Open-access FORMAÇÃO E PRÁTICA PEDAGÓGICA DOS PROFESSORES NA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: NOVOS DESAFIOS PARA VELHOS PROBLEMAS?1

TEACHER TRAINING AND PEDAGOGICAL PRACTICE IN DISTANCE EDUCATION: NEW CHALLENGES FOR OLD PROBLEMS?

FORMACIÓN DOCENTE Y PRÁCTICA PEDAGÓGICA EN EDUCACIÓN A DISTÂNCIA: ¿NUEVOS DESAFÍOS PARA VIEJOS PROBLEMAS?

INTRODUÇÃO

As mudanças e as transformações pelas quais vêm passando a sociedade impõem cada vez mais novos desafios à formação dos professores. Segundo o Censo da Educação Superior de 2022, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), somente na rede privada, 93, 2% dos novos alunos de Pedagogia ou das demais áreas de Educação (como Geografia, História, Física e Química) escolheram estudar na modalidade à distância. Dados recentes do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) mostram a diferença entre os desempenhos de licenciados egressos da rede pública presencial e da rede privada à distância. No curso de Pedagogia, por exemplo, aqueles que fizeram o exame em 2014 e concluíram o curso na modalidade de Educação a Distância (EaD) ficaram 2,3 pontos percentuais atrás dos demais. Em 2022, esse percentual passou para 6 pontos.

Com a democratização do acesso ao Ensino Superior, houve um avanço nunca antes visto sobre o total de professores que se formaram em cursos de licenciatura à distância, que saltou de 28% em 2002 para 60% em 2022. Ou seja, a formação de professores licenciados em cursos à distância triplicou em 20 anos.

Se este é um assunto sensível, uma vez que grande parte das instituições que formam esses professores à distância responde pela rede privada de ensino é, frequentemente, responsável por uma formação de qualidade duvidosa, por outro lado, como observadores da realidade fática, devemos estudar e problematizar o real, a fim de compreender criticamente a dinâmica de muitos cursos de EaD, tanto no que tange à sua regulação, à qualidade ofertada e, sobretudo e não menos importante, ao papel muitas vezes invisível desempenhado por um novo agente do processo de ensino-aprendizagem, doravante denominado “facilitador”.

O estudo que antecede esta resenha avaliativa, intitulado “A formação continuada pedagógica na docência do Ensino Superior: Reflexões sobre o lugar dos facilitadores na Educação à Distância”, toma como objeto heurístico um tema interessante e ainda pouco explorado na literatura: o trabalho pedagógico dos facilitadores no contexto da oferta da EaD em uma instituição pública. O cenário mais amplo em que se insere o problema é aquele da expansão da oferta da educação na modalidade EaD ocorrida a partir das últimas décadas. Entretanto, a oferta pública da Educação à Distância se diferencia da rede privada sobretudo pelo sistema de acompanhamento e monitoramento, buscando garantir em primeiro lugar, a qualidade da educação ofertada. A oferta da educação à distância no sistema público de ensino teve início em 2005, quando o Governo Federal lançou o Programa Universidade Aberta do Brasil (UAB), cujo objetivo era interiorizar e democratizar o acesso ao ensino superior gratuito de qualidade. No mesmo ano, por meio do decreto 5.622/2005, o artigo 26 dispõe sobre a permissão de convênios e parcerias para o estabelecimento de EaD nas IES privadas. Desde então, falta um marco regulatório para oferta desta expansão que atende a propósitos de natureza distintas: a rede privada, através de uma extensão desordenada cujo fim é o lucro e, de outra parte, as instituições públicas, cujo objetivo é interiorizar e democratizar o acesso ao ensino superior.

Desta forma, quando falamos em expansão da EaD, é preciso distinguir sua oferta e estudar ações e modelos pedagógicos afinados com uma oferta da Educação à Distância de qualidade. É o caso do artigo aqui resenhado. Nele, os autores tematizam a importância de propostas pedagógicas voltadas à formação continuada de professores do Ensino Superior que envolvem, principalmente, as ações pedagógicas dos facilitadores. Estes, em sua grande maioria, são estudantes de pós-graduação das três instituições públicas do estado de São Paulo e recebem uma bolsa da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP) para atuarem como facilitadores com foco no curso de especialização lato sensu em Processos Didático-Pedagógicos para Cursos na Modalidade Educação a Distância, desenvolvido por essa universidade.

