OS SABERES DOCENTES NA ÁREA DE ENSINO DE CIÊNCIAS: UMA REVISÃO SISTEMÁTICA¹

EL SABER DOCENTE EN EL ÁREA DE LA ENSEÑANZA DE LAS CIENCIAS: UNA REVISIÓN SISTEMÁTICA

RESUMO:

Neste trabalho realizamos uma revisão sistemática da literatura com os intuitos de compreender como os saberes docentes têm sido investigados na área de Ensino de Ciências no Brasil e de discutir as principais contribuições e limitações dessas investigações. Realizamos nossas buscas no Banco de Teses e Dissertações da CAPES e no Portal de Periódicos da CAPES, a partir de um recorte temático, mas não temporal. Com base nos critérios de inclusão e exclusão definidos, obtivemos um total de 64 trabalhos (teses, dissertações e artigos). Por meio desses trabalhos, identificamos e caracterizamos cinco eixos de investigação: saberes mobilizados por professores de Ciências; saberes docentes e a identidade profissional; processos de construção e desenvolvimento dos saberes docentes; contribuições de cursos e programas de formação na constituição dos saberes docentes; outros focos. Observamos que prevalecem as pesquisas que buscam apenas identificar os saberes docentes sob uma perspectiva individual de análise ao priorizarem, principalmente, métodos de categorização e análise de conteúdo. Limitações como essa apontam para a necessidade de que um esforço seja realizado no sentido de ampliar o escopo das investigações sobre a temática de forma a incluir e considerar, sob uma perspectiva etnográfica, a análise desses saberes docentes como fenômeno social, que se constrói na interação do professor com seus alunos, com seus pares e demais membros da comunidade educacional.

Palavras-chave:
saberes docentes; ensino de Ciências; professores em serviço

RESUMEN:

En este trabajo realizamos una revisión sistemática de literatura con la intención de comprender cómo los saberes docentes han sido investigados en el área de Enseñanza de Ciencias en Brasil y de discutir las principales contribuciones y limitaciones de estas investigaciones. Realizamos nuestras búsquedas en el Banco de Tesis y Disertaciones de CAPES y en el Portal de Periódico de CAPES, a partir de un recorte temático, pero no temporal. Con base en los criterios de inclusión y exclusión definidos, obtuvimos un total de 64 trabajos (tesis, disertaciones y artículos). Por medio de estos trabajos, identificamos y caracterizamos cinco ejes de investigación: saberes movilizados por profesores de ciencias; saberes docentes y la identidad profesional; procesos de construcción y desarrollo de los saberes docentes; contribuciones de cursos y programas de formación en la constitución de los saberes docentes; otros enfoques. Observamos que prevalecen las investigaciones que buscan apenas identificar los saberes docentes bajo una perspectiva individual de análisis al priorizar, principalmente, métodos de categorización y análisis de contenido. Limitaciones como esa apuntan para la necesidad de que un esfuerzo sea realizado en el sentido de ampliar el alcance de las investigaciones sobre la temática de manera a incluir y considerar, bajo una perspectiva etnográfica, el análisis de estos saberes docentes como fenómeno social, que se construye en la interacción del profesor con sus alumnos, con sus parejas y otros miembros de la comunidad educacional.

Palabras clave:
saberes docentes; enseñanza de ciencias; profesores en servicio

ABSTRACT:

In this work, we carried out a systematic review of literature aiming to understand how teaching knowledge has been investigated in the area of Science Teaching in Brazil and to discuss the main contributions and limitations of these investigations. We’ve done our research on the Bank of Thesis and Dissertations of CAPES and on the Portal for Periodicals of CAPES, using a thematic, but not temporal, approach. Based on the defined criteria of inclusion and exclusion we’ve obtained a total of 64 works (theses, dissertations, and articles). Through these works we’ve identified and characterized five axes of investigation: knowledge mobilized by teachers of Science; teaching knowledge and the professional identity; processes of construction and development of the teaching knowledge; contributions of courses and formation programs on the constitution of teaching knowledge; other focuses. We’ve observed that the researches that seek only to identify the teaching knowledge under an individual analysis perspective are the ones which prevail, especially methods of categorization and content analysis. Limitations such as that point out the need for an effort to amplify the scope of the investigations on the thematic of form and to include and consider, under an ethnographical perspective, the analysis of theses teaching knowledge as a social phenomenon, which is constructed on the interaction between teacher and student, with his peers and the other members of the educational community.

Keywords:
teaching knowledge; science education; in-service teachers

INTRODUÇÃO

As discussões em torno dos saberes docentes são centrais no debate sobre a formação e a profissão. Nesse contexto, diferentes tipologias têm sido utilizadas para fundamentar e caracterizar os saberes docentes: reservatório de saberes (Gauthier et al., 2013); base de conhecimentos profisisonais (Shulman, 1987); e epistemologia da prática profissional (Tardif, 2002). Na área de Ensino de Ciências, alguns pesquisadores aprimoraram as ideias de Shulman (1987) e propuseram modelos que caracterizam o conhecimento pedagógico de conteúdo (Pedagogical Content Knowledge [PCK]) de professores de Ciências, como: Componentes do conhecimento pedagógico de conteúdo para o Ensino de Ciências (Magnusson; Krajcik; Borko, 1999); Modelo de Conhecimentos e Habilidades Profissionais do Professor que inclui PCK (TPK&S) (Gess-Newsome, 2015); e Modelo Consensual Refinado de PCK no Ensino de Ciências (RCM) (Carlson et al., 2019).

Essa diversidade de tipologias sinaliza a fertilidade desse campo de investigação, mas também gera dificuldades para a comparação entre as diferentes ideias (Puentes; Aquino; Quillici Neto, 2009). Essa é a primeira das razões que Tardif (2010) assinala como responsável pela estagnação no âmbito internacional da pesquisa sobre os saberes docentes, um campo muito dividido em disciplinas e teorias. Somam-se a isso outras duas razões mencionadas pelo autor: (i) a dificuldade de desassociar as discussões sobre os saberes das outras dimensões do trabalho docente; (ii) a tentativa de separar aspectos normativos dos epistemológicos em torno dessa questão. Isto é, os saberes docentes não são uma soma de “conhecimentos” ou de “competências” passíveis de serem categorizadas em um catálogo. Eles são saberes integrados às práticas docentes, que são determinadas por questões normativas, éticas e políticas.

Com os intuitos de compreender como os saberes docentes têm sido investigados na área de Ensino de Ciências no Brasil e de identificar as principais contribuições e limitações dessas investigações, buscamos responder as seguintes questões de pesquisa: (i) quais são os principais eixos de investigação das pesquisas envolvendo os saberes docentes de professores de Ciências no Brasil que compõem o nosso recorte?; (ii) como as pesquisas que compõem esses eixos podem ser caracterizadas?; e (iii) quais as suas principais contribuições e limitações para a investigação dos saberes docentes?

Inicialmente, apresentamos algumas das principais concepções e tipologias de saberes docentes identificadas nos estudos envolvendo a temática na área de Ensino de Ciências. Situamos esses saberes na interface entre aspectos sociais e pessoais de uma atividade profissional socialmente construída. Argumentamos sobre a importância de que esses saberes também sejam estudados a partir das interações sociais estabelecidas pelos professores com os demais atores educacionais (Tardif, 2002), e situamos a perspectiva etnográfica como uma lógica de investigação consistente para alcançar esse propósito.

OS SABERES DOCENTES: DIFERENTES CONCEPÇÕES E TIPOLOGIAS

O potencial da caracterização de uma base de conhecimentos para fomentar melhorias nos programas de formação de professores foi defendido por Shulman (1987), que a descreveu a partir dos seguintes constituintes: conhecimento de conteúdo, corresponde ao conteúdo científico e à compreensão sobre as estruturas dos temas da disciplina; conhecimento curricular, envolve a compreensão dos materiais e programas curriculares que o professor desenvolve em seu trabalho; conhecimento pedagógico geral, abrange os princípios e as estratégias de gerenciamento e organização de sala de aula que vão além do escopo da matéria; conhecimento sobre estudantes e suas características, abarca a compreensão sobre os principais fatores que afetam a aprendizagem dos estudantes; conhecimento de contextos educacionais, envolve a compreensão sobre o funcionamento das instituições escolares e sobre as diferentes comunidades e culturas; conhecimento de objetivos educacionais, inclui a compreensão sobre as finalidades e os valores educacionais e seus embasamentos filosóficos e históricos; conhecimento pedagógico de conteúdo (PCK), abarca a compreensão sobre como determinados temas são organizados, representados e adaptados no ensino.

O PCK foi reconhecido como um conhecimento que diferenciaria o professor de uma disciplina, de especialistas no conteúdo e de pedagogos. Por isso, esse construto teve ampla repercussão no meio acadêmico. Entretanto, algumas de suas limitações foram identificadas nas ideias originais de Shulman (2015) e reconhecidas pelo próprio autor, como: (i) não considerar explicitamente atributos não-cognitivos (por exemplo: emoção, afeto e motivação); (ii) enfatizar os aspectos intelectuais em detrimento daqueles relacionados à ação pedagógica; (iii) não levar em consideração as questões relacionadas à cultura e ao contexto social mais amplo no qual a atividade docente se desenvolve; e (iv) não levar em consideração as relações com os objetivos educacionais e com a aprendizagem dos estudantes.

