidas en su NPB em comparación com los niños, en el sexto grado, com énfasis en la dimensión competencial, expandiéndose a las dimensiones de autonomía y vínculos sociales en el noveno. En línea con los objetivos de la investigación, este estudio indica que se presenta la falta de habilidad (competencia), la falta de diversificación de contenidos más allá de los deportes de equipo más conocidos (competencia/autonomía) y la falta de oportunidades para participar en la toma de decisiones (autonomía) como motivos que llevam a los estudiantes al desinterés por la disciplina, enfocándose en abstenerse de participar en las clases de educación física.
Palabras clave:
motivación; necesidades psicológicas básicas; enseñanza; aprendizaje; educación física escolar
ABSTRACT:
This study shows causes for the lack of interest of sixth and ninth-grade students in physical education classes based on the satisfaction of Basic Psychological Needs (BPN) and by the interpretation of reasons given by students for being apart of subject classes. The sequential mixed method was used. The sample of the initial phase of quantitative characteristics (extensive) was composed of 153 students, followed by the intensive phase of qualitative nature, which had 12 students. The result shows that girls feel less attended to their BPN compared to boys, in sixth grade, with an emphasis on the competence dimension, expanding to autonomy and relatedness in the ninth grade. In line with the research objectives, this study indicates that lack of ability (competence), lack of diversification of contents beyond popular coletive sports (competence/autonomy), and lack of opportunities to participate in decision-making (autonomy) are some of the reasons that lead to students to develop disinterest in physical education classes.
Keywords:
motivation; basic psychological needs; teaching; learning; scholar physical education
INTRODUÇÃO
O desinteresse pelas aulas de educação física tem sido amplamente abordado na literatura (SILVA; SILVA; PAULA, 2016SILVA, Francisco; SILVA, André; PAULA, Alisson. Caracterização dos estudantes de Ensino Médio quanto à não participação das aulas de Educação Física escolar em escolas de um município de médio porte no interior do Ceará. Conexões, [s.l.], v. 14, n. 1, p. 35-52, 2016. Doi: https://doi.org/10.20396/conex.v14i1.8644765.
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; CARDOSO; RICARDO; NUNEZ, 2014CARDOSO, Adrielle; NUNEZ, Paulo. Percepção dos alunos do ensino médio em relação às aulas de Educação Fisica. Coleção Pesquisa em Educação Física, [s.l.], v. 13, n. 4, p. 125-132, 2014.; SILVA; COFFANI, 2013SILVA, Fabiana; COFFANI, Márcia. O lugar da Educação Física no Ensino Médio: Entre a Presença e Ausência do Aluno. Conexões: Revista da Faculdade de Educação Física da UNICAMP, Campinas, v. 11, n. 4, p. 159-178, 2013. Doi: https://doi.org/10.20396/conex.v11i4.8637597.
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), com maior ênfase no Ensino Médio, pois esta ainda é a fase em que o fenômeno se apresenta de forma mais consistente.
As investigações sobre o desinteresse dos alunos nas aulas de Educação Física no Ensino Fundamental, tanto no cenário internacional (ŠTEMBERGER, 2014ŠTEMBERGER, Vesna. Excuses in physical education made by primary school pupils of fourth and fifth class. Acta Universitatis Carolinae Kinanthropologica, [s.l.], v. 50, p. 15-28, 2014.; SPENCER-CAVALIERE; RINTOUL, 2012SPENCER-CAVALIERE, Nancy; RINTOUL, Mary. Alienation in Physical Education From the Perspectives of Children. Journal of Teaching in Physical Education, [s.l.], v. 31, n. 4, p. 344-361, 2012.;) quanto no Brasil (ANISZEWSKI et al., 2019ANISZEWSKI, Ellen; HENRIQUE, José; OLIVEIRA, Aldair José; ALVERNAZ, Aline; VIANNA, José Antônio. Journal of Physical Education, [s.l.], v. 30, n. e3052, p. 1-11, 2019. Doi: https://doi.org/10.4025/jphyseduc.v30i1.3052
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) sugerem que esse fenômeno está acontecendo cada vez mais cedo, fazendo-se necessário conhecer com maior profundidade, na perspectiva dos alunos, os motivos, as causas e os argumentos que justificam suas atitudes e comportamentos na Educação Física escolar, nesse nível de ensino.
Os estudos que se debruçam sobre a motivação na Educação Física na última década reportam a estreita relação entre a satisfação das necessidades psicológicas básicas (NPB) e o aumento da motivação intrínseca e comportamentos autodeterminados, com efeito à participação e engajamento nas aulas de Educação Física (CHEN; HYPNAR, 2015CHEN, Weiyun; HYPNAR, Andrew. Elementary School Students’ Self-Determination and Attitudes Toward Physical Activity. Research Quarterly for Exercise and Sport, [s.l.], v. 34, n. 2, p. 189-209, 2015. Doi: https://doi.org/10.1123/jtpe.2013-0085.
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; RUTTEN et al., 2015RUTTEN, Cindy; BOEN, Filip; VISSERS, Nathalie; SEGHERS, Jan. Changes in Children’s Autonomous Motivation Toward Physical Education During Transition From Elementary to Secondary School: A Self-Determination Perspective. Journal of Teaching in Physical Education, [s.l.], v. 34, n. 3, p. 442-460, 2015. Doi: https://doi.org/10.1123/jtpe.2013-0228.
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). Sob a perspectiva da Teoria da Autodeterminação, as necessidades psicológicas básicas de autonomia, competência e relacionamento precisam ser atendidas satisfatoriamente para que o indivíduo se desenvolva e prospere (RYAN; DECI, 2000RYAN, Richard.; DECI, Edward. Self-determination theory and the facilitation of intrinsic motivation. American Psychologist, [s.l.], v. 55, n. 1, p. 68-78, 2000.).
Embora a desmotivação nas aulas de Educação Física seja um fenômeno com causas multifatoriais, a literatura aponta a ligação estreita entre o atendimento das necessidades de competência, autonomia e vínculos sociais com o aumento da motivação intrínseca, propiciando comportamentos autodeterminados e propensos à participação e ao engajamento nas atividades. Dessa forma, a compreensão dos aspectos motivacionais que convergem para práticas voltadas ao atendimento das NPB e que conduzam ao envolvimento nas atividades educativas, é fundamental para promover a adoção de estratégias eficazes pelos professores com vistas ao maior engajamento dos alunos nas aulas.
Sendo assim, o objetivo deste estudo, no primeiro momento, foi caracterizar a magnitude de atenção às NPB percebidas pelos alunos de sexto e nono anos do Ensino Fundamental na Educação Física escolar, comparando-a em função do sexo e ano de escolaridade. No segundo momento, tendo como referência os alunos que se percebem mais e menos atendidos em suas NPB, propõe-se interpretar as causas atribuídas ao comportamento de afastamento ou abstenção dos discentes das aulas de Educação Física.
TEORIA DA AUTODETERMINAÇÃO
A Teoria da Autodeterminação (TAD) tem sido o referencial teórico utilizado na maioria das pesquisas sobre motivação nas aulas de educação física na contemporaneidade (ANISZEWSKI et al., 2019ANISZEWSKI, Ellen; HENRIQUE, José; OLIVEIRA, Aldair José; ALVERNAZ, Aline; VIANNA, José Antônio. Journal of Physical Education, [s.l.], v. 30, n. e3052, p. 1-11, 2019. Doi: https://doi.org/10.4025/jphyseduc.v30i1.3052
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; CHANG et al., 2016CHANG, Yu-Kai; CHEN, Senlin; TU, Kun-Wei; CHI Li-Kang. Effect of autonomy support on self-determined motivation in elementary physical education. J Sports Sci Med., [s.l.], v. 15, p. 460-466, 2016.; CHEN; HYPNAR, 2015CHEN, Weiyun; HYPNAR, Andrew. Elementary School Students’ Self-Determination and Attitudes Toward Physical Activity. Research Quarterly for Exercise and Sport, [s.l.], v. 34, n. 2, p. 189-209, 2015. Doi: https://doi.org/10.1123/jtpe.2013-0085.
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; RUTTEN et al., 2015RUTTEN, Cindy; BOEN, Filip; VISSERS, Nathalie; SEGHERS, Jan. Changes in Children’s Autonomous Motivation Toward Physical Education During Transition From Elementary to Secondary School: A Self-Determination Perspective. Journal of Teaching in Physical Education, [s.l.], v. 34, n. 3, p. 442-460, 2015. Doi: https://doi.org/10.1123/jtpe.2013-0228.
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; COSTA et al., 2015COSTA, Luciene. Influência de um programa de ensino de esportes coletivos de invasão na motivação e desempenho motor de escolares no Ensino Fundamental. Tese (Doutorado em Educação Física) - Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2015.). A TAD é uma abordagem dialética do comportamento humano organizada sob seis miniteorias que, embora contenham características teóricas distintas, são conectadas pelo conceito unificador do atendimento às necessidades psicológicas básicas (BHAVSAR et al., 2020BHAVSAR, Nikita et al. Self-determination theory. [S.l: s.n., s/d]. p. 565-583 2020.).
Segundo a TAD, a autodeterminação compreende comportamentos e habilidades que capacitam o indivíduo para ser o agente causal de seu próprio futuro por meio de comportamentos intencionais. O comportamento autodeterminado precisa ser autônomo, autorregulado, ser a expressão de um empoderamento psicológico e resultar em autorrealização. Nessa perspectiva, todo indivíduo tem a propensão inata para desenvolver um comportamento autodeterminado, ou seja, “desde o nascimento, as pessoas envolvem-se em atividades que lhes possibilitam a satisfação de necessidades psicológicas básicas: competência, autonomia e relacionamento” (COSTA, 2015COSTA, Luciene. Influência de um programa de ensino de esportes coletivos de invasão na motivação e desempenho motor de escolares no Ensino Fundamental. Tese (Doutorado em Educação Física) - Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2015., p. 20). Nessa perspectiva, a motivação do indivíduo está relacionada à satisfação desses três componentes, os quais, quando atendidos satisfatoriamente, conduzem à saúde e bem-estar (RYAN; DECI, 2000RYAN, Richard.; DECI, Edward. Self-determination theory and the facilitation of intrinsic motivation. American Psychologist, [s.l.], v. 55, n. 1, p. 68-78, 2000.).
Sob a perspectiva da TAD, as NPB precisam ser atendidas satisfatoriamente para que o indivíduo se desenvolva e prospere (RYAN; DECI, 2000RYAN, Richard.; DECI, Edward. Self-determination theory and the facilitation of intrinsic motivation. American Psychologist, [s.l.], v. 55, n. 1, p. 68-78, 2000.), sendo a “Autonomia” associada à percepção do indivíduo sobre ser responsável pelo próprio comportamento; a “Competência” ao engajamento para participar das atividades e realizar as tarefas; e o “Relacionamento” às relações sociais que se estabelecem entre o sujeito e a comunidade em que convive (DECI; RYAN, 2000RYAN, Richard.; DECI, Edward. Self-determination theory and the facilitation of intrinsic motivation. American Psychologist, [s.l.], v. 55, n. 1, p. 68-78, 2000.). Chang et al. (2016CHANG, Yu-Kai; CHEN, Senlin; TU, Kun-Wei; CHI Li-Kang. Effect of autonomy support on self-determined motivation in elementary physical education. J Sports Sci Med., [s.l.], v. 15, p. 460-466, 2016.) se referem à necessidade de competência como o se sentir competente e capaz na realização das atividades; à autonomia como a possibilidade de ter escolha e controle; e à necessidade de relacionamentos como se sentir filiado e pertencente ao contexto social onde está inserido.