O crescimento da EaD nos cursos de licenciatura faz com que nos debrucemos sobre o papel da formação inicial e continuada em outros ambientes de aprendizagem, ao mesmo tempo que nos leva a interrogar nosso papel na docência e como indivíduos que compõem uma profissão. Os novos desafios profissionais e intelectuais são ainda pouco conhecidos, se compararmos com aqueles que caracterizavam o contexto escolar, no qual muito de nós aprendemos o nosso ofício.

Conforme dados trazidos pelos autores do artigo resenhado, a Univesp

é a quarta universidade pública paulista, juntamente com a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e a Universidade Estadual Paulista (UNESP). Ela caracteriza-se como um espaço público institucionalmente relevante, em razão de ser uma das poucas universidades públicas direcionadas para a educação a distância no país. Implementada em 2012, pela lei de número 14836, a universidade registrou 59.781 estudantes matriculados em cursos de graduação, no ano de 2022 (UNIVESP, 2022). De acordo com informações disponíveis no portal da instituição, em 2023, a UNIVESP desenvolveu atividades de formação em 370 municípios do Estado de São Paulo, distribuídas em 424 polos, o que representa mais de 50% das cidades de São Paulo (p. 4).

Dessa forma, dada a importância e a capilaridade de uma universidade pública paulista voltada exclusivamente ao ensino à distância, é preciso esclarecer que ela se destaca no projeto de formação de professores na modalidade e cuja qualidade ofertada é um de seus objetivos centrais, ao contrário da maioria das instituições privadas, que são reguladas exclusivamente pela lógica do mercado (p. 6). A prerrogativa da qualidade ofertada transparece também nos seguintes dados:

a instituição oferece aos estudantes de pós-graduação da USP, UNICAMP e UNESP, por meio de um convênio com tais instituições, uma especialização lato sensu em Processos Didático-Pedagógicos para Cursos na Modalidade Educação a Distância, que tem como objetivo proporcionar um aprofundamento teórico sobre a modalidade EaD no ensino superior e contribuir para o campo da pesquisa nessa área (UNIVESP, 2023b). Além do aprofundamento teórico, o curso apresenta uma carga horária prática que possibilita o desenvolvimento de atividades junto aos estudantes de graduação da UNIVESP (p. 6).

A FORMAÇÃO PEDAGÓGICA PARA A DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR

Assim, um dos temas relevantes de que trata este artigo, ao enfocar o estudo de caso aludido, diz respeito à formação pedagógica para a atuação na docência do Ensino Superior. Ao estabelecer o convênio com estudantes de pós-graduação das outras três universidades públicas paulistas, elege-se, como tema/problema, a formação para a docência no Ensino Superior, questão sensível para muitos professores que ingressam na modalidade sem terem passado por uma experiência docente, dada a exigência da titulação e ênfase na pesquisa, que deixa de lado, muitas vezes, a formação prática para a docência.

A formação pedagógica para a docência no Ensino Superior é, ainda, objeto de reflexão, uma vez que muitos professores que ingressam em um concurso público no Magistério Superior o fazem por meio de um processo de formação desconectado com a prática da sala de aula, já que a exigência para se tornar professor universitário está condicionada à posse dos títulos acadêmicos, conforme a regulamentação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei n.o9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996).

Os participantes da pesquisa reconhecem a experiência de serem facilitadores como algo importante na sua formação profissional, mas percebem a prática como uma tarefa ambígua devido à combinação de tarefas docentes e não-docentes. Entretanto, os autores do artigo afirmam que grande parte dos facilitadores se reconhece como professores. É essa complexidade da função de facilitador que os autores buscaram analisar mais detidamente.

Este é um tema pertinente uma vez que assistimos a um crescimento exponencial dos cursos de licenciatura ofertados à distância e pouco questionamos sobre como tem sido feita sua mediação do processo pedagógico. É importante, pois, que a figura do tutor ou facilitador seja melhor compreendida e analisada, visto que estamos passando, nas últimas décadas, por uma transformação muito grande nos tempos, espaços e sujeitos que ensinam e aprendem.