Somando-se a tais limitações, na área de Ensino de Ciências, foram elaboradas diferentes formas de definir e caracterizar o PCK, o que levou a grandes divergências em relação a como identificá-lo e avaliá-lo (Gess-Newsome, 2015; Park; Oliver, 2008). Diante desse cenário, pesquisadores de diferentes países se reuniram com o intuito de discutir o significado de PCK e tentar estabelecer alguns aspectos consensuais sobre as maneiras de representá-lo. Como resultado, originou-se o Modelo de Conhecimentos e Habilidades Profissionais do Professor que inclui PCK (TPK&S), sistematizado por Gess-Newsome (2015), e, posteriormente, o Modelo Consensual Refinado de PCK no Ensino de Ciências (RCM) (Carlson et al., 2019).

Ambos os modelos buscaram sanar as limitações e divergências em torno do PCK. No modelo TPK&S, o PCK foi reconhecido como um componente da base de conhecimento do professor que contempla as habilidades envolvidas no ensino de um determinado tema. Esse modelo também inclui a influência dos aspectos não cognitivos nos processos de ensino e aprendizagem e as relações entre o ensino e os resultados dos estudantes (Gess-Newsome, 2015). O modelo RCM, por sua vez, propõe três tipos de PCK: PCK coletivo (cPCK), PCK pessoal (pPCK) e PCK mobilizado na prática (ePCK). Ele também reconhece que as bases mais amplas de conhecimento profissional são fundamentais para o PCK do professor e que o contexto de ensino influencia os processos de ensino e aprendizagem (Carlson et al., 2019).

Esses são avanços importantes em torno do construto PCK. Contudo, questões relativas à cultura e ao contexto social mais amplo, identificadas como uma limitação por Shulman (2015), ainda recebem pouca ênfase. Embora esses modelos apresentem explicitamente a influência do contexto instrucional nos processos de ensino e aprendizagem, a consideração de contextos sociais e culturais mais amplos poderia elucidar o papel político da educação e do trabalho docente. Isso porque a educação é uma atividade social, historicamente situada e intrinsicamente política, na qual os professores são vistos como intelectuais críticos que reconhecem a natureza socialmente construída do ensino e analisam as possibilidades transformadoras implícitas nesse contexto (Contreras, 2012).

Gauthier et al. (2013) também destacam a importância da identificação de um repertório de conhecimentos para o ensino, construído a partir da análise da prática dos professores. Para eles, os saberes formam uma espécie de reservatório no qual os professores se abastecem para desempenhar sua prática. Esse reservatório é constituído pelos seguintes saberes: disciplinar, referente ao conteúdo a ser ensinado; curricular, relativo aos programas de ensino que serão desenvolvidos pelos professores; das Ciências da Educação, corresponde ao conjunto de saberes em relação à escola, que é produzido nos centros acadêmicos; da tradição pedagógica, relacionada ao saber lecionar proveniente da representação social da profissão; experiencial, referente aos julgamentos privados responsáveis pela elaboração, ao longo do tempo, de uma jurisprudência particular que guia o trabalho do professor; da ação pedagógica, referente ao saber experiencial tornado público e testado pelas pesquisas realizadas em sala de aula e corresponde ao repertório de conhecimentos que pode ser aprendido por outros professores.

Tardif (2002) também destaca os saberes que os docentes efetivamente utilizam em sua prática profissional cotidiana, e defende que considera mais pertinente propor um modelo construído a partir deles. A abordagem realizada pelo autor se fundamenta na premissa de que os saberes dos professores são sociais e também dependem dos professores como sujeitos individuais empenhados na prática pedagógica.

De acordo com Tardif (2002), a natureza social desses saberes advém de sua partilha por um grupo de atores sociais com uma formação comum e que trabalham numa mesma organização. Assim, as representações e práticas de um professor específico ganham sentido somente quando contrastadas com essa situação coletiva de trabalho. Além disso, um professor não define sozinho o seu saber profissional, pois o domínio e a utilização desse saber ocorrem por meio de um sistema que garante a sua legitimidade, o que inclui universidades, escolas, sindicatos, grupos científicos etc. Também merece destaque o fato de que, na perspectiva do autor, o saber não é um conteúdo fechado em si mesmo; ele se manifesta a partir das práticas sociais que se estabelecem nas relações complexas entre o professor e seus alunos e se desenvolve no contexto de uma socialização profissional, na qual o professor aprende a ensinar fazendo seu trabalho.

No que diz respeito ao construto saber docente, Tardif (2002, p. 36) o define como “[...] plural, formado pela amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”, os quais ele descreve da seguinte forma: saberes da formação profissional, transmitidos pelas instituições de formação de professores e tem como base as Ciências da Educação e a ideologia pedagógica; saberes disciplinares, correspondem aos diversos campos do conhecimento (por exemplo: Química, Física, História); saberes curriculares, se apresentam concretamente sob a forma de programas escolares que o professor deve aprender a aplicar; saberes experienciais, surgem da experiência e são por ela validados e não provêm das instituições de formação nem dos currículos.

Para Tardif (2002), os saberes experienciais têm grande relevância para os professores. Tais saberes se desenvolvem num contexto de múltiplas interações, características do trabalho docente, que são condicionantes para a atuação do professor. É a partir dessas situações que o professor desenvolve os habitus que se manifestam por meio de um saber-ser e de um saber-fazer. Ele também ressalta que os saberes experienciais se integram à prática, as constituem e, assim, compõem a cultura docente em ação.

É possível perceber certas similaridades nas ideias apresentadas por Gauthier et al. (2013) e Tardif (2002), na medida em que ambos defendem uma concepção ampla de saber, que inclui conhecimentos, competências, habilidades e atitudes mobilizados pelos professores. Além disso, eles consideram como saber aqueles discursos e ações cujos sujeitos são capazes de responder as questões: “por que você diz isso?” e “por que você faz isso?”. Essa concepção evita definir o professor apenas pela “posse” de conhecimentos científicos e, ao mesmo tempo, reconhece que nem toda prática social pode ser considerada como saber.

Contudo, uma distinção crucial entre as ideias desses autores se dá em relação ao papel desempenhado pelos saberes da experiência: enquanto Gauthier et al. (2013) consideram que os saberes da experiência são privados e ganham objetividade apenas quando são testados por pesquisas e se transformam em saberes da ação pedagógica, Tardif (2002) argumenta que o saber experiencial tem um certo grau de objetividade, perspectiva da qual compartilhamos e que se apoia nas razões destacadas a seguir.

A objetividade dos saberes experienciais decorre de dois fatores principais: (i) eles se originam na prática pedagógica do professor em confronto com as condições da profissão. É por meio das relações estabelecidas com os pares e do confronto com os saberes produzidos pela experiência coletiva que as certezas subjetivas são sistematizadas e transformadas em um discurso capaz de formar outros docentes; (ii) eles estabelecem uma relação crítica com os outros saberes. É por meio da experiência que os professores retomam os saberes desenvolvidos antes ou fora da prática profissional, julgando-os e reavaliando-os. Por isso, o saber experiencial é formado por todos os saberes retraduzidos e submetidos ao processo de validação pela prática docente cotidiana (Tardif, 2002).

Além de plurais, os saberes docentes são temporais, personalizados e situados. Eles são temporais, porque as crenças dos professores sobre o ensino são provenientes de sua história de vida e são retomadas por eles nos primeiros anos da carreira para solucionar seus problemas. Além disso, os primeiros anos de experiência docente são determinantes para a estruturação da prática pedagógica. Eles são personalizados e situados, porque é na ação docente que assumem seu significado e sua utilidade. Por isso, não podem ser dissociados das pessoas nem das condições de trabalho. Além disso, o saber docente comporta sempre componentes éticos e emocionais, porque, ao tomar uma decisão, o professor se baseia frequentemente em valores morais ou normas sociais relativos às diferenças entre o que é permitido e o que é proibido (Tardif, 2002).

Essa complexidade dos saberes docentes justifica a grande variedade de concepções e tipologias que ora comparam princípios epistemológicos, ora modelos “ideais” de conhecimentos docentes, o que, como discutimos, dificulta a sistematização e a comparação entre as diferentes ideias e gera certa estagnação no campo (Tardif, 2002; 2010). Na área de Ensino de Ciências, a situação não é diferente e, por isso, consideramos que a revisão da literatura em torno dessa temática nos auxiliará a traçar um panorama, ainda que preliminar, sobre as principais tendências nessa área de investigação, suas potencialidades e limitações.

METODOLOGIA

Neste trabalho realizamos uma revisão sistemática da literatura sobre saberes docentes na área de Ensino de Ciências, na qual explicitamos os caminhos percorridos para a busca, seleção e análise das pesquisas. Procuramos nos atentar aos seguintes aspectos: objetivos; equações de pesquisa; âmbito; critérios de inclusão; critérios de exclusão; critérios de validade metodológica; resultados; e tratamento de dados (Ramos; Faria; Faria, 2014).