Pesquisas acerca da motivação nas aulas de Educação Física indicam que a satisfação das NPB está relacionada com comportamentos autodeterminados e aumento da motivação intrínseca dos indivíduos, aproximando-os da participação e do engajamento nas atividades desenvolvidas nas aulas (CHANG et al., 2016CHANG, Yu-Kai; CHEN, Senlin; TU, Kun-Wei; CHI Li-Kang. Effect of autonomy support on self-determined motivation in elementary physical education. J Sports Sci Med., [s.l.], v. 15, p. 460-466, 2016.; CHEN; HYPNAR, 2015CHEN, Weiyun; HYPNAR, Andrew. Elementary School Students’ Self-Determination and Attitudes Toward Physical Activity. Research Quarterly for Exercise and Sport, [s.l.], v. 34, n. 2, p. 189-209, 2015. Doi: https://doi.org/10.1123/jtpe.2013-0085.
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; RUTTEN et al., 2015RUTTEN, Cindy; BOEN, Filip; VISSERS, Nathalie; SEGHERS, Jan. Changes in Children’s Autonomous Motivation Toward Physical Education During Transition From Elementary to Secondary School: A Self-Determination Perspective. Journal of Teaching in Physical Education, [s.l.], v. 34, n. 3, p. 442-460, 2015. Doi: https://doi.org/10.1123/jtpe.2013-0228.
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).
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O método adotado nesta pesquisa foi o misto sequencial, na medida em que se recorreu às abordagens quantitativa e qualitativa, por entendermos que ambas eram necessárias para responder às questões do estudo. Sob esta perspectiva, a investigação foi estruturada em duas fases: uma fase extensiva, quantitativa, que se insere nos pressupostos de uma pesquisa descritiva explicativa com recursos como questionários e tratamento matemático dos dados; e outra fase intensiva, qualitativa, de caráter interpretativo, em que se recorreu à técnica do Círculo Hermenêutico Dialético (CHD) (GUBA; LINCOLN, 2011GUBA, Egon; LINCOLN Yvonna. Avaliação de quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.), seguido de análise de conteúdo das transcrições das entrevistas.
Na fase extensiva, a pesquisa de natureza descritiva e comparativa, se ocupou em descrever as características de determinada população ou fenômeno (escolares do Ensino Fundamental e indicadores motivacionais) e, ainda, comparar os parâmetros motivacionais em função do ano de escolaridade e sexo dos participantes. Na fase intensiva, de natureza interpretativa, o Estudo de Caso sob a tipologia multicasos (FLETCHER; MACPHEE; DICKSON, 2015FLETCHER, Amber; MACPHEE, Maura; DICKSON, Graham. Doing Participatory Action Research in a Multicase Study: A Methodological Example. International Journal of Qualitative Methods, [s.l.], p. 1-9, 2015. Doi: 10.1177/1609406915621405.
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) foi adotado para aprofundar o conhecimento sobre a percepção dos alunos em relação à satisfação das Necessidades Psicológicas Básicas, além de interpretar suas crenças sobre as causas que atribuem para o desinteresse na Educação Física escolar.
A amostra da pesquisa se caracterizou em função das fases de obtenção dos dados. Na fase extensiva, 153 alunos oriundos de três escolas da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro, que responderam ao questionário proposto. Dentre estes alunos, 69 (45,1%) são do sexo feminino e 84 (54,9%) do sexo masculino, bem como 68 (44,4%) oriundos do sexto ano do Ensino Fundamental e 85 (55,6%) do nono ano do Ensino Fundamental (tabela 1).
A escolha das unidades educacionais para o desenvolvimento da pesquisa foi feita de maneira intencional pelos pesquisadores atendendo aos critérios de acessibilidade tanto geográfica quanto à equipe gestora e aos professores, com o objetivo de garantir o desenvolvimento da pesquisa e otimizar o recolhimento de dados. A escolha das turmas foi feita de acordo com o horário das aulas de Educação Física, os dias de trabalho do professor e os dias destinados à coleta pelos pesquisadores.
Na fase intensiva, a técnica do círculo hermenêutico dialético foi realizada por 12 alunos dos sextos (n=6) e nonos (n=6) anos de escolaridade, os quais foram selecionados conjugando os escores pessoais de satisfação das NPB e o perfil de participação nas aulas de Educação Física.
A seleção dos sujeitos para a fase qualitativa da pesquisa teve como referência o escore de satisfação das NPB. O cálculo dos quartis permitiu identificar os alunos com menor e maior sentimento de satisfação das necessidades psicológicas básicas em cada turma, identificados nos quartis inferior (abaixo de 25%) e superior (acima de 75%), respectivamente. Associado a esta etapa, os professores foram solicitados a ranquear, em cada turma, três alunos que mais participavam e três que menos participavam das aulas de Educação Física.
Na sequência, associou-se os alunos selecionados nos referidos quartis com a indicação dos professores dos alunos mais e menos participativos nas aulas, permitindo, na fase intensiva da pesquisa, compor a amostra com: a) três alunos do sexto e do nono anos que combinavam altos índices de satisfação das necessidades psicológicas básicas e maior participação nas aulas de Educação Física; (b) três alunos do sexto e do nono anos que combinavam baixos índices de satisfação das necessidades psicológicas básicas e menor participação nas aulas de Educação Física (tabela 1).
O instrumento utilizado na fase extensiva da pesquisa foi o Questionário de Necessidades Psicológicas Básicas (Basic Psychological Needs in Exercise Scale - BPNES), adaptado para a Língua Portuguesa por Costa (2015COSTA, Luciene. Influência de um programa de ensino de esportes coletivos de invasão na motivação e desempenho motor de escolares no Ensino Fundamental. Tese (Doutorado em Educação Física) - Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2015.), visando a caracterizar o grau de satisfação das necessidades psicológicas básicas dos 153 participantes da primeira fase da pesquisa. Na fase intensiva, cujo objetivo foi analisar elementos subjetivos inerentes às percepções dos sujeitos, recorreu-se à entrevista na dinâmica adaptada da técnica do Círculo Hermenêutico Dialético (GUBA; LINCOLN, 2011GUBA, Egon; LINCOLN Yvonna. Avaliação de quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.), em que cada indivíduo entrevistado tem a possibilidade de expressar a sua interpretação da realidade e, adicionalmente, se posicionar perante as manifestações de outros sujeitos previamente entrevistados, mediante sínteses elaboradas previamente pelos pesquisadores entre cada uma das entrevistas realizadas. O primeiro entrevistado, ao final, se manifestou sobre as sínteses de todos os entrevistados.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (COMEP-UFRRJ), mediante parecer nº. 895/2017, apenso ao processo nº. 23083.006865/2017-69, atestando o atendimento dos princípios éticos da pesquisa em conformidade com a Resolução 466/12, que regulamenta os procedimentos de pesquisa envolvendo seres humanos.
Para a análise estatística descritiva, recorreu-se às medidas de tendência central e dispersão, de modo a caracterizar o nível de satisfação das NPB. A comparação dos alunos por escolaridade e sexo foram verificadas por meio do teste não-paramétrico U Mann Whitney em vista da constatação de ausência de normalidade da distribuição amostral. Para aceitação de diferenças significativas, foi considerada a probabilidade de P≤ .05. Os dados qualitativos foram submetidos à análise de conteúdo (BARDIN, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.), visando a interpretar as causas e os motivos explicitados pelos alunos para os comportamentos observados nas aulas de Educação Física. O processo de catalogação e classificação dos dados qualitativos foram realizados no software MaxQda, licenciado e distribuído pela Verbi©, Berlim.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Nesta seção, a apresentação e a discussão dos resultados estão organizadas em duas partes, tendo em vista a natureza dos dados. A primeira se refere à análise descritiva dos índices gerais de satisfação das necessidades psicológicas básicas, seguida das comparações em função dos anos de escolaridade e sexo. A segunda parte é dedicada à interpretação das causas que os participantes atribuem aos comportamentos discentes de afastamento ou abstenção das aulas de Educação Física.
Indicadores motivacionais e atenção às necessidades psicológicas básicas
A média geral obtida pelo questionário, considerando toda a amostra, indica a magnitude moderada de 3,3±0,78. A média geral alcançada pelas alunas foi de 3,0±0,69, considerada moderada; enquanto, entre os meninos, foi de 3,5±0,78, considerada moderada a alta, denotando diferenças significantes. As médias gerais, por ano de escolaridade, foram de 3,3±0,60 para o sexto ano de escolaridade, e de 3,2±0,89 para o nono ano, portanto, não denotando significância da diferença verificada em relação ao senso de atendimento das NPB na perspectiva dos alunos de ambos os anos de escolaridade.
Considerando os resultados gerais das dimensões das NPB, constatou-se as médias de 3,4±1,09 na dimensão competência, 2,9±0,92 na dimensão autonomia e 3,5±0,99 na dimensão vínculos sociais.
A comparação entre os índices de satisfação das necessidades psicológicas básicas por ano de escolaridade (tabela 2) não indicou diferença significativa nas dimensões autonomia (U=3.042,000; p=0.575) e vínculos sociais (U=2.825,500; p=0.812). Entretanto, no que diz respeito à satisfação na dimensão competência, a diferença entre alunos do sexto e nono anos se mostrou significativa (U= 2248,500; p=0.018), em que a atenção à necessidade de competência percebida pelos alunos do sexto ano foi superior àquela reportada pelos alunos do nono ano, mostrando que os alunos mais jovens se sentiram mais contemplados em suas necessidades de competência nas aulas de Educação Física.
Conforme os valores apresentados na tabela 3, a percepção de atendimento às NPB foi significativamente maior entre os meninos em comparação com as meninas nas dimensões competência (U=1646,5000; p=0.000), autonomia (U=2170,000; p=0.007) e vínculos sociais (U=2150,000; p=0.006). Esses resultados indicam a necessidade de observar o contexto das aulas de Educação Física e, sob a perspectiva das meninas, refletir sobre as causas detratoras do sentimento de atenção às suas NPB. Ao investigar a percepção das meninas adolescentes, Yungblut, Schinke e McGannon (2012) constataram que as experiências esportivas limitadas e a baixa percepção de competência as afastaram da prática de atividades física, por se sentirem menos habilidosas do que seus pares. Os resultados também mostraram a influência positiva da presença dos amigos nos ambientes de prática, reforçando a importância dos vínculos sociais nas atividades características da Educação Física. Embora a investigação não tenha se desenvolvido na Educação Física escolar, ainda assim a natureza da atividade se assemelha ao contexto da disciplina.
