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O PRESENTE ESQUECIDO ENTRE O SAUDOSISMO E O UTOPISMO: NOTAS PARA PENSAR A EDUCAÇÃO

THE FORGOTTEN PRESENT BETWEEN NOSTALGIA AND THE UTOPIANISM: NOTES TO THINK EDUCATION

BAUMAN, Zygmunt. . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017

Esta resenha tem o objetivo de apresentar a recente obra de Zygmunt Bauman - Retrotopia (2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.) -, destacando e analisando alguns pontos de sua crítica à sociedade contemporânea, bem como buscando algumas aproximações para pensar a educação. Esta obra de Bauman não se mantém somente na descrição superficial de nossa condição social, tampouco apenas explicita e explica as dimensões profundas da crise de nosso tempo, mas sugere uma via que vale também para os envolvidos na educação: a cultura do diálogo. Os temas do neoconservadorismo, presentes na condição acelerada da modernização, constituem um sentimento e um caldo cultural produzidos pelos novos administradores da ordem, os quais ditam e criam o molde para as novas formas de vida (pautadas no fundamentalismo, no consumismo e no individualismo), o que desafia os educadores e os agentes sociais, intelectuais e políticos a compreender e a intervir. De outra parte, a educação, especialmente a formal - de sala de aula, de escola -, não resolve sozinha e tampouco define o futuro da humanidade, dos indivíduos e do cosmos, mas, sem ela, como escreve Paulo Freire (1996FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.), as possibilidades se reduzem e as relações são comprometidas.

A prolífera obra do filósofo social Zygmunt Bauman (1925-2017) surpreende pela capacidade intelectual de debater temáticas que, no cotidiano apressado da existência superficial, conduzido pelos apelos consumistas, passam ao largo da crítica individual e coletiva. Enfrentar a problemática apresentada na sociologia pluralizadora de Bauman é pôr-se de modo crítico e hermenêutico diante das situações diversas que a condição humana incorpora, por sua natureza, e desenvolve a partir das compreensões e ações dos indivíduos. Retrotopia (2017) desenha uma problematização profunda para mostrar que é da condição humana a formação e, desse modo, a força da cultura e as heranças históricas e sociais são primordiais porque parecem ditar os direcionamentos a que as existências individuais estão submetidas. Antes, porém, de caracterizarmos os aspectos centrais da obra, voltemos nossa atenção ao lugar de reconhecimento de Bauman junto à intelectualidade contemporânea, e mesmo sobre sua preocupação com o tema da utopia em obras anteriores, o que pode facilitar nossa compreensão do significado da obra Retrotopia para pensar a sociedade e a educação.

Distintos e reconhecidos intelectuais, como Gianni Vattimo (2017VATTIMO, Gianni. “Bauman só podia estar de acordo com um papa como Francisco”. Entrevista com Gianni Vattimo. Revista IHU, jan. 2017. Disponível em:<Disponível em:http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/563850-bauman-so-podia-estar-de-acordo-com-um-papa-como-francisco-entrevista-com-com-gianni-vattimo >. Acesso em 20 de julho de 2020.
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), Umberto Eco (2017ECO, Umberto. Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.) e Agnes Heller e Ferenc Fehér (1994HELLER, Ágnes; FEHÉR, Ferenc. El péndulo de la modernidad: una lectura de la era moderna después de la caída del comunismo. 1. ed. Barcelona: Ediciones Península, 1994.), têm percebido, no conjunto das obras de Zygmunt Bauman, uma forma potente para pensar e compreender a sociedade contemporânea. Umberto Eco (2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.), por exemplo, sugere que o termo modernidade líquida ou sociedade líquida deva-se a Bauman. O autor considera que este termo tenha tido seu nascedouro na concepção pós-modernista, a qual emergiu no final do século XX, quando declarou a crise das “grandes narrativas” da modernidade. Heller e Fehér (1994, p. 37), possivelmente movidos pela compreensão de Foucault acerca das relações entre “os intelectuais e o poder” (FOUCAULT, 2001FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 16. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001., p. 70), entendem que Bauman permite pensar a intelectualidade hoje não como uma espécie de vanguarda, que profetiza ou legisla sobre o mundo, mas, quem sabe, o interpreta e o traduz.