Nosso objetivo central foi compreender como os saberes docentes têm sido investigados na área de Ensino de Ciências no Brasil e identificar as principais contribuições e limitações das investigações nessa área. Para alcançá-lo, estabelecemos as equações de pesquisa por meio da combinação de palavras-chave e do uso do operador lógico AND: “conhecimentos docentes” AND “professores de ciências”; “conhecimentos profissionais” AND “professores de ciências”; “conhecimento profissional” AND “professores de ciências”; “conhecimento profissional” AND “professor de ciências”; “saberes docentes” AND “professores de ciências”; “saberes profissionais” AND “professores de ciências”; e “saberes” AND “professor de ciências”. Essas diferentes terminologias foram utilizadas porque, como discutimos ao longo deste trabalho, há uma diversidade de termos para se referir aos saberes docentes (Puentes; Aquino; Quillici Neto, 2009; Tardif, 2010).

Nossa opção por essas equações de pesquisa, em detrimento de outras, pode ter restringido os resultados obtidos em nosso levantamento. Por exemplo, se nossas buscas incluíssem termos relacionados a saberes/conhecimentos específicos das diferentes tipologias (tais como: saberes experienciais, conhecimento de conteúdo, conhecimento pedagógico de conteúdo), poderíamos ter acessado trabalhos adicionais. Entretanto, como nosso intuito era obter um panorama geral das pesquisas envolvendo saberes docentes, e não focar em conhecimentos específicos, optamos por manter os termos gerais descritos anteriormente.

Na terceira etapa, definimos o âmbito da pesquisa e determinamos as bases de dados para realizarmos nossas buscas: Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Portal de Periódicos da CAPES. Nossa opção por esses bancos de dados ocorreu em função de sua grande representatividade em termos das pesquisas realizadas no Brasil. Todas as teses e dissertações produzidas em programas de pós-graduação credenciados pela CAPES são divulgadas nesse catálogo. Além disso, esse portal de periódicos é um dos maiores acervos científicos digitais do país.

O próximo passo consistiu em determinar os critérios de inclusão de trabalhos em nosso levantamento: abordar os saberes docentes de professores de Ciências em serviço ou em formação continuada; apresentar resumo ou versão completa do trabalho disponíveis online e; no caso de artigos, selecionamos apenas aqueles publicados em periódicos revisados por pares. Com relação aos critérios de exclusão, consideramos os trabalhos que os trabalhos que: não abordavam os saberes docentes e a área de Ensino de Ciências, simultaneamente; não envolviam professores em serviço ou em formação continuada; não apresentavam resumo ou versão completa disponíveis online.

Quanto aos critérios de validade metodológica, realizamos um trabalho de mapeamento e seleção criteriosa e explícita das fontes bibliográficas consultadas. Nesse processo, estivemos atentas aos critérios de inclusão e exclusão definidos. Além disso, seguindo as recomendações de Ramos, Faria e Faria (2014) em relação aos resultados, registramos todos os passos realizados em nosso levantamento e, para o tratamento dos dados, buscamos organizá-los e interpretá-los em quadros descritivos, conforme explicamos a seguir.

Iniciamos nossas buscas no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES nos dias 12 e 13 de agosto de 2020. Não realizamos recortes temporais, pois nosso interesse era obter um panorama mais amplo das pesquisas que envolvem saberes docentes no Ensino de Ciências. As buscas foram realizadas com a utilização das combinações de palavras-chave descritas anteriormente. Nessa primeira etapa, nossas buscas forneceram 163 resultados e, após análise preliminar, excluímos os trabalhos que estavam duplicados. Após esse procedimento, restaram 146 diferentes trabalhos.

As teses e as dissertações foram acessadas na íntegra pelo próprio Catálogo de Teses e Dissertações e salvas em uma pasta no computador da primeira autora deste trabalho. Algumas dessas teses e dissertações eram anteriores à plataforma Sucupira ou não tinham sua divulgação autorizada e, em função disso, não estavam disponíveis para acesso no banco de dados. Nesses casos, foram realizadas buscas simples no Google e no site da biblioteca depositária da produção, na tentativa de encontrar o trabalho completo e/ou o resumo. Mesmo diante dessas tentativas, 11 produções foram excluídas por não terem seus resumos e/ou versão completa disponíveis online.

A partir da leitura dos trabalhos restantes, excluímos 38 deles pelo fato de não terem como foco de investigação os saberes docentes. Posteriormente, excluímos outros 18 trabalhos que não eram voltados para a área de Ensino de Ciências - por exemplo, que envolviam saberes de professores de Matemática e Ciências Contábeis. Aplicados esses critérios, restaram 79 trabalhos para análise, dentre os quais selecionamos aqueles que abordavam os saberes docentes de professores de Ciências da Educação Básica em serviço e/ou em formação continuada. Um total de 44 trabalhos foram selecionados: 36 dissertações e oito teses.

Para a análise dessas produções, organizamos um quadro com cinco colunas: autor/ano de defesa; objetivos/perguntas de pesquisa/tema; referencial teórico; metodologia; resultados/conclusões. As colunas foram preenchidas com as informações disponíveis nos trabalhos.

Após o preenchimento do quadro com as informações das teses e dissertações, realizamos um novo levantamento no Portal de Periódicos da CAPES, na busca por artigos científicos sobre a temática. Nessa etapa, efetuamos o login na Comunidade Acadêmica Federada (CAFe) para obtermos acesso ao maior número possível de artigos disponíveis no Portal de Periódicos da CAPES. O levantamento foi realizado entre os dias 13 de outubro de 2021 e 9 de dezembro de 2021.

Em nossa busca, utilizamos as mesmas combinações de palavras-chave destacadas anteriormente. Além disso, nos filtros disponíveis para a busca avançada, selecionamos as opções: (i) “qualquer campo”, para obtermos resultados que tivessem as palavras-chave em qualquer lugar do documento; (ii) “é exato” para obtermos resultados com a combinação exata das palavras-chave.

Finalmente, ao efetuar a busca, filtramos nossos resultados para obter apenas artigos provenientes de periódicos revisados por pares, o que totalizou 439 resultados. Seguindo os mesmos procedimentos realizados para o levantamento de teses e dissertações, em um primeiro momento, excluímos os trabalhos duplicados e obtivemos 337 diferentes trabalhos. Em seguida, analisamos esses artigos para identificar aqueles que tinham como foco de investigação os saberes docentes. Nessa etapa excluímos 291 trabalhos que não atendiam a esse critério. Dentre os trabalhos restantes, excluímos três por não serem da área de Ensino de Ciências.

Após a exclusão dos trabalhos mencionados, restaram 43 artigos que tratavam dos saberes docentes de professores de Ciências. De forma semelhante aos procedimentos realizados para o levantamento de teses e dissertações, selecionamos, entre eles, 20 artigos que tratavam dos saberes docentes de professores de Ciências da Educação Básica em serviço e/ou em formação continuada.

A exemplo do que foi feito para o levantamento de teses e dissertações, organizamos um quadro com cinco colunas. A partir dos quadros elaborados, identificamos os objetivos dos 64 trabalhos selecionados e os agrupamos em cinco eixos que refletem os aspectos principais investigados em relação aos saberes docentes: saberes mobilizados por professores de Ciências (Eixo A); saberes docentes e a identidade profissional (Eixo B); processos de construção e desenvolvimento dos saberes docentes (Eixo C); contribuições de cursos e programas de formação na constituição dos saberes docentes (Eixo D); outros focos (Eixo E). Para cada um dos eixos, elaboramos categorias que especificam algumas características das investigações. Nesse processo, realizamos a leitura das pesquisas de cada eixo e procuramos similaridades em seus propósitos e aspectos metodológicos que nos permitissem agrupá-las. Por exemplo, no Eixo A, as pesquisas buscavam identificar os saberes de professores de Ciências em processos de diferentes naturezas (formativos, instrucionais, descritivos). Isso nos fez, por exemplo, criar a categoria A.1 - Saberes docentes mobilizados em cursos e projetos de formação; a categoria A.2 - Saberes docentes mobilizados na ação docente; e a categoria A.3 - Saberes docentes mobilizados nos relatos dos professores.

As pesquisas enquadradas no Eixo B focalizavam as relações entre os saberes docentes e a identidade profissional, entendida como um processo em construção (B.1). No Eixo C, agrupamos os trabalhos que buscavam estudar os processos de construção e desenvolvimento dos saberes docentes em cursos e projetos de formação (C.1) e ao longo da trajetória do professor (C.2).