Os facilitadores são, em sua grande maioria, professores da educação básica e que passam, atualmente, por um processo de desenvolvimento profissional, ao ingressarem nos programas de pós-graduação de uma das três universidades públicas mencionadas. Ao receberem uma bolsa de estudos, assumem a tarefa de mediar um processo de ensino-aprendizagem, ao mesmo tempo em que se especializam em um curso lato sensu em Processos Didático-Pedagógicos sobre a modalidade EaD. Na formação continuada, assumem a tarefa de formadores enquanto são também sujeitos da formação.

Ensinar enquanto aprendem e aprender enquanto ensinam configura-se como trabalho de prospecção de seus futuros papéis no Magistério Superior, seja ele público ou privado. No entanto, se for privado, talvez esta experiência como facilitadores os habilite a pensar nas vicissitudes de serem professores na modalidade à distância, se adquirirem meios e condições para contribuírem com a mitigação das distâncias no que se refere à qualidade da oferta entre ensino público e privado. Entender esse lugar pode colaborar com as reflexões sobre a formação continuada no que diz respeito às práticas pedagógicas exercidas no Ensino Superior à distância em universidades públicas ou privadas.

Muitas vezes percebido como alguém que dispõe de competências meramente técnicas, o facilitador desempenha também um papel pedagógico e intelectual, que envolve elaborar atividades, incentivar a pesquisa, fazer perguntas, avaliar respostas, relacionar comentários, coordenar discussões, sintetizar seus pontos principais e desenvolver o clima intelectual geral do curso, ao encorajar, assim, a construção do conhecimento (Mattar; Rodrigues; Czeszak; Graciani, 2020).

É bem verdade que o termo “facilitador”, tal como empregado na UNIVESP, não se mostra suficiente para compreender a complexidade e a exigência das tarefas que lhes cabem no ambiente virtual de aprendizagem. Além de reunir competência técnica (conhecimento e habilidades) e comportamentais (atitudes), os facilitadores são responsáveis por estabelecer uma dinâmica interacional no processo de formação. No artigo, os autores questionam o lugar de formação desses facilitadores, ao convocarem o papel da formação continuada para dentro do contexto universitário. Assim, não basta a competência técnica para ensinar, é preciso refletir sobre como ensinar em um novo ambiente, virtual, de aprendizagem. As práticas pedagógicas precisam acompanhar as mudanças do cenário educacional.

Ao analisar o caso da UNIVESP, os autores chamam a atenção para outro aspecto da prática pedagógica, que é a defesa do uso das metodologias ativas de aprendizagem aliadas à utilização das tecnologias como estratégias para colocar os estudantes no centro do processo de aprendizagem. Essa temática aparece, então, de forma bem presente nos módulos estudados no curso de formação dos facilitadores.

Entretanto, nos dados analisados pelos autores, é possível perceber que 90% dos facilitadores de fato lançaram mão das metodologias ativas de aprendizagem, mas quase a metade deles afirma ter conhecido essa metodologia somente a partir de sua experiência na UNIVESP, o que denota que muitos professores que almejam ingressar como docentes no Ensino Superior não possuem uma formação didático-pedagógica voltada às Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação (TDICs).

Ao explorar o lugar dos formadores na UNIVESP (suas percepções, estima de si e formação), o artigo desvela a importância dessas impressões sobre as práticas pedagógicas vivenciadas em um curso de formação continuada. Refletir sobre o lugar do mediador da aprendizagem no ambiente virtual constitui um tema relevante, uma vez que, nesse ambiente, o ensino não está centrado exclusivamente na figura do professor. Assim, conhecer as “vozes” dos facilitadores e toda a ambiguidade que, por vezes, cerca a natureza desse ofício é fundamental para refletirmos sobre a natureza dos novos papéis requeridos na docência na modalidade EaD.

Talvez a falta de clareza sobre o papel do facilitador possa ser considerada um sintoma do lugar ainda invisível e pouco estudado da figura desses agentes. Também é interessante observar não apenas a falta de autoestima orientada a si quanto a falta de autoestima prescrita socialmente, fruto da própria desvalorização da tarefa desempenhada. Não obstante, os alunos percebem os facilitadores como o elo humano nesse processo de mediação. São eles os responsáveis por introduzirem um componente essencial e imprescindível da relação de ensino-aprendizagem - o humano - em um ambiente dominado pelas tecnologias e marcado pela padronização, mecanização e rigidez (Mattar; Rodrigues; Czeszak; Graciani, 2020).