As mudanças que acontecem no ambiente das aulas, i.e., o aumento do número de alunos por turma, colegas de turma que não são familiares e professores especialistas nas disciplinas foram os motivos encontrados por Knowles, Niven e Fawkner (2011KNOWLES, Ann-Marie; NIVEN, Ailsa; FAWKNER, Samantha. A qualitative examination of factors related to the decrease in physical activity behavior in adolescent girls during the transition from primary to secondary school. Journal of physical activity and health, [s.l.], v. 8, n. 8, p. 1084-1091, 2011. Doi: https://doi.org/10.1123/jpah.8.8.1084.
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) para a diminuição da participação das meninas nas atividades físicas. Os autores ressaltam a importância da participação das alunas na escolha dos conteúdos (autonomia); da criação de um ambiente/clima menos focalizado na competição - reduzindo a exigência exacerbada pela competência, mas priorizando práticas bem-sucedidas; além do reconhecimento da importância do suporte social oferecido nas atividades (vínculos sociais). Essas estratégias podem aumentar a satisfação das NPB e atenuar o afastamento das adolescentes das aulas de Educação Física.
Na comparação dos resultados alcançados por alunos do sexo masculino de sexto e nono anos, não foram encontradas diferenças significativas entre os índices de satisfação das necessidades de competência (U=833,500; p=0.714), autonomia (U=979,500; p=0.341) e vínculos sociais (U=1.079,500; p=0.64). Em relação ao sexo feminino, considerando a escolaridade, foram encontradas diferenças significativas dos índices de satisfação das necessidades de competência (U=264,500; p=0.000) e vínculos sociais (U=367,000; p=0.008), em que as alunas do sexto ano demonstram se sentir mais atendidas nestas duas dimensões do que seus pares do nono ano. Na dimensão autonomia, não foi encontrada diferença significativa (U=579,500; p=0.947) entre os índices de satisfação das alunas do sexto ano (2,7±0,9) e do nono ano (2,7±0,9), dimensão em que foram observadas as menores médias dentre as três NPB em ambos os anos de escolaridade (tabela 4).
Estes resultados demonstram que entre o sexto e o nono ano do Ensino Fundamental verifica-se uma diminuição significativa da percepção de atendimento às necessidades de competência e vínculos sociais pelas meninas nas aulas de Educação Física. Esse resultado indica que, na medida em que as meninas desenvolvem habilidade cognitiva e passam a avaliar seu senso de competência em sintonia com fatores contextuais e sociais (DIGELIDIS; PAPAIOANNOU, 1999DIGELIDIS, N.; PAPAIOANNOU, A. Age-group differences in intrinsic motivation, goal orientations and perceptions of athletic competence, physical appearance and motivational climate in Greek physical education. Scandinavian Journal of Medicine & Science in Sports, [s.l.], v. 9, p. 375-380, 1999. Doi: https://doi.org/10.1111/j.1600-0838.1999.tb00259.x.
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), as aulas de Educação Física se tornam desmotivantes, pois não proporcionam clima motivacional positivo ao seu engajamento. O sentimento de incapacidade na realização das tarefas gera instabilidade emocional, influencia as relações sociais e leva ao afastamento progressivo das aulas. O estudo de Knowles, Niven e Fawkner (2011KNOWLES, Ann-Marie; NIVEN, Ailsa; FAWKNER, Samantha. A qualitative examination of factors related to the decrease in physical activity behavior in adolescent girls during the transition from primary to secondary school. Journal of physical activity and health, [s.l.], v. 8, n. 8, p. 1084-1091, 2011. Doi: https://doi.org/10.1123/jpah.8.8.1084.
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) identificou que o clima competitivo e o nível de exigência das atividades desenvolvidas são fatores que afastam as meninas das aulas de Educação Física, pois elas não se sentem capazes de executar as atividades com sucesso. As autoras ainda sugerem que ambientes mais colaborativos voltados para o desenvolvimento da competência e da maestria aumentariam o sentimento de bem-estar durante a prática e a motivação intrínseca das meninas na Educação Física.
A literatura indica que a evolução da idade está associada à diminuição da competência percebida e do estabelecimento de vínculos sociais, além de enfatizar que a inatividade física e o desinteresse pela prática são mais observados no sexo feminino (SALAZAR-AYALA; GASTÉLUM-CUADRAS, 2020SALAZAR-AYALA, Carla; CUADRAS, Gabriel. Teoría de la autodeterminación en el contexto de educación física : Una revisión sistemática Self-determination Theory in the Physical Education context : A systematic review. Retos: Nuevas Perspectivas de Educación Física, Deporte y Recreación, [s.l.], v. 38, p. 838-844, 2020.).
Em comparação à satisfação das necessidades psicológicas básicas entre alunos do sexo masculino e feminino, exclusivamente do sexto ano, a única diferença significativa ocorreu na dimensão competência, em que os meninos (3,8±1,06) demonstram se sentir mais atendidos em suas necessidades do que as meninas (3,5±0,59), com U=374,500 para p=0.015. Observando os resultados do nono ano, observa-se significância estatística nas diferenças de todas as dimensões das NPB em função do sexo dos participantes. Assim, no nono ano, os meninos se sentiram mais atendidos do que as meninas nas necessidades de competência (U=431,500; p<0.001), autonomia (U=641,500; p=0.024), e vínculos sociais (U=457,000; p<0.001) (tabela 4).
Diante destes resultados é plausível inferir sobre a divergência entre os contextos pedagógicos e situacionais entre o sexto e o nono ano, os quais denotam flagrante desfavorecimento na atenção das necessidades das meninas à medida que evoluem na escolarização. Isto pode ser devido à evidente dicotomia entre as atividades lúdico-motoras-recreativas comuns nas séries iniciais do Ensino Fundamental e que ainda se evidenciam no início da segunda fase desta etapa de ensino, além da crescente abordagem esportivista, tecnicista e competitiva adotada por grande parte dos professores na Educação Física escolar (FARIA; CAREGNATO; CAVICHIOLLI, 2019FARIA, Flaviane; CAREGNATO, André; CAVICHIOLLI, Fernando. O esporte e a competição na Educação Física escolar: perspectivas educacionais a partir dos conceitos da pedagogia do esporte. Revista Kinesis, [s.l.], v. 37, p. 01-16, 2019. Doi: https://doi.org/10.5902/2316546422863.
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) à medida que evoluem os anos de escolaridade nesta etapa de ensino. A priorização de conteúdos que atendem majoritariamente aos meninos, a adoção de pedagogias demasiadamente centradas no aprendizado técnico e a competitividade fomentada nos jogos (ibidem) induzem a um ambiente que estimula a comparação social e, consequentemente, exclui aqueles que não correspondem ao padrão de competência valorizado no contexto letivo estabelecido sob esta dinâmica.
Knowles, Niven e Fawkner (2011KNOWLES, Ann-Marie; NIVEN, Ailsa; FAWKNER, Samantha. A qualitative examination of factors related to the decrease in physical activity behavior in adolescent girls during the transition from primary to secondary school. Journal of physical activity and health, [s.l.], v. 8, n. 8, p. 1084-1091, 2011. Doi: https://doi.org/10.1123/jpah.8.8.1084.
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) argumentam que a transição entre as etapas de escolarização torna-se um evento marcante na vida das crianças, pois passam a ter de lidar com turmas mais numerosas, com o estabelecimento de vínculos sociais com novos pares e com a pluridocência que demanda relações com professores de distintas áreas curriculares. Essas mudanças têm efeitos significativos na autoestima, autoconfiança e percepção de competência, tanto na seara acadêmica quanto nas habilidades corporais. Para as meninas, a junção dos fatores inerentes à mudança de segmento de ensino e, no âmbito da Educação Física, um ambiente com pouca diversificação de conteúdos e/ou que estimula a comparação social, pode resultar na baixa competência percebida, com consequências para outras dimensões das NPB.
No contexto investigado depreende-se que a Educação Física não tem contemplado as necessidades psicológicas básicas das meninas, principalmente no final do Ensino Fundamental, mostrando-se coerente com a evidência de que a maioria dos indivíduos que se afastavam das aulas de Educação Física era do sexo feminino. A competência percebida está associada à motivação intrínseca e ao engajamento nas tarefas de aprendizagem (SALAZAR-AYALA; GASTÉLUM-CUADRAS, 2020SALAZAR-AYALA, Carla; CUADRAS, Gabriel. Teoría de la autodeterminación en el contexto de educación física : Una revisión sistemática Self-determination Theory in the Physical Education context : A systematic review. Retos: Nuevas Perspectivas de Educación Física, Deporte y Recreación, [s.l.], v. 38, p. 838-844, 2020.). Esses dados indicam a necessidade de se refletir sobre as práticas pedagógicas na disciplina, isonomia pedagógica às necessidades específicas de meninos e meninas, de modo a garantir oportunidades que lhes garantam o desenvolvimento de competências motoras e socioafetivas em um ambiente democrático e socialmente suportado, propício à aprendizagem desde as séries iniciais do Ensino Fundamental.
Implicações das NPB na participação letiva: ouvindo e interpretando as vozes discentes
Esta segunda parte dos resultados trata da análise interpretativa da expressão de 12 alunos obtidas nas entrevistas realizadas na dinâmica adaptada do círculo hermenêutico dialético. Para garantir o anonimato dos(as) participantes foram adotados códigos para caracterizar os alunos que combinaram altas e baixas percepções das NPB e perfil de maior e menor participação nas aulas, respectivamente (tabela 1).
No sexto ano, o critério adotado para a identificação de participantes que sentem baixa a atenção às NPB e não participam frequentemente das aulas incidiu na seleção de três alunas, denominadas 6ºR1, 6ºR3 e 6ºR5. Já o critério de identificação dos participantes com elevado senso de atenção às NPB e que participavam frequentemente das aulas incidiu na seleção de três alunos, denominados 6ºR2, 6ºR4 e 6ºR6.
No nono ano, foram selecionadas três alunas com baixa satisfação das NPB e pouco frequentes nas aulas, denominadas 9ºR1, 9ºR3 e 9ºR5; e três alunos com altos índices de satisfação das NPB e frequentes às aulas, denominados 9ºR2, 9ºR4 e 9ºR6.
Esclarece-se que não houve manipulação dos pesquisadores no procedimento de amostragem para a categorização dos alunos, portanto, representando as características dos participantes refletidas nas respostas ao questionário e na identificação da frequência às aulas pelos professores (que não tiveram acesso aos resultados do questionário), ao que se percebe, per si, a dicotomia de sexos na categorização dos participantes.