Vattimo (2017VATTIMO, Gianni. “Bauman só podia estar de acordo com um papa como Francisco”. Entrevista com Gianni Vattimo. Revista IHU, jan. 2017. Disponível em:<Disponível em:http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/563850-bauman-so-podia-estar-de-acordo-com-um-papa-como-francisco-entrevista-com-com-gianni-vattimo >. Acesso em 20 de julho de 2020.
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), embora tecendo muitos elogios a Bauman, confessa que nunca entendeu bem se o autor era favorável às concepções pós-modernas (desconstrucionistas) ou contrário a elas, e acredita, até mesmo, que ele (Bauman) nunca avaliou bem isso. Bauman (1998 BAUMAN, Zygmunt . O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998., 2011BAUMAN, Zygmunt. Bauman sobre Bauman: diálogos com Keith Tester. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2011.), todavia, quando acusado de pós-modernista, tentou se justificar, sugerindo que somente com a ideia de iconoclastia, ou mesmo de desconstrução, poderemos refletir sobre o nosso passado e construir, no presente, pela via da política e da educação, uma perspectiva para o futuro. “As utopias iconoclastas”, segundo ele, “não se conduzem por meio de desenhos ou conselhos, mas sim por meio da reflexão crítica sobre práticas e crenças existentes” (BAUMAN, 2009a BAUMAN, Zygmunt . A utopia possível na sociedade líquida. In: OLIVEIRA, Dennis. Entrevista Zygmunt Bauman. Revista Cult, n. 138, ano 12, 2009a., p. 18). Eis um lugar fundamental e importante da educação na configuração de outro mundo possível em tempos líquidos: radicalizar as possibilidades democráticas, como afirmou Bauman em diálogo com a escrita de Giroux e Rorty (BAUMAN, 2009b BAUMAN, Zygmunt . Vida líquida. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2009b.).

Para Bauman, assim como para Russel Jacoby (2001JACOBY, Russell. O fim da utopia: política e cultura na era da apatia. Tradução Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001., 2007JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.), as utopias ainda possíveis não podem ser mais pensadas a partir de uma ciência fundada em certezas, ou mesmo em cálculos matemáticos, que permitiriam uma engenharia do social rumo a um mundo ordenado, que tem um telos de perfeição definitivo ao final (uma linha de chegada). “O horizonte que a modernidade mirava era a visão de uma sociedade estável, solidamente enraizada [...]”, escreveu Bauman em Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais (2010BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2010., p. 12). Esse tipo de utopia merece ser criticada, evidenciando-se seus riscos, horrores e perigos ao longo do século XX com o fenômeno das guerras e do totalitarismo. Talvez possamos acolher a obra Retrotopia (2017) como uma espécie de crítica a um retorno de utopias conservadoras e conformistas que não miram o futuro como alvo a ser desejado, o que já fora criticado por Bauman em sua crítica da modernidade, mas que miram e tentam tornar desejável um mundo estável e isento de contradições que estaria no passado, na era pré-moderna, anteriores a Hobbes ou mesmo ao nascimento do Estado-nação.

A retrotopia, tema central da análise de Bauman (2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.), é uma espécie de leitura de nossa condição social contemporânea: a perda de confiança no progresso foi substituída pela aposta imaginária e saudosista em um passado ideal. O sentimento de que poderíamos construir um lugar melhor no futuro, tal como apostaram as utopias modernas, foi substituído por uma visão saudosista e nostálgica de que há uma comunidade ideal no passado. Bauman (2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.) tematiza a questão do cenário contemporâneo de violência, solidão, desemprego e exclusão social. Trata das novas condições vividas pela sociedade, cada vez mais envolta num tipo de violência que é produzida e animada por um sentimento difuso de ódio, disseminado por aqueles que têm interesse no poder. Talvez aqui ele até avance em relação à reflexão feita por Russel Jacoby (2001JACOBY, Russell. O fim da utopia: política e cultura na era da apatia. Tradução Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001.) na obra O fim da utopia: política e cultura na era da apatia, uma vez que parece mostrar não somente o fim da utopia e a cultura da apatia, como previa o autor, mas, fundamentalmente, o surgimento da retrotopia.