Por vezes, os facilitadores afirmam que se sentem desacreditados, para utilizar um termo de Erving Goffman (1982), ou seja, sentem-se despossuídos de legitimidade. Goffman (1982) entende o estigma como algo que é construído pelos membros de uma determinada sociedade, que tem como base uma classificação social feita por meio de atributos positivos ou negativos, e sustenta a tese central de que o estigma provoca a deterioração da identidade do indivíduo. Goffman (1982) entende a interação como um processo fundamental de identificação e diferenciação dos indivíduos e grupos. Assim, podemos pensar que, entre os múltiplos papéis e tarefas que compõem a EaD, o tutor ou facilitador seria aquele mais vulnerável ao sentimento de sujeito desacreditado ou desacreditável. Isso porque, geralmente, um facilitador é também um professor fora da modalidade à distância e, perante o professor formador ou mesmo diante dos alunos, é visto apenas como o sujeito mediador, que ocupa um “entre-lugar” no contexto da EaD.

Apesar desse sentimento, os facilitadores reconhecem que estão trabalhando “na linha de frente” do processo de ensino-aprendizagem e desempenham, muitas vezes, o papel do professor, com as mesmas obrigações, mas sem o mesmo estatuto. Do mesmo modo, são eles que possuem a autoridade para colocar em prática as metodologias ativas requeridas em um ambiente virtual de aprendizagem (AVA) e testar os seus limites e as suas contribuições.

Há várias evidências, na literatura, que demonstram como os facilitadores se percebem como realizando um trabalho docente, apesar da atuação do tutor, no Brasil, não ser considerado, por muitos, como uma prática docente. Melani (2013, p. 118), por exemplo, destaca o fato de os tutores terem indicado que “o tutor é professor, apesar da compreensão de não serem reconhecidos e valorizados institucionalmente como docentes”.

É importante, então, refletir sobre o uso sistêmico e intencional de tecnologias na formação continuada do professor para que se faça um uso pedagógico adequado nos processos educacionais. É necessário discutir também como ocorrem essas práticas pedagógicas em contextos digitais. A oferta de cursos e disciplinas na modalidade precisa considerar que os tempos e espaços são distintos da educação presencial e, portanto, no AVA, as práticas pedagógicas precisam estar em sintonia com os contextos onde operam. Isso significa também reinventar práticas pedagógicas, bem como as relações com o objeto do conhecimento. O que ensinamos? Como ensinamos? Novos arranjos didáticos se impõem como imperativos diante de novas situações de aprendizagem. Como a pessoa aprende a ser, a sentir, a agir, a conhecer e a intervir como professor? Quando falamos em formação continuada, devemos pensar que ela está inextricavelmente relacionada à formação inicial e também à identidade de um exercício profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, destacamos que o tema sobre as competências para ensinar não é novo. A base do conhecimento deve lidar com os propósitos da educação e também com os métodos e as estratégias para educar. A chave para distinguir a base do conhecimento para o ensino está na interseção entre conteúdo e pedagogia, na capacidade do professor transformar o conhecimento do conteúdo que possui em formas pedagogicamente poderosas e, mesmo assim, adaptáveis às variações em habilidade e histórico apresentadas pelos alunos.

Tardif (2010), ainda que não se refira explicitamente à EaD, nos ajuda a pensar sobre o papel desempenhado pelo facilitador, o qual se vale de sua experiência pregressa ou presente para desempenhar o trabalho de mediação docente. Certamente, as situações vivenciadas pelo facilitador em seu cotidiano, assim como o processo de formação continuada como bolsista de uma universidade virtual, facilitam a comunicação pedagógica estabelecida no AVA e colaboram com a partilha das experiências entre pares, fundamental para a formação desses professores no papel ativo de mediadores no processo de ensino-aprendizagem.