Dimensão competência
Os resultados descritos na dimensão competência por sexo e escolaridade denotam ser este um aspecto fundamental nas aulas de Educação Física, na medida em que influencia a estabilidade emocional, a participação nas aulas, a interação entre pares, o senso de aceitação social (enquanto critério de inclusão ou exclusão nas atividades), incidindo em perfis direcionados à participação ou abstenção nas aulas conforme os alunos percebam suas habilidades e competências para as tarefas.
Nota-se maior competência e relatos de experiências positivas entre os alunos do sexo masculino em ambos os anos de escolaridade, em geral, correspondendo aos alunos mais participativos nas aulas de Educação Física. As meninas, não raro, apresentaram sentimento de baixa competência perante as tarefas. Isso pode se dever ao hiato entre a competência percebida e a competência exigida para a realização das tarefas.
Entre as meninas do sexto ano observou-se de forma assertiva a valorização da competência como parâmetro para a participação nas atividades. Os aspectos positivos levantados pelas alunas se referem ao domínio de habilidades elementares características de atividades lúdicas, que nem sempre coadunam com o desenvolvimento sistemático, progressivo em complexidade e generalização de habilidades e competências aludidas nas orientações curriculares para a disciplina. As poucas manifestações positivas denotam estar associadas à realização de atividades comuns nos anos de escolaridade anteriores, como a queimada, por exemplo, sendo, portanto, fruto de experiências pregressas.
Ah! Eu aprendi, eu faço aula de Educação Física desde pequenininha, aí tipo queimado, é uma coisa que todo mundo, todas as escolas sempre fazem, né? Um jogo muito famosinho assim. Aí, desde pequena eu jogo, estou sempre melhorando a habilidade assim (Fem. 6ºR3, linha 152-153).
Quando eu não entendo muito o jogo, eu fico fora. Não vou jogar não, que eu posso estragar. Aí vou ficar só aqui na arquibancada (Fem. 6ºR3, linha 215-216).
Já [fui excluída] ... Acho que todo mundo passa por isso. Sempre tem aquele joguinho. Ah! Você não joga bem, você não vai pro meu time. Sempre tem! (Fem. 6ºR3, linha 142-143).
Porque a gente estava jogando queimado, daí a bola estava comigo. Só que, tipo, eu meio que deslizei e caí no chão sem querer; daí eu perdi a bola. Aí eu nunca mais, nunca mais não, né, fiquei um tempo sem jogar porque eu fiquei tímida, com vergonha, porque as pessoas falaram que eu não estava jogando bem (Fem. 6ºR3, linha 147).
As manifestações da aluna evidenciam claramente a relevância atribuída pela jovem às habilidades e competências para o senso de sucesso na disciplina. Este senso se mostra em duas vertentes, sendo a primeira explicitamente vinculada à defasagem entre suas próprias competências e as demandas exigidas nas tarefas e, a segunda diz respeito à associação entre o clima sociomotivacional nas aulas e o desencadeamento de contextos excludentes, conotação, em grande medida, ressonante das interações e avaliações sociais sobre as experiências pregressas e, consequentemente, interpretadas como negativas.
Panorama semelhante ocorre com as meninas do nono ano. Os relatos negativos sobre a própria competência nas tarefas letivas demonstram seu baixo sentimento de competência, além de percebê-la defasada frente às exigências impostas pelas tarefas propostas que foram consideradas com alto nível de dificuldade. Essa percepção pode ser gerada pela maior capacidade cognitiva de se avaliar (comparando-se com parceiras mais jovens) frente ao contexto das aulas e exigência das atividades desenvolvidas.
Eu não faço porque eu tenho dificuldade para fazer essas coisas, eu não consigo jogar bola, jogar vôlei (Fem. 9ºR3, linha 128-129).
Eu particularmente sou assim, eu não gosto de fazer porque não sei jogar futebol, não sei jogar vôlei, não sei fazer nada, então eu fico lá (Fem. 9ºR3, linha 58).
Na Educação Física eu não faço nada porque eu não sei fazer nada (Fem. 9ºR3, linha 83).
É importante considerar que a falta de competência para o domínio dos conteúdos reflita na consolidação progressiva de atitude negativa perante as atividades e, quiçá, a disciplina. Esses excertos levam também à reflexão acerca das experiências pregressas na disciplina, as quais não resultaram no desenvolvimento de habilidades e competências necessárias às aprendizagens. Diante disso, as escolas e os professores da disciplina devem dar primazia à sistematização dos conteúdos e do desenvolvimento curricular, no sentido de desenvolver progressivamente as habilidades de base necessárias ao desenvolvimento das tarefas ao longo dos anos de escolaridade. Foi mencionado por 9ºR1 que a dificuldade em atender às exigências da disciplina, principalmente nos conteúdos esportivos, contribuiu para o afastamento e desinteresse pelas aulas, pois mencionou que, caso se sentisse competente nas atividades, não conseguiria ficar sentada, apenas assistindo.
A sensação de incapacidade e o sentimento aquém das exigências geram consequência emocional negativa a partir da interpretação de impossibilidade de sucesso nas atividades e levam ao descompromisso com a disciplina, tendo em vista não acreditarem ser possível aprender e ter sucesso durante as aulas, gerando atitude negativa perante a Educação Física.
É muito difícil eu desistir de uma coisa e me sentir fraca, me sentir como se eu não fosse capaz de fazer aquilo. É difícil isso, entendeu? E eu ficava me sentindo mal quando não conseguia realizar as atividades (Fem. 9ºR1, linha 170).
Eu nunca fui boa em dança, então acho que eu falava que ia vir, mas eu achava que não ia adiantar em nada, eu vir e não ia aprender nada. Acho que foi isso... Ah! Sei lá, não gostava mesmo de dançar não então, eu acho... (Fem. 9ºR3, linha 296).
As manifestações positivas em relação às experiências pregressas entre as alunas de nono ano se apresentam em relatos que se referem a um maior nível de participação nos anos anteriores de escolaridade. Entretanto, as falas remetem ao sentimento de incapacidade perante as tarefas, o que nos leva a refletir se o planejamento dos contextos de ensino levava em consideração o nível de desenvolvimento/conhecimento das(os) alunas(os). Infelizmente, as pesquisas sobre a Educação Física escolar têm permitido observar práticas caracterizadas por baixa intencionalidade pedagógica no trato dos conteúdos. Menech e Cardoso (2021MENECH, Leandro; CARDOSO, Ana Lucia. Entre a “não aula” e a aula na educação física: caracterizações necessárias. Revista Saberes Pedagógicos, [s.l.], v. 5, n. 2, 2021. Doi: https://doi.org/10.18616/rsp.v5i2.6817.
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) investigaram a “não aula” por não conseguirem identificar princípios pedagógicos em aulas no contexto de estágio. Machado et al. (2010MACHADO, Thiago; BRACHT, Valter; FARIA, Bruno; MORAES, Claudia; ALMEIDA, Ueberson; ALMEIDA, Felipe. As práticas de desinvestimento pedagógico na educação física escolar. Movimento, Porto Alegre, v. 16, p. 129-147, 2010. Doi: https://doi.org/10.22456/1982-8918.10495.
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, p. 132), já há uma década, investigaram o desinvestimento pedagógico na EF escolar, ou como denominaram: a “não aula”, tratando-os como “pedagogia da sombra”, representada por práticas de ensino despretensiosas e pouco objetivadas pedagogicamente, que incidem, entre outros, na privação de aprendizagens de conteúdos/habilidades dos alunos. O desenvolvimento do senso de competência e suas consequências para a motivação discente passa pela promoção de ambientes de ensino identificados com os cinco fatores presentes no conceito de “aula” proposto por González e Fensterseifer (2006GONZÁLEZ, Fernando; FENSTERSEIFER, Paulo. Educação física e cultura escolar: critérios para identificação do abandono do trabalho docente. In: CONGRESO DE EDUCACIÓN FÍSICA: REPENSANDO LA EDUCACIÓN FÍSICA, 2006, Córdoba. Actas [...]. Córdoba: Ipef, 2006. p. 734-746, p. 739-740)1
1
Para os autores, os cinco parâmetros que definem a “aula” são: “a) um fenômeno vivo; b) dotada de intencionalidade; c) as aprendizagens e/ou desenvolvimentos procurados são fundamentais para todos os alunos da turma; d) uma aula acontece quando desempenha seu papel no projeto que articula o trabalho no médio e longo prazo; e) uma aula supõe, por parte do professor, um projeto de mediação daquele saber que se pretende que seus alunos construam e/ou da capacidade que pretende que os alunos desenvolvam.” (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2006, p. 739-740)
. Contextos educativos desta natureza restringem o engajamento dedicado e comprometido de uma legião de alunos e alunas na medida em que as atividades, pelo limitado nível de sistematização e complexidade, não lhes proporcionam desafios suficientes para a mobilização cognitiva e motora para novas e mais significativas aprendizagens.
Bom, aqui não tem exigência porque os meninos só ficam jogando futebol e não exige nada. A professora não exige nada (Fem. 9ºR1, linha 152).
O que eu aprendi na Educação Física? Ai, eu aprendi... Ah! Sei lá, aprendi nada eu (Fem. 9ºR3, linha 155).
Entre os meninos do sexto ano, observou-se a valorização da competência a partir de relatos que expressam alta competência percebida e o reconhecimento da importância da habilidade para a realização das tarefas, percebendo-se, também, a preocupação com o desempenho. No entanto, em algumas falas, ficou explícita a relativização do sentimento de competência, pois, enquanto a competência percebida é elevada na prática de alguns conteúdos, ela era refutada quando confrontados com situações menos favoráveis de prática em outros conteúdos. Os alunos do sexto ano reconhecem a importância da competência nas aulas de Educação Física e a relacionam diretamente com a inclusão ou exclusão dos alunos nas atividades desenvolvidas, bem como identificam a falta de habilidade como um obstáculo para a participação de uma parcela dos alunos.
Eu consigo fazer bastante coisa, no caso é fácil, mas também para isso precisa a habilidade (Masc. 6ºR2, linha 142-144).
Quando eu não consigo realizar uma atividade fico nervoso, ué! Fico nervoso, boladão2 2 Gíria utilizada pelos jovens que significa ficar surpreso ou aborrecido com algo ou determinada situação. (Masc. 6ºR6, linha 84-88).
Não, nem tudo eu jogo bem. Só no futebol que sou bom (Masc. 6ºR2 linha 171-172).
Os alunos são excluídos das atividades porque eles são ruins, não sabem participar, sabe?! Aquelas coisas (Masc. 6º R6, linha 44-45).
Eles até querem jogar, mas eles não conseguem fazer, então eles ficam sentados lá (Masc. 6ºR4, linha 190).
A fala de 6°R6 demonstra que os conteúdos restritos à prática dos esportes coletivos tradicionais (em especial, o futebol) comprometem a percepção de sucesso dos alunos, logo, seu engajamento nas atividades implicando na autoavaliação negativa sobre o progresso da aprendizagem nas aulas.
Considero nosso progresso mais ou menos, porque a gente só joga futebol, e, às vezes, joga vôlei... essas coisas assim (Masc. 6ºR6, linha 94).