Retrotopia (2017) enfrenta a problemática da “‘violência autotélica’, ou seja, aquela que é seu próprio motivo e propósito; uma violência sem sentido e, pior: ela tende a ser despropositada, dolorosa e desonrosa para o seu próprio perpetrador” (BAUMAN, 2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017., p. 40-41). A obra denuncia a ação negativa de uma educação também autotélica, oposta à solidariedade: “Estão nos ensinando a autossuficiência [...] não contar com ninguém, exceto conosco” (BAUMAN, 2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017., p. 47), ressuscitando a condição humana pré-hobbesiana do homo homini lupus, do estado de guerra de todos contra todos. A sombra do passado atinge os tempos presentes e implica compreensões e ações dos indivíduos no perigo da supressão da liberdade. O maior bem e ideal do ser humano (BAUMAN, 2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017., p. 120) aproxima-se sorrateiro quando da conexão saudosista e apressada, por vezes fortemente comercializada, com um distante tempo de soluções mágicas. A farsa da história torna-se palpável e revitaliza-se via império fake, que desautoriza as construções científicas, desqualifica a ação educativa, inviabiliza diálogos e tende a eliminar o diferente e a diferença.

O autor estrutura a obra em seis partes. Na introdução, nomina e explicita o espírito de nostalgia de nosso tempo. No capítulo 1, De volta a Hobbes, tematiza a ideia de retrotopia, fazendo um retorno à filosofia de Hobbes, evidenciando como o neoliberalismo operante no adentrar do século XXI cria um sentimento de competição, violência, medo e ódio, em que parece que somos todos inimigos e estamos em uma luta selvagem, retrato típico de uma sociedade individualizada. No capítulo 2, com o título De volta às tribos, o autor mostra os fechamentos e os muros culturais criados pelas políticas atuais do Estado-nação, a fim de definir claramente o nós e o eles, gerando uma condição na qual uns se consideram superiores e declaram os outros inferiores, a fim de deixar as coisas como estão, ampliando as políticas de ódio aos excluídos e abandonados, o que interessa ao poder dominante. Também aborda a problemática da perda da fé e da aposta da política em modelar o futuro, com a ideia difusa e manipulatória que estabelece a crença de que nós não somos aqueles que controlam o presente.

No capítulo 3, De volta à desigualdade, Bauman compara as formas de política assumidas pelo Estado de bem-estar social, nos gloriosos 30 anos do pós-guerra, com as políticas neoliberais da atualidade em relação ao comportamento acerca da desigualdade, condição fundamental para entender o fenômeno da retrotopia. Estão em questão as novas relações emergentes entre capital-trabalho mediadas pelas políticas de Estado no cenário da globalização; leitura que interessa sobremaneira à educação, uma vez que permite entender a fragilização do sentido público e democrático envolto na tarefa educacional. No capítulo 4, De volta ao útero, trata da desintegração dos laços humanos e da privatização da esperança no cenário da modernidade líquida, o que tem significado uma mudança mais ampla da cultura de responsabilidades da sociedade com a vida dos indivíduos. O eu se torna o único lugar difundido pelos administradores da ordem como lugar confiável. O lugar de compromisso social pela melhoria de vida dos trabalhadores foi transferido para a agência individual. Dá a impressão de não haver interesse comum para construir pautas emancipatórias, pois todos parecem estar “numa guerra de todos contra todos” (BAUMAN, 2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017., p. 114).

Ambos os fenômenos, “de volta às tribos” e “de volta ao útero”, aparentam ser tributários do “de volta a Hobbes”, e “se originam em grande parte na mesma fonte: o medo do futuro embutido no presente exasperantemente caprichoso e incerto” (BAUMAN, 2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017., p. 141). No epílogo da obra, Bauman evidencia a dificuldade de enfrentar a situação, mas discorda da ideia de que não há alternativa, traduzindo sua dose de esperança e aposta para o futuro: “estamos numa situação ou/ou: estamos diante da perspectiva de nos darmos as mãos ou de rumar para as nossas valas comuns” (2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017., p. 155).