Na EaD, assim como os alunos, os professores precisam manejar competências digitais para que haja uma contribuição efetiva para a aprendizagem. Segundo Garbin e Oliveira (2024), nessa modalidade de ensino, é muito comum que sejam valorizados mais os aspectos visuais, sem considerar como deveriam ser os aspectos didáticos e instrucionais. Mais comum ainda é a adoção de um único modelo de produção, sem que sejam levadas em conta as especificidades das áreas de conhecimento, em que tecnologias podem ser aplicadas segundo certa base educacional, isso porque essas tecnologias não carregam qualquer intenção pedagógica. Nos modelos de disciplinas, por exemplo, é possível verificar que as videoaulas podem ser utilizadas de formas distintas.

Essa identificação das necessidades de ensino e de aprendizagem permite que os atores do processo educacional definam métodos e estratégias que ajustem elementos didáticos, tecnológicos e de conteúdos para apoiar o processo educacional em cada contexto. Esta é a base para a construção dos modelos descritos ao longo desta pesquisa (Garbin; Oliveira, 2024, p. 22).

Dessa forma, a complexidade da formação continuada nos cursos de EaD deve levar em conta que, nesses ambientes, há vários atores trabalhando para que o conhecimento se efetive. É necessária uma equipe multidisciplinar com tutores, facilitadores, professores autores, designer instrucional, dentre outros. Em uma disciplina ofertada à distância, o professor começa a elaborá-la com antecedência e, quando ela se inicia, é preciso um trabalho integrado com outros profissionais, como os facilitadores.

Essa tarefa, visível para os alunos e invisível muitas vezes para a própria instituição ou para os professores formadores, deve ser percebida como uma oportunidade formativa ancorada na escuta. São eles, na modalidade do ensino à distância, que constroem o elo para quem se endereça a atividade-fim, isto é, a aprendizagem dos alunos. São eles que constroem o sentido do ensino quando compartilham os acertos e os erros com outros colegas, sobretudo no que diz respeito ao uso das metodologias ativas.

Seja na modalidade presencial ou à distância, é forçoso reconhecer ainda que os saberes advindos da prática são geralmente menosprezados em processos de formação continuada. Segundo Schulman (2014), uma das frustrações do ensino como ocupação e profissão é a extensa amnésia individual e coletiva, a consciência com que as melhores criações dos educadores são perdidas por seus pares tanto contemporâneos como futuros. Ao contrário de outros campos profissionais, onde se preservam as anotações, os registros e as documentações das práticas pedagógicas empreendidas, o ensino é conduzido sem a audiência dos pares e carece de uma história da própria prática (Schulman, 2014).

Os facilitadores, por estarem inseridos na “caixa preta do sistema”, têm a chance de se valerem da empiria, do estudo e da reflexão sobre o conhecimento envolvido na relação com aquilo que se vai ensinar e de pensar como se vai ensinar. Ao mesmo tempo em que são mediadores do processo, situam-se em uma posição privilegiada para analisar como o conhecimento é construído, transmitido e apropriado no contexto educacional, considerando os diferentes métodos, abordagens e teorias pedagógicas. Vimos que as metodologias ativas nem sempre são sinônimo de eficácia. Analisar as percepções dos facilitadores consiste em uma via interessante para compreender o próprio processo de socialização profissional daquele que é responsável por estabelecer a ponte, na prática, entre os conteúdos e as maneiras de ensinar, tendo como sujeitos sócio-históricos os alunos, os professores supervisores e a dialogicidade presente na figura do facilitador.

Assim, se a formação continuada não deve estar desprendida do processo de indução profissional, como se explica que, em uma dinâmica de exercício profissional, os facilitadores experimentem um sentimento ambíguo: ao mesmo tempo em que se reconhecem como professores no contexto da mediação pedagógica, costumam sentir que não são autorizados a assumir o papel do professor, tal como prescrito na hierarquia profissional do AVA? É esse não-lugar que deve ser melhor explorado em futuras pesquisas.

A pergunta sobre quais habilidades e sensibilidades transformam alguém em um professor competente tem atravessado gerações de estudiosos e sido objeto dos formuladores de políticas educacionais ao longo das últimas décadas. A nossa compreensão acerca das mudanças ocasionadas pelo ensino à distância caminha ainda de maneira desproporcional ao modo como ela vem sendo implementada. Ensinar é algo que não se circunscreve a um conjunto de fórmulas triviais. É um processo muito mais complexo do que isso, na medida em que muitos professores ainda demonstram dificuldade em articular o que sabem e como sabem (Schulman, 2014). As vicissitudes de ensinar e de ensinar à distância tornam essa tarefa ainda mais complexa.