Entre os alunos do nono ano observou-se a incidência de relatos que demonstram alta percepção de competência, no entanto, relativizada em função do conteúdo desenvolvido. Além disso, um dos relatos demonstra a dificuldade dos alunos em realizar atividades nas quais perspectivavam o insucesso, influenciando suas atitudes perante a Educação Física.
Ah! Tem uns esportes que sou bom, outros que sou ruim: futebol jogo mais ou menos, handebol eu jogo bem, vôlei não jogo muito bem, não sei jogar direito (Masc. 9ºR4, linha 99-100).
Tem uns alunos que não têm habilidade, que, tipo, tem uma certa vergonha de entrar. Tem o aluno que é resmungão, gosta de falar, não gosta de fazer nada, que participa e é resmungão. Esse aluno, que não tem habilidade, tem medo porque ele não gosta de tomar esporro (Masc. 9º R2, linha 188).
As fontes de informações provenientes do contexto de ensino influenciam a competência percebida pelos alunos na Educação Física escolar. Por exemplo, para os meninos do nono ano, o momento de escolha de equipes para a prática esportiva nas aulas representa uma fonte relevante de informação sobre a sua competência nas tarefas, aportando aspectos positivos ou negativos. Aqueles que são escolhidos primeiro percebem a valorização de suas habilidades, enquanto os últimos escolhidos as sentem depreciados. Não raro, este evento leva os alunos a associarem o nível de competência a contextos de inclusão ou exclusão nas atividades desenvolvidas nas aulas.
Como argumentam Digelidis e Papaioannou (1999DIGELIDIS, N.; PAPAIOANNOU, A. Age-group differences in intrinsic motivation, goal orientations and perceptions of athletic competence, physical appearance and motivational climate in Greek physical education. Scandinavian Journal of Medicine & Science in Sports, [s.l.], v. 9, p. 375-380, 1999. Doi: https://doi.org/10.1111/j.1600-0838.1999.tb00259.x.
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) e Almeida, Valentini e Berleze (2009ALMEIDA, Gustavo; VALENTINI, Nadia; BERLEZE, Adriana. Percepções de competência: um estudo com crianças e adolescentes do ensino fundamental. Movimento, [s.l.], v. 15, n. 1, p. 71-97, 2009. Doi: https://doi.org/10.22456/1982-8918.2416.
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), a percepção de habilidade tende a ser autoavaliada com maior acurácia conforme o avanço da idade. Na pesquisa realizada por Almeida, Valentini e Berleze (2009) no contexto brasileiro, o platô para a estabilização da competência percebida aconteceu marcadamente a partir dos 11 anos de idade, assemelhando-se à faixa etária das alunas de sexto ano, neste estudo. Esta mudança está associada ao desenvolvimento das habilidades cognitivas, mediadoras das avaliações sobre experiências pregressas, fatores contextuais e sociais determinantes de seu desempenho, como se verificou neste estudo em função da natureza das atividades, julgamento da capacidade para a realização de tarefas e afetação emocional pelo contexto social promovido pelos pares.
As pesquisas sob a Teoria das Orientações às Metas ou Metas de Realização (Achievement Goal Theory) agregam fundamentos importantes à compreensão da motivação ao esclarecerem a relação de concepções mais ou menos diferenciadas acerca das noções de esforço e sucesso, assim como de complexidade da tarefa e o nível de habilidade, sendo importantes para compreender a concepção de competência formulada pelas pessoas (NICHOLLS, 1984NICHOLLS, John. Achievement motivation: conceptions of ability, subjective experience, task choice, and performance. Psychological review, [s.l.], v. 91, n. 3, p. 328, 1984. Doi: https://doi.org/10.1037/0033-295X.91.3.328.
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). A concepção menos diferenciada implica que o nível de habilidade e a dificuldade da tarefa sejam interpretados com base na própria compreensão e domínio da tarefa (orientação à maestria). Por outro lado, a concepção mais diferenciada tem como referência a avaliação normativa em relação aos membros do grupo (orientação ao ego).
As pesquisas não se mostram conclusivas quanto às diferenças das orientações à maestria ou ao ego em função da idade (BAENA-EXTREMERA; GRANERO-GALLEGOS, 2015BAENA-EXTREMERA, Antonio; GRANERO-GALLEGOS, Antonio. Sexo y edad del alumnado sobre las orientaciones de meta en la Educación Física. Estudios Pedagógicos XLI, [s.l.], n. 2, p. 25-39, 2015. Doi: http://dx.doi.org/10.4067/S0718-07052015000200002.
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; HIROTA, VERARDI; DE MARCO, 2012HIROTA, Vinicius; VERARDI, Carlos; DE MARCO, Ademir. Orientação motivacional de metas na modalidade do basquetebol. Educação Física em Revista, [s.l.], v. 6, n. 3, 2012.), mas em relação ao sexo sugerem evidências de que indivíduos do sexo masculino tendem a demonstrar maior orientação para o ego (BAENA-EXTREMERA; GRANERO-GALLEGOS, 2015BAENA-EXTREMERA, Antonio; GRANERO-GALLEGOS, Antonio. Sexo y edad del alumnado sobre las orientaciones de meta en la Educación Física. Estudios Pedagógicos XLI, [s.l.], n. 2, p. 25-39, 2015. Doi: http://dx.doi.org/10.4067/S0718-07052015000200002.
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), ao que se presume lidarem melhor com o ambiente competitivo. Entretanto, a concepção mais diferenciada entre habilidade e esforço tende a afastá-los das tarefas em que preveem iminente fracasso. Neste caso, o clima determinante de um ambiente competitivo percebido pelas meninas pode ter sido restritivo à sua participação nas aulas, tendo em vista avaliarem que suas capacidades não correspondiam às exigências das tarefas e, com isso, se privavam da participação para não serem ridicularizadas pelos pares. Nesse sentido, o clima da aula deve ser objeto de atenção dos professores, pois, como indicam Duda e Nicholls (1992DUDA, Joan; NICHOLLS, John. Dimensions of achievement motivation in schoolwork and sport. Journal of educational psychology, [s.l.], v. 84, n. 3, p. 290, 1992. Doi: https://doi.org/10.1037/0022-0663.84.3.290.
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), o clima voltado à tarefa se mostra associado positivamente à satisfação com a atividade escolar, e negativamente com o sentimento de aborrecimento (boredom) nas aulas.
Dimensão autonomia
Na dimensão autonomia, levou-se em consideração a atitude dos estudantes face ao conteúdo e à participação na tomada de decisões durante o processo educativo. Entre as meninas do sexto ano, observou-se de forma assertiva a atitude negativa e o descontentamento em relação ao conteúdo futebol frequentemente desenvolvido nas aulas, refletindo em uma “cultura do futebol”, acessível exclusivamente para os meninos. O privilégio dado aos meninos mediante a cessão do espaço para a prática do futebol parece naturalizar o papel secundário das meninas nas aulas. Alijadas das práticas, parecem compreender como normais as situações em que se tornam expectadoras ou interagem com as colegas fora do contexto letivo (i.e., à beira da quadra ou na arquibancada), conforme se interpreta na fala de 6ºR1.
Porque o professor só coloca futebol, menina e menino. Na minha sala, só duas meninas jogam. Eu acho que só fiz Educação Física esse ano umas duas ou três vezes (Fem. 6ºR5, linha 71).
Mas todos fazem Educação Física. Só às vezes que os meninos estão lá jogando bola que a professora deixa, aí todas as meninas ficam lá conversando (Fem. 6ºR1, linha 46).
Os meninos adoram jogar bola e a professora deixa, então eu e algumas meninas ficamos sentadas lá porque a gente também não é louca. Quando os meninos estão jogando futebol, alguns meninos são bem agressivos, né?! Aí a gente fica lá sentada (Fem. 6ºR1, linha 32).
Pelo fato de influenciar todas as dimensões das NPB. Entende-se preocupante que a voz das alunas ainda evidencie processos de generificação dos conteúdos curriculares, com tendências à violência interpessoal. Wenetz (2013WENETZ, Ileana. Meninas, meninos e futebol, quem brinca disso na escola? In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO, 10., 2013, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. 2013, p. 4) identificou que no universo das crianças o futebol é uma “brincadeira de meninos” porque requer “mais força”, é “muito violento”, desperta a adrenalina dos meninos, ou lhes atribuem maior experiência para a prática. Algumas vozes categorizadas nas três dimensões das NPB explicitam situações de violência física (jogar a bola com força desproporcional) e psicológica (intimidação, zoação, bullying), além da privação de interações no espaço letivo que se entende social por natureza. Portanto, a privação da prática representa restrições ao desenvolvimento de habilidades e competências motoras aos excluídos; já a partida limita a autonomia das meninas ou dos menos habilidosos em coparticipar das decisões de planejamento da disciplina por uma suposta inabilidade; e restringe as relações sociais em classe em vista da carência de oportunidades em exercitar habilidades socioemocionais entre pares.
No que diz respeito à “participação na tomada de decisões”, as falas de 6ºR3 demonstraram a valorização da participação nas decisões relativas ao ensino da disciplina e do incentivo do professor a essa prática. Porém, o desenrolar da entrevista demonstrou que a oportunidade de compartilhar decisões sobre o ensino/conteúdos da disciplina não incluía os(as) alunos(as) que se encontravam às margens da quadra. Chama a atenção o fato de a aluna não perceber a iniciativa do professor em buscar sensibilizá-las à participação nas aulas dialogando sobre as condições/ fatores que as motivariam a participar.
O professor sempre pergunta o que a gente está achando da aula, porque se a gente não estiver gostando ele vai tentar mudar, aí eu acho isso muito essencial. Mas a gente sempre escolhe um joguinho, sempre que dá [...] nem todo mundo fala porque tem sempre aqueles que, tipo, não estão naquela rodinha ali. [O professor] Escuta mais quem sempre está participando (Fem. 6ºR3, linha 115-119).
Ah! Eu acho que eu sentaria com os alunos que não querem, que não fazem questão de participar, tentaria entender o lado deles, chamaria, tipo, para uma aula experimental (Fem. 6ºR3, linha 105).
Entre as meninas de nono ano, os excertos extraídos das entrevistas explicitaram o descontentamento com os conteúdos desenvolvidos nas aulas e indicaram que o caráter esportivista das aulas e a cultura do futebol afastavam as alunas, gerando atitude negativa perante a disciplina. Embora reconheçam a alternância das atividades desenvolvidas nas aulas, percebem que os conteúdos se mantêm restritos aos esportes coletivos tradicionais e sugerem a necessidade da diversificação para além deles.
Ah! Porque eu acho que a maioria dos meninos gosta de futebol, mas acho que as meninas não gostam de futebol, de ficar, de jogar vôlei, essas coisas, então a maioria das meninas da minha sala fica sentada fazendo nada (Fem. 9ºR3, linha 54).
Aqui o professor põe na quadra os meninos para jogar futebol e eles tomam conta da quadra inteira. E às vezes é vôlei para as meninas, e eu não gosto (Fem. 9ºR3, linha 62).