As pesquisas do Eixo D tinham como foco identificar as contribuições de cursos e projetos de formação na constituição dos saberes docentes, ao enfatizar: a percepção dos professores sobre a formação inicial vivenciada (D.1); as contribuições de cursos de formação continuada e pós-graduação para a constituição de saberes docentes; (D.2) e o papel do PIBID na constituição dos saberes docentes (D.3). Algumas das pesquisas classificadas nos Eixos C e D têm aspectos em comum por serem desenvolvidas em contextos formativos. Entretanto, as pesquisas do Eixo C (categoria C.1) enfatizavam o processo de desenvolvimento dos saberes docentes em um determinado contexto, e as pesquisas do Eixo D tinham como foco as contribuições dos contextos formativos para o desenvolvimento daqueles saberes.

No Eixo E, inserimos duas pesquisas que tinham outros focos: estruturação do trabalho do professor de Ciências e seus impactos nos saberes e nas práticas político-pedagógicas (E.1); e percepção dos professores sobre o papel da subjetividade nos processos de ensino e aprendizagem (E.2).

A partir desses eixos, que emergiram de aspectos centrais investigados nas pesquisas sobre saberes docentes que compõem este estudo, buscamos elementos importantes para discutirmos nossas questões de pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Em consonância com outros pesquisadores que estudam os saberes docentes (como: Puentes Aquino; Quillici Neto, 2009; Tardif, 2010), identificamos uma diversidade de termos em referência aos saberes dos professores de Ciências. Os trabalhos que adotam a terminologia saberes docentes (33) prevalecem, seguidos daqueles que adotam as terminologias saberes/conhecimentos docentes como sinônimos e/ou que intercalam os termos ao longo dos textos (15). Nesses trabalhos, os autores mais comumente citados para embasar a concepção adotada são: Maurice Tardif, Clermont Gauthier e Lee Shulman.

Consideramos que há algumas diferenças significativas entre essas concepções e tipologias para o estudo dos saberes docentes. Em primeiro lugar, a proposta original de Shulman baseia-se em princípios normativos e foi construída com base em critérios teóricos que permitissem a elaboração de uma base de conhecimentos para o ensino que pudesse fundamentar os cursos de formação de professores.

Por outro lado, a proposta de Tardif foi elaborada a partir de princípios epistemológicos, considerando-se a importância da identificação dos saberes mobilizados pelos professores no desempenho de seu trabalho cotidiano e na reflexão sobre ele. Por fim, no que diz respeito à proposta de Gauthier e colaboradores, consideramos que ela tem características das duas abordagens anteriores. Embora, como Maurice Tardif, esses autores utilizem uma perspectiva ampla de saberes docentes, eles buscam identificar um repertório de conhecimentos para o ensino que deveria compor o “reservatório” de saberes do professor, preocupação semelhante à de Shulman.

Assim, a opção por alguma dessas concepções pode acarretar diferentes maneiras de se compreender e estudar os saberes docentes, o que justifica a grande variedade de objetivos que permeiam as pesquisas da área. No Quadro 1, apresentamos os eixos de investigação das produções em relação aos saberes docentes e às categorias associadas.

Quadro 1
Caracterização dos eixos de investigação das produções em relação aos saberes docentes.

A análise do Quadro 1 indica que a maioria dos trabalhos tem como foco a identificação de saberes docentes - Eixo A (36), seguidos daqueles que buscam estudar os processos de construção e desenvolvimento desses saberes - Eixo C (12). Além disso, um número expressivo de trabalhos se dedica à investigação das contribuições de processos formativos específicos na constituição dos saberes docentes - Eixo D (11). Em menor número estão aqueles que buscam estudar as relações entre os saberes docentes e a composição da identidade profissional - Eixo B (3), e outros focos - Eixo E (2).

Em função dos limites de extensão deste artigo, nas seções seguintes discutimos nossos resultados considerando alguns trabalhos representativos de cada eixo.

Eixo A - Saberes mobilizados por professores de Ciências

Seis pesquisas do Eixo A buscam identificar saberes mobilizados por professores de Ciências participantes de cursos e projetos de formação [A.1] (Quadro 1). Algumas delas focalizam os saberes mobilizados para o uso de abordagens e estratégias de ensino específicas, como: Tecnologias de Informação e Comunicação (Aguiar, 2011); Explicações teleológicas (Azevedo, 2007); FlexQuest (Souza, 2013).

Em geral, tais pesquisas evidenciam que nem sempre os professores em formação continuada têm uma visão esclarecida sobre as estratégias de ensino abordadas nos cursos e sobre como utilizá-las no Ensino de Ciências. Para contornar as dificuldades relacionadas ao uso dessas estratégias, os professores geralmente recorrem aos saberes da experiência (Aguiar, 2011; Azevedo, 2007; Souza, 2013), que são mobilizados de forma atrelada a outros saberes provenientes de diferentes fontes: da formação inicial; do próprio curso de formação continuada; das vivências escolares anteriores (Azevedo, 2007; Souza, 2013).

Algumas pesquisas também identificaram os saberes mobilizados por professores em cursos de formação, quando estes elaboravam e desenvolviam propostas de ensino envolvendo temas específicos da área de Ciências, tais como: ótica (Pacca, 2015); evolução (Azevedo, 2007); puberdade/adolescência (Souza, 2013). Nessas pesquisas, evidencia-se um conhecimento limitado sobre o conteúdo científico a ser ensinado e a necessidade de que o professor saiba formular esse conteúdo para torná-lo compreensível aos estudantes.

Por exemplo, Pacca (2015) analisou o desempenho de três professoras participantes de um curso de formação continuada que tinha como intuito favorecer a construção de uma competência profissional dentro de parâmetros construtivistas. Ao longo do curso, as professoras planejaram aulas sobre o tema ótica, desenvolveram esse planejamento com seus alunos e discutiram semanalmente os resultados obtidos. As professoras responderam um questionário sobre o desenvolvimento das aulas com seus alunos, os quais foram analisados sob o enfoque da análise textual discursiva. De acordo com Pacca (2015), as professoras apresentaram consciência sobre seu próprio desempenho, mas também evidenciaram algumas limitações no conhecimento do conteúdo.

Um aspecto importante a ser considerado em relação às pesquisas da categoria A.1 é que, embora tenham sido realizadas com professores participantes de cursos e projetos de formação, em geral, elas empregavam a análise por categorias ou análise de conteúdos (Aguiar, 2011; Azevedo, 2007; Souza, 2013) e a análise textual discursiva de documentos (Pacca, 2015), sem enfatizar como esses saberes são mobilizados e articulados nesses contextos formativos, algo que foi melhor considerado nas pesquisas da categoria C.1, discutidas posteriormente.

O Eixo A também contou com pesquisas que tinham como foco a identificação de saberes mobilizados nas situações de ensino pelo professor [A.2] (Quadro 1) que também evidenciam uma grande variedade de saberes mobilizados pelos professores nas situações de ensino e nas reflexões sobre elas.

Dentre essas pesquisas, a de Carvalho (2010) investigou como e quando três professores que lecionavam do 6º ao 8º ano do Ensino Fundamental abordam as questões ambientais nas suas aulas. A construção dos dados ocorreu por meio da observação das aulas desses professores e de entrevistas. Os resultados indicam que, na maioria das vezes, as questões ambientais foram utilizadas pelos professores para exemplificar um conteúdo. Além disso, Carvalho (2010) identificou que, nos momentos em que a Educação Ambiental foi inserida nas aulas, predominava a mobilização de saberes experienciais e curriculares pelos professores, aspecto que também foi identificado por Souza-Júnior (2017) ao analisar os saberes mobilizados por professores de Ciências durante o trabalho com o tema transversal Meio Ambiente.

Cavalcanti-Neto (2015), por sua vez, analisou a forma como o professor se expressava sobre sua prática docente e sobre a mobilização de saberes na sua ação em sala de aula, ao buscar identificar e sistematizar aspectos que constituem essa prática. Os dados foram construídos por meio de questionários, entrevistas e observação das práticas dos professores. A autora se fundamentou na etnografia interacional para a condução da pesquisa. Inicialmente, buscou-se uma visão macro da sequência das aulas analisadas que possibilitasse a escolha dos episódios para análise do discurso.

Os resultados dessa pesquisa evidenciam que a prática docente é constituída por uma multiplicidade de aspectos que extrapolam o cognitivo e envolvem valores, sentimentos e identidades que influenciam as ações do professor. Esses aspectos parecem ser construídos em experiências escolares e formativas anteriores vivenciadas pelo professor, na atividade docente a partir da relação com os estudantes e com outros sujeitos da comunidade escolar, na participação em projetos, entre outros. Todos os professores reconheceram que suas ações docentes atuais se modificaram ao longo do tempo, a partir de suas experiências como docentes e na formação inicial.

O estudo de Cavalcanti-Neto (2015) realça a potencialidade de se investigar os saberes docentes sob uma perspectiva etnográfica, a partir da análise das interações discursivas estabelecidas entre os sujeitos. O potencial dessa lógica de investigação está em considerar a natureza situada e particular dos eventos sociais nos quais aqueles saberes foram mobilizados, seu diferencial em relação a outros tipos de abordagens metodológicas do campo da Educação e, mais especificamente, aquelas que investigam os conhecimentos/saberes docentes a partir de categorias previamente definidas pela literatura da área. Sob uma perspectiva etnográfica, o foco sobre os conhecimentos/saberes docentes desloca-se do que os professores deveriam saber para o que eles fazem em suas práticas, o que realça o caráter social e contextual dos saberes docentes. Em outras palavras, a ênfase desse tipo de investigação não está em identificar saberes provenientes de uma tipologia específica, mas em analisá-los tal como são mobilizados pelos professores ao longo das interações que estabelecem com outros atores educacionais (Bloome et al., 2022).