O pano de fundo escolhido por Bauman na obra Retrotopia (2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.) parece ser o do deslocamento do lugar do Estado-nação em um cenário de sociedade globalizada, conjuntamente com a emergência de novas mentalidades e sentimentos. No auge da modernidade sólida, leia-se no decorrer do século XX, o Estado assumira uma função de produzir a segurança ou mesmo de universalizar o direito. No cenário da modernidade líquida, ao final do século XX, a ideia clássica de Estado-nação assume funções ligadas a uma maior ampliação das liberdades econômicas, mas sem as preocupações sociais com a vida dos indivíduos. O termo globalização significa mais o que o mundo está fazendo de nós, das culturas, das nações, dos indivíduos e dos povos, do que aquilo que podemos fazer com ele. Ele representa a forma como o poder tornou-se global e se separou da política, que continua local (BAUMAN, 1999BAUMAN, ZIGMUNT. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.).

Isso representa uma perda no sentido da força do Estado-nação em relação ao controle e à produção de saídas para os problemas cada vez mais globais. Também representa uma descrença dos indivíduos com o futuro dos marcos civilizacionais postos e concentrados na ideia de política, de cultura, de educação, de progresso e de democracia. Retrotopia, nesse sentido, é um conceito novo cunhado por Bauman para expressar as contradições de nosso tempo. Com ele, Bauman parece expor a realidade do presente e as condições dos indivíduos diante dela: reconhecimento da situação, mas impotência, descaso, desobrigação em mover-se para ações de alguma mudança, transformação, compromisso com a continuidade da vida e com as operações constantes de aprimorar a condição humana. De alguma forma, o conceito expressa a descrença na capacidade dos indivíduos em resolver os problemas que se apresentam.

O neoliberalismo contemporâneo, apregoado como a tábua da salvação do mundo, difere de seu antecessor por apostar sua força na ideia de libertação do indivíduo. Aparenta pressupor uma condição não cultural (pré-moderna) na constituição do mundo social. Decerto, isso parece mais querer consagrar o que existe como privação da liberdade, como forma de destino inexorável. É claro que o sentido civilizacional embutido na ideia de educação, com esta onda antimoderna, mina e fragiliza qualquer sentido democrático, cultural, plural e cosmopolita que outrora fora idealizado pelos pensadores e legisladores modernos.

Esse último aspecto pode ser considerado um dos pontos que merece atenção se desdobrarmos e analisarmos as implicações das narrativas de retrotopia que são assumidas na arena pública contemporânea. A pergunta feita por Michael Apple (2017APPLE, Michael W. A educação pode mudar a sociedade?Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.) - A educação pode mudar a sociedade? - estaria sendo respondida se nos valêssemos desta obra de Bauman de forma positiva, mas no sentido inverso à intenção de Apple. Vamos para o futuro numa onda de regresso, imaginando um passado nostálgico, perfeito e estável, o qual não representa uma ampliação das forças democráticas capazes de enfrentar as desordens sociais e excludentes do presente social contemporâneo, mas, puramente, uma forma de colocar ordem pela via da força das armas e da violência em detrimento da reflexão, do pensamento, do argumento, da educação e da cultura do diálogo.

Todo esse sentimento regressivo tem sido propagandeado e vendido para cada indivíduo de forma isolada, que o incorpora e o assume como valor e o difunde socialmente; um modo de educação que se desenvolve no cotidiano com a força do pensamento único, criando uma cultura e estabelecendo os comportamentos, atitudes e compreensões que, de alguma forma, determinam os rumos da humanidade. Como escreve Bauman (2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017., p. 140), “nós somos pressionados a nos conformar e nós desejamos ser pressionados” porque “sermos guiados acaba com os medos de nos perdermos. A familiaridade consola e tranquiliza - ou, antes, nos mantém a uma distância segura de situações que peçam consolo e tranquilidade”.