Porque eu acho que na minha Educação Física não tem nada além de futebol, basquete e vôlei. Acho que nem basquete! Tem vôlei. Tem nada além disso (Fem. 9ºR3, linha 273).
Porque toda aula o professor dá um esporte novo, mas nem todo mundo gosta de esporte (Fem. 9ºR5, linha 193).
Às vezes, se tivesse esse negócio desses alongamentos, acho que a gente faria. Essas ginásticas acho que as meninas fariam mais (Fem. 9ºR3, linha 62).
As alunas demonstram não perceber oportunidades de participação nas aulas de Educação Física e atribuíram importância à possibilidade de serem ouvidas em relação aos conteúdos das aulas. Os relatos denotam que a possibilidade de opinarem sobre os conteúdos proporcionaria maior conforto às alunas que não fazem a aula, o que estimularia seu envolvimento nas atividades.
Eu colocaria algum exercício que eles gostam de fazer na Educação Física, sabe? Tipo: o que você gosta de fazer? Ah! Eu gosto de dançar. Então, aula de dança na Educação Física para as meninas e futebol para os meninos. É! Eu quero fazer ginástica! Então faz ginástica, entendeu? Essas coisas assim que faziam anteriormente, mas em outras escolas (Fem. 9ºR3, linha 105).
Eu mudaria, acho que as aulas, o que eles passam na Educação Física. Eu procuraria dar mais chance para aqueles que não querem fazer nada, entendeu? (Fem. 9ºR3, linha 101).
Eu tentaria conversar com as alunas para ver o que elas acham, o que elas querem! Não? Ah! Tá, aqui não sei o quê [uma determinada atividade] para quem quiser! Eu faria com que eles se sentissem o máximo confortáveis na aula de Educação Física (Fem. 9ºR1, linha 212).
As falas das alunas permitem deduzir a menor valorização conferida à Educação Física, além de descompromisso com as aulas, demonstrando gradativo desinteresse pela disciplina. Isso pode estar relacionado ao conceito de meaninglessness3 3 Conceito utilizado por Carlson (1995) para entender o processo de alienação dos alunos nas aulas de Educação Física que se refere à falta de atribuição de significado pessoal ao que é desenvolvido na disciplina. o qual representa a falta de significado atribuído à disciplina pelas alunas, gerado a partir das vivências em contextos em que a Educação Física não resultou em aprendizado significativo.
Eu acho que, depois de um tempo, eu que fui perdendo a vontade de participar, porque eu gostava muito de Educação Física. Eu acho que eu mesma que fui perdendo a vontade. Aí foi só caindo, caindo e hoje não faço nada, entendeu? Aí o tempo foi passando e eu fui deixando de lado a Educação Física (Fem. 9ºR1, linha 190-201).
Ah! A educação física para gente hoje em dia é ir lá para cima [quadra] ficar em tempo vago, porque a gente não faz nada! Só conversando mesmo e pronto! É um tempo livre para gente. A gente não chega lá e faz exercício, essas coisas (Fem. 9ºR3, linha 191).
Os meninos do sexto ano foram seletivos em suas atitudes em face dos conteúdos desenvolvidos nas aulas, as quais tornaram-se determinantes para a opção de participar ou não delas. Tais atitudes podem estar relacionadas com a relativização do senso de competência, como constatado na análise da dimensão competência na seção anterior deste trabalho. O grau de engajamento nas tarefas varia, portanto, conforme o conteúdo da aula, não raro, sendo o futebol a modalidade de maior preferência.
Dependendo de como seja a aula, por exemplo, os moleques lá da sala, os meninos lá da sala, se for vôlei, qualquer outro tipo de esporte não sendo futebol, eles fazem não. Eles acham que Educação Física é só jogar bola, só jogar futebol (Masc. 6ºR2, linha 57-63).
Os meninos do nono ano também apresentaram atitude positiva em relação aos conteúdos desenvolvidos nas aulas de Educação Física, no entanto, reconhecem atitudes diferenciadas em função do sexo, além de que a prevalência do esporte nas aulas leva ao afastamento de alguns alunos. Também demonstraram perceber oportunidades de compartilhamento da tomada de decisões nas aulas, muito embora se manifestem em opiniões de cunho casual e oportunista compartilhadas com o professor. Dessa forma, a percepção dos alunos sobre a abertura proporcionada pelo professor não significa necessariamente o compartilhamento das decisões de ensino, mas interlocuções focalizadas nas situações de prática que denotam a atitude receptiva do professor visando a favorecer as interações com os alunos e estabelecer um clima positivo durante a aula.
Ah! Porque é maneiro, tem esporte, várias atividades para fazer. Eu gosto das aulas de Educação Física, esporte, futebol, handebol, vôlei, basquete [...] o professor faz várias atividades na semana. Numa semana handebol, noutra futebol (Masc. 9ºR4, linha 50).
[...] os alunos homens gostam muito mais de esporte, gostam mais de Educação Física, né?! Quando o professor pega a quadra e passa para as garotas, vem queimado, vem vôlei, vem handebol, os alunos começam a não gostar disso já (Masc. 9ºR2, linha 33).
Os que não fazem [a aula] nunca dão opinião (Masc. 9ºR4, linha 35).
Os professores costumam ouvir opinião, e vou te falar, parece até que os alunos são técnicos profissionais, porque os alunos falam bastante. Nunca viu um aluno falando? Ah! Ele tem que ir para ali, professor, não sei o quê. No banco, então, quando está no banco [...] (Masc. 9ºR2, linha 105).
No jogo, principalmente, tem bastante [opinião dos alunos], mas em aula a gente também dá opinião [...] tem muita opinião de aluno. O professor escuta. Algumas vezes ele escuta, assim, que tem algumas vezes as opiniões são meio sem noção (Masc. 9ºR2, linha 109-113).
Analisando o teor dos segmentos codificados na dimensão autonomia, percebeu-se que as meninas de ambos os anos de escolaridade demonstraram insatisfação com os conteúdos desenvolvidos na Educação Física, não sentindo as suas necessidades contempladas com as atividades desenvolvidas nas aulas. Relativamente aos meninos, apresentam atitudes mais positivas em relação aos conteúdos e à disciplina quando comparado às meninas. No entanto, também manifestam atitudes negativas face aos conteúdos que não são de sua preferência.
Não se constatou, nas manifestações dos meninos e meninas, a existência de espaços proporcionados pelo professor para o compartilhamento de decisões sobre o modo de desenvolvimento do ensino ou natureza dos conteúdos curriculares desenvolvidos nas aulas.
A atitude menos favorável a determinados conteúdos da Educação Física, além de se dever a questões relativas ao seu domínio competente, deriva da sua repetição durante as fases de escolaridade, bem como da inadequação de estratégias pedagógicas para o seu desenvolvimento, portanto, determinantes para o desinteresse dos alunos nas aulas (BETTI; USHINOHAMA, 2014BETTI, Mauro; USHINOHAMA, Tatiana. Os saberes da Educação Física nas perspectivas dos alunos: panorama da literatura e uma proposta de investigação a partir da ‘teoria da relação com o saber’. Revista Pulsar, [s.l.], v. 6, n. 4, p. 1-18, 2014.; MACÊDO et al., 2018MACÊDO, Libni et al. Análise de atos de currículo na educação física em escolas da rede municipal de Simão Dias - SE e Paripiranga - BA. Conexões: Educ. Fís., Esporte e Saúde, [s.l.], v. 16, n. 3, p. 281-298, 2018. Doi: 10.20396/conex.v16i3.8650464.
https://doi.org/10.20396/conex.v16i3.865...
). O estudo de Tenório e Silva (2013TENÓRIO, Jederson; SILVA, Cinthia. Educação Física Escolar e a não participação dos alunos nas aulas. Ciência em movimento, [s.l.], v. 15, n. 31, 2013.) identificou a falta de diversificação dos conteúdos como um dos fatores para o afastamento dos alunos das aulas de Educação Física. A diversificação dos conteúdos implica na possibilidade de ampliar o atendimento ao aluno em suas necessidades e, com isso, envolvê-lo nas tarefas letivas. Embora as propostas curriculares dos sistemas de ensino para a Educação Física atualmente apresentem maior diversificação de conteúdos, ainda são avaliadas pelos professores como insuficientes (MARANI; SANCHES NETO; FREIRE, 2017MARANI, Lidiane; SANCHEZ NETO, Luiz; FREIRE Elisabete. O currículo da Educação Física na Rede Municipal de Barueri: as percepções dos professores. Movimento, [s.l.], v. 23, n. 1., p. 249-264, 2017.). Entretanto, os professores ainda gozam de alguma autonomia que lhes permite dialogar com os alunos visando a adequar o planejamento dos conteúdos e o modo como as atividades são desenvolvidas de acordo com os interesses e necessidades dos alunos.
A atitude representa um pré-comando do comportamento, sendo necessário considerá-la na seleção e desenvolvimento do currículo na disciplina. A confirmar esta assertiva, em Nascimento et al. (2007NASCIMENTO, Janaína; MARTINS, Bianca; MELLO, André; LUCAS, Rodrigo. Fatores que geram a não participação dos alunos nas aulas de Educação Física. Coleção Pesquisa em Educação Física, [s.l.], v. 5, n. 1, p. 329-336, 2007.), a falta de afinidade com os conteúdos, entre outros fatores, foi determinante para o afastamento dos alunos das aulas de Educação Física. Os estudos citados sugerem a adoção de uma postura aberta dos professores para que a escolha dos conteúdos aconteça por meio de um processo de planejamento participativo, a partir da ampliação dos canais de comunicação com alunos de modo que tenham mais possibilidades de manifestar seus interesses e expectativas em relação à Educação Física.
O aumento da participação dos alunos nas decisões relativas ao desenvolvimento das aulas de Educação Física está relacionado com o aumento da motivação intrínseca e o comportamento autodeterminado dos alunos, como apresentou o estudo de Chang et al. (2016CHANG, Yu-Kai; CHEN, Senlin; TU, Kun-Wei; CHI Li-Kang. Effect of autonomy support on self-determined motivation in elementary physical education. J Sports Sci Med., [s.l.], v. 15, p. 460-466, 2016.). O aumento da motivação intrínseca e comportamentos autodeterminados levam ao aumento da predisposição para a participação nas atividades e do senso de responsabilidade pelo seu desempenho escolar.
A adoção do planejamento colaborativo atenuaria os problemas de identificação dos alunos com os conteúdos desenvolvidos nas aulas, no entanto, cabe ressaltar que a percepção iminentemente negativa em relação aos conteúdos pelos alunos que não participam das aulas pode estar relacionada à falta de adequação do nível de exigência das atividades à sua habilidade, exigindo um planejamento sistematizado das aulas no sentido de ampliar as oportunidades de sucesso.