Parece haver um consenso entre as pesquisas enquadradas na categoria A.2 em torno da centralidade do saber experiencial na ação docente (Alves, 2016; Boa, 2008; Carvalho, 2010; Cavalcanti-Neto, 2015; Cravo, 2019; Diório, 2017; Freitas, 2012; Moura, 2006; Rodrigues, 2007; Souza-Júnior, 2017; Souza, 2010). No entanto, ainda que a maioria delas tenha recorrido à observação das práticas pedagógicas, as análises dos saberes docentes foram conduzidas em uma perspectiva individual, com foco no sujeito professor. Com exceção do estudo desenvolvido por Cavalcanti-Neto (2015) e discutido anteriormente, em geral, as pesquisas não priorizavam a descrição e a análise dos saberes docentes em sua dimensão social, que se constrói na interação do professor com os estudantes e com outros atores sociais, como seus pares; ou não conjugavam essa dimensão com aquela pessoal, cuja interface delineia os saberes docentes (Tardif, 2002).

Na categoria A.3, predominam os trabalhos que focalizam os saberes mobilizados nos relatos dos docentes para tratar temas ou o uso de recursos de ensino específicos. Alguns exemplos são: recursos audiovisuais (Vidal, 2010); educação ambiental (Lima et al., 2011); ecologia (Silva, D., 2014); relações de gênero (Barros; Queiroz, 2020).

Assim como ocorreu nas pesquisas enquadradas nas categorias A.1 e A.2, as pesquisas na categoria A.3 também evidenciam o caráter plural dos saberes docentes, quando identificaram saberes oriundos de diferentes fontes que antecedem a formação inicial e se desenvolvem continuamente por meio dos processos formativos e das experiências pessoais e profissionais. De uma perspectiva individual, os professores oferecem relatos de que, ao lidar com temas ou estratégias de ensino específicos, os saberes da experiência profissional são de grande relevância (Lima et al., 2011; Silva, D., 2014; Vidal, 2010).

De maneira geral, as pesquisas do Eixo A nos dão indícios em relação a essa pluralidade dos saberes docentes. Contudo, essas pesquisas deixam lacunas em relação aos processos de construção e desenvolvimento desses saberes. Acreditamos que tais lacunas são decorrentes da lógica de investigação dessas pesquisas que tende a privilegiar uma perspectiva individual de análise dos saberes docentes ao priorizarem métodos de categorização e análise de conteúdo (Silva, 2017). Ainda que esse tipo de análise tenha suas potencialidades para atingir os objetivos de algumas dessas pesquisas, consideramos que uma de suas principais limitações é o fato de não contemplar as dimensões social e contextual dos saberes docentes que se manifestam e se transformam por meio das e nas práticas sociais que se estabelecem nas relações complexas entre o professor e outros membros da comunidade educacional (Tardif, 2002).

Para sanar tais limitações é importante considerar abordagens metodológicas que pressupõem não só a identificação dos saberes docentes, mas também a compreensão dos processos de desenvolvimento desses saberes no plano social. A partir de uma perspectiva etnográfica, por exemplo, considera-se que, ainda que determinados saberes tenham se originado na experiência de um professor específico, quando essa experiência é tornada pública, o saber deixa de estar localizado apenas naquele professor e passa a ser visto como uma propriedade pública ou conjunta (Bloome et al., 2022).

Eixo B - Saberes docentes e a identidade profissional

As três pesquisas classificadas no Eixo B focalizam as relações entre os saberes e a construção da identidade docente. Ambrosini (2012) estudou a composição da identidade docente com o objetivo de verificar a presença de traços característicos do estatuto epistemológico das Ciências Biológicas nos professores formados nesse curso, com base na teoria epistemológica de Gaston Bachelard.

Ambrosini (2012) elaborou um estudo de caso envolvendo sete professores de escolas estaduais, formados em Licenciatura em Ciências Biológicas, que lecionam para o Ensino Fundamental ou Médio. Por meio de suas respostas a um questionário, esses professores evidenciaram que valorizam mais os saberes disciplinares e experienciais, em comparação aos demais. Em função disso, esses dois saberes são considerados elementos fundamentais na identidade docente desses professores.

Observou-se que os saberes disciplinares parecem constituir as razões para a atuação na profissão e possibilitam o desenvolvimento de características específicas entre os professores, advindas do estatuto epistemológico empírico-positivista de algumas áreas das Ciências Biológicas. A autora realça que características desse mesmo perfil podem ser percebidas em docentes graduados em outras áreas disciplinares pertencentes a outro estatuto epistemológico. Nesse sentido, conclui que a conformação do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas investigado prepara o estudante para atuar tanto como professor quanto como pesquisador. Diante disso, a identidade profissional constitui-se em relação à de pesquisador, esta com maior status diante do olhar do outro; o que, para a autora, dificulta que a identidade do professor seja assumida como identidade de si, pois, como identidade para o outro, encontra-se fragilizada.

Ogo e Laburú (2011) e Villani, Barolli e Nascimento (2020) abordam os saberes construídos ao longo da trajetória do professor e seus impactos para a permanência na carreira e para o aprimoramento do trabalho docente. Ogo e Laburú (2011) buscaram explicar como ocorre a construção da identidade profissional do professor de Ciências ao longo de sua atividade profissional. Por meio de uma adaptação da proposta de Charlot, eles defendem a ideia de que a permanência do professor na carreira está relacionada com o saber profissional que é indissociável da relação do sujeito com o Mundo, o Eu, e o Outro.

Para esses autores, a relação do sujeito com o Mundo apresenta uma dimensão epistêmica que, no caso do trabalho docente, corresponde à relação do professor com os conhecimentos exigidos pela profissão. A relação com o Eu faz referência às perspectivas e expectativas do professor, a imagem que ele tem e quer passar de si, bem como à história de vida do profissional. Finalmente, a relação com o saber profissional mantém uma relação com o Outro: o convívio do professor com outros membros da comunidade escolar.

A coleta de dados da pesquisa de Ogo e Laburú (2011) foi baseada em entrevistas semiestruturadas com dois professores de Ciências de escolas públicas, entre 10 e 20 anos de carreira docente. Os autores observaram que um dos professores apresentava basicamente uma relação com o Eu restrita à necessidade econômica e de sustento de sua família, enquanto o outro professor apresentava uma relação forte de desejo profissional, caracterizada pelos vínculos mantidos com o Eu, com o Outro e com o Mundo. Em ambos os casos, essas relações justificam a permanência no magistério.

Villani, Barolli e Nascimento (2020), por sua vez, objetivaram compreender as condições institucionais, características subjetivas e os contextos sociais que influenciam a trajetória docente de forma a favorecer uma busca contínua por inovações educacionais. Isso foi feito por meio da investigação de como ocorre a articulação entre a produção de saberes docentes e a realização de projetos inovadores, a partir de um estudo de caso envolvendo as trajetórias de duas professoras de Física.

Os autores se fundamentaram na perspectiva teórico-metodológica de Bernard Lahire que busca, por meio de um conjunto de informações obtidas com entrevistas realizadas em profundidade, acompanhar o processo de socialização vivido pelos sujeitos em diferentes contextos. Com base no levantamento de informações provenientes de entrevistas, currículo Lattes e publicações, os autores reconstruíram as trajetórias das professoras de Física, na forma de retratos sociológicos - lócus metodológicos da análise detalhada das trajetórias das professoras que condensam dados empíricos, referencial teórico e uma análise da pluralidade de disposições e de contextos de práticas. Os autores concluíram que as carreiras das professoras foram reguladas por um conjunto de características individuais, políticas institucionais e eventos ocasionais que contribuíram para sua estabilidade e para sua satisfação na carreira de professoras de Física.

Nas três pesquisas descritas, a identidade profissional docente foi investigada a partir de relatos dos professores sobre suas representações e sobre sua trajetória profissional. Se considerarmos a identidade profissional como um processo contrastivo e relacional, que se desenvolve a partir do momento em que se assume o papel de professor na relação com os atores educacionais e em que se é reconhecido por eles como professor (Diniz-Pereira, 2011), torna-se evidente a importância de que as pesquisas também busquem compreender os processos de construção social dessa identidade, os significados e as consequências sociais envolvidas nesse processo (Bloome et al., 2022).

Por isso, parece-nos importante que as pesquisas que tratam da identidade profissional e dos saberes docentes busquem compreender como a participação em eventos sociais afetam as identidades assumidas/construídas pelos atores envolvidos nos contextos educacionais. A análise das identidades sociais assumidas/construídas pelos atores em interação, como tem sido feito em algumas pesquisas orientadas por uma perspectiva etnográfica, permite elucidar os processos interpessoais e de linguagem usados por eles para criar a si mesmos e uns aos outros. Nessa perspectiva, a identidade profissional docente não pode ser compreendida como um construto fixo e estável, mas como condicionada pelos eventos sociais construídos pelas pessoas em interação nos diferentes contextos (Bloome et al., 2022; Pimenta, 1999).