Schulman (2014) dizia que raciocinar pedagogicamente significa transformar ideias compreendidas em maneiras de ser ensinadas. Isso pressupõe um poderoso processo de mediação que não é autoevidente. Ele se faz por meio de uma interpretação crítica, de uma representação das ideias em novas analogias, em seleções instrucionais em um leque de métodos e modelo de ensino, em uma visão contextual refinada para adaptar aquilo que se sabe para as características do público a que se pretende ensinar.

Esta é a dinâmica da qual nenhum sujeito que se propõe a ensinar deve prescindir: é a passagem da compreensão pessoal à preparação da compreensão por outrem. Esta passagem compreende a capacidade de raciocinar pedagogicamente, do ensinar como pensamento e do planejar - implícita ou explicitamente - o exercício da docência (Schulman, 2014, p. 217-218).

Desvelar os desafios presentes em uma nova modalidade de ensino e analisar os papéis construídos em um outro tecido educativo significa reconhecer que não podemos ser indiferentes aos processos de transformação da nossa profissão. Renegar a prática ou renegar a pesquisa, renegar o saber dos professores ou renegar o saber produzido pelos pesquisadores é fugir do choque que o mundo do outro pode representar, é recusar-se a ser interpelado por um outro sentido. Defender a pesquisa na área do ensino e, mais globalmente, argumentar em favor da aproximação entre pesquisadores e práticos, é desejar a abertura para o sentido.

Assim, a relação entre a pesquisa e a prática - sobretudo pelo desvelamento de um saber da ação pedagógica -, o acesso, para os pesquisadores e práticos, ao mundo do outro, seu conhecimento mútuo, representa a possibilidade de um encontro, é dar ao sentido uma oportunidade de nos “desestabilizar”, de nos levar para outro lugar (Gauthier et al., 2013, p. 394).

Reconhecer o papel dos facilitadores em uma nova configuração de ensino-aprendizagem é, ao mesmo tempo, um ato de razão e de desestabilização. Nessa nova configuração, inscrevemos nossa capacidade de ler a realidade, contextualizar o problema e, quem sabe, poder transformar o conhecimento do conteúdo em formas pedagogicamente poderosas, adaptáveis a um novo contexto de aprendizagem, a um novo ambiente mediado pelo uso das tecnologias, mas também dos mediadores do processo, os agentes facilitadores, professores da educação básica em sua maioria.

O crescimento dos cursos à distância ofertados por instituições públicas e privadas exige que nossas ambições teóricas não sejam maiores do que a compreensão da realidade fática desenhada pelo novo cenário educacional, tal como aludido no início deste texto. Assim, temas como formação continuada, profissionalização docente, identidade profissional, qualidade da oferta, entre outros, devem ser pensados também no contexto da EaD como forma de diminuir o fosso muitas vezes intransponível entre a formação e a política, e contribuir para transformar a condição socioprofissional dos professores e, por meio dela, garantir ao aluno o direito à aprendizagem.

REFERÊNCIAS

  • BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. LDB - Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996.
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  • INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar da Educação Superior de 2022. Disponível em:https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar
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  • MATTAR, João; RODRIGUES, Lucilene Marques Martins; CZESZAK, Wanderlucy; GRACIANI, Juliana. Competências e funções dos tutores online em Educação a Distância.Educ. rev .,Belo Horizonte, v. 36, e217439, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-4698217439
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  • MELANI, Nelma de Toni Donadelli Zonta. Tutoria na educação a distância: um estudo sobre a função pedagógica do tutor. 2013. 129f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de Brasília, Brasília, 2013.
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  • SCHULMAN, Lee S. Conhecimento e ensino: fundamentos para uma nova reforma. Cadernos CENPEC, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 196-229, dez. 2014. Tradução de Leda Beck e revisão técnica de Paula Louzano. Disponível em: Disponível em: https://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/cadernos/article/view/293 Acesso em29 jun. 2024.
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  • TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional 17. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

Editado por

  • 1
    Editora-Chefe participante do processo de avaliação por pares aberta: Suzana dos Santos Gomes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2024
  • Aceito
    14 Jul 2024
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