Vínculos sociais
Entre as meninas do sexto ano, observou-se a incidência de aspectos negativos nas categorias de análise denominadas “reação em situação de prática” e “relação entre pares”, demonstrando que elas parecem ser mais sensíveis a esse contexto. Embora a fala de uma aluna tenha demonstrado o reconhecimento de que as reações em situação de prática sejam mais intensas entre os meninos, as meninas expressaram em seus relatos maior suscetibilidade aos contextos desfavoráveis para a participação. Quando o meio social não oferece segurança emocional, as interações tendem a gerar ansiedade e estresse.
Fica zoando né... às vezes, quando é menino zoa mais do que menina, porque menina não liga, gente [...] (Fem. 6ºR5, linha 119).
Tem gente que, tipo assim, perdeu já fica todo triste, e ainda mais sendo zoado. E se uma pessoa zoar? Fica como? Tipo assim, primeiro dia de aula, teu time perdeu e a pessoa que você nunca viu na vida te zoou, aí no resto do ano você guarda mágoa dessa pessoa e não vai querer fazer amizade com ela (Fem. 6ºR5, linha 134).
Outro dia que teve um caso aí que o menino pegou e tacou a bola tão forte que machucou o colega, isso aí foi tipo, gente!!! (Fem. 6ºR1, linha 60).
No que diz respeito às relações professor-aluno, as meninas do sexto ano demonstraram reconhecer a importância dos vínculos firmados com o professor para o estabelecimento de um ambiente seguro e propício para a participação e aprendizagem. As falas de algumas alunas indicaram perceber a atenção do professor voltada para os alunos mais habilidosos e que participam das aulas, demonstrando algum ressentimento e causando insegurança para aquelas que não se sentem contempladas pela atenção e estímulo do professor. O aluno sente segurança quando o professor demonstra se importar, ouve suas demandas e procura atender às suas expectativas.
Ah! É que normalmente tem muito aluno, a aula experimental seria para os que não querem [determinados conteúdos] e ele [o professor] se dedicaria mais a eles, mostraria que ele se importa, seria diferente (Fem. 6ºR3, linha 106-107).
Ah! Ele dá bastante atenção. Tem uns alunos que não se dedicam, daí ele fica no meio termo, daí tem os alunos que se dedicam, daí ele dá bastante atenção... sempre demonstra que gosta do aluno (Fem. 6ºR3, linha 20).
Ah! Depende do professor. Tem aquele aluno que todo professor sempre puxa o saquinho4 4 Expressão utilizada para se referir a alunos que se esforçam para agradar o professor. , né, porque ele joga bem, porque ele sempre faz questão de participar, mostra interesse (Fem. 6ºR3, linha 175-177).
Aí quando ele senta assim e conversa com a gente, tenta entender um pouco nosso lado, entra no nosso mundo, aí acho que acaba influenciando muito a gente [...] fala: Ah! O professor é legal, vamos jogar (Fem. 6ºR3, linha 214).
Entre as meninas do nono ano, observou-se aspectos negativos no que diz respeito às reações em situação de prática e relação entre pares, em que os contextos de crítica e zombaria nas aulas como reação às atividades malsucedidas transmitiam insegurança e provocavam o afastamento das aulas em vista dos constrangimentos. Percebeu-se que a influência dos pares para o afastamento das aulas acontece de forma intensa, indicando que as amizades podem induzir à participação ou ao afastamento das aulas, bem como influenciam a atitude frente à disciplina.
Não sabe jogar, às vezes. Aí os outros ficam zoando e a pessoa não faz, fica com vergonha. Acho ridículo isso, ficar zoando os outros porque não consegue, tem dificuldade. (Fem. 9ºR5, linha 32)
Mas quando um não consegue [fazer alguma atividade], eles são zoados (Fem. 9ºR1, linha 230).
Ah! Zoam muito o colega sempre, zoam muito, ficam falando muito do colega (Fem. 9ºR3, linha 161).
Eu acho que se todas as minhas amigas com quem eu falo fizessem, eu acho que também faria! Acho que não sei, eu acho que faria, mas elas não fazem, então... (Fem. 9º R3, linha 185).
Eu acho que sim, se meus amigos participassem mais, eu acho que eu ia querer participar sim (Fem. 9ºR1, linha 268).
A manifestação das alunas do nono ano acerca da relação professor-aluno deixa claro duas vertentes interpretativas aparentemente antagônicas. Uma indica o reconhecimento da influência do professor e sua importância na definição da atitude perante as disciplinas, enquanto a outra denota que essa influência não foi o suficiente para a participação dessas alunas nas aulas de Educação Física. O relato de uma das meninas indica que na Educação Física a influência do professor para a participação nas aulas só tem êxito com os meninos.
O professor influencia, ajuda. Principalmente o professor João5 5 Para preservar a identidade dos indivíduos citados nas entrevistas, todos os nomes utilizados no texto são fictícios. , que é bacana, o professor ensina bem (Fem. 9ºR5, linha 163-167).
A relação do professor acho que ajuda muito também. Nas matérias, em geral. Acho que influencia (Fem. 9ºR3, linha 292).
O José, ele procura muito botar a gente para fazer as coisas, pedir para gente fazer as coisas, mas são coisas que a gente não faz mesmo. Mas não funciona, com as meninas não. Só para os meninos mesmo (Fem. 9ºR3, linha 191-195).
Apenas uma aluna demonstrou claramente que, embora perceba a influência positiva do professor em outras disciplinas, o mesmo não se aplica à Educação Física. Em seus relatos, a aluna diz que qualquer atitude do professor não seria suficiente para fazê-la participar das aulas.
Não sei, talvez seja o professor, o jeito que ele explica, eu acabo gostando da matéria (Fem. 9ºR1, linha 21).
De que forma? Nenhuma, porque eu não tenho muito contato com ela, com a professora [...] mesmo sendo próxima, não ia ter incentivo para fazer aula (Fem. 9ºR1, 269-272).
Em relação aos meninos do sexto ano, pode-se perceber que há uma interdependência dos vínculos sociais com a competência, em que os alunos, que conseguem atender às exigências das atividades desenvolvidas, demonstram maior segurança para o estabelecimento de vínculos e senso de pertencimento, reconhecendo as atividades esportivas como meio de socialização; em contrapartida, para os alunos menos habilidosos, o ambiente carece de segurança para que ele se desenvolva socialmente, conotando clima motivacional negativo e o afastamento das aulas.
Porque a gente está jogando bola assim. Aí tem o inimigo do lado, aí se a gente dá uma caneta6 6 Um tipo de drible no futebol em que o jogador lança a bola entre as pernas do adversário para superá-lo. , um drible assim, começa a rir e se enturma (Masc. 6ºR6, linha 134).
É, tipo maltratado pelos amigos, e os levados, porque, ele não sabe jogar direito, aí ficam perturbando porque ele não sabe jogar (Masc. 6ºR4 linha 220).
As falas de dois alunos demonstraram comportamento diferenciado ao sobreporem os vínculos sociais à competência em alguns momentos, valorizando a segurança emocional, percebendo a importância de oferecer segurança aos menos habilidosos - dissonando do clima negativo que outros tentam implantar; e reação de respeito ao fair-play e valores humanos com os pares, sendo esses fatores que influenciam positivamente o clima motivacional da aula.
Eu chamaria ele para jogar, se os outros ficassem zoando ele, eu tiraria os que estavam zoando e deixava sentado lá (Masc.6ºR4, linha 232).
Eu escolheria baseado nos moleques que eu mais me dou bem na sala, porque quando eu estou jogando bola com eles, sempre jogo com quem mais me dou bem (Masc. 6ºR2, linha 77).
Entre os meninos do nono ano, a interdependência da competência com o estabelecimento de vínculos sociais ficou ainda mais evidente. Os relatos expressam que os alunos que participam das aulas e são considerados habilidosos possuem mais possibilidades de se socializar. Isso endossa a percepção da Educação Física como espaço propício para o estabelecimento de vínculos sociais. Mas, para que se concretize, requer o estabelecimento de um clima motivacional valorativo das aprendizagens em um ambiente em que os alunos tenham a possibilidade de ser bem-sucedidos nas práticas e se sintam capazes.
Ele jogou no meu time, eu nem falava com ele e comecei a falar com ele por causa da Educação Física (Masc. 9ºR4, linha 126).
A habilidade. Não importa se o moleque é maneiro como pessoa, se ele é ótimo como pessoa, se ele é inteligente, se ele é esperto, que vai ser popular [se for habilidoso] (Masc. 9ºR2, linha 150-151).
Tipo você nunca falou [com um colega], aconteceu isso várias vezes comigo, eu não falava com o moleque, nunca falei com ele, aí até um dia que ele foi e me chamou para o time dele, e ele foi conversando comigo e eu conversando com ele, até criar uma amizade, entendeu? (Masc. 9ºR2, linha 157).
Os alunos reconhecem que as reações negativas às situações de prática restringem a participação e são um dos fatores excludentes nas aulas de Educação Física. Pela incidência dos relatos que apontam reclamações e xingamentos como reações perante as atividades malsucedidas, isso parece ser imperante no clima das aulas de Educação Física, sobretudo nesse ano de escolaridade. Cabe ressaltar que as manifestações dos alunos expressam narrativas na terceira pessoa, ao que pressupõe perceberem ocorrer com os pares menos habilidosos em classe, e não propriamente vivenciadas por eles. Ainda que supostamente se considerando mais competentes, reconhecem o clima motivacional desfavorável aos menos habilidosos.
Se ele não souber fazer bem a atividade, se ele não tem habilidade mesmo, se não tem noção, eles riem, eles ficam zoando, ficam encarnando em cima dele (Masc. 9ºR2, linha 147).
Eles ficam um pouco irritados, falando que a pessoa é ruim, não joga nada, ficam falando isso (Masc. 9ºR4, linha 111-112).
Embora a competência se mostre um aspecto relevante para o estabelecimento das relações nas aulas de Educação Física, alguns relatos demonstram que os alunos do nono ano reconhecem a influência das relações pessoais frente às atividades na disciplina. Expressam situações tanto em que prevaleceu a amizade estimulando a participação, quanto situações em que houve a exclusão ou o afastamento das atividades devido à natureza dos vínculos sociais estabelecidos. Os relatos do aluno 9ºR2 expressam reações distintas em que as relações interpessoais foram determinantes para alguns comportamentos percebidos em classe, a saber: solidariedade - mediante a superação da competência em favor das relações entre pares; sentimento de insegurança promovido pelas más relações; dificuldade em estabelecer relações com os pares individualistas; e, discriminação e exclusão em função das relações sociais estabelecidas com os pares.
Se um amigo meu ficasse de fora eu escolheria ele só para não ver ele sentado (Masc. 9ºR2, linha 43).
Tem algumas pessoas também que são desagradáveis, que me fazem um pouco não gostar de vir para a escola (Masc. 9ºR2, linha 14).
Não tem trabalho em equipe, sabe, só pensam no gol, eles, eles são muito individuais (Masc. 9ºR2, linha 55).