Eixo C - Processos de construção e desenvolvimento dos saberes docentes

Dentre as pesquisas que investigam o processo de construção e desenvolvimento de saberes docentes ao longo de cursos de formação continuada (categoria C.1), algumas constatam certa dificuldade e resistência para ressignificação de saberes pelos professores (Dias, 2014; Silveira, 2017). Por exemplo, Dias (2014) analisou a construção de saberes relativos aos modelos e à modelagem na formação continuada de quatro professores de Ciências, de duas escolas da rede pública. O processo formativo priorizou a elaboração de planos de aula considerando os conceitos de modelos, modelagem e saberes docentes e, segundo a autora, contribuiu para que os professores reconhecessem algumas das potencialidades desses recursos.

Dias (2014) também utilizou a tipologia de saberes de Shulman para compreender os fatores que dificultam a construção de saberes relativos aos modelos e à modelagem. Com relação a esse aspecto, observou-se que alguns professores têm convicções antigas enraizadas nas suas práticas pedagógicas, além de concepções equivocadas sobre o tema. Resultados como esse apontam para a necessidade de planejar cursos que levem em consideração os saberes que os professores trazem consigo, bem como uma articulação real com a prática pedagógica desses professores, de forma a viabilizar a ressignificação e a construção de saberes (Tardif, 2002).

Algumas estratégias empregadas nos cursos de formação continuada têm sido apontadas como favorecedoras do desenvolvimento e da ressignificação de saberes docentes. Entre elas, destacam-se: articulação com a prática pedagógica; discussões coletivas entre os pares; criação de comunidades de professores-pesquisadores; registro escrito das atividades e reflexões realizadas no curso (Krüger, 2001; Labarce, 2014; Morita, 2012; Silveira, 2017).

No que concerne às pesquisas que focalizam o processo de construção de saberes docentes ao longo da trajetória do professor [C.2] (Quadro 1), elas evidenciam que esses saberes são construídos e desenvolvidos por meio de diferentes fontes e em diferentes contextos: no seio familiar (ou em outras instituições não escolares), na trajetória escolar anterior à formação inicial, ao longo dos cursos de formação inicial e continuada, e por meio da experiência docente (Fabian, 2012; Silva, A., 2015; Soares, 2010; Xavier, 2014). O processo de construção dos saberes docentes é, assim, atravessado pelas dimensões pessoal e coletiva e envolve percursos não escolares, escolares e profissionais (Santos, 2017; Silva, A., 2015; Soares, 2010).

Fabian (2012), por exemplo, identificou elementos que constituem a construção do conhecimento prático de professores de Ciências do Ensino Fundamental que atuam do 6º ao 9º ano. Foram realizadas entrevistas com professores com, no mínimo, cinco anos de atuação em sala de aula. Por meio de reflexões sobre a ação, realizadas ao longo das entrevistas, os professores revelaram alguns elementos que constituem suas práticas, tais como: o conhecimento do conteúdo, o conhecimento pedagógico, a consciência sobre os papéis do professor de Ciências, a relação entre professor e aluno, o conhecimento didático de conteúdo. Há uma preocupação desses professores com aspectos relacionados ao que ensinar, como ensinar e para quem ensinar. Os resultados também sugerem que antigos professores impactaram de forma decisiva na vida e na construção do conhecimento prático de alguns professores participantes do trabalho. Além disso, a relação com os pares e a influência dos próprios estudantes na construção do conhecimento prático foram aspectos destacados pelos professores.

Fabian (2012) constatou que o conhecimento prático dos professores investigados está em constante reconstrução e/ou adequação entre as dimensões pessoal e social, em função de suas necessidades formativas. É, portanto, um conhecimento validado pela própria prática, por meio das reflexões em torno dos resultados alcançados com os estudantes. Por isso, ele é um conhecimento profissional tácito, ativado diante de situações imprevistas que se manifesta por meio da reflexão.

Pesquisas como essa, que buscam investigar o processo de construção desse conhecimento prático, indicam que, no ato de ensinar, os professores mobilizam vários saberes, mas, nesse processo, produzem um novo saber contextualizado que lhes permite enfrentar as situações de ensino com as quais se deparam (Fabian, 2012; Santos, 2017; Soares, 2010). Também merece destaque o fato de que algumas pesquisas identificam certas lacunas na formação inicial dos professores em relação aos saberes construídos nessa etapa formativa (Silva, A., 2015; Soares, 2010; Xavier, 2014). Silva, A. (2015), por exemplo, buscou compreender como os saberes físicos são construídos na formação de professores de Ciências, graduados em Ciências Biológicas, da rede escolar pública municipal. A interpretação dos dados evidenciou que a construção dos saberes físicos dos sujeitos da pesquisa ocorreu especialmente na sua trajetória escolar no Ensino Médio e não no curso de graduação.

Muitas das pesquisas da categoria C.2 utilizaram entrevistas individuais como instrumento de coleta de dados. Algumas vezes, as entrevistas também apareciam associadas a outros instrumentos, como questionários e documentos. Ainda que os dados obtidos por meio desse tipo de instrumento facilitem o acesso a elementos pessoais dos saberes docentes, reforçam a nossa crítica de que essas pesquisas priorizam uma perspectiva individual de investigação desses saberes.

Eixo D - Contribuições de cursos e programas de formação na constituição dos saberes docentes

Conforme assinalamos, as pesquisas do Eixo D tinham como intuito realçar as possíveis contribuições de cursos e programas de formação para a constituição dos saberes docentes. Diferentemente daquelas enquadradas na categoria C.1, não há, nessas pesquisas, o propósito explícito de analisar o processo de desenvolvimento dos saberes ao longo desses cursos. Por exemplo, Carneiro (2017) tinha como foco investigar a percepção dos professores sobre a formação inicial vivenciada [D.1] e utilizou uma abordagem qualitativa, com enfoque descritivo, da qual participaram 35 professores egressos do curso de Ciências Naturais. Como instrumentos de construção dos dados usou um questionário e uma entrevista em grupo. Essa entrevista revelou as concepções relacionadas à vivência no curso, bem como os seus impactos na carreira desses docentes. Apesar de ter uma questão de pesquisa atrelada à compreensão dos impactos do curso nos saberes docentes, a análise não focaliza esse aspecto de forma profunda sob a lente de referenciais teóricos da área. A ênfase recaiu nas concepções apresentadas pelos professores em relação à formação que tiveram.

No que se refere às pesquisas que enfatizam as contribuições de cursos de formação continuada e de pós-graduação para a constituição dos saberes docentes [D.2], em geral, elas evidenciam o papel desses cursos no desenvolvimento e na ressignificação dos saberes docentes. Alguns desses processos formativos parecem conduzir a mudanças na prática desses profissionais (Silva, A., 2014; Silva, G., 2015).

Silva, G. (2015) investigou como a formação continuada baseada em oficinas de experimentação em Ciências pode contribuir com as práticas pedagógicas de nove professores que lecionavam nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Após os oito encontros nos quais as oficinas ocorreram, as professoras elaboraram planos de aula e desenvolveram com seus alunos, discutiram com todo o grupo sobre esse processo e passaram por entrevistas individuais que objetivavam compreender suas percepções a respeito dessa experiência. Concluiu-se que a vivência de experimentos e as reflexões propostas ao longo do curso desencadearam mudanças na prática de algumas professoras por favorecerem a ressignificação do conhecimento sobre as temáticas trabalhadas, assim como dos conhecimentos pedagógicos e curriculares.

Algumas pesquisas desse eixo têm como foco de investigação professores de Ciências dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Tais pesquisas indicam limitações nos saberes relacionados aos conteúdos de Ciências pelos professores investigados, as quais influenciam negativamente na utilização de determinadas estratégias e metodologias de ensino (Abreu; Bejarano; Hohenfeld, 2013; Silva, A., 2014; Silva, G., 2015).

Distanciando-se dessa perspectiva do déficit, Almeida (2017) estudou as interações discursivas desenvolvidas em sala de aula por uma professora pedagoga e seus estudantes, ao articular os pressupostos relacionados aos saberes docentes e à análise microetnográfica do discurso. Nessa perspectiva, o discurso é compreendido como linguagem em uso, em íntima relação com a cultura, os contextos sociais e os diferentes significados e expectativas que são compartilhados pelas pessoas em interação.

A professora investigada tinha ampla experiência na alfabetização de crianças, ao passo que estava iniciando seu trabalho com o Ensino de Ciências nesse nível de ensino. A observação e a análise das aulas da professora nesses dois contextos (Alfabetização e Ensino de Ciências) revelaram que ela mobilizava saberes de professora alfabetizadora para o Ensino de Ciências. Com base nesses resultados, Almeida (2017) discute que o repertório docente dessa professora a possibilitava realizar algumas ações que viabilizam o seu Ensino de Ciências.