Nessa perspectiva teórica, também escreve Judith Butler (2017BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.) em A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tanto em Bauman quanto em Butler, o indivíduo/o sujeito precisa agir, reagir, tomar atitude. Na situação de domínio, de controle sistêmico da atualidade, contudo, o indivíduo bloqueia percepções, ações e reações e impede a segurança e, também, a liberdade, especialmente porque “a liberdade é valiosa quando ela e o potencial humano que ela supostamente viabiliza são reais” (BAUMAN, 2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017., p. 108). As definições, as regras, que pautam o presente, são tarefas do presente, embora com perspectivas históricas, e, nesse aspecto, a memória é, também, central, por colocar os indivíduos do mundo, que hoje é compartilhado diante da objetividade da história e das circunstâncias constitutivas dos tempos vindouros, não como distantes e estranhos, mas como desenhos e tessituras do hoje.

Em Retrotopia, Bauman (2017 BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.) parece sugerir uma educação para a pesquisa permanente que contribua para ampliar a compreensão acerca das manifestações, dos fenômenos e tendências socioculturais e sistêmicas a partir de uma racionalidade concreta, de repercussões coletivas e mudanças de atitudes como que alertas para a responsabilidade individual e coletiva com a vida. Lendo a obra, lembramo-nos do livro de Eduardo Galeano (2001GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 2001.), De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso, e passamos a compreender como o mundo contemporâneo líquido-moderno (des)educa, o que significa valorar e agir em sentido inverso na educação formal/escolar/universitária, buscando construir outro significado sobre a arte de educar, no qual esteja claro o compromisso humano com o futuro do mundo, da democracia e da humanidade. Nesse tipo de visão, há tanto valor para o problema da crítica social quanto para o entendimento acerca do significado do pensamento, da reflexão, do conhecimento, da política, da ética, da convivialidade e da integração.

Pensar e conceber o lugar da educação na perspectiva baumaniana, a partir da obra Retrotopia (2017), significa movimentar-se em direção a uma cultura reflexiva e de diálogo, o que pode favorecer enormemente a construção de outras formas de lutar pelo valor da emancipação, da igualdade, da sustentabilidade, da solidariedade e da diferença. A educação é o caminho auxiliar para o humano colocar-se de forma reflexiva e solidária no mundo, relacionando-se e reconhecendo as contingências e incertezas. O protagonismo dessa racionalidade aponta para o enfrentamento do tempo presente com novas posturas, compreensões e narrativas que considerem a historicidade, mas o façam de modo crítico, para que a história não se repita como farsa, o que pode nos permitir um enfrentamento das novas formas de dominação cultural emergentes no cenário líquido moderno.

REFERÊNCIAS

  • APPLE, Michael W. A educação pode mudar a sociedade?Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
  • BAUMAN, ZIGMUNT. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
  • BAUMAN, Zygmunt . O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998.
  • BAUMAN, Zygmunt . A utopia possível na sociedade líquida. In: OLIVEIRA, Dennis. Entrevista Zygmunt Bauman. Revista Cult, n. 138, ano 12, 2009a.
  • BAUMAN, Zygmunt . Vida líquida. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2009b.
  • BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2010.
  • BAUMAN, Zygmunt. Bauman sobre Bauman: diálogos com Keith Tester. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2011.
  • BAUMAN, Zygmunt . Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
  • BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
  • ECO, Umberto. Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 16. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
  • GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 2001.
  • HELLER, Ágnes; FEHÉR, Ferenc. El péndulo de la modernidad: una lectura de la era moderna después de la caída del comunismo. 1. ed. Barcelona: Ediciones Península, 1994.
  • JACOBY, Russell. O fim da utopia: política e cultura na era da apatia. Tradução Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001.
  • JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
  • VATTIMO, Gianni. “Bauman só podia estar de acordo com um papa como Francisco”. Entrevista com Gianni Vattimo. Revista IHU, jan. 2017. Disponível em:<Disponível em:http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/563850-bauman-so-podia-estar-de-acordo-com-um-papa-como-francisco-entrevista-com-com-gianni-vattimo >. Acesso em 20 de julho de 2020.
    » http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/563850-bauman-so-podia-estar-de-acordo-com-um-papa-como-francisco-entrevista-com-com-gianni-vattimo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2019
  • Aceito
    21 Set 2019
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