Coisa do moleque também não gostar dele, não chamar ele porque não gosta dele, que era muito feito na minha sala com Luciano... não sei se conhece... ninguém escolhia por ser gay e ser ruim, ele era chato e ninguém gostava dele, aí ninguém escolhia (Masc. 9ºR2, linha 59).
Alguns relatos dos meninos do nono ano permitiram entender que as meninas são mais suscetíveis à influência das relações sociais no ambiente das aulas de Educação Física, associando-as ao perfil de participação.
As meninas escolhem as amigas primeiro nos times. Isso é verdade. Ela escolhe as amigas que sentam do lado dela. [...] A outra amiga fala: Ah! Escolhe aquela dali (Masc. 9ºR6, linha 205-210).
Ainda mais entre as garotas: Ah! Vai fazer? Não? Ah! Então também vou fazer não (Masc. 9ºR2, linha 210).
Analisando o teor dos excertos categorizados na dimensão vínculos sociais, observou-se que as relações sociais que se estabelecem nas aulas influenciam na participação ou no afastamento das aulas de Educação Física. Observa-se a incidência de aspectos negativos diante de relatos que expressam atitudes vexatórias ou constrangedoras em situações de prática, existência de conflitos ou dificuldade de interação com os colegas no ambiente escolar, a influência dos colegas para o afastamento das aulas, impressões negativas em relação à figura do professor e indiferença em relação às ações do professor.
Entre as meninas, do sexto para o nono ano, percebe-se a influência anímica das amigas para a participação nas aulas. No que diz respeito à postura do professor, as meninas do sexto ano demonstraram necessidade de atenção e afeto, enquanto as do nono ano focaram apenas na necessidade de reconhecimento social por parte do professor, por exemplo, proporcionando espaço para a participação na tomada de decisões nas aulas.
Entre os meninos, percebeu-se que a relação entre vínculos sociais e competência fica mais evidente no nono ano, no entanto, demonstraram se manter sensíveis aos vínculos de amizade em situações peculiares de prática.
Os vínculos sociais que se estabelecem no ambiente da aula são o pano de fundo para o desenvolvimento da sensação de segurança necessária para o crescimento saudável, entendendo que as pessoas precisam se sentir conectadas e aceitas pelos indivíduos que compartilham o mesmo contexto. Quando essas relações são frustradas, elas afetam, em parte, o equilíbrio emocional e o bem-estar geral do indivíduo. Os estudantes aceitos nos relacionamentos desenvolvem uma orientação positiva em relação à escola, aos trabalhos e às atividades escolares e aos professores. Crianças rejeitadas pelos colegas percebem a escola de modo desfavorável, faltam às aulas e apresentam níveis de desempenho mais baixos.
O estudo de Torrado et al. (2016TORRADO Pedro; MARTINS, João; RENDEIRO Pedro; MARQUES Adilson, COSTA Francisco. Atividade física na adolescência: a importância do apoio e dos níveis de atividade física dos amigos. Revista Iberoamericana de Psicologia Del Ejercicio Y El Deporte, [s.l.], v. 11, n. 2, p. 297-303, 2016.) verificou a influência da percepção do apoio dos colegas para a prática de atividade física. Os resultados implicam que os alunos com maiores índices de atividade física tiveram também maior percepção de apoio dos colegas para a prática, sugerindo que essa influência deve ser considerada nos programas de intervenção para a promoção da atividade física escolar e extraescolar.
O apoio oferecido pelo professor influencia diretamente no envolvimento dos alunos com a escola e engajamento nas atividades escolares. A qualidade desse relacionamento é influenciada, em grande medida, pelo estilo motivacional dos professores, revelando-se como a fonte principal de satisfação ou frustração das necessidades psicológicas dos estudantes. No contexto educacional, o comportamento dos professores e dos colegas de turma influencia a motivação dos alunos.
A percepção de segurança nos relacionamentos dos estudantes com pais, professores e colegas se associa à autonomia, ao controle interno, ao bom relacionamento com figuras de autoridade e a níveis adequados de ansiedade. O sentimento de insegurança é vinculado ao baixo autoconceito, à incapacidade de agir de modo independente e à dificuldade de se conformar com as normas. Alunos seguros em relação a seus pais e professores aceitam de forma mais positiva os fracassos acadêmicos, são mais autônomos, mais envolvidos com a aprendizagem e se sentem melhor a respeito de si mesmos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposição de pesquisar a motivação de alunos do sexto e nono anos do Ensino Fundamental, além do interesse em investigar a segunda fase desta etapa, visou apreender percepções, atitudes e comportamentos de alunos inseridos em contextos diferenciados (início e final do Ensino Fundamental) e, consequentemente, em distintos estágios de desenvolvimento, pois as teorias e os estudos sobre a motivação informam diferentes perfis motivacionais nestes contexto e condição. Assim, pretendeu-se conhecer em que grau os alunos se sentem atendidos em suas necessidades psicológicas básicas no início e final do segundo segmento do Ensino Fundamental.
Em resposta ao objetivo inicial, a primeira fase da pesquisa permitiu, no contexto investigado, conhecer a magnitude em que a totalidade dos alunos concebeu o atendimento às suas necessidades psicológicas básicas na Educação Física escolar. O escore médio das NPB, reunindo as suas dimensões e considerando todos os participantes da pesquisa, demonstra níveis moderados de motivação e atendimento das NPB nos dois anos de escolaridade. Também a magnitude das dimensões autonomia e vínculos sociais se apresentaram em níveis moderados e se mostraram indiferenciados no sexto e nono anos, no entanto, o senso de competência moderado a alto no sexto ano foi superior ao índice moderado alcançado pelos alunos do nono ano.
A interpretação dos níveis moderados de motivação, endossada pelas manifestações dos alunos mostra a existência de margens significativas para a melhoria dos níveis motivacionais, de modo a estimular mais engajamento discente na educação física escolar. Os relatos dos alunos levam a conjecturas de práticas curriculares baseadas em atividades ludo-recreativas assistemáticas ou restritas ao conteúdo das modalidades esportivas coletivas clássicas, vulgarmente denominadas “quadrado mágico” abrangendo o futebol, basquete, voleibol e handebol, quando não agravadas pela exclusividade do futebol. Promover maior envolvimento dos alunos nas aulas de Educação Física requer que os professores adequem os procedimentos pedagógicos para que os alunos percebam altas possibilidades de sucesso em tarefas desafiadoras, sintam-se valorizados em seus posicionamentos e opiniões, bem como emocionalmente apoiados e filiados a grupos sociais em classe.
Comparando os participantes masculinos e femininos, observou-se que os meninos se sentem significativamente mais motivados e atendidos em suas necessidades psicológicas básicas do que as meninas, com indicadores moderados a altos nas dimensões competência e vínculos sociais e moderado na dimensão autonomia. As meninas se sentiram moderadamente motivadas e atendidas em suas necessidades psicológicas básicas de competência e vínculos sociais, e moderada a baixa na autonomia.
A associação entre os anos de escolaridade e o sexo dos participantes permite importantes ilações. Os meninos se sentem mais competentes do que as meninas no sexto ou no nono ano de escolarização. Enquanto entre os meninos observa-se a preservação do senso de competência moderado a alto nos dois anos de escolaridade, entre as meninas, observa-se a depreciação do senso de competência moderado no sexto ano para moderado baixo no nono ano. O senso de atenção à autonomia é moderado entre os meninos e maior no nono ano de escolarização; ao passo que as meninas mantêm o sentimento de autonomia em nível moderado baixo nos dois anos de escolaridade na Educação Física escolar. Em relação às necessidades de vínculos sociais, os meninos apresentam elevado senso de filiação em classe, sendo ainda maior no nono ano, fase em que o sentimento de pertencimento social se mostra significativamente maior do que o percebido pelas meninas.
A segunda parte da pesquisa responde ao complemento final do objetivo proposto, traduzido na seguinte questão: Quais são as causas que afastam os discentes das aulas de Educação Física na percepção dos alunos com alto e baixo senso de atenção às NPB?
Os índices de satisfação da dimensão competência apresentaram diferença com significância estatística entre meninos e meninas, diferença essa endossada pela fase intensiva da pesquisa em que se percebeu, por meio dos relatos, o sentimento de incapacidade das meninas em atender às exigências das atividades desenvolvidas nas aulas.
Surge, assim, dessa investigação, duas ilações para reflexão: a baixa satisfação da necessidade de competência das meninas do sexto ano pode estar relacionada à predominância dos esportes, mais especificamente a prática do futebol, no contexto das aulas; e/ou que as aulas de Educação Física não têm proporcionado condições adequadas ao desenvolvimento de competências às meninas, mesmo a partir dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
É plausível considerar que as relações que se estabelecem nas aulas de Educação Física influenciam a atitude dos alunos perante a disciplina, no entanto, não são unicamente determinantes para o afastamento das aulas, pois os aspectos negativos das relações sociais observados nesta pesquisa estavam majoritariamente relacionados à falta de habilidade, podendo ser atenuados com a interferência do professor e o estabelecimento de um clima motivacional construtivo e colaborativo.
Em sintonia com os objetivos da pesquisa, esse estudo indica que a falta de habilidade (competência), falta de diversificação dos conteúdos para além dos esportes coletivos mais conhecidos (competência/autonomia) e a falta de oportunidades de participação na tomada de decisão (autonomia) se apresentam como motivos que levam os alunos ao desinteresse pela disciplina, incidindo na abstenção da participação nas aulas de Educação Física.
Julga-se também importante recomendar pesquisas que investiguem a compatibilidade das ações docentes com o progresso dos alunos e as possibilidades de sua plena integração nas atividades e na classe.
Preprint
DOI: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/3073
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1
Para os autores, os cinco parâmetros que definem a “aula” são: “a) um fenômeno vivo; b) dotada de intencionalidade; c) as aprendizagens e/ou desenvolvimentos procurados são fundamentais para todos os alunos da turma; d) uma aula acontece quando desempenha seu papel no projeto que articula o trabalho no médio e longo prazo; e) uma aula supõe, por parte do professor, um projeto de mediação daquele saber que se pretende que seus alunos construam e/ou da capacidade que pretende que os alunos desenvolvam.” (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2006, p. 739-740)
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2
Gíria utilizada pelos jovens que significa ficar surpreso ou aborrecido com algo ou determinada situação.
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3
Conceito utilizado por Carlson (1995)CARLSON, Teresa. We hate gym: student alienation from physical education. Journal of teaching in physical education, [s.l.], v. 14, p. 467-477, 1995. para entender o processo de alienação dos alunos nas aulas de Educação Física que se refere à falta de atribuição de significado pessoal ao que é desenvolvido na disciplina.
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4
Expressão utilizada para se referir a alunos que se esforçam para agradar o professor.
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5
Para preservar a identidade dos indivíduos citados nas entrevistas, todos os nomes utilizados no texto são fictícios.
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6
Um tipo de drible no futebol em que o jogador lança a bola entre as pernas do adversário para superá-lo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Mar 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
21 Out 2021 -
Aceito
20 Set 2022