Acreditamos que essa nova perspectiva sobre o trabalho com o Ensino de Ciências nos anos iniciais foi possível no trabalho de Almeida (2017), principalmente pelo fato de ele se preocupar com os saberes que são, de fato, mobilizados pela professora em sua atuação, em lugar de focalizar os saberes que a professora deveria ter. Como indicado, essa nos parece uma importante contribuição de pesquisas realizadas sob uma perspectiva etnográfica para o estudo dos saberes docentes.

No que se refere às pesquisas classificadas na categoria D.3, elas evidenciam que o PIBID¹ é um programa que contribui não só para a formação inicial de licenciandos envolvidos no projeto, mas também para a formação continuada dos professores supervisores da Educação Básica, sobretudo por favorecer a reflexão e a ressignificação de seus saberes. O estudo de Mesquita (2015), por exemplo, investigou o papel do PIBID em ações de formação inicial e continuada para professores de Ciências/Química da rede básica de ensino.

A autora elaborou um estudo de caso envolvendo professores formadores dos Cursos de Licenciatura em Biologia e Química, professores da Educação Básica e licenciandos dos Cursos de Licenciatura em Biologia e Química integrantes do PIBID/Interdisciplinar. Como instrumentos para a construção dos dados foram utilizados: observação participante, questionários e entrevistas. Os sete encontros de formação foram registrados por meio de vídeos.

Mesquita (2015) concluiu que: (i) o PIBID favorece o estabelecimento de parcerias entre pares da mesma escola e profissionais de outros níveis; (ii) há certa deficiência nos cursos de formação inicial os quais tendem a assumir uma configuração fundamentada na racionalidade técnica. O PIBID atua, dessa forma, como uma maneira de estreitar os vínculos entre escola e universidade, de forma a contribuir para a formação dos licenciandos.

Se, por um lado, o PIBID tem o potencial de contribuir para a formação inicial e continuada dos sujeitos envolvidos, por outro, têm sido identificadas algumas limitações desse programa. Paredes (2012) investigou as compreensões sobre o PIBID e suas implicações para a construção de saberes docentes de professores de Ciências. A pesquisa foi realizada em uma abordagem qualitativa e teve como fontes de informações os documentos públicos sobre o PIBID e entrevistas com três professores supervisores da Educação Básica de cada um dos subprojetos.

Paredes (2012) observou que os licenciandos dos subprojetos reconheciam a importância de ter domínio da matéria a ser ensinada, mas também do conhecimento pedagógico do conteúdo. Além disso, as entrevistas evidenciaram que os subprojetos de Biologia, Física e Química contribuíram para a construção de saberes disciplinares e curriculares e favoreceram a compreensão do papel do professor pesquisador. Entretanto, de acordo com a autora, as estratégias utilizadas nos subprojetos de Biologia e Química no período analisado reproduziam um modelo de formação baseado na racionalidade técnica e desconsideravam os saberes experienciais dos professores da Educação Básica participantes do programa.

Em síntese, as pesquisas do Eixo D discutiram potencialidades e limitações de processos formativos em relação ao desenvolvimento dos saberes docentes. Consideramos que a identificação de estratégias que potencializam o desenvolvimento desses saberes ao longo de cursos/projetos de formação é um importante aspecto para favorecer a implementação de processos formativos que possam contribuir efetivamente para o desenvolvimento profissional docente. Entretanto, consideramos também ser importante ponderar a supervalorização que alguns autores atribuem às estratégias de ensino empregadas nesses cursos em detrimento do papel assumido e negociado pelos professores nos processos formativos e dos contextos mais amplos nos quais esses atores estão inseridos.

Com relação a esse aspecto, recorremos às ideias de Ricketts (2019) para argumentar que as interações sobre a prática que são construídas em grupos nos quais professores se esforçam para apoiar o aprendizado e o desenvolvimento uns dos outros medeiam o que, em que grau e como os professores aprendem. Essas interações incluem tanto fatores previamente planejados, quanto fatores espontâneos que podem gerar ou restringir as oportunidades de aprendizagem dos professores, mas poucos estudos as têm investigado.

Essa supervalorização das estratégias formativas também resulta em uma tendência de algumas pesquisas da área de considerar que cursos de curta duração teriam o potencial de operar grandes mudanças nas práticas pedagógicas dos professores. Ao contrário, o processo de desenvolvimento profissional docente envolve a aprendizagem contínua da docência, ao longo de uma carreira (Imbernón, 2016).

Acreditamos que análises informadas por uma perspectiva etnográfica, tal como a realizada por Ricketts (2019), têm o potencial de superar a mencionada tendência de supervalorizar as estratégias formativas, numa relação do tipo causa-efeito, ao focalizar os professores como sujeitos ativos, que agem e reagem uns aos outros na construção dos mundos em que vivem. Nesse sentido, os contextos mais amplos - como o político, o institucional, o formativo etc. - influenciam (mas não determinam!) e são influenciados pelo que os professores fazem nos eventos sociais dos quais participam (Bloome et al., 2022).

Eixo E - Outros focos

As duas pesquisas do Eixo E têm diferentes focos de investigação. Carminatti e Del Pino (2019) discutem a percepção dos professores sobre a influência da afetividade e da relação professor-aluno nos processos de ensino e aprendizagem na área de Ciências da Natureza no Ensino Médio. Os dados foram obtidos a partir de questionários e de entrevistas realizadas com professores de Química, Física e Biologia. Os professores entrevistados reconhecem que constroem relações com seus alunos a partir de determinados espaços e tempos e é por meio da convivência que essas relações são construídas. Assim, destaca-se que os conteúdos disciplinares são importantes, porém não são fatores únicos a impactar nos processos de ensino e aprendizagem.

Rezende (2016) descreveu e analisou a estruturação do trabalho do professor de Ciências e seus impactos nos saberes e nas práticas político-pedagógicas no contexto de uma escola municipal organizada na perspectiva da gestão democrática do currículo e na construção coletiva do conhecimento. Para desenvolver essa pesquisa foram utilizadas as técnicas de observação participante, pesquisa bibliográfica e de entrevista estruturada com os dois professores de Ciências da instituição. A análise foi fundamentada no método dialético-hermenêutico que considera que os dados não são dissociáveis da realidade histórica, social, econômica e política em que estão inseridos. Dessa forma, o pesquisador é o responsável por atribuir significado ou sentido aos mesmos.

Os dados revelam que o trabalho dos professores de Ciências, nessa escola, não se limita à disciplina pontual, em um horário fragmentado, e conta com a colaboração de colegas das demais áreas nos espaços coletivos de estudo. Observou-se, ainda, que o trabalho do professor é marcado por um caráter de mediação e de colaboração com os estudantes, diferentemente das escolas públicas convencionais, que tendem a priorizar as aulas expositivas.

Rezende (2016) concluiu que a ressignificação do trabalho dos professores e, em específico, dos de Ciências, ocorreu em função das alterações profundas na organização do espaço-tempo escolar, das possibilidades de construção coletiva do projeto político-pedagógico e da participação efetiva da comunidade da instituição escolar. O uso de métodos etnográficos (como a observação participante) e a valorização das ações cotidianas contribuíram para que o autor focalizasse essa dimensão social da construção dos saberes e práticas dos professores, no entanto, isso se deu a partir de uma perspectiva ética (a do pesquisador) e não êmica (a dos atores sociais). Esta última tem o potencial de proporcionar uma compreensão mais acurada dos saberes docentes na interface entre o pessoal e o social, uma vez que sua mobilização e negociação são investigadas a partir da análise de como os professores agem e reagem discursivamente com outros atores educacionais em eventos sociais (Bloome et al., 2022).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho buscamos compreender como os saberes docentes têm sido investigados na área de Ensino de Ciências no Brasil e identificar as principais contribuições e limitações dessas investigações. Em primeiro lugar, esse levantamento nos permitiu evidenciar que, de forma semelhante ao que ocorre em outras áreas, as pesquisas sobre os saberes docentes na área de Ensino de Ciências utilizam uma variedade de terminologias e embasamentos teóricos para tratar a temática. Discutimos que, apesar de muitos autores apresentarem ideias similares, há certas diferenças que têm impactos importantes em termos de como identificar e estudar tais saberes. Isso fica evidente ao observarmos a grande diversidade de objetivos das pesquisas analisadas no levantamento.

Em relação à nossa primeira questão de pesquisa - quais são os principais eixos de investigação do recorte de pesquisas envolvendo os saberes docentes de professores de Ciências no Brasil que compõem o nosso recorte? -, identificamos os seguintes: saberes mobilizados por professores de Ciências (Eixo A); saberes docentes e a identidade profissional (Eixo B); processos de construção e desenvolvimento dos saberes docentes (Eixo C); contribuições de cursos e programas de formação na constituição dos saberes docentes (Eixo D); outros focos (Eixo E).

Na tentativa de responder à nossa segunda questão de pesquisa - como as pesquisas que compõem esses eixos podem ser caracterizadas? -, discutimos características gerais das pesquisas de cada um desses eixos. Observamos que prevalecem as pesquisas que buscam apenas identificar os saberes docentes em diferentes contextos (Eixo A). Tais pesquisas fornecem evidências adicionais no que se refere à pluralidade dos saberes docentes, aspecto que parece estar bem consolidado neste campo e que é evidenciado pelas inúmeras caracterizações e tipologias presentes na literatura (por exemplo: Gauthier et al., 2013; Shulman, 1987; Tardif, 2010). Ainda em relação ao Eixo A, identificamos algumas limitações na lógica de investigação adotada nessas pesquisas. A maioria delas tende a privilegiar uma perspectiva individual de estudo dos saberes docentes, a partir da análise por categorias. Esse tipo de análise, embora possibilite a união de informações de diferentes fontes em uma mesma categoria, não contempla a dimensão social e contextual dos saberes docentes.

Observamos um número reduzido de pesquisas que investigam as relações entre os saberes docentes e a identidade profissional de professores de Ciências (Eixo B). As poucas que o fazem também focalizam a atenção na identidade de professores específicos como sujeitos individuais. Nesse sentido, pouca atenção tem sido dada ao fato de que os saberes docentes se desenvolvem na interface entre aspectos sociais e pessoais da profissão e suas relações com a construção de uma identidade coletiva entre os professores.

Além disso, tais pesquisas não priorizam a compreensão de como a participação em eventos sociais afeta as identidades assumidas/construídas pelos atores envolvidos nos contextos educacionais, algo que requer atenção ao uso da linguagem como construtora das identidades sociais. Como discutimos, é por meio da linguagem e das interações discursivas que os atores sociais, como professores e estudantes, criam-se a si mesmos e uns aos outros nesses eventos (Bloome et al., 2022). Assumir tal perspectiva requer compreender a identidade docente como dinâmica e altamente dependente dos contextos e das interações neles estabelecidas, especialmente aquelas em torno do que conta como saber e práticas válidos.

As pesquisas do Eixo C apresentaram considerações significativas para a compreensão de que os saberes docentes são ampliados e aprimorados em um processo contínuo de desenvolvimento profissional, ao longo de toda a trajetória dos professores. Entretanto, também nessas pesquisas pouca atenção tem sido dada às maneiras pelas quais esses saberes são construídos pelos professores na interface entre aspectos sociais e pessoais e, por isso, elas não focalizam a investigação dos processos de desenvolvimento dos saberes a partir das interações discursivas que se estabelecem entre os professores, ao longo desses cursos, mas se pautam em uma perspectiva individual de desenvolvimento desses saberes.

No que se refere às pesquisas que estudam as contribuições de cursos de formação para o desenvolvimento dos saberes docentes (Eixo D), elas tendem a apontar para limitações nas concepções dos professores e as contribuições do curso para o desenvolvimento daqueles saberes. Observa-se que há uma tendência das pesquisas em considerar que as estratégias empregadas nos cursos/programas de formação foram determinantes para o desenvolvimento dos saberes docentes sem que, no entanto, isso venha acompanhado de uma discussão aprofundada sobre como e por que as atividades desenvolvidas nesses cursos contribuíram para o avanço nos saberes docentes. Apoiadas na investigação de Ricketts (2019), consideramos que as interações que os professores ativamente estabelecem em torno da prática docente nesses processos formativos medeiam o que, em que grau e como eles aprendem e, portanto, sua análise apresenta grande potencial para fundamentar esse tipo de discussão.

Em relação à nossa terceira questão de pesquisa - quais as principais contribuições e limitações dessas pesquisas? -, evidenciamos que as pesquisas têm contribuído para consolidar aspectos destacados por Tardif (2010) de que os saberes dos professores não são conhecimentos exclusivamente teóricos e de que esses saberes são caracterizados pelos contextos interacionais dos quais os professores participam. Esse aspecto foi bem retratado principalmente nas pesquisas constituintes dos Eixos B, C e E. Embora esses três eixos focalizem diferentes aspectos relacionados aos saberes docentes, as pesquisas que os constituem deram fortes indícios de que as trajetórias pessoais e profissionais dos professores são determinantes para elucidar aspectos relacionados à identidade docente e aos processos de desenvolvimento dos saberes docentes, por exemplo.

Além disso, como Tardif (2010), também observamos a relevância dos saberes da experiência entre os próprios professores como aqueles que abrem possibilidades para que os demais saberes sejam adaptados em função das exigências específicas de seu trabalho. Essa centralidade dos saberes experienciais ficou evidente tanto nas pesquisas que buscavam identificar os saberes mobilizados pelos professores (Eixo A), quanto naquelas que buscavam investigar os processos de desenvolvimento dos saberes docentes (Eixo C). Por fim, as pesquisas do Eixo D contribuíram para elucidar as potencialidades de estratégias e as limitações de processos formativos em relação ao desenvolvimento dos saberes docentes, importantes para se pensar a implementação de políticas educacionais visando ao aprimoramento da prática profissional.

Em relação às principais limitações que identificamos nas pesquisas do recorte analisado, destacamos que: (i) há uma ênfase na identificação/categorização de saberes mobilizados pelos professores; (ii) apesar de os saberes docentes se desenvolverem nas interações sociais estabelecidas entre professores e outros atores educacionais, há uma escassez de pesquisas na área de Ensino de Ciências que buscam estudar como ocorre a mobilização e o desenvolvimento desses saberes por meio de tais interações; e, por consequência, (iii) embora os saberes dos professores sejam influenciados pelos contextos socioeducativo e institucional, o estudo contextualizado desses saberes não tem recebido a necessária atenção.

Assim, independentemente do eixo de investigação, as limitações identificadas nas pesquisas sobre os saberes docentes apontam para a necessidade de que um esforço seja realizado no sentido de descrever os saberes docentes como fenômeno social, que se constrói na interação do professor com seus alunos, com seus pares e demais membros da comunidade educacional (Tardif, 2002).

O estudo dos saberes docentes como fenômeno social pressupõe a análise das interações discursivas, uma vez que é por meio da linguagem e de outros sistemas semióticos a ela relacionados que as pessoas agem e reagem entre si e com o mundo. Essa premissa é fundamentada numa concepção de discurso como um tipo de ação que as pessoas realizam umas com as outras (Bloome et al., 2008). Assim, entendemos que os saberes docentes são mobilizados e construídos no discurso quando os professores se envolvem em interações com os atores educacionais e, por isso, seu estudo requer a análise das interações discursivas entre os participantes, deslocando-se assim o foco do indivíduo como unidade básica de análise (Putnam; Borko, 2000).

Com base nesses pressupostos, o propósito central de estudos dessa natureza não é identificar saberes manifestados por um professor específico, mas compreender como esses saberes são mobilizados na medida em que os diferentes atores agem e reagem uns aos outros e constroem significados culturais por meio das práticas cotidianas (o que inclui a prática docente) de um grupo. Os significados culturais tornam-se proposicionais, socialmente significativos e de relevância cultural por meio das interações discursiva e, por isso, são indissociáveis dessas interações. Nesse sentido, é preciso considerar a forma como os processos e as práticas culturais de um grupo são particulares e situados, isto é, dar a devida importância aos aspectos específicos daquela situação estudada. Isso não significa que contextos em nível macro sejam desconsiderados; ao contrário, “situado” refere-se não só à situação local, mas também às relações entre ela e outros eventos e contextos sociais em múltiplos níveis (Bloome et al., 2022).

A consideração de uma perspectiva etnográfica para o estudo dos saberes docentes, portanto, nos possibilita captar essa singularidade e as especificidades dos eventos nos quais os professores se envolvem, ao focalizar o uso da linguagem para a construção das práticas culturais, ao mesmo tempo em que nos permite estabelecer relações com contextos sociais mais amplos. Isso requer certo distanciamento de tipologias pré-existentes e a tentativa de compreender esses saberes da forma como são mobilizados e utilizados pelos professores ao longo dessas interações. Esse é um aspecto que temos explorado em nossas pesquisas em desenvolvimento, a partir da abordagem microetnográfica do discurso. Tal abordagem valoriza os processos pelos quais as pessoas usam a linguagem e outros sistemas de comunicação nas suas interações, considerando os processos sociais, culturais e políticos, como os que permeiam o desenvolvimento dos saberes docentes (Bloome et al., 2022).

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001; FAPEMIG; CNPq. Agradecemos, ainda, à Universidade Federal de Ouro Preto pelo suporte no desenvolvimento da pesquisa.

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• 1
  Artigo publicado com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq/Brasil para os serviços de edição, diagramação e conversão de XML.
• 1
  O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) é uma ação do Ministério da Educação (MEC), que proporciona aos estudantes dos cursos de licenciatura uma aproximação com as escolas públicas de Educação Básica, sob supervisão de professores da Educação Básica e de professores coordenadores do projeto nas universidades.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  02 Set 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  17 Abr 2023
• Preprint postado em
  12 Abr 2023
  10.1590/SciELOPreprints.5809
• Aceito
  22 Out